Mais de 14,6 milhões de euros de subvenção estatal no ano passado, 221 jornalistas no quadro, uma editoria de fotografia com orçamento próprio de quase 600 mil euros – e, no entanto, enquanto o país ardia, a agência noticiosa Lusa decidiu retratar a participação de imigrantes no combate aos incêndios rurais com uma reportagem preguiçosa, redigida a partir de uns telefonemas, da “cópia” parcial de um artigo do Dhaka Post e ‘enfeitada’ por fotografias de arquivo .
Nada de repórteres no terreno, nada de fotografias tiradas por fotojornalistas, nada de confronto com os protagonistas principais, nada de validação junto das entidades responsáveis. Acrescia a tudo isto um tom laudatório, quase missionário, ao qual se somava um pormenor inadmissível até num estagiário de jornalismo: alguns dos imigrantes referidos pela Lusa eram identificados apenas com um nome. A peça acabou reproduzida sem pestanejar pelo Expresso, que — mais uma vez — demonstrou ser apenas correia de transmissão de uma informação mal apurada. E ainda fez pior: em vez de fotografia de arquivo (como fez a Lusa), alguém se lembrou no Expresso de ‘enfeitar’ uma reportagem manca (por ter sido feita ao telefone nem sequer ter sido enviado um fotojornalista) com imagens de má qualidade pescadas nas redes sociais.
Reportagem ‘original’ do Expresso, via Lusa.
Analise-se as ‘imagens’ usadas pelo Expresso – e aqui aplica-se o ditado de que uma imagem vale por mil palavras, embora neste caso signifique que uma má imagem pode destruir a credibilidade de mil palavras. A dúvida saltava à vista.
Numa, um grupo de 14 homens com camisolas amarelas posa sentado a uma mesa de madeira, com garrafas de Coca-Cola e copos de plástico. Na outra, vê-se um conjunto de sapadores de capacete amarelo e fato anti-fogo laranja e verde segurando uma mangueira, alinhados em plena serra, mais um a olhar para a câmara de uniforme amarelo e verde e chapéu, enquanto um pequeno fogo de mato lavra a alguns metros de distância.
Na primeira fotografia, os traços dos sapadores denotavam a sua origem étnica, mas a qualidade da imagem e diversos elementos causavam estranheza. Na segunda, além da fraca qualidade, a aparente descontração do elemento que olhava para a câmara levantava dúvidas num cenário de fogo activo, embora também pudesse tratar-se de uma acção preventiva de fogo controlado noutra época do ano.
Fotografia usada pela ‘reportagem’ do Dhaka Post e depois usada pelo Expresso.
Seriam fotografias ilustrativas de equipas de sapadores? Eram, afinal, imagens autênticas ou fruto das manipulações correntes em tempos de inteligência artificial? Foi o que muitos começaram a questionar nas redes sociais — e até um deputado do Chega, Rui Paulo Sousa, aproveitou para lançar suspeitas sobre a veracidade da reportagem. Ao longo do dia de ontem, a rede social X inundou-se de publicações a pôr em causa a autenticidade das fotos – e, por arrasto, da própria reportagem –, não faltando análises sobre a probabilidade de recurso a inteligência artificial que a classificavam como altamente suspeita.
Esta polémica não teria nascido, sublinhe-se, se a Lusa e o Expresso tivessem feito o mínimo trabalho jornalístico: produzir as suas próprias imagens – é para isso que existem fotojornalistas numa agência que teve rendimentos no ano passado de mais de 18,8 milhões de euros – ou, na pior das hipóteses, confirmar a origem das fotografias, ouvir responsáveis da associação que supostamente emprega os homens retratados e garantir que as declarações encaixavam no contexto real. Mas nada disso foi feito.
Na pseudo-reportagem da Lusa, depois amplificada pelo Expresso com uso de imagens não validadas, não surge uma única palavra de Vasco Campos, presidente da Caule – Associação Florestal Beira Serra, uma das mais dinâmicas da região Centro e alegado empregador dos sapadores florestais retratados. Não há confirmação, não há enquadramento, não há sequer números. Apenas uma narrativa romanceada sobre imigrantes da região do Indostão que estariam “na linha da frente” do combate às chamas.
Segunda fotografia da polémica ‘reportagem’.
Perante a quantidade absurda de reacções sobre a eventual manipulação de imagens e de informação usada pela Lusa e Expresso, o PÁGINA UM fez aquilo que se exige a quem leva o jornalismo a sério: foi ouvir Vasco Campos. E, embora tenha lamentado que o jornalista da Lusa (e o Expresso) não o tenha contactado, este dirigente da associação com sede no concelho de Oliveira do Hospital confirmou ao PÁGINA UM, sem rodeios, que as fotos eram verdadeiras, embora captadas antes dos incêndios recentes com recurso a um telemóvel antigo — daí a fraca qualidade — e que 70% dos seus sapadores florestais são hoje estrangeiros.
Na verdade, fundada em 2001, a Caule possui actualmente seis equipas de cinco elementos cada, portanto 30 pessoas, não incluindo técnicos, a proteger cerca de seis mil hectares de floresta nos concelhos de Oliveira do Hospital e Seia. “Sobretudo a partir de 2019, foi esta a solução que encontrámos. Estou muito satisfeito”, afirma. Entre os trabalhadores, predominam, conforme destaca, cidadãos do Bangladesh, Paquistão e Índia, a que se juntam alguns africanos, incluindo dois angolanos e um marroquino.
Os números são, portanto, claros, apesar de omitidos na pseudo-reportagem da Lusa: de 30 sapadores da Caule, duas dezenas são imigrantes. E a experiência, garante Vasco Campos, tem sido positiva. “Na generalidade, são excelentes trabalhadores, cumpridores e cordatos. Sentam-se à mesma mesa que eu”, diz, frisando que a integração local é boa e que várias famílias já vivem na região, com filhos, alguns já nascidos em Portugal. “Aqueles que andam na escola são muito bons alunos”, acrescenta ainda, notando com graça que alguns dos mais jovens até bebem uma cerveja de vez em quando, ou fumam, “mas às escondidas dos mais velhos”.
Publicação no X do deputado Rui Paulo Sousa.
O verdadeiro problema para a manutenção destas equipas multiétnicas, admite Vasco Campos, é financeiro: “Não conseguimos pagar mais do que o salário mínimo nacional. O salário bruto ronda os 1.500 euros, mas reduz-se no líquido porque há descontos pesados para impostos, segurança social e seguros, que são caríssimos nesta profissão de alto risco.” Os apoios estatais cobrem menos de metade das despesas, e muitas tarefas de silvicultura têm de ser asseguradas como contrapartida. Em todo o caso, vários destes elementos estão em casas disponibilizadas pela associação e os membros isolados juntaram-se para alugar habitações em aldeias próximas. Nestas condições, um salário mínimo numa aldeia de Oliveira do Hospital vale muitíssimo mais do que o mesmo rendimento numa cidade como Lisboa, o que permite a estes imigrantes pouparem dinheiro para enviarem para os seus países, como aliás sucedeu com as remessas dos emigrantes portugueses que rumaram sobretudo para países europeus e americanos a partir da década de 60 do século passado.
Na frente de combate, a eficácia destas equipas de sapadores que integram imigrantes ficou demonstrada nos incêndios recentes: ainda arderam cerca de 1.500 hectares de terrenos florestais da associação Caule, mas a intervenção dos sapadores foi decisiva para travar a propagação em zonas críticas. “Trabalhámos noite dentro, que é quando as condições meteorológicas são mais favoráveis para um ataque ao fogo em zonas bem geridas”, acrescenta Vasco Campos.
Conclusão: de facto, há equipas de sapadores maioritariamente estrangeiros, como a da Caule — mas também se fica a saber como a desinformação nas redes sociais, criticada rudemente pela imprensa, é afinal muitas vezes gerada paradoxalmente a partir de má informação da própria imprensa.
Ontem, rapidamente circularam no X diversas publicações a atribuírem manipulação de imagens por inteligência artificial.
Quando a principal agência de notícias do país publica uma reportagem sem fotografias próprias in loco, sem validar fontes e sem ouvir quem devia ouvir, o resultado é um produto jornalístico frágil, permeável a dúvidas legítimas e combustível perfeito para suspeições populistas. A verdade passa a ser refém do amadorismo. E quando depois um jornal que se autoproclama de referência ‘saca’ fotos de má qualidade e coloca como créditos as redes sociais, sem identificar sequer a fonte em concreto, não se pode queixar da perda de credibilidade, que o afecta a si, mas também a todo o jornalismo.
Este caso ilustra uma tendência cada vez mais preocupante: o jornalismo português, mesmo aquele subsidiado com milhões de euros do erário público, prefere poupar nos custos mais elementares — deslocar repórteres, enviar fotojornalistas, gastar combustível — para se refugiar na comodidade do telefone e no saque às redes sociais. As redacções deixam de fazer trabalho de campo e transformam-se em escritórios de copy-paste. A diferença entre notícia e boato, entre reportagem e comentário laudatório, esbate-se perigosamente.
Neste caso em concreto, além das falhas na reportagem, destaca-se o uso de fotografias obtidas em redes sociais, sem qualquer validação, em vez de serem feitas por um fotojornalista, ainda mais relevante por se tratar, supostamente, de uma reportagem, que nem sequer faz sentido ser feita a partir de uma secretária.
Agência Lusa fez uma reportagem ser ir ao local. O Expresso republicou e decidiu ir ‘pescar’ fotos amadoras nas redes sociais sem sequer identificar correctamente a fonte.
E aqui remete-se para um problema que começa a ser crónico: a perda da relevância da fotografia como elemento fulcral do jornalismo, e sobretudo na reportagem jornalística, no seio da imprensa mainstream. Até porque se pensa que, agora, com a democratização dos smartphones com câmaras fotográficas, se generalizou a ideia de que a fotografia pode ser obtida de qualquer forma.
José Manuel Ribeiro, um dos mais reputados fotojornalistas portugueses, afirma que “o primeiro problema é que os cursos de comunicação social e jornalismo têm vindo a eliminar o ensino de fotografia”, algo que se agravou com a crise financeira na imprensa.
“Com a redução das redacções, são pessoas impreparadas profissionalmente que estão a escolher as fotografias a publicar”, salienta este antigo fotojornalista da Lusa, Público e Reuters, que lamenta que “os órgãos de comunicação social tenham deixado de ter editorias de fotografia”. Para José Manuel Ribeiro, agora “o tratamento das fotografias é mau; antes, a foto era uma garantia de autenticidade e dava credibilidade às notícias e reportagens.”
Alegadamente, o próprio Grok atribuiu manipulação nas fotografias. A possibilidade de ‘falsos positivos’ aumenta, contudo, quando fotos amadoras são tiradas com telemóveis mais antigos.
Para agravar, hoje existe uma tendência na imprensa, que não ocorria há alguns anos, de se usar material da Lusa sem validação posterior. Assim, no caso da “reportagem” sobre os sapadores imigrantes, o Expresso publicou-a tal como estava, como quem despeja mercadoria numa banca, sem edição crítica, sem escrutínio. E coloca a cereja em cima do bolo do descrédito: usa fotos amadoras fazendo crer que estavam na reportagem original da Lusa.
Este é o retrato de uma dependência estrutural: o jornal que em tempos se quis referência torna-se refém de uma agência que lhe serve material pronto a usar, mesmo que esse material seja deficiente. Resultado: os leitores foram confrontados com uma reportagem que não esclareceu, não quantificou e não contextualizou — apenas contribuiu para a cacofonia em torno dos fogos e da imigração.
Em suma: sim, é verdade que hoje em Portugal há equipas de sapadores florestais compostas maioritariamente por estrangeiros. Sim, eles são protagonistas na prevenção e no combate inicial aos fogos. Mas aquilo que a Lusa e o Expresso entregaram ao público foi uma pseudo-reportagem sem rigor, com fotografias duvidosas, sem protagonistas ouvidos e sem dados fiáveis. O debate público sobre imigração e incêndios não precisa de peças romantizadas; precisa de factos sólidos, de vozes directas, de números verificados.
Brigadas de sapadores florestais da Caule. O PÁGINA UM falou ontem com o presidente desta associação, Vasco Campos. Fonte: Caule – Associação Florestal da Beira Serra
Este episódio mostra como nasce e se propaga a desinformação: não da sombra obscura das redes sociais, mas do coração de órgãos que deviam ser guardiões da informação fidedigna. Quando os meios de referência falham no básico, abrem caminho ao boato, ao populismo e à descrença.
A desinformação, neste caso como em tantos outros, começa não no X ou no Facebook ou no WhatsApp, mas sim em redacções preguiçosas, com a chancela oficial da agência nacional de notícias. E o aplauso da imprensa generalista que, com as reportagens da Lusa, fica satisfeita por encher chouriços.
Agosto de 2025 ficará gravado como o mês mais negro na já longa história do combate aos incêndios rurais em Portugal. E não por pouco. Embora o número de ocorrências não seja particularmente elevado – 2.255 registos, muito aquém dos mais de 10.486 ignições em Agosto de 2003 (o pior mês de sempre, em que arderam 312 mil hectares em 31 dias) –, a devastação ultrapassa qualquer parâmetro aceitável em termos de eficácia na extinção.
Até ao dia de hoje, de acordo com dados oficiais do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), os 211.240 hectares de floresta, matos e áreas agrícolas já consumidos pelas chamas desde o dia 1 de Agosto farão deste mês o terceiro pior, assumindo que os 212.917 hectares dizimados em Agosto de 2005 serão ultrapassados.
Se a última semana do mês em curso não piorar os valores, Agosto de 2025 ficará apenas aquém dos tristemente lendários meses de Agosto de 2003 (312 mil hectares) e de Outubro de 2017 (289 mil hectares), neste caso ardidos em pouco mais de 24 horas devido a fenómenos meteorológicos absolutamente atípicos.
Contudo, a tragédia de Agosto de 2025 atinge proporções históricas na ineficácia do combate, que nunca foi tão baixa, revelando fragilidades profundas no modelo português de resposta aos incêndios.
De facto, se o retrato absoluto já assusta, o retrato relativo é ainda mais chocante. Em Agosto de 2003, o primeiro mês dantesco da triste história dos fogos rurais em Portugal, cada incêndio destruiu, em média, cerca de 105 hectares, a primeira vez que se superou a fasquia dos 100 hectares. Esse valor manteve-se sempre como um triste recorde até Outubro de 2017, em que, por virtude de uma área ardida de 289 mil hectares em apenas pouco mais de 1.500 incêndios, se atingiu uma média de 189 hectares.
Evolução mensal da área média ardida por incêndio rural (excluindo fogachos) em Portugal, de Janeiro de 2001 a Agosto de 2025 (até dia 24). O valor registado em Agosto de 2025 é o mais elevado de sempre, atingindo 339 hectares por incêndio, muito acima dos anteriores picos de Outubro e Junho de 2017, Setembro de 2024 e Agosto de 2003. Fonte: ICNF. Análise: PÁGINA UM.
Se Outubro de 2017 teve condições meteorológicas atípicas, que dificultavam o combate, já Setembro do ano passado devia ter sido mais um sinal do colapso do actual modelo de combate. Esse mês concentrou quase toda a área ardida de 2024 e cada incêndio (num total de 821) destruiu, em média, 154 hectares, um valor também absurdamente elevado.
Mas em Portugal, o absurdo pode sempre ser ultrapassado, mesmo com valores estratosféricos. No mês de Agosto de 2025, ainda em curso, cada incêndio consumiu em média 339 hectares – ou seja, quase 80% acima do recorde negativo anterior. E o número de ignições acima de um hectare (622) fica muito aquém dos três piores meses em área ardida: Agosto de 2003 contabilizou 2.980 incêndios (ocorrências com mais de um hectare), Outubro de 2017 contabilizou 1.531 e Agosto de 2005 teve 4.518. Ou seja, nesses períodos, o sistema de combate teve provas de fogo e falharam; agora, com menor intensidade de combate alargado, ainda falharam pior.
Mesmo quando se incluem os chamados fogachos (ignições de reduzida dimensão, inferiores a um hectare), a imagem é igualmente devastadora no presente mês de Agosto: cada ocorrência, mesmo contabilizando as mais pequenas, resultou em quase 94 hectares de área ardida em Agosto de 2025, ultrapassando largamente os 81 hectares de Outubro de 2017 e, sobretudo, os outros meses mais negros. Por exemplo, em Agosto de 2003, ainda o pior mês em área ardida, registaram-se 10.486 ignições (cerca de quatro vezes mais do que em Agosto de 2025), pelo que a média por ocorrência se fixou em 30 hectares.
Evolução mensal da área média ardida por ocorrência (inclui fogachos, incêndios florestais e agrícolas e ainda reacendimentos) em Portugal, de Janeiro de 2001 a Agosto de 2025 (até dia 24). O valor em Agosto de 2025 é o mais elevado de sempre, atingindo 94 hectares por ocorrência, muito acima dos anteriores picos (Outubro de 2017 e Setembro de 2024). Fonte: ICNF. Análise: PÁGINA UM.
Este contraste entre o número relativamente baixo de ignições em Agosto de 2025, sobretudo em comparação com 2003 e 2005, e a dimensão catastrófica dos danos não pode ser explicado pela meteorologia ou pelo acaso. O PÁGINA UM analisou todos os registos mensais desde Janeiro de 2001 até ao presente, e a conclusão é inequívoca: a máquina de combate está em colapso, mesmo com uma tendência de redução de ignições, e Setembro do ano passado já foi o primeiro sinal.
O país enfrenta hoje menos ignições do que há vinte anos – reflexo provável de maior sensibilização da população, menor incidência de actos dolosos e de práticas negligentes –, mas o dispositivo de supressão não conseguiu impedir que fogos de média e grande dimensão se transformassem em verdadeiros monstros incontroláveis.
A explicação para esta deriva não reside apenas nas condições de calor extremo ou na acumulação de combustível vegetal, factores que são comuns a outras épocas. O problema mostra-se estrutural: Portugal mantém um modelo de combate anacrónico, assente numa miríade de corporações pseudo-voluntárias, dependentes de subsídios e apoios, mas sem verdadeira coordenação estratégica.
Evolução do número de ocorrências (inclui fogachos, incêndios florestais e agrícolas e ainda reacendimentos) em Portugal, de Janeiro de 2001 a Agosto de 2025 (até dia 24). O valor registado em Agosto de 2025 é apenas o 80.º mês com mais ocorrências desde Janeiro de 2001. Fonte: ICNF. Análise: PÁGINA UM.
Multiplicam-se as associações e estruturas locais, cada uma a reclamar mais meios e mais recursos, mas sem um planeamento central eficaz nem uma doutrina clara para debelar incêndios em regiões de risco acrescido, como o Centro e o Norte Interior, onde se concentram vastas manchas de povoamentos florestais, matos e áreas agrícolas abandonadas.
O país investe anualmente centenas de milhões de euros em meios aéreos, máquinas e dispositivos, mas falha naquilo que é essencial: prever e neutralizar os incêndios que, pela sua localização e condições, têm alta probabilidade de atingir grandes dimensões. Ao invés de uma estratégia nacional que privilegie o ataque inicial rápido e coordenado nos focos críticos, continua-se a gastar energias e recursos numa guerra de desgaste, em que milhares de homens são mobilizados para fogos já fora de controlo, enquanto os decisores políticos se escudam em discursos inflamados sobre a “coragem dos bombeiros”.
Agosto de 2025 é, por isso, um mês-síntese das contradições portuguesas: menos fogos do que no passado, apesar da tentativa de criar uma percepção diferente, mas incêndios cada vez mais devastadores; mais meios, mas menos eficácia; mais discursos de exaltação, mas menos resultados concretos. Se em 2003 e 2005 o drama pôde ser explicado pela combinação de um número extraordinário de ignições com condições meteorológicas extremas, e se em 2017 a tragédia se deveu ao caos de coordenação e falhas operacionais, o que hoje se observa é ainda mais inquietante: o sistema está, pura e simplesmente, a perder eficácia estrutural.
Indicadores dos 20 piores meses desde 2001. Fonte: ICNF. Análise: PÁGINA UM.
Portugal habituou-se a viver com a retórica do “combate heroico” e com a lógica cíclica da “economia do fogo”: cada ano de desastre é seguido de promessas de reformas e investimentos, que logo se dissolvem na espuma das estações. As corporações locais, dependentes de subsídios, clamam por mais recursos, os fornecedores de meios aéreos multiplicam contratos milionários, e os políticos exibem-se nos “postos de comando” a debitar palavras de circunstância. Entretanto, a floresta arde, os solos erodem e as aldeias do interior esvaziam-se, ano após ano, numa espiral de abandono e desolação.
A tragédia de Agosto de 2025 não é, por isso, apenas o resultado de um verão quente. É o espelho de um modelo esgotado, incapaz de se adaptar à realidade contemporânea. O país reduziu drasticamente as ignições ao longo das últimas duas décadas, sinal de que já não somos a mesma sociedade de descuido e fogo posto dos anos 80 e 90. Mas, ao mesmo tempo, nunca estivemos tão mal preparados para enfrentar os grandes incêndios que, inevitavelmente, surgem em zonas críticas.
Os desastrosos números da eficácia no combate – e há ainda outros indicadores que permitiriam reconfirmar este desastre, se forem disponibilizados – são um retrato fiel da falência do sistema. Não estamos perante um azar estatístico, mas perante um falhanço nacional que exige reflexão séria e reformas profundas.
Caso contrário, o próximo mês de Setembro, ou um outro qualquer em época de risco, poderá não ser apenas o pior em eficácia: poderá ser, pura e simplesmente, o pior de sempre em todos os indicadores. Com este modelo, todos os recordes negativos são possíveis de bater.
Adenda (25/8/2025): como complemento a esta notícia de 22 de Agosto, neste domingo (dia 24) saíram as colocações para o ano lectivo de 2025/2026 que confirmam a pouca atractividade das licenciaturas em Engenharia Florestal. No total, foram abertas 60 vagas em três instituições – Escola Superior Agrária de Coimbra, Instituto Superior de Agronomia (Lisboa) e Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro –, mas apenas 13 lugares foram ocupados. Em Coimbra entraram seis alunos (em 20 vagas), em Lisboa apenas quatro (em 20 vagas) e em Vila Real três (em 20 vagas), sobrando 47 vagas para as fases seguintes, o que corresponde a uma taxa de ocupação de apenas 22%. A situação deste ano ainda piorou mais face ao cenário exposto no título desta notícia.
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Portugal continua a arder, ano após ano – e este será pelo menos o quarto pior de sempre, com mais de 210 mil hectares já consumidos – numa espécie de ritual estival que junta a indiferença política ao conformismo social. Ardem os pinhais, ardem os eucaliptais, ardem os soutos e os matos que crescem sem dono e sem regra, ardem as aldeias que se esvaziam de gente e ardem as memórias de um país rural que já poucos querem lembrar.
No meio das cinzas, regressa sempre a mesma ladainha: lamentar a floresta maltratada. Mas essa dor é superficial, quase litúrgica, porque a verdade é que a floresta nem sequer é amada de verdade. Prova disso está num pormenor que deveria envergonhar qualquer governante: já quase nenhum jovem português quer estudar ciências florestais.
Até aos anos 90 ainda havia entusiasmo. Em 1997, por exemplo, o Instituto Superior de Agronomia, da Universidade de Lisboa, abriu 55 vagas em Engenharia Florestal: todas preenchidas, oito em primeira opção. A Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), em Vila Real, ofereceu 60 vagas, também todas preenchidas, 11 em primeira escolha.
A rede de escolhas era então vasta, ainda antes do Processo de Bolonha: além das licenciaturas de cinco anos, a Escola Agrária de Coimbra tinha um bacharelato em Engenharia das Operações Florestais; a de Bragança oferecia Gestão de Recursos Florestais; a de Castelo Branco tinha Engenharia da Produção Florestal; e ainda havia cursos em Viseu e na Escola de Tecnologia de Bragança.
Nos institutos politécnicos sobravam algumas vagas, mas por regra os bacharelatos – que tinham então a mesma duração das actuais licenciaturas – não eram, em todas as áreas, muito apetecíveis. O país formava então engenheiros e técnicos florestais em abundância, como se soubesse que o futuro da paisagem e a defesa contra os incêndios dependeriam deles.
Escola agrária e florestal por excelência, o Instituto Superior de Agronomia teve todas as suas 55 vagas em Engenharia Florestal ocupadas na primeira fase em 1997; no ano passado só 11 das 20 abertas.
Mas o entusiasmo esfumou-se depressa. Em 2006, já apenas três cursos sobreviviam, todos licenciaturas de três anos: em Lisboa, Vila Real e Coimbra – e mesmo aí a procura começou a escassear. O mundo urbano afastou-se do mundo rural, a política afastou-se das aldeias, e a floresta foi ficando sem quem a conhecesse de perto. Os anos mais recentes são um retrato cruel: os fogos intensificaram-se, mas o interesse pelas florestas desmoronou ainda mais.
Nos últimos cinco anos a crise tornou-se abissal. Em 2020, Coimbra ainda conseguiu preencher as suas vagas, mas a UTAD ficou reduzida a três alunos. Em 2021, de 26 lugares em Vila Real, só três foram ocupados. Em 2022, o desastre repetiu-se: apenas dois alunos escolheram a UTAD, enquanto ISA e Coimbra resistiam com as vagas preenchidas. Em 2023, já nem isso: dos 15 lugares disponíveis em Coimbra, só cinco foram ocupados; em Lisboa, dos 19 lugares, só 10; e em Vila Real, três alunos para 15 vagas.
E o último ano lectivo confirmou o declínio: 15 vagas em Vila Real, apenas duas preenchidas; 20 em Lisboa, só 11 ocupadas; 19 em Coimbra, apenas duas. No total, abriram-se 54 vagas em todo o país e entraram apenas 15 estudantes. Menos de um terço. O curso que formava os profissionais de que a floresta precisa para não arder ficou reduzido a estatística residual. No caso particular da UTAD, somente um regime de excepção por interesse nacional impede o encerramento definitivo da licenciatura.
“Os jovens são urbanos e o rural tem conotações negativas; na mente colectiva a floresta é vista ora como uma desgraça, apontando-se os eucaliptos e os fogos, ora surge romantizada, numa visão lírica de um espaço intocado. Quem tiver essas visões fugirá de um curso florestal e, quando muito, aqueles que tiverem a visão romantizada vão para Biologia”, destaca Paulo Fernandes, professor da UTAD e um dos principais especialistas nacionais em dinâmica de fogos rurais.
Na mesma linha, Teresa Ferreira, professora e presidente do Conselho Científico do ISA, releva que as ciências agrárias, incluindo as florestais, não conseguem cativar uma população jovem cada vez mais urbana, exactamente por causa da perda da ligação ao mundo rural. “Neste momento, quase só os jovens com ligações a famílias com propriedades rurais seguem estes cursos”, acrescenta, sublinhando também as dificuldades que estes sectores das universidades portuguesas têm tido em se modernizar e tornar os cursos mais atractivos.
Certo é que, apesar da escassez – ou, provavelmente, por causa da falta de novos licenciados –, os poucos diplomados não têm qualquer dificuldade em termos de saídas profissionais, mas quase todos seguem para as grandes empresas do sector florestal.
Em suma, Portugal lamenta os fogos quando eles consomem aldeias e serras, mas não investe na floresta antes de ela arder. O divórcio é total: entre o mundo urbano que exige protecção contra incêndios e o mundo rural que já não tem quem cuide das árvores; entre a política que promete reformas e as aldeias que definham; entre os discursos inflamados e os cursos universitários vazios.
A floresta portuguesa, cada vez mais abandonada, é o espelho de um país que se habituou a viver entre cinzas. E quando passa a época dos fogos, os jovens urbanos continuam insensíveis.
Os assaltos a apartamentos durante a noite, enquanto as famílias dormem, começam a ser um flagelo cada vez mais relatado e que deixa marcas e traumas nas vítimas. Umas acordam e deparam-se com os ladrões em casa. Outras só dão conta do assalto quando acordam, de manhã.
Mas tanto num como noutro caso, ficam com marcas e durante algum tempo algumas das vítimas têm dificuldade em adormecer. Nos casos em que havia bebés ou crianças pequenas em casa, na altura do assalto, os pais ficam sobressaltados.
Foto: D.R.
Desde que o PÁGINA UM noticiou este tipo de assaltos, têm-nos chegado mais casos. Em algumas situações, as vítimas acordaram e os assaltantes fugiram. Noutros, as vítimas só de manhã, quando acordaram, é que descobriram que tinham sido assaltadas.
Procurámos saber, afinal, quantas famílias residentes na capital foram assaltadas enquanto dormiam, desde o início do ano. A resposta que obtivemos é que não se sabe.
A Polícia de Segurança Pública (PSP) não consegue indicar quantos assaltos com as famílias a dormir ocorreram este ano em Lisboa. Questionada pelo PÁGINA UM sobre o número de ocorrências deste tipo que foram registadas desde Janeiro, o gabinete de comunicação da PSP foi lacónico: “não nos será possível facultar-lhe uma resposta, tendo em conta a especificidade dos dados que pretende”.
Foto: D.R.
Nos casos que relatámos recentemente, as famílias vítimas de assalto não apresentaram queixa formal, mas as que chamaram a PSP não viram nenhuma prova a ser recolhida nem esperam que sejam investigados os assaltos e detidos os assaltantes. Isto porque, para as autoridades policiais, se não existir sinais de arrombamento nem ameaças ou agressões, então os casos são, de certa forma, desvalorizados.
Esta prática arrisca dar um sinal forte aos assaltantes: podem continuar a invadir casas durante a noite que não serão procurados nem importunados.
Para as famílias, fica uma sensação de impotência perante a invasão do seu lar. Para os assaltantes, fica o sentimento de impunidade. E os assaltos sucedem-se, tanto a residências como a estabelecimentos comerciais. Entrando por janelas abertas ou mal fechadas, trepando varandas, passando por cima de estendais.
Ainda esta semana nos chegaram mais relatos, desta vez de apartamentos assaltados com recurso a arrombamento. Só na Rua Leite Vasconcelos, em Lisboa, no mesmo prédio, dois apartamentos foram assaltados na mesma noite. Neste caso, não estava ninguém em casa.
Foto: D.R.
Certo é que, por haver arrombamento, estes assaltos são vistos com mais seriedade, aos olhos da lei – e da PSP. Seria de repensar se, o facto de haver assaltos a ocorrer com famílias a dormir não seriam de ser levados mais a sério. Porque, ao bens que são roubados, somam-se as marcas psicológicas que ficam nas vítimas. E essa quebra de confiança na segurança que fica não se pode reportar à seguradora.
Em alguns casos, mesmo pondo trancas às portas e alarmes nas janelas, o sentimento de insegurança permanece. Não se saber qual o número de famílias que são vítimas deste tipo de assalto não ajuda a restaurar o sentimento de que é seguro estar em casa.
O pior ainda não passou, mas 2025 já regista, e de longe, a pior eficácia no combate a incêndios florestais de todo o século XXI. Até 19 de Agosto, de acordo com a análise do PÁGINA UM aos dados do Instituto Nacional da Conservação e das Florestas (ICNF), cada incêndio tem destruído, em média, 89 hectares, um valor nunca antes observado e que ultrapassa largamente os anos mais negros da tragédia dos fogos, como 2003 (50,6 ha/incêndio), 2005 (17,6 ha/incêndio) e sobretudo 2017 (56,2 ha/incêndio), quando morreram mais de uma centena de pessoas em duas vagas de incêndios devastadores.
Este indicador – que exclui os fogachos, isto é, as ignições apagadas antes de se atingir um hectares (100 por 100 metros) – revela que, quando os fogos não cedem à primeira intervenção, a capacidade de resposta do sistema nacional de protecção civil mostra-se estruturalmente incapaz de os travar, sobretudo quando ultrapassam os mil hectares, ficando o controlo dependente quase exclusivamente da evolução meteorológica.
Os números oficiais, compilados até 19 de Agosto, confirmam uma realidade alarmante. Em 2025, já arderam 215.988 hectares, uma área em crescimento que coloca o ano na linha da frente das piores catástrofes florestais desde 2001, mesmo sem se ter atingido ainda o final do período crítico. O total de incêndios registados até agora, excluindo fogachos, é de 2.426, ainda um dos valores mais baixos de sempre, mas com consequências devastadoras: menos fogos, mas muito mais destruição.
Ou seja, comparativamente a anos anteriores, e sobretudo aos da primeira década do século, o sistema até tem tido menos ignições e também, em consequência, menos incêndios (com mais de um hectare), mas falha redondamente, em demasiados anos, em grandes incêndios no interior do país. A baixa frequência de fogos contrasta, assim, com a altíssima intensidade e extensão dos que acabam por escapar ao controlo.
Se compararmos com outros anos, percebe-se a dimensão da falha de 2025, mesmo quando comparado com os três anos com maior aárea ardida. Em 2017, o ano mais catastrófico, apesar dos 9.626 incêndios registados, a eficácia do combate ficou em 56,2 ha/incêndio. Em 2003, foram 9.320 incêndios para um rácio de 50,6 ha/incêndio. Em 2005, o rácio foi de 17,6 com quase 20 mil incêndios.
Área ardida por hectare, considerando apenas incêndios (ocorrências com mais de um hectare). Fonte:ICNF. Análise: PÁGINA UM.
Já no ano passado, com os grandes incêndios a concentrarem-se em Setembro, este indicador mostrou sinais de descoordenaçao, com um rácio de 50,1 hectares por incêndios, apesar de ter sido o ano deste século com o menor número de ignições a ultrapassarem um hectare (2.745).
Estes números connstituem uma demonstração inequívoca de que o sistema de combate em Portugal não está desenhado para enfrentar situações em que os fogos, superando a barreira psicológica e operacional dos mil hectares, assumem proporções incontroláveis.
A questão da “eficácia do combate” tem sido, ao longo das últimas décadas, um verdadeiro tabu político e institucional. Desde a primazia concedida às corporações de bombeiros voluntários – pilares comunitários com forte ligação às câmaras municipais e a redes de influência local – que o combate aos incêndios assenta numa miríade de entidades, de difícil articulação e disciplina operacional.
Número de incêndios (ocorrências com mais de um hectare) desde 2001. Dados de 2025 até 19 de Maio. Fonte:ICNF. Análise: PÁGINA UM.
O peso emocional é determinante: os bombeiros são vistos pelas populações como heróis, símbolo de abnegação e de proximidade, o que torna politicamente delicada qualquer tentativa de reestruturação, profissionalização efectiva – com todas as vantagens de instrução, treino e preparação de equipas coordenadas – e consequente responsabilização.
Mas a verdade é que o actual sistema dito voluntário mas com pagamentos do Estado acaba por ser sistema semi-profissionalizado, mas com baixa capacidade de avaliação e regulação. É um sistema que se tornou anacrónico perante as exigências dos grandes incêndios florestais do século XXI.
Aliás, nenhum outro sector fundamental do Estado – da segurança pública à educação, passando pela saúde ou pelo sistema prisional – assenta numa lógica semelhante à do combate aos fogos rurais. É impensável conceber a segurança interna dependente de centenas de associações privadas dispersas pelo território, algumas sofrendo de escassez de população jovem, com escassa coordenação centralizada.
Área ardida total desde 2001. Dados de 2025 até 19 de Agosto. Fonte: ICNF.
No entanto, é precisamente esse o modelo que subsiste no essencial da protecção civil contra incêndios florestais em Portugal: mais de três centenas de corporações de bombeiros voluntários, articuladas de forma precária com os meios da GNR, da Força Especial de Protecção Civil e da Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil.
O resultado é a crónica dificuldade em coordenar meios em cenários de grande dimensão, em que a rapidez e a disciplina hierárquica são cruciais. Por exemplo, em incêndios de grandes dimensões, que ultrapassam mil efectivos, é habitual estarem, no denominnado ‘teatro das operações’, bombeiros de mais de uma centena de corporações, sem sequer haver uma logística bem implementadas.
Os sucessivos Governos, de diferentes cores partidárias, têm evitado enfrentar esta questão estrutural. Em Espanha, a solução foi encontrada em praticamente todas as comunidades autónomas: criação de corpos profissionais de bombeiros-sapadores florestais, integrados nos serviços regionais de protecção civil, com treino permanente, vínculo laboral e disciplina operacional semelhantes às forças militares.
Nessa organização, os bombeiros voluntários assumem um papel complementar, sobretudo na protecção dos perímetros urbanos e na salvaguarda de habitações, deixando a resposta de primeira linha no espaço florestal para equipas profissionais do Estado. Portugal, pelo contrário, continua a insistir num modelo híbrido, dependente de estruturas locais fragilizadas, cuja coordenação central raramente funciona nos momentos mais críticos.
Também em Itália e França prevalece um modelo profissionalizado. Itália possui o Corpo Nazionale dei Vigili del Fuoco, uma estrutura estatal com efectivos treinados para diferentes cenários de risco, incluindo os incêndios florestais. Em França, a protecção civil assenta numa combinação de bombeiros profissionais e voluntários, mas com um comando centralizado e meios aéreos fortemente integrados, que asseguram resposta rápida e disciplinada em grandes fogos, sobretudo na região mediterrânica.
A Grécia, sobretudo após a catástrofe de 2007 e o desastre de Mati em 2018, também avançou para a criação de brigadas profissionais florestais, integradas no Serviço de Incêndios, com forte ligação ao exército e à guarda nacional, assumindo que a escala dos incêndios modernos exige uma estrutura permanente, estável e profissional. Existe voluntariado, mas numa percentagem inferior a 20% dos efectivos, que somente em situações especiais são accionados.
Portugal, pelo contrário, continua a insistir num modelo híbrido, dependente de estruturas locais fragilizadas, cuja coordenação central raramente funciona nos momentos mais críticos.
A história repete-se com o mesmo dramatismo e a mesma sensação de impotência. Portugal ultrapassou esta noite a mítica fasquia dos 200 mil hectares de área ardida em 2025, segundo os dados oficiais do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), consultados e analisados pelo PÁGINA UM.
São já 203.422 hectares queimados, número que reconfirma este ano como o quarto pior desde que existem registos estatísticos, iniciados na década de 1940. A dimensão da tragédia equivale a 20 vezes a área da cidade de Lisboa, um valor simbólico que marca uma fronteira que todos sabiam ser possível, mas que se esperava, talvez ingenuamente, que pudesse ser evitada.
Até agora, a barreira dos 200 mil hectares só tinha sido superada em três ocasiões, todas já neste século XXI. A primeira foi em 2003, quando o fogo reduziu a cinzas 471.813 hectares. Dois anos depois, em 2005, voltou-se a cair no mesmo abismo, com 346.731 hectares devastados. Mais recentemente, em 2017, registou-se o pior ano de sempre, com 540.654 hectares queimados, uma ferida ainda aberta na memória colectiva.
O facto de 2025 se juntar a esta curta lista mostra que, apesar de duas décadas de planos estratégicos, de reestruturações sucessivas proclamadas na Protecção Civil e de discursos políticos inflacionados, Portugal continua incapaz de quebrar o ciclo da devastação.
A fotografia estatística de 2025 tem um rosto particularmente sombrio: o distrito da Guarda. Com 79.586 hectares destruídos, este é já o pior registo distrital do século XXI, correspondendo a cerca de 15% do território total do distrito. Em termos relativos, é uma tragédia que não encontra paralelo recente, deixando claro que o Interior profundo, despovoado e envelhecido, continua a ser o palco principal da catástrofe florestal. A Guarda, sozinha, concentra quase 40% da área ardida de todo o país.
Mas a devastação não se fica por aqui. Em Coimbra arderam 41.247 hectares, em Viseu foram 21.489 hectares, e em Bragança o fogo consumiu 13.877 hectares. Estes quatro distritos somam mais de três quartos da área ardida de Portugal em 2025, revelando uma desigualdade territorial chocante: enquanto os distritos do Interior vivem um cenário de catástrofe, no Litoral e no Sul quase nada se registou.
No extremo oposto, Lisboa conta apenas 63 hectares, Faro 32 e Leiria 26, números residuais que contrastam violentamente com os da Guarda. O país arde, mas arde sobretudo sempre nos mesmos sítios, como se a repetição fosse um destino inevitável.
Se os números anuais já seriam suficientes para definir 2025 como ano negro, o retrato mensal não deixa espaço para dúvidas: este mês de Agosto, ainda por terminar, é já o quarto pior mês deste século, com 166.316 hectares consumidos em apenas 19 dias.
Supera de longe qualquer outro Agosto da última década e só é ultrapassado por Agosto de 2003 (312.411 hectares), Outubro de 2017 (289.126 hectares) e Agosto de 2005 (212.917 hectares). Com quase duas semanas ainda pela frente, a perspectiva de que este Agosto suba no ranking da destruição é elevada, colocando em risco a estabilidade do país não apenas em termos ambientais, mas também económicos e sociais.
A sucessão destes números devastadores revela a falência de políticas que, desde 2003, se anunciaram como redentoras. Do Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios às reorganizações das corporações de bombeiros, passando pelo investimento em meios aéreos e pelo reforço orçamental das campanhas de prevenção, tudo parece esbarrar no mesmo problema estrutural: uma paisagem desordenada, um mundo rural abandonado e um Estado que se limita a gerir emergências em vez de intervir na raiz.
O resultado é o que se vê: hectares atrás de hectares transformados em cinza, com os mesmos distritos sempre na linha da frente do sacrifício. E Lisboa política a assistir pesarosa, embora com muitas culpas no cartório.
Mais do que estatísticas, há uma realidade crua: no mês de Agosto em curso, por cada hora que passou ardeu em média 385 hectares, ou seja, 9.240 hectares por dia – são mais de 10 mil campos de futebol a arder. E não é apenas a floresta que se perde. São solos que se degradam, habitats que desaparecem, populações que se sentem sitiadas, e depois abandonadas nas cinzas, e economias locais que ficam amputadas. Quando a Guarda perde 15% do seu território para as chamas, não é apenas a natureza que é devastada: é uma parte inteira do país que se apaga.
No fundo, a ultrapassagem da fasquia dos 200 mil hectares em 2025 não é apenas um número redondo e trágico. É a prova de que, duas décadas depois dos anos infernais de 2003 e 2005, e oito anos após o horror de 2017, Portugal continua prisioneiro do mesmo ciclo de fogo, incapaz de transformar a memória das tragédias em prevenção efectiva. Os discursos oficiais repetem-se, os planos multiplicam-se, exaltam-se os bombeiros, transformam-se as vítimas em heróis, mas a floresta, já cada vez mais débil e sem sustentabilidade, continua a arder com a mesma fúria. E, pior ainda, com a mesma previsibilidade.
Portugal vive uma tragédia anunciada sempre que chega o Verão. As imagens repetem-se, mas a dimensão de cada ano nem sempre fica gravada na memória colectiva pelos números finais. O ano horribilis de 2017 parece longínquo, quando arderam 540.654 hectares, números impressionantes mesmo para os mais pessimistas — e desses, 336 mil hectares arderam já depois da primeira metade de Agosto, sendo que a maior parte ocorreu com o Outono avançado, a 15 de Outubro.
Em 2025, quando ainda se está em pleno mês de Agosto, a contabilidade dos incêndios já atingiu 172.065 hectares de área ardida, segundo dados do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), sendo o quarto pior do século, somente atrás de 2017, de 2003 (471.813 hectares) e de 2005 (346.731 hectares). Estes três anos vieram, aliás, colocar o patamar da destruição dos incêndios rurais num nível impensável no século XX, quando um “ano mau” significava valores ligeiramente acima de 100 mil hectares.
O carácter errático da destruição, embora cíclica — porque após anos de grande devastação as áreas ardidas servem de tampão durante quatro ou cinco anos —, impede previsões com grande certeza. Porém, uma análise conduzida pelo PÁGINA UM às séries estatísticas desde 2001 mostra que, embora seja pouco provável que se atinjam os valores de 2017, 2003 e 2005, o ano de 2025 tem uma probabilidade significativa de chegar aos 283 mil hectares consumidos até Dezembro, sendo que o intervalo de confiança aponta para valores entre 208 mil, num cenário optimista, e 357 mil hectares, num cenário pessimista.
Em todo o caso, aquilo que torna a análise mais relevante é perceber que a tragédia de cada ano não se decide apenas no que ardeu até 17 de Agosto. Com efeito, a estatística mostra um padrão instável, por vezes surpreendente: a segunda metade do Verão e o início do Outono podem alterar radicalmente o balanço final. Em 2003, por exemplo, apenas 12,1% da área total ardeu depois de 17 de Agosto, mas em 2005 essa percentagem foi de 38,8%. Já em 2017, o cenário foi devastador: 62,2% da área ardida concentrou-se após essa data, quando Outubro trouxe condições meteorológicas explosivas, somadas aos fogos fora de época de Junho.
Este elemento estatístico é crucial para compreender o risco que ainda paira em 2025. Se, até 17 de Agosto, já se registaram mais de 172 mil hectares consumidos, a experiência histórica mostra que o “resto do ano” pode significar desde um pequeno acréscimo (como em 2003) até uma catástrofe desproporcionada (como em 2017). A variabilidade é enorme, o que torna a previsão mais um exercício de intervalos do que de certezas. A estatística serve aqui de alerta: em cerca de duas décadas e meia de registos, houve anos em que pouco ou nada aconteceu após Agosto e outros em que o pior ficou reservado para o fim.
Área ardida em cada ano desde 2001 (total e em dois períodos distintos). Fonte. ICNF. Análise: PÁGINA UM.
O PÁGINA UM aplicou um modelo estatístico rigoroso, mas explicado em termos acessíveis: partindo da série anual de 2001 a 2024, foi feita uma regressão para avaliar o que se pode esperar quando já se conhece a área ardida até 17 de Agosto. Esta técnica permite projectar, com base em padrões históricos, qual será a área total até ao final do ano. O modelo aponta para um valor central de 283 mil hectares, que corresponde a um acréscimo médio de 111 mil hectares até Dezembro, mas com a possibilidade de o valor oscilar entre mínimos de 36 mil e máximos de 185 mil hectares adicionais. É a matemática da incerteza aplicada à realidade das florestas portuguesas.
De todo o modo, 2025 já está condenado a figurar entre os piores capítulos desta história negra. Mesmo que não se repita um Setembro como o do ano passado, quando arderam quase 130 mil hectares, ou o de 2013, com mais de 100 mil, ou, pior ainda, o Outubro de 2017, o valor mínimo previsto garante-lhe o quarto lugar no ranking.
Mas, caso os próximos meses sejam particularmente severos, poderá aproximar-se do trágico patamar de 2005 e até ameaçar a barreira dos 300 mil hectares. O país continua, assim, refém de um destino florestal que se repete em ciclos, com variações de intensidade mas sempre com a mesma marca: o fogo que destrói território, património natural e vidas humanas.
Este diagnóstico é mais do que uma estatística: é um sinal de que Portugal não conseguiu quebrar o ciclo de catástrofes. E aquilo que se anuncia para 2025 é não apenas a confirmação de um ano terrível, mas a prova de que, passadas mais de duas décadas desde os grandes fogos de 2003, continuamos a oscilar entre anos mais benignos e anos catastróficos sem uma estratégia clara de contenção estrutural.
O futuro imediato, até ao final deste ano, permanece uma incógnita, mas a estatística avisa: o pior pode ainda estar para vir. E se não vier, o trágico é ficar-se a saber que se não arder mas este ano, certamente que arderá nos próximos, porque esse tem sido o destino dos espaços rurais em Portugal ao longo das últimas décadas.
A catástrofe confirma-se: 2025 já será garantidamente o pior ano desde o fatídico ano de 2017, quando arderam cerca de 540 mil hectares e morreram 114 pessoas. Na primeira quinzena de Agosto já arderam mais de 105 mil hectares, sendo que quase tudo (91 mil hectares) se concentrou na última semana, numa sequência de fogos sobretudo nos distritos de Viana do Castelo, Vila Real, Coimbra, Viseu, Guarda e Castelo Branco que permitiram suplantar os já preocupantes números do ano passado.
De acordo com os dados estatísticos ainda provisórios do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), até ontem terão ardido 142.234 hectares, colocando 2025, de forma irreversível, na lista dos anos negros que pontuam a história dos incêndios rurais em Portugal. E ainda existem grandes incêndios por debelar e uma meteorologia (mediterrânica) que não dá tréguas a anos de incúria na gestão dos espaços rurais.
E como em tantos outros anos, a geografia da catástrofe não se espalhou por igual. Os dados mostram que bastaram alguns concelhos para concentrar uma fatia substancial da destruição. À cabeça surge Trancoso, onde o fogo terá consumido quase na íntegra este concelho do distrito da Guarda, que tem três vezes e meia a dimensão de Lisboa.
Os dados provisórios do ICNF até indicam ainda uma impossibilidade: uma área ardida superio à superfície do municípios. Em todo o caso, garantidamente que Trancoso terá superado os 30 mil hectares, a que se junta a área consumida nos concelhos de Arganil (16.787 hectares) e Sátão (13.737 hectares), confirmando a tendência histórica de reincidência dos mesmos territórios no mapa do fogo.
Entre os dez concelhos mais atingidos encontram-se ainda Ponte da Barca (7.478 hectares), Vila Real (7.133 hectares), Arouca (6.201 hectares), Guarda (4.918 hectares), Sabrosa (3.449 hectares) e Penamacor (2.893 hectares), deixando claro que os distritos do interior centro e norte continuam a carregar o fardo das chamas.
Área ardida desde 2021 por ano, incluindo 2025 com dados provisórios até 15 de Agosto. Fonte: ICNF.
O padrão é conhecido: em Portugal, os incêndios raramente são uma calamidade homogénea. Concentrando-se em determinados concelhos, deixam atrás de si um retrato de devastação localizada mas profunda.
Este comportamento está longe de ser mero acaso. Resulta, em grande medida, de um ciclo perverso que tem acompanhado o país há décadas: anos de destruição em larga escala sucedem-se a períodos de relativa calma, não porque a prevenção funcione, mas porque os territórios já queimados funcionam como tampão, impedindo que novos fogos encontrem combustível fácil. Assim foi em 2003, 2005 e 2017, anos de catástrofe, e assim se repete agora em 2025. As condições meteorológicas e o caos prevêem que venham a ser ultrapassados os 200 mil hectares.
A cada novo grande incêndio, repete-se, a par de acusaçoes de incendiarismo, o diagnóstico estrutural de décadas: a falta de uma política integrada de gestão florestal, a excessiva fragmentação institucional, a sobrecarga de responsabilidades em corpos de bombeiros voluntários, muitas vezes pouco articulados e sem meios técnicos adequados, e a ausência de uma estratégia de prevenção sustentada. O resultado é uma dependência quase exclusiva de operações de combate, onde o heroísmo individual de bombeiros e populações substitui o que deveria ser uma resposta coordenada, profissionalizada e eficaz.
Área ardida por dia desde 1 de Julho de 2025 contabilizada em função da data da ignição. Fonte: ICNF.
Num país onde a política de ordenamento florestal permanece refém de interesses contraditórios – entre o peso do eucalipto, a falta de rentabilidade do minifúndio e a fragilidade das estruturas públicas de gestão –, o fogo continua a ser a última e mais brutal forma de reconfiguração da paisagem. E aquilo que não é retirado pelas políticas é devorado pelas chamas.
A sucessão de anos catastróficos e anos de “trégua” aparente alimenta a ilusão de que os problemas estão resolvidos. Mas a estatística desmente essa ilusão: em pouco mais de duas décadas, Portugal acumulou dezenas de milhares de hectares ardidos em picos devastadores, seguidos de descidas abruptas apenas explicáveis pela ausência de combustível imediato. Não há gestão, apenas o acaso do calendário ecológico.
Enquanto isso, os números deste ano voltam a colocar Portugal no centro do mapa europeu dos incêndios. A dimensão da tragédia de 2025 já ultrapassa em larga escala a média registada entre 2018 e 2024, aproximando-se a passos largos dos cenários mais negros da história recente. As consequências sociais, económicas e ambientais são devastadoras: aldeias evacuadas, habitações destruídas, investimentos florestais reduzidos a cinzas e ecossistemas inteiros condenados a décadas de recuperação.
Um país vergado aos incêndios. Foto: Pedro Nasper / mediotejo.net
Apesar de tudo, mantém-se o discurso oficial da eficácia. Fala-se em meios aéreos contratados, em planos operacionais sofisticados, em novas tecnologias de monitorização. Mas a realidade, demonstrada em concelhos como Trancoso, Arganil ou Sátão, mostra que nada disso substitui uma política estrutural de prevenção, que só poderá nascer de uma reforma profunda do modelo assente na dispersão de competências e no voluntarismo heroico mas insuficiente.
Os fogos de 2025 não são apenas a repetição de um fenómeno natural. É o espelho da incapacidade política de gerir um problema conhecido, estudado e anunciado. É também a confirmação de que Portugal continua preso num ciclo em que as chamas ditam a agenda e a memória colectiva, até à próxima vez que o acaso da meteorologia e da geografia voltar a alinhar-se contra a ineficácia de um país que se verga à sua própria incompetência.
Ano após ano, a discussão sobre a origem dos incêndios rurais regressa, mas a fotografia das causas parece saída de um carrossel que dá sempre a mesma volta. Em 2025, os dados oficiais do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) mostram que, das 2.876 ocorrências já investigadas — que representam menos de metade das ignições registadas —, o “vandalismo” — definido como a “utilização do fogo por puro prazer de destruição” — surge como a principal causa isolada mais frequente.
Até agora, de acordo com a informação consultada esta tarde pelo PÁGINA UM, foram 489 ignições imputadas ao vandalismo, representando 17,0% do total.
Incêndios destruidores não dependem da causa. Foto: Paulo Jorge de Sousa
Mas se o vandalismo se destaca como causa no sistema de codificação do ICNF, a negligência, considerada de forma agregada, é a causa maioritária das ignições contabilizadas: quase seis em cada dez (58,2%) resultam de actos pouco cuidadosos que, não tendo dolo, podem ainda assim ser tipificados como crime.
Neste vasto lote incluem-se queimadas para renovação de pastagens, limpeza de restolho, queima de matos, borralheiras ou outros usos semelhantes, que só este ano já somam 802 ocorrências, equivalentes a 27,9% do total com causa conhecida — mais de um quarto.
Entre as causas negligentes mais inusitadas destacam-se incidentes ligados a transportes e comunicações, incluindo falhas diversas (81 ocorrências), o uso imprudente de alfaias agrícolas (79) e outras situações acidentais não especificadas (77). Surgem também, com frequência, queimadas extensivas para limpeza de caminhos, acessos e instalações (49), operações inseguras com maquinaria diversa (40) e a queima clandestina de amontoados de lixo (35).
O simples acto de fumar a pé foi responsável por 32 ocorrências, seguido do uso de máquinas agrícolas (31) e do lançamento legal ou ilegal de foguetes (37), bem como incêndios provocados por tubos de escape de veículos (22) e fogueiras improvisadas para confecção de comida (21). Até acidentes de viação (9) e brincadeiras de criança (8) entram nesta lista. Saliente-se que o grau de destruição de um incêndio rural não depende da causa da ignição.
Considerando os grandes grupos, somente 32,0% das ignições foram classificadas, por agora, como dolosas (intencionais), sendo que o incendiarismo sem indicação da imputabilidade regista 3% do total (86 casos), enquanto a piromania representa 0,4% (11 casos) e as vinganças 0,6% (17 casos). Um grupo relevante de ignições (293 casos, equivalentes a 10,2% do total) foi classificado como intencional imputável com motivações diversas.
Uma outra componente particularmente perigosa são os reacendimentos — fogos que voltam a ganhar força depois de extintos e que podem originar vários focos —, representando 8,4% do total em 2025. Já as causas naturais, como a queda de raios, não chegam a 1,3%.
Este retrato repete-se quase ao detalhe quando comparado com 2024: no ano passado, o vandalismo também liderou as causas conhecidas do ponto de vista da codificação, com 17,9% (778 ignições), sendo que o total de ignições de origem intencional ficou ligeiramente acima dos números relativos de 2025 — 37,9% contra 32%. As diversas tipologias de negligência ficaram, em 2024, nos 52,5%, os reacendimentos mantiveram-se nos 8,6% (373 ignições) e as causas naturais em 0,9%.
Note-se que, por agora, o ICNF reporta este ano um total de 6.253 ignições, mas 2.472 ainda nem sequer foram investigadas ou tiveram conclusão, muitas por serem recentes, havendo ainda outras 905 que, apesar de investigadas, acabaram classificadas como “indeterminadas” por falta de elementos objectivos. Ou seja, menos de metade (46%) dos incêndios de 2025 têm, neste momento, uma causa oficial atribuída. O resto está num limbo estatístico que, por ausência de investigação ou de prova, não permite perceber de onde vem o fogo.
O sistema de classificação do ICNF é hierárquico e contém dezenas de códigos que agrupam causas em grandes blocos: “uso do fogo” (onde entram as queimadas e fogueiras), “acidentais” (máquinas, linhas eléctricas, acidentes), “estruturais” (conflitos de uso do solo, danos provocados por vida selvagem), “incendiarismo” (dolo, incluindo vandalismo) e “naturais” (raios). Dentro de cada bloco, a especificidade é extrema: por exemplo, as queimadas têm nove subtipos, desde a limpeza de terrenos agrícolas à penetração em zonas de caça.
Esta multiplicidade revela que o fogo em Portugal não tem uma única origem nem um único culpado. Temos incendiários que ateiam fogos por “puro prazer de destruição” e agricultores que continuam a recorrer ao fogo para limpar campos ou renovar pastagens. Temos negligência, temos dolo, temos reacendimentos que denunciam fragilidades no combate e temos causas acidentais ligadas a máquinas e infra-estruturas.
É um mosaico complexo que, ao longo dos anos, mantém uma espantosa estabilidade nos seus padrões percentuais. Aliás, tal como as deficiências na gestão dos espaços rurais, os problemas de desertificação, os problemas crónicos na estrutura de prevenção e combate – tudo, na verdade, está interligado para o desastre cíclico.
Em Portugal, surge o calor, surgem os incêndios; surgem os incêndios, surgem as acusações de incendiarismo. Por mais que se conheçam as causas e o regime dos fogos devastadores em Portugal, todos os anos aos primeiros fogos com alguma dimensão, além do pânico cada vez maior, sobretudo após as mortandades de 2017, aparece uma miríade de «comentadores de bancada» apontando quase exclusivamente o dedo ao São Pedro (leia-se, clima mediterrânico, com os seus Verões quentes e secos, por vezes ventosos) e aos malévolos incendiários, como se os fogos de grande dimensão, e só esses, tivessem um ADN próprio.
Viu-se isto esta semana, não pela boca apenas de um bombeiro mais extenuado ou de um autarca mais estouvado, mas do próprio primeiro-ministro, Luís Montenegro, que prometeu “ir atrás” dos criminosos e dos “interesses que sobrevoam” os incêndios florestais. Encontrar um ‘inimigo’ vago, mas que apela à emoção popular, é uma típica estratégia da ‘falácia do espantalho’, que servia, aliás, na perfeição para não discutir como foi possível não se ter encerrado a tempo a A1. Foi um milagre não ter ocorrido uma tragédia pior do que a de Pedrógão Grande em 2017.
No meio disto, culpa-se sempre a floresta “desregrada”, mas as mudanças espoletadas pelos Governos, desde os anos 90, quando se agravou a incidência destrutiva, e sobretudo desde os trágicos anos de 2003, 2005 e 2017, são pouco mais do que incipientes e conjunturais. Nada se muda de estrutural, nada se modifica. É tudo para fazer de conta, como os “pechisbeques” dos kits de protecção anti-fogos comprados a uma empresa de turismo, e que afinal eram os primeiros a arder – uma situação tão ridícula que até causa vergonha alheia.
Incêndio em Vale da Carreira, Sardoal. Foto: Paulo Jorge de Sousa/mediotejo.net
Infelizmente, esta irritante tendência dos políticos de “fazer que fazem”, e dos portugueses em geral a culpar entes diabólicos ou a opinar com base na ignorância – vulgo, a dar bitaites –, constituem os principais factores sociopolíticos para não se mudar o paradigma de gestão da floresta e dos espaços florestais.
Afinal, porquê mudar se tudo estaria bem sem os incendiários a colocar fogos? Não bastaria apanhá-los todos e metê-los na prisão? E não bastava que os proprietários “limpassem” os matos? Infelizmente, a resposta é não.
Procurarei, em traços muitos breves, neste texto, apresentar algumas reflexões.
Comecemos, assim, por «desculpabilizar», desde já, o clima mediterrânico. Na verdade, a Natureza é como é. Em termos de risco, o clima mediterrânico está para Portugal como os terramotos estão para o Japão. Não quer isto dizer que são situações similares, mas apenas que o Japão soube ao longo do tempo minimizar os riscos (através da construção anti-sísmica e planos de prevenção e acção). O Japão não se queixa dos deuses por causa dos terramotos e, apesar de quando em vez serem graves, não causam agora as mortandades que se registavam até ao início do século XX.
A analogia nem sequer é muito feliz, porque o clima mediterrânico tem inegáveis vantagens que os terramotos obviamente não têm. Além de nos beneficiar com uma meteorologia que inveja meio mundo, e que fornece matéria-prima para o turismo, o clima mediterrânico concede à nossa floresta – e à vegetação em geral – condições quase únicas para um elevado crescimento, e portanto um elevado potencial económico, se bem gerido.
De acordo com um recente estudo internacional, Portugal é o país mediterrânico que, potencialmente, maior riqueza no sector florestal pode extrair por hectare (344 euros por ano). Por exemplo, França regista 292 euros e Espanha apenas 90 euros. Devíamos agradecer à Natureza este clima; não “amaldiçoá-la”.
Incêndio em Saramaga, Sardoal (2017) Foto: Paulo Jorge de Sousa
Sendo incontornável que haverá sempre incêndios, porque o mundo não é perfeito, vejamos onde está o cerne do problema em Portugal. Sobretudo nas últimas três décadas, o regime do fogo tem estado sobretudo associado a dinâmicas antropogénicas, tanto ao nível de acções danosas (negligência à cabeça, e algum dolo) e da (in)capacidade de supressão de incêndios, como ao nível da gestão de combustíveis e de planeamento territorial.
No entanto, embora exista uma forte correlação entre número de ignições e a densidade populacional em regiões mediterrânicas – por exemplo, o distrito do Porto é historicamente aquele que regista mais ignições –, tal já não se verifica entre o número de ignições e área ardida. Com efeito, são factores como a orografia, a precipitação fora da época de estiagem e a percentagem de área inculta que apresentam maiores correlações positivas com a área ardida total.
Os efeitos dos incêndios apresentam-se assim, numa base regional, como problemas de distinta intensidade e dimensão. Mais população significa maior número de ignições, mas a maior área ardida observa-se sobretudo em regiões de menor densidade demográfica. Exemplo paradigmático dessa “dualidade” regional observa-se num dos períodos de recrudescimento dos incêndios florestais, entre 1996 e 2005, período sobre o qual me debrucei com detalhe quando escrevi o ensaioPortugal: O Vermelho e o Negro‘, publicado em 2006, mas que ainda hoje, retirando a parte estatística mais ‘datada’ mantém uma infeliz actualidade.
Incêndio em Saramaga, Sardoal (2017) Foto: Paulo Jorge de Sousa
Tendo sido contabilizadas, neste intervalo, cerca de 284 mil ignições e uma área ardida de quase 1,64 milhões de hectares, a distribuição foi a seguinte: 39,2% do total das ignições (cerca de 111 mil) concentraram-se em apenas 25 concelhos (quase todos do litoral, mais densamente povoado), mas ardeu aí apenas 10,3% do total nacional (menos de 170 mil hectares); e nos 25 concelhos com menor número de ignições (todos do interior despovoado) registaram-se apenas 10,7% do total (pouco mais de 30 mil) mas contribuíram em 39,0% (cerca de 640 mil hectares) para o total da área ardida.
O êxodo rural em Portugal, iniciado nos anos 60 e agravado significativamente a partir de meados da década de 1980, mostra-se, sem dúvida, como uma das principais causas para o surgimento de fogos devastadores. Um dos efeitos da perda demográfica especialmente sentida nas aldeias, após a implementação da Política Agrícola Comum, foi a eliminação quase total e imediata de práticas e usos tradicionais associados à agricultura, pastorícia e silvicultura, que contrariavam a ocorrência e a propagação dos incêndios.
A sociedade rural, imagem de marca de Portugal durante séculos, modificou-se de forma abrupta em poucas décadas, levando simplesmente ao abandono de vastas áreas agrícolas e florestais, sem a ocorrência de qualquer transferência relevante de direitos de propriedade para quem não seguiu esse êxodo para as cidades e litoral. A população empregada no denominado sector primário tradicional passou de expressivos 47,6% em 1950 para apenas 2,8% em 2011.
Como reverso dessa “moeda de modernidade”, foi colossal a redução de actividades permanentes no espaço rural: em 2011 eram apenas 120 mil pessoas com emprego no sector primário, enquanto em 1950 suplantavam 1,5 milhões. Paradoxalmente, apesar dessa evolução, e por via de planos directores municipais demasiado permissivos, aumentaram as habitações em espaço florestal ou contíguo, sobretudo de segunda residência, levando não só a uma maior probabilidade de procedimentos negligentes causadores de fogos como também a um agravamento da complexidade do combate.
Efectivamente, muitos dos grandes incêndios tomaram proporções incontroláveis porque o sistema de combate, bem como os investimentos de prevenção, tem tido como prioridade a defesa de bens (habitações e equipamentos) em detrimento da protecção da floresta. O problema desta estratégia é de aumentar a probabilidade de incêndios devastadores, que assim destroem mais floresta e, provavelmente, mais casas.
Incêndio em Saramaga, Sardoal (2017). Foto: Paulo Jorge de Sousa
O aparente paradoxo patente na ocorrência de uma maior destruição pelos incêndios onde mais se reduziu a quantidade de pessoas – sabendo-se serem estas que causam os fogos –, explica-se facilmente. O surgimento de incêndios devastadores sobretudo desde o início do século XXI decorre do incremento muito significativo da biomassa vegetal nos espaços florestais, tanto horizontal como verticalmente, em virtude das mudanças socioeconómicas – que levaram ao desaproveitamento de subprodutos florestais (e.g., lenha, matos, etc.) – e do forte abandono agrícola e florestal.
Em 2010 a área agrícola era a menor desde o início do século XX e a área e mato (com pastagens) estava em vias de ultrapassar a área florestal, algo que não acontecia desde a década de 1940. Entre 1950 e 2010, a área de matos e pastagens quase quadruplicou, passando de 885 mil hectares para um pouco acima de três milhões de hectares, o valor mais elevado desde a década de 1920.
Por outro lado, a política florestal a partir dos anos 80 – que coincidiu com o agravamento do problema dos incêndios – privilegiou sobretudo a substituição de áreas de pinhal, algumas afectadas pelos fogos, por eucaliptais (ambas espécies altamente combustíveis), mantendo-se na generalidade dos casos uma deficiente gestão antrópica, enquanto ao redor desses espaços florestais medraram matagais.
Para agravar a situação, aumentaram os fenómenos meteorológicos extremos, bem patentes no ano de 2017, com dois devastadores períodos a ocorrerem fora do Verão (Junho e Outubro). As condições meteorológicas do mês de Setembro deste ano foram também muto agressivas, e localizadas em regiões restritas, bem patente em destruições que, por vezes, ultrapassam meia centena de milhar de hectares, ou mesmo mais, em apenas um dia. Isso é uma consequência não apenas meteorológica. Com uma floresta mesclada com matagais e densos estratos vegetais, por vezes intransponíveis, também pela orografia, e sem o “obstáculo” das outrora zonas agrícolas – que serviam de zonas-tampão –, os fogos encontram agora extenso e contínuo combustível para galgarem milhares e milhares de hectares.
Outro aspecto particularmente grave, que se tem vindo a intensificar, é a recorrência do fogo, i.e., a maior susceptibilidade de determinadas regiões a serem percorridas ciclicamente por incêndios, retirando-lhes assim qualquer possibilidade de rentabilidade económica, o que incentiva a manutenção deste status quo.
Por exemplo, um estudo desenvolvido pelo Instituto Superior de Agronomia para um período de 16 anos (entre 1990 e 2005) apurou que quase 300 mil hectares arderam duas vezes, cerca de 83 mil hectares três vezes e uma área de 28 mil hectares foram afectados pelo menos quatro vezes, estando essa recorrência associada a queimadas para pastagens. Torna-se assim absurdo, com tamanhas recorrências, tentar encontrar interesses, urbanísticos ou mineiros, como causa para os fogos. Até porque a eliminação das árvores não traz sequer vantagens, a não ser em zonas periurbanas, para a construção, além de que, no caso de explorações mineiras, a autorização nunca estará condicionada à existência ou não de cobertura arbórea na zona a licenciar.
Nas análises sobre os incêndios florestais em Portugal um outro factor que sempre surge é o alegado contributo do regime de propriedade, marcadamente de minifúndio sobretudo a norte do rio Tejo e no Algarve. Embora os dados oficiais sejam pouco precisos sobre o cadastro e a propriedade rústica em Portugal, e sobretudo em relação às propriedades com uso silvícola, sabe-se que Portugal está, segundo a FAO, entre os 10 países do mundo com maior percentagem de área florestal privada, ocupando a primeira posição a nível europeu.
Incêndio em Saramaga, Sardoal (2017). Foto: Paulo Jorge de Sousa
Os valores geralmente apontados para caracterizar o regime fundiário na floresta portuguesa baseiam-se em estimativas ou em amostragens, ou também em informação dos recenseamentos agrícolas. Por esse motivo, embora a Autoridade Tributária e Aduaneira indique a existência de 11.578.124 prédios rústicos no ano de 2015, ignora-se os que são ocupados por floresta, e nem se sabe se este número corresponde à realidade, uma vez que nem existe coincidência entre os registos do Cadastro Predial, da Matriz das Finanças e do Registo Predial. Esta ignorância é também demonstrativa do desleixo geral do país relativamente a um problema crucial. A criação do Balcão Único do Prédio (BUPi) tem contribuído para inverter esta situação, mas também tem revelado uma tenebrosa realidade: há uma parte substancial dos prédios rústicos sobre os quais ninguém reivindica a propriedade. Ou seja, estão ao abandono, são ‘pasto de chamas’, e se arderem levam muitas outras áreas atrás.
Em todo o caso, grosso modo estima-se que as propriedades públicas, incluindo os baldios (com gestão conjunta do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas), agrega cerca de 540 mil hectares, estando assim a restante área ocupada por proprietários privados.
Na região a norte do Tejo, onde se localiza a esmagadora maioria da área de pinheiro e eucalipto, e se concentra o minifúndio, cerca de 54% da área florestal encontra-se distribuída por povoamentos com menos de 10 hectares. No caso do pinheiro, 63% dos povoamentos têm áreas inferiores a 10 hectares e 25% áreas inferiores a dois hectares, enquanto no caso do eucalipto cerca de metade dos povoamentos têm dimensão inferior a 10 hectares.
Há cerca de uma década, aquando da elaboração da Estratégia Nacional para as Florestas, estimou-se que cerca de 61% do total dos proprietários florestais possuíam parcelas com menos de cinco hectares, embora apenas detivessem cerca de 26% da área florestal do país, dando assim uma ideia clara da predominância do regime de minifúndio.
Com efeito, cerca de 10% da área florestal era formada por parcelas com menos de um hectare e 16% por parcelas entre um e cinco hectares, significando isto ser muito frequente um proprietário possuir, de forma disseminada, um elevado número de parcelas de reduzidíssima dimensão.
Para agravar a situação, grande parte das propriedades com área inferior a cinco hectares possuíam povoamentos dominados por pinheiro, dimensão onde impera geralmente ausência de investimento, e também pouca expectativa de obtenção de rendimento. Numa postura optimista, estas minúsculas parcelas florestais – que podem representar, em manchas contínuas, centenas de milhar de hectares – constituem, individualmente, meros fundos de poupança para satisfação de necessidades económicas conjunturais. No caso das propriedades inferiores a um hectare não existia mesmo qualquer produção, tanto mais que numa percentagem significativa os proprietários nem sequer sabem identificar nos terrenos as suas parcelas.
Nas ciências económicas, a denominada Teoria dos Jogos mostra, infelizmente, que a melhor decisão de um qualquer agente numa parcela de “floresta” rodeada por proprietários absentistas é não fazer qualquer gestão, porque a probabilidade de arder gastando ou não dinheiro é praticamente a mesma, e assim optando por não fazer gestão, pelo menos “poupa-se” nesses custos.
Incêndio em Saramaga, Sardoal (2017). Foto: Paulo Jorge de Sousa
Ou seja, não há receitas mas também não há custos, logo não há prejuízo. Claro, o prejuízo vem para a sociedade, através da destruição dos incêndios, i.e., de uma externalidade negativa. Esta é a triste realidade portuguesa: face à ausência de associativismo florestal, a inacção de diversos agentes causa uma generalizada inacção, porquanto o risco de um investimento se “esfumar” com um incêndio, proveniente da ausência de gestão em redor, acaba por determinar, como estratégia dominante, ninguém fazer gestão.
No caso do eucalipto, a situação era um pouco melhor, tendo em consideração que grande parte da sua área se situava em propriedades com dimensão entre os cinco e os 20 hectares (12% do total da área florestal) e entre os 20 e os 100 hectares (7% do total). Nestes casos verificava-se já uma presença de investimento e gestão, tendo a exploração um rendimento relevante para os proprietários. A restante área (55%), agregando 15% dos proprietários, possuía uma dimensão superior a 100 hectares, embora dominada por sobreiros e azinheiras, portanto sobretudo localizadas a sul do Tejo e em herdades do distrito de Santarém.
Porém, este cenário, que desde 2007 não se terá alterado, pode induzir a uma conclusão precipitada. Sendo certo que uma estrutura de minifúndio pode conduzir mais rapidamente à ineficiência económica, será imprudente generalizar e determinar uma correlação imediata entre incêndios e minifúndios. De facto, mostra-se conveniente investigar antes esta questão por duas novas perspectivas, complementares.
Primeiro, deve analisar-se diacronicamente o regime fundiário português para determinar se ocorreu algum fenómeno que tenha alterado a estrutura da propriedade típica e que per si justifique um agravamento dos incêndios florestais a partir da década de 1980.
Segundo, comparar a afectação das áreas ardidas em função da tipologia dos proprietários, ou seja, pôr em paralelo o grau de destruição das áreas de gestão pública, de gestão pelas empresas de celulose (que gerem áreas de maior dimensão) e as restantes áreas privadas que incluem o minifúndio.
No primeiro caso, analisando a informação disponível em diversas fontes, verifica-se que o fraccionamento da propriedade rústica é um fenómeno antigo e já bastante estabilizado. Com efeito, a génese do minifúndio surge no decurso de um processo político iniciado nos anos 30 do século XIX, com a instauração da Monarquia Constitucional, que resultou na desamortização de grandes propriedades então pertencentes à nobreza e à Igreja.
Posteriormente, teve ainda um maior impulso com a definitiva abolição dos morgados e a entrada em vigor do Código Civil de 1867, quando estabeleceram sem excepção direitos de herança a todos os filhos. Uma década depois existiam cerca de 5,05 milhões de prédios rústicos, manifestando-se já nesse período excessiva fragmentação, sobretudo na região do Noroeste, com efeitos perniciosos em termos de desenvolvimento agrícola.
Apesar de várias tentativas políticas para evitar o contínuo fraccionamento por via das heranças, somente nos anos 20 do século XX, quando o número de prédios rústicos já ultrapassara os 10,7 milhões, se criou legislação para o estancar, através do Decreto nº 16731 (vd. artigo 107º) que decretou a nulidade de qualquer partilha de prédios com menos de um hectare ou que daí resultassem parcelas inferiores a meio hectare. Esta medida travou fortemente o fracionamento, embora não o impedisse na totalidade.
Se até 1930, em comparação com o último quartel do século XIX, numa parte considerável dos distritos a norte do Tejo mais que duplicou o número de prédios rústicos, a partir dessa década o ritmo estancou. Em 1960 verificou-se até um decréscimo de cerca de 2% em relação ao início do Estado Novo.
Incêndio em Saramaga, Sardoal (2017). Foto: Paulo Jorge de Sousa
A partir dessa década registou-se um novo crescimento no fracionamento, mas mesmo assim suave, atingindo-se um máximo de 11,17 milhões de prédios em 1971. A partir da instauração da democracia, em 1974, o acréscimo foi ligeiro, da ordem dos 0,12% por ano até 2015, estando nessa data contabilizados cerca de 11,58 milhões de prédios rústicos.
Sendo assim, outros factores, e não (apenas) o minifúndio, terão determinado a perda de interesse económico da floresta nas pequenas parcelas e a eclosão de incêndios catastróficos. Uma explicação encontra-se por via sociológica. Durante o Estado Novo, com uma sociedade marcadamente rural, as vivências sociais permitiam um uso comum das propriedades florestais privadas. Ou seja, de modo informal mas cooperativo, os proprietários concediam livre acesso aos não-proprietários para estes, graciosamente, recolherem alguns produtos (e.g., lenha, caruma, matos, etc.), para uso doméstico e agropecuário, «recebendo» em troca uma gestão de combustíveis.
A presença de pessoas nas florestas constituía também uma vigilância quase contínua e dissuasora de comportamentos dolosos ou negligentes por parte de terceiros. Além disso, tendo presente que, durante o Estado Novo, a produção de resina constituía um importante suplemento económico dos pinhais, fica-se com uma ideia clara dos motivos muito prováveis para que, neste período, mesmo os minifúndios florestais fossem rentáveis e estivessem longe de constituir um factor de risco de incêndios. Na verdade, as condições sociais e de cooperação tradicional, que então se viviam nas zonas rurais portuguesas, parecem ter constituído um sistema benigno de interligação entre regime privado e comunal por via da cooperação entre agentes que visam a um equilíbrio sustentável.
Deixando de existir esse ténue equilíbrio, por força do êxodo rural e da perda económica dos pinhais, a gestão de combustíveis foi desaparecendo, redundando num aumento do risco de incêndio, desincentivador de investimentos e promotor de absentismo.
Na análise desta evolução não podem dissociar-se as reestruturações neste sector pela Administração Pública a partir dos anos 80, que contribuíram decisivamente para retrocessos na prevenção silvícola e na eficácia e eficiência do sistema de combate aos incêndios.
Nesse aspecto convém destacar o diagnóstico traçado em 2012 na Estratégia para a Gestão das Matas Nacionais, promovida por técnicos da própria Administração Pública onde se apontam os principais factores que contribuíram para a degradação da protecção das florestas e espaços florestais: a diminuição dos condicionamentos de acesso às matas nacionais e da fiscalização dos guardas florestais (a partir de 1974), a transferência do combate aos incêndios dos Serviços Florestais para as corporações de bombeiros voluntários (a partir de 1981), o encerramento das administrações florestais a nível regional (a partir de 1996), bem como, mais recentemente, o desligamento das tarefas de gestão do corpo de guardas e mestres florestais, e a transferência da competência de análise e decisão dos projectos florestais para o actual Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP) e outros organismos sem vocação nem técnicos nas áreas silvícolas.
O esvaziamento dos Serviços Florestais (com distintas denominações), criados no início do século XX, intensificou-se desde a década de 1990, passando em poucos anos de cerca de quatro mil funcionários para menos de mil. Inclui-se neste lote o Corpo Nacional de Guardas Florestais – que tradicionalmente viviam no interior dos espaços florestais em cerca de mil casas de função –, cuja estrutura foi extinta em 2006, tendo sido integrados os trezentos elementos remanescentes nos Serviços de Protecção da Natureza e do Ambiente (SEPNA) da Guarda Nacional Republicana.
Incêndio em Vale da Carreira (2016). Foto: Paulo Jorge de Sousa
Estas alterações políticas resultaram, sem dúvida, num aumento do risco de incêndio e da susceptibilidade das florestas e dos espaços florestais em geral, mas também particularmente das matas nacionais e perímetros florestais (que integram os baldios), geridas pelos Serviços Florestais. Essa situação mostra-se evidente quando se comparam os registos da área ardida das florestas sujeitas a regime público até à década de 1970 e posteriores à década de 1980.
A situação apresenta contornos catastróficos nos últimos anos. Por exemplo, nos anos de 2016 e 2017 cerca de 20% da área sob gestão pública foi afectada por fogos, sendo que em 18 perímetros e matas nacionais se registaram destruições superiores a 70% das respectivas áreas, estando aqui incluído o secular Pinhal de Leiria.
Lamentavelmente, a destruição das florestas públicas desde 2001 (4,62% em média por ano) ultrapassa largamente os valores das propriedades das celuloses (2,33%) e mesmo da restante área privada (2,28%), que inclui o minifúndio.
Por todos estes motivos, a análise da perda de sustentabilidade da floresta portuguesa e os prejuízos recorrentes das externalidades negativas, encabeçadas pelos incêndios, não deve ser feita de forma simplista face à complexa teia de factores: a quebra dos vínculos sociais informais nos meios rurais, o abandono de actividades agroflorestais tradicionais, a emigração e êxodo rural, a perda da sustentabilidade da agricultura de minifúndio, etc.. Porém, quando se recomendaria que o Estado, perante estas variáveis, tivesse uma intervenção determinante para corrigir falhas de mercado, sucedeu o oposto: um desinvestimento no sector florestal. O único sector com orçamento reforçado foi o do combate aos incêndios.
As autoridades nacionais portuguesas somente a partir de meados da década passada começaram a contabilizar os custos directos e prejuízos resultantes dos incêndios, incluindo uma parte das externalidades, embora recorrendo a métodos muito simplistas, que requerem alguma reserva. Antes desse período, a Universidade Católica de Lovaina, no âmbito da Emergency Disasters Database, estimara que os prejuízos dos fogos de 2003, que destruíram cerca de 425 mil hectares, ascendiam aos 1,5 mil milhões de euros.
Nos trabalhos preparatórios realizados em 2006 para a Estratégia Nacional para as Florestas estimou-se que os incêndios representavam uma externalidade negativa de cerca de 380 milhões de euros por ano, reduzindo em 30% a riqueza anual produzida pelas florestas. E, de acordo com dados oficiais, os incêndios rurais entre 2000 e 2016 provocaram perdas da ordem dos 5.232 milhões de euros. No ano de 2017, o pior desde a existência de registos estatísticos, os prejuízos ter-se-ão aproximado dos mil milhões de euros.
Incêndio em Vale da Carreira (2016). Foto: Paulo Jorge de Sousa
Até recentemente estes aspectos eram ignorados pelas autoridades oficiais, e mesmo os custos de supressão – associados às infraestruturas e equipamentos, aluguer de aeronaves e pagamentos aos bombeiros – eram vistos como investimento, e um Governo considerava ser-lhe favorável politicamente conceder acréscimos sucessivos à componente de combate.
Contudo, a realidade demonstra, infelizmente, que os gastos públicos na vigilância e supressão dos incêndios florestais têm estabilizado em torno dos 100 milhões de euros por ano, mas sem quaisquer efeitos positivos. Os prejuízos dos incêndios mostram variações aleatórias sem relação com os gastos em combate. Esse cenário demonstra que, na verdade, os gastos na prevenção e em equipamentos e meios humanos para controlar os incêndios (supressão) não têm um efeito determinante na área ardida e, portanto, nos prejuízos, evidenciando-se que o actual modelo de gestão se mostra insustentável.
A solução para este grave problema económico, social e ambiental, que já se mostra tragicamente crónico, terá de passar, na minha opinião, pela assumpção da defesa da floresta como um bem público (no conceito das ciências económicas), implementando, a partir daí, uma reforma administrativa intersectorial já defendida por diversos especialistas.
No entanto, considero que, ao contrário daquilo que têm sido os recentes sinais de política económica para este sector, o Estado deveria deixar de desempenhar apenas um papel de mero coordenador, regulador e redistribuidor de recursos financeiros; antes sim deveria passar a exercer uma função interventora de gestão directa dos espaços florestais, incluindo obviamente, até para dar exemplos de boas práticas, as florestas de regime público.
Isto não significa a privatização das florestas, antes sim assumir-se que o Estado é indubitavelmente a única entidade com capacidade de intervenção global para implementar, gerir e executar um modelo centralizador para a gestão dos espaços florestais. Note-se que existe uma distinção entre floresta – bens privados – e os espaços florestais – conjunto de parcelas que fornecem externalidades positivas, como ar limpo, paisagem e outros benefícios para a sociedade, e por isso são bens públicos, na visão económica do termo –, e daí necessitam de abordagens distintas.
Incêndio em Vale da Carreira (2016). Foto: Paulo Jorge de Sousa
Distinguir estes dois bens que, na verdade, coexistem – e, por vezes, se confundem por «comungarem» do mesmo espaço físico – serve sobretudo para colocar, de um lado, um bem sobretudo privado (floresta) que, por razões complexas, tem vindo a criar externalidades negativas (incêndios); e, do outro lado, um bem público (espaços florestais) que criam benefícios para a sociedade.
Ora, actualmente, porque estes benefícios não são convenientemente remunerados (ou compensados) acabam por ser «lesivos» para todos. Com efeito, o conjunto de proprietários que produz esse benefício para a sociedade nada recebe, e, em alguns casos, até tem de suportar mais encargos para proteger bens alheios.
Face ao carácter de minifúndio das propriedades, a ausência de uma compensação aos proprietários florestais por essa externalidade positiva para a sociedade contribui para o agravamento da sustentabilidade económica dessas parcelas e induz a um maior absentismo. Ou seja, a existência de uma externalidade positiva (porque um serviço ambiental não é pago pela sociedade) pode estar na origem de uma externalidade negativa (os incêndios). E havendo incêndios, não apenas ocorrem danos económicos e sociais directos como se perdem os benefícios fornecidos pelos espaços florestais. Daí a necessidade de intervenção directa do Estado, bem diferente daquela que até agora tem sido, para equilibrar aquilo que se chama uma “falha de mercado”.
Justifique-se, com um simples mas elucidativo exemplo, as razões para se defender uma intervenção directa do Estado, e não apenas reguladora e distribuidora de fundos. Quando, como actualmente sucede, o Governo determina administrativamente (e sem critério técnico, por vezes) que sejam os proprietários das florestas a proceder e a assumir os custos da desmatação e desarborização em redor de habitações (das quais, por vezes, nem são os proprietários), não está a seguir princípios de eficácia, de eficiência e de equidade.
Por um lado, porque essa obrigação quase nunca é eficaz nem eficiente, uma vez que não se baseia em estratégias de prevenção nem em estudos que definam adequadamente faixas de gestão de combustíveis, nem existe a garantia, face ao absentismo de muitos proprietários, de que essas operações sejam executadas. Por outro lado, obrigando apenas certos proprietários a assumir esse ónus, o Estado beneficia free-riders, i.e., os proprietários das habitações em redor (muitas das quais autorizadas após a existência da floresta) e os vizinhos florestais isentos dessas operações.
E mesmo que este controlo de vegetação fosse eficaz para eliminar a externalidade negativa (incêndios), manter-se-ia a iniquidade, porquanto o proprietário responsável pela operação de limpeza não fora compensado por esse serviço – i.e., a criação de uma externalidade positiva – com a agravante de ainda ter uma perda de rendimento potencial por redução de biomassa florestal.
Não se está a advogar um Estado a gerir as florestas privadas, mas sim a exercer a gestão dos espaços florestais, podendo eventualmente «entrar» em áreas privadas, como já sucede em outros casos, através de servidões administrativas, de modo a corrigir externalidades, sempre também com uma visão nas funções de redistribuição e mesmo de estabilização.
Assim, de uma forma muito sucinta, por via de um reforço da Administração Pública do sector florestal, proporia a criação de um denominado Sistema de Gestão de Espaços Florestais (SIGEF) numa instituição estatal autónoma que deveria agregar equipas de técnicos, vigilantes e sapadores florestais, com a missão de executar no terreno as operações necessárias de gestão de combustíveis (biomassa), de vigilância e controlo de acessos, e ainda supressão de incêndios. Por outro lado, no âmbito deste modelo, deveria ser criado um mecanismo de compensação económica ou fiscal, através de um sistema de perequação, para benefício dos proprietários dos terrenos florestais onde se fizessem intervenções de controlo de vegetação.
Incêndio em Vale da Carreira (2016). Foto: Paulo Jorge de Sousa
No sentido de o Estado financiar este sistema como uma provisão de um bem público – e sem necessidade de contabilizar os rendimentos de um previsível aumento das receitas dos impostos (IRC e IRS) associados à melhoria da produtividade das actividades silvícolas por eliminação das externalidades – poder-se-ia apostar em três fluxos financeiros: separando-o do mastodóntico Fundo Ambiental, um reforço no Fundo Florestal Permanente (cujas receitas, para além do actual adicional ao ISP, poderiam ser provenientes de um «imposto» específico similar a aplicar aos produtos de origem silvícola, sendo assim uma forma de internalização pela sociedade das externalidades positivas concedidas pelos espaços florestais); um adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis rústicos (aplicando uma taxa regressiva por prédio rústico em função da área, também como incentivo ao emparcelamento e/ou como penalidade à manutenção de áreas improdutivas); e uma denominada Taxa de Protecção de Espaços Florestais (sob a forma de taxa fixa por prédio urbano e veículo).
Um sistema deste género implicaria elevados investimentos, mas esse montante será incomensuravelmente menor do que as externalidades negativas existentes.
A versão original, sem a actualização agora realizada, foi publicada na revista PONTO – revista do mediotejo.net, em 2021, acessível aqui. O PÁGINA UM apresenta os agradecimentos à directora do Médio Tejo, Patrícia Fonseca, e ao fotógrafo Paulo Jorge de Sousa.