Categoria: Sociedade

  • Actas XXX: Conselho Superior da Magistratura expurga informação pública de forma selectiva

    Actas XXX: Conselho Superior da Magistratura expurga informação pública de forma selectiva

    XXX – omnipresente na cultura pop, e não só, a conjugação tripla da 22.ª letra do abecedário latino (ou 24.ª para quem usa o Acordo Ortográfico de 1990), começou como um simples X, rabiscado por seguranças de clubes nos anos 80 para assinalar os menores de idade que, em teoria, não podiam beber álcool. Mas como a juventude punk sempre teve um talento especial para transformar restrições em insígnias de rebeldia, alguns decidiram que aquele X não era um sinal de proibição – era um símbolo de pureza e resistência.

    Assim nasceu o straight edge, um movimento hardcore que rejeitava álcool, tabaco, drogas e, em alguns casos mais radicais, qualquer vestígio de diversão que não envolvesse moshing e gritos sobre desilusões existenciais, porque no hardcore original tudo precisa de ser elevado ao extremo. Afinal, se um X é bom, três seriam melhores.

    Mas houve quem considerasse que esse triplo X poderia bem ser, fora do universo punk, usado como símbolo de pornografia, ou seja, tudo o que os straight edge tentavam evitar. O resultado disto foi uma das ironias mais deliciosas da cultura underground: os mesmos jovens que erguiam orgulhosamente camisolas com XXX estampado no peito acabavam confundidos com entusiastas do cinema para adultos.

    Não menos irónico é que o XXX – e um pouco menos o XX e o X – são também caracteres bastante apreciados no edifício com o número 23 da Rua Duque de Palmela, em Lisboa, isto é, na sede do distinto e digníssimo Conselho Superior da Magistratura (CSM). Órgão de gestão e disciplina dos juízes em Portugal, integrando magistrados, personalidades designadas pela Assembleia da República e pelo Presidente da República, o CSM tem como principais funções nomear, avaliar, promover, colocar e exercer a acção disciplinar sobre os juízes dos tribunais judiciais

    Em sede deste órgão, existem duas estruturas fundamentais: o Conselho Plenário e o Conselho Permanente. No primeiro, delibera-se a nomeação, avaliação e disciplina de juízes conselheiros e desembargadores, aprovam-se regulamentos, apreciam-se impugnações administrativas, aplicam-se penas disciplinares, incluindo a demissão, atribuem a classificação de Medíocre, decide-se sobre o direito de regresso e sobre situações de suspensão ou perda de mandato, e decidem-se outros assuntos avocados ou propostos pelos seus membros. Já o Conselho Permanente fica com a gestão dos assuntos teoricamente menos polémicos.

    Ora, mas, na verdade, pelo menos na aparência, tudo parecerá polémico para o CSM – ou pelo menos, não deve estar ao dispor do vulgar cidadão. Por exemplo, no das actas do Plenário – que se reúne, com frequência ordinária, uma vez por mês, com excepção de Agosto –, existe uma apetência especial para o uso dos caracteres (maiúsculos) XXX, XX e X, usados para ‘eliminar’ o conhecimento público dos casos considerados mais sensíveis. Vejamos um exemplo, na lista de actas que surgem na página do próprio Conselho Plenário, com reuniões mensais.

    Na reunião de Janeiro do ano passado, de entre 29 deliberações, há cinco oitos de ‘XXX’. No ponto 12 fica-se a saber que foi deliberado por proposta do “Senhor Vogal Dr. Júlio Gantes” atribuir a classificação de “Suficiente” (aparentemente uma má nota) à “Dra XXX pelo seu desempenho no período compreendido entre 17 de dezembro de 2020 e 19 de Abril de 2023 no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Matosinhos – Juiz 1”. No ponto seguinte, a “Juíza de Direito XXX” viu ser-lhe negada a pretensão de melhorar a nota que lhe fora atribuída, não ficando sequer em acta em que juízo desempenha funções.  

    Na mesma reunião revela-se que se indeferiu o pedido do “Exmo. Sr. Juiz de Direito XXX para exercer o cargo de Presidente do Conselho de Justiça da Federação Portuguesa de Atletismo”. Não se sabe quem foi.

    Trecho da acta de Janeiro de 2024 do Plenário do CSM tornada pública com expurgo de informação.

    Mas existem também, nesta reunião, casos em que são apagados detalhes muito relevantes que deveriam ser do conhecimento das partes envolvidas em processos judiciais. Por exemplo, no ponto 28 da ordem de trabalhos diz-se que “foi deliberado por unanimidade concordar com a proposta da Exma. Sra. Juíza Desembargadora Dra. Ana de Azeredo Coelho, relativamente à prolação de decisões nos processos distribuídos ao Exmo. Senhor Desembargador Dr. XXX no Tribunal da Relação de XXX e assim: determina-se que a suspensão da distribuição se mantenha até à prolação das decisões nos dois processos não redistribuídos (NUIPC XXX e XXX) e nunca depois de 31 de janeiro, sem prejuízo do que resultar da informação a solicitar ao processo de averiguação; seja elaborada informação sumária e meramente indiciária sobre o objeto do processo de averiguação, a prestar até 31 de janeiro”.

    Este é apenas um exemplo. E nem sempre o ‘XXX’ é o escolhido para esconder de olhos curiosos os nomes ou tribunais ou processos que são debatidos nas magnas reuniões. Por exemplo, na acta do Plenário de Junho do ano passado decidiu-se esconder os ‘elementos sensíveis’ através não do ‘XXX’ mas do ‘XX’. São seis os casos. No mês seguinte, para expurgar elementos usa-se o ‘XXX’, o ‘XX’ e ainda apenas o ‘X’, embora todos com a mesma função: apagar 10 referências a juízes, tribunais ou processos.

    Há casos de absurda omissão, que pode determinar prejuízo tanto para advogados como arguidos em processos. E, claro, nada abona sobre a transparência da Justiça. Por exemplo, no ponto 16 do Plenário de Setembro do ano passado, foi confirmada a classificação de “Medíocre” de uma juíza sob proposta do desembargador Filipe Caroço, perfeitamente identificado em acta. E quem é essa juíza? A acta ‘esclarece’: é a “Senhora Juiz de Direito Dra. XXX” que exerceu no “Juízo Local Cível de XXX, Juiz X (Comarca de XXX)”, entre 7 de Abril e 31 de Agosto de 2022, e saltou depois, entre Setembro de 2022 e Abril de 2024, para o “Juízo Local Cível de XXX, Juiz X (Comarca de XXX)”.

    João Cura Mariano, presidente do Supremo Tribunal de Justiça e por inerência do Conselho Superior da Magistratura, a cumprimentar o Presidente da República

    Somente no ano de 2024, o PÁGINA UM detectou, pelo menos, rasuras em 140 partes, excluindo do conhecimento público nomes, tribunais e processos. Só mês de Novembro de 2024 tem 39 rasuras.

    Similar problema de obscurantismo têm as sessões do Conselho Permanente, com a agravante de existirem em mais actas: no ano passado houve 35 reuniões, onde tomam parte o presidente do CSM, o vice-presidente, o vogal indicado pelo Presidente da República, dois vogais eleitos pela Assembleia da República, três vigais eleitos pelos magistrados judiciais e a juíza secretária. Neste caso, em diversas actas consultadas, talvez por pudor, não se use nem ‘X’ nem ‘XXX’ para expurgar elementos identificativos; opta-se antes por tracejado.

    Também aqui há selectividade na eliminação da informação. Por exemplo, na acta de 30 de Janeiro de 2024, um escrivão que viu o seu recurso de classificação de “Bom com distinção” ser recusado, foi identificado: João Gilberto Ramos de Abreu. Porém, logo no ponto seguinte não se sabe quem é a “Exma. Sra.” que viu ser indeferido o requerimento para ser abrangida pela Lei da Amnistia. Nem se sabe pela acta a que castigo se referia ou sequer a função.

    No ponto seguinte, também não é identificada a juíza que terá pedido um incidente de recusa nem sequer o processo sobre o qual estaria a tratar, Menos transparência não poderia haver.

    Em outros casos são transcritas deliberações tomadas sobre averiguações, inquéritos ou exposições, onde são eliminados os nomes dos juízes, bem como os processos, em alguns casos com a indicações de terem ocorrido atrasos alegadamente injustificados. Curiosamente, em algumas situações surge a referência a ter saído da sala algum dos membros do Conselho Permanente, intuindo-se que terá sido por razões de proximidade.

    Trecho de uma acta do Conselho Permanente do CSM, onde não há ‘XXX’; usa-se antes o tracejado para a mesma função: ocultar.

    Este e muitos outros casos estão semeados ao longo das páginas das dezenas de actas da cúpula da Magistratura portuguesa, sem que se entendam os motivos dos expurgos ou o propósito de se esconder informação apenas quando o visado tem um desempenho sofrível que, a haver prejudicados, serão as partes dos processos.

    Por esse motivo, o PÁGINA UM requereu ao CSM o acesso integral a todas as actas sem expurgos do Plenário e do Conselho Permanente relativas aos anos de 2023 e 2024.

    Porém, o CSM recusou o acesso, alegando a protecção de dados nominativos, mesmo quando, em muitos casos, o expurgo se refere ao nome de tribunais ou a números de processos, aos quais nem sequer se aplicaria jamais o Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD). Porém, nem sequer ao nível do acesso a documentos administrativos, como são as actas, se aplica o RGPD, tanto mais que aquilo que está em causa são apenas nomes e de pessoas em exercício de funções públicas. Mas na recusa, o CSM alega que “não é o tratamento de dados pessoais no contexto profissional menos merecedor de proteção do que noutras circunstâncias”, acrescentando que “existe jurisprudência consolidada, e [que como existe] um volume significativo de dados pessoais e [que] abrange um vasto conjunto de assuntos, diferenciados”, tal “implicaria desde logo diferentes ponderações em razão da matéria tratada”.

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    A Justiça não é cega; por vezes, coloca é vendas para que não seja vista.

    No entanto, o CSM não indica qual a jurisprudência em concreto – que, na verdade, existe mas é contrária à posição desta entidade, ou seja, não há protecção de dados quando se trata do nome de alguém no exercício de funções público. Além disso, carece de sustentação esse argumento quando a rasura é selectiva – isto é, se um juiz tem uma classificação de distinção, o seu nome é revelado sem pudor; mas se tem uma classificação mediana ou sofrível, ‘beneficia’ de uma ocultação.

    Por todo esse motivo, o PÁGINA UM fez uma intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa no sentido de obrigar, mais uma vez, o CSM a revelar dados administrativos.

    Recorde-se que já este ano, depois de um longo processo, o PÁGINA UM conseguiu aceder aos relatórios do inquérito à distribuição da Operação Marquês, depois de uma longa ‘luta jurídica’, que culminou mesmo com uma ameaça de sanção pecuniária compulsória ao presidente do CSM (e também do Supremo Tribunal de Justiça), João Cura Mariano. Também nesse processo, que perdeu em toda a linha, o CSM alegava razões de protecção de dados para não disponibilizar voluntariamente documentos comprometedores.


    N.D. Este e muitos outros processos judiciais do PÁGINA UM têm sido apoiados pelos leitores através do FUNDO JURÍDICO, que, neste momento, apresenta um défice.

  • Gouveia e Melo ‘despachado’ das fileiras da Nova School of Law após protocolo com a Marinha

    Gouveia e Melo ‘despachado’ das fileiras da Nova School of Law após protocolo com a Marinha

    Sem honra nem glória, e num recato institucional pouco habitual para quem tanto celebrara em tempos a sua “contratação”, a NOVA School of Law – nome pomposo e anglicizado da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa – apagou silenciosamente o antigo Chefe do Estado-Maior da Armada, Henrique Gouveia e Melo, das suas fileiras docentes.

    Esta saída discreta – o nome do putativo candidato a Belém deixou de constar no site da instituição universitária – surge após dois anos em que o agora Almirante na reserva ocupou, de forma irregular e à margem da legalidade, a regência da cadeira de Segurança Marítima no mestrado em Direito e Economia do Mar. O nome de Gouveia e Melo chegou a constar como regente e professor ainda num documento interno da Nova School of Law ainda no final de Dezembro passado.

    Nobre de Sousa na aula inaugural da unidade curricular de Segurança Marítima na Faculdade de Direito da Universidade Nova de LIsboa. A Marinha, com um protocolo, tenta ‘apagar’ um acordo informal que transformara o anterior Chefe do Estado-Maior da Armada, Gouveia e Melo, um distinto professor universitário sem sequer dar uma aula durante dois anos lectivos. Foto: NSL

    A situação insólita de uma “contratação” sem base legal, sobretudo por ser cometida por uma instituição universitária de Direito, foi revelada em primeira mão pelo PÁGINA UM em Dezembro do ano passado. No auge da sua popularidade na liderança do Estado-Maior da Armada, em Fevereiro de 2023 anunciou, com pompa, que “uma das novidades deste ano [lectivo, de 2023/2024]” seria “a leccionação da cadeira Maritime Security a cargo da Marinha Portuguesa, sob a regência do Almirante Gouveia e Melo”. E acrescentava ser “com enorme satisfação que recebemos o ex-coordenador da Task Force do Plano de Vacinação contra a covid-19 em Portugal, que se juntou à NOVA School of Law no seguimento do nosso empenho em robustecer o nosso corpo docente com os/as melhores e mais talentosos/as profissionais, contribuindo para a excelência deste mestrado”.

    O “nosso empenho”, o da Faculdade de Direito da UNL, devia ler-se como empenho da ala do CDS nesta instituição universitária pública. Com efeito, todo o processo de convite foi conduzido pela então directora da Faculdade, Mariana França Gouveia – que actualmente preside ao Conselho Científico – e pela coordenadora do mestrado, Assunção Cristas, que também lidera a Comissão Científica do mestrado. Além das suas ligações umbilicais ao CDS, estas duas advogadas, amigas de longa data, gravitam numa das mais importantes sociedades de advogados com milionários contratos públicos: a Vieira de Almeida.

    Apesar de o mais recente processo de acreditação pela A3ES ser completamente omisso sobre a entrada de militares de carreira sem currículo académico na regência de uma cadeira e a prestar aulas, não foi cumprida qualquer das regras previstas no rigoroso Estatuto da Carreira Docente Universitária, que não permite, por razões óbvias, a contratação de qualquer pessoa mesmo sob convite e mesmo se tivesse um currículo académico invejável, o que não é o caso de Gouveia e Melo.

    Assunção Cristas (segunda a contar da direita),antiga ministra do Ambiente, do Mar e da Agricultura tratou de ‘convidar’ Gouveia e Melo em 2022 para ser professor convidado mas sem cumprir formalismos legais. A ala do CDS na Nova School of Law permitiu que o antigo líder da Armada fosse regente sem sequer colocar os pés nas aulas. Foto: NSL

    As revelações do PÁGINA UM geraram visível desconforto quer na NOVA School of Law, quer no seio da Marinha, que, nos últimos meses, trabalharam discretamente para “corrigir” um evidente atropelo às normas legais e académicas vigentes. Em todo o caso, nos horários revelados pela instituição universitária pública no dia 30 de Dezembro para as unidades curriculares do segundo semestre, Gouveia e Melo ainda continuava a ser indicado como regente, mesmo tendo abandonado a liderança da Marinha dias antes.

    A solução encontrada para mitigar um cada vez maior embaraço institucional foi a celebração de um protocolo de cooperação – que nunca antes se formalizara – e que se concretizou ontem numa “cerimónia pública” da primeira aula de Segurança Marítima, carregada de solenidade e cuidadosamente encenada, com a presença do novo Chefe do Estado-Maior da Armada, Jorge Manuel Nobre de Sousa, bem como do novo regente, Armando Valente Tinoco, que tem o posto de Comodoro, hierarquicamente abaixo de Contra-Almirante, sendo já um oficial general.

    Ao contrário de Gouveia e Melo, o regente agora indicado pela Marinha – que já surge na lista de professores da Nova School of Law, ‘destronando’ o agora desaparecido Gouveia e Melo – tem larga experiência em Segurança Marítima. Com uma carreira de quase duas décadas, foi recentemente comandante dos Fuzileiros (2023-2024) e desempenhou as funções de Force Commander da European Union Naval Force Atalanta (Comandante da Task Force 465) entre Outubro e Dezembro do ano passado. A Task Force 465 é uma operação militar da União Europeia que visa proteger os navios mercantes, em especial os do Programa Alimentar Mundial, das ameaças de pirataria ao largo da costa da Somália e no Oceano Índico, tendo também funções de vigilância das actividades marítimas naquela região.

    Margarida Lima Rego, directora da Nova School of Law, ontem na aula inaugural do presente semestre da unidade curricular de Segurança Marítima, com o novo regente, Comodoro Valente Tinoco. Do anterior regente, Gouveia e Melo, nunca foram reveladas provas de que tenha entrado numa sala de aula para ensinar Segurança Marítima. Foto: NSL

    Apesar deste formalismo – com a presença de Nobre de Sousa na aula inaugural, na presença das várias responsáveis pela anterior “contratação” de Gouveia e Melo (Assunção Cristas e Margarida Lima Rego), ‘eternizadas’ em várias das 12 fotografias do evento –, o protocolo agora firmado acaba por se converter numa confissão pública das irregularidades cometidas.

    Com efeito, sendo este protocolo inédito, significa então que, durante dois anos, a Marinha colocou os seus meios e efectivos – nomeadamente militares que, de facto, asseguraram as aulas da cadeira de Segurança Marítima nos anos lectivos de 2022/2023 e 2023/2024 – ao serviço de uma instituição de ensino superior, sem que houvesse qualquer instrumento jurídico que enquadrasse e legitimasse essa colaboração. Além disso, nunca foram revelados publicamente os documentos que deveriam ter formalizado a aceitação de Gouveia e Melo como docente convidado, acto que deveria ter sido aprovado no Conselho Científico da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

    Por outro lado, houve militares da Armada que deram aulas em nome e sob a regência formal de Gouveia e Melo, que, sem ter aparecido numa única sessão, beneficiou do estatuto de professor convidado da NOVA School of Law, numa situação que fere a legalidade e a ética académica. A Marinha, aliás, mantém-se em silêncio quanto à identidade dos militares que leccionaram estas aulas, apesar de ter sido novamente instada ontem, pelo PÁGINA UM, a esclarecer publicamente quem foram os oficiais destacados para estas funções e ao abrigo de que fundamentos legais.

    O Chefe de Estado-Maior da Armada esteve presenta na aula inaugural de Segurança Marítima acompanhado pelo novo regente, Valente Tinoco, e mais três oficiais da Marinha. Da anterior equipa da Marinha que, sob regência oficial de Gouveia e Melo, esteve a dar aulas, através de um ‘acordo de café’, não se conhece qualquer cara nem nome.

    A celebração deste protocolo procura agora dar um lustro de legalidade a um passado recente repleto de opacidade. O documento, segundo foi anunciado, assegura a continuidade da regência da cadeira de Maritime Security, no âmbito do mestrado em Direito e Economia do Mar. Segundo nota da NOVA School of Law, a nova parceria – que só existe quando formalizada, porque estas questões não são passíveis de informalidade de uma “mesa de café” ou de uma sede partidária – não se limita à componente lectiva, prevendo-se também iniciativas complementares, como visitas dos estudantes às instalações da Marinha, acesso a bibliotecas e recursos para investigação, estágios curriculares e a atribuição de prémios de excelência académica.

    Porém, a Marinha não respondeu ao pedido do PÁGINA UM para lhe enviar uma cópia do protocolo, desconhecendo-se assim se existem “matérias secretas” e pagamentos envolvidos. O acesso a um protocolo que deveria ser público, ademais depois de dois anos de irregularidades, só deverá, eventualmente, ser acedido pelo PÁGINA UM através de uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa – uma situação que começa a fazer “escola” numa Administração Pública cada vez mais opaca.

  • Força Aérea faz contratos de 59 milhões com empresa condenada no ‘Cartel del Fuego’

    Força Aérea faz contratos de 59 milhões com empresa condenada no ‘Cartel del Fuego’

    A Força Aérea Portuguesa celebrou, na semana passada, três contratos de meios aéreos de combate aos incêndios rurais no valor de 59 milhões de euros com uma empresa de capitais espanhóis – a Agro-Montiar –, cuja ‘holding’ (Avialsa, hoje Titan) foi condenada em Fevereiro passado num mega-processo judicial envolvendo corrupção, prevaricação, peculato e falsificação.

    O processo conhecido por ‘Cartel del Fuego’ teve o seu desfecho numa sentença do passado dia 5 de Fevereiro, que levou à condenação de doze réus – acusados ​​de formação de cartel em contratos públicos de combate a incêndios no sector de navegação aérea entre 2001 e 2018 – a penas de prisão entre dois anos e três meses e seis meses. De entre os condenados está o ex-delegado do Governo na Comunidade Valenciana, bem como dirigentes de diversas empresas aeronáuticas que concertavam preços.

    Foto: D.R.

    A sentença da Audiência Nacional confirma que, entre 1999 e 2018, um grupo de empresários do sector de navegação aérea de combate a incêndios rurais compartilharam geograficamente as licitações públicas abertas, e que “em colaboração com autoridades ou agentes públicos”, estabeleceram “acordos clandestinos prévios e com fins lucrativos”, impondo “às administrações contratantes preços superiores aos que resultariam de uma concorrência livre e transparente, por meio de repartição fraudulenta de mercado”.

    Em concreto, de acordo com a sentença, a Avialsa – dona da Agro-Montier, através da Aviación Agricola de Levante – liderava uma rede de empresas que coordenavam ofertas em concursos públicos, garantindo que apenas uma delas apresentava proposta vencedora, enquanto as restantes faziam ofertas de cobertura para simular uma falsa concorrência. Além disso, o conluio incluiu falsificação de documentos, pagamento de subornos a funcionários públicos e contratos simulados entre as empresas envolvidas para inflacionar artificialmente os custos.

    O tribunal determinou que o fundador e administrador da Avialsa, identificado na sentença como “D. Salvador”, teve um papel central na organização do esquema, assegurando que os contratos eram distribuídos entre as empresas do grupo. Esta pessoa será Salvador Alapuz, que se manteve sócio da empresa enquanto exercia como funcionário público.

    Primeira página da sentença contra o ‘Cartel del Fueg’ pela Audiência Nacional em 5 de Fevereiro de 2025.

    Foram ainda identificadas práticas de corrupção, incluindo a oferta de vantagens indevidas a responsáveis administrativos das Generalitat Valenciana e Generalitat Catalana para favorecer adjudicações.

    A investigação, que levou à condenação dos responsáveis, foi impulsionada pelo testemunho de um ex-director-geral da Avialsa, que denunciou o esquema às autoridades, permitindo a recolha de provas cruciais. Este caso, considerado um dos maiores escândalos envolvendo contratos públicos em Espanha, ocorreu sobretudo nas Comunidades de Valência e Catalunha, os Ministérios da Agricultura e do Ambiente e, em menor grau, nas comunidades andaluza e castelhano-manchega.

    De uma forma inédita, a Audiência Nacional sentenciou também que as as seis empresas envolvidas sofressem um período de inibição de estabelecer contratos públicos em Espanha durante nove meses. Uma penalidade que pode custar várias dezenas de milhões de euros de facturação e permitir a entrada de concorrentes, causando danos potencialmente irreparáveis. Neste lote de empresas abrangidas pela proibição de contratos estão, além da Avialsa (actual Titan), a Trabajos Aéreos Extremeños (TAEXSA), a Martínez Ridao Aviación, a Servicios Aéreos Europeos y Tratamientos Agrícolas (SAETA), a TA Trabajos Aéreos Espejo, Compañía de Extinción General de Incendios (CEGISA) e a Pegasus Aviacion. Estas empresas também foram condenadas a pagar uma indeminização de 234 mil euros à Administração Geral do Estado. O processo ainda é passível de recurso.

    Foto: D.R.

    Em 2017, uma possível ramificação do ‘Cartel del Fuego’ foi investigada em Portugal, sobretudo porque em 2014 a Avialsa comprou a empresa portuguesa Agro-Montiar, inicialmente com sede no Montijo e que se deslocou depois para Tondela. Logo nesse ano, a Agro-Montiar recebeu um ajuste directo de 1,8 milhões de euros para disponibilizar duas aeronaves à Autoridade Nacional de Protecção Civil. Em Maio do ano seguinte ganharia um concurso público no valor de quase 5 milhões de euros para fornecimento de duas aeronaves para combate aos incêndios rurais por um período de três anos, não sendo reveladas no Portal Base quais as empresas que concorreram.

    Sobretudo a partir de 2018, através da Agro-Montiar, a Avialsa consolidou a sua presença no chorudo negócio do combate aéreos aos incêndios rurais. Nesse ano conseguiu ganhar dois contratos num valor global de 19 milhões de euros. Seria em 2020, porém, que chagariam os contratos mais avultados. O primeiro em Março, no valor de 43,4 milhões de euros, para quatro meios aéreos durante quatro anos, em que terá ‘derrotado’ nove concorrentes. E o segundo, no mesmo mês, no valor de 36,2 milhões de euros, em que ‘derrotou’ 10 concorrentes.

    Porém, em 2022, soube-se que a Agro-Montiar alugou duas das quatro aeronaves a uma das concorrentes que derrotara, a CCB Serviços Aéreos, com capitais de um dos envolvidos na ‘Cartel del Fuego’, Ángel Martinez Ridao, que controla a SAETA e a Martínez Ridao Aviación. No entanto, em Portugal, apesar dos gastos milionários no uso de meios aéreos no combate aos incêndios, com fracos resultados, nunca as autoridades encontraram as mesmas evidências confirmadas em Espanha pela Audiência Nacional.

    Foto: D.R.

    Em 2023 e 2024, a Agro-Montiar obteve mais três contratos similares no valor total de 19,4 milhões de euros. Com os três agora assinados na semana passada com a Força Aérea Portuguesa, a empresa de capitais espanhóis, cuja ‘holding’ encabeçava o ‘Cartel del Fuego’, totaliza contratos públicos em Portugal no valor de quase 186 milhões de euros, que com IVA ultrapassa os 228 milhões de euros. Desde 2020, o valor da facturação foi de 158,3 milhões de euros, que com IVA aproxima-se dos 195 milhões de euros, todos com a Força Aérea.

    O PÁGINA UM aguarda eventuais comentários do Ministério da Defesa sobre os contratos estabelecidos com a Agro-Montiar.

  • Quercus: Ministério Público arquiva inquérito contra ex-presidente expulso

    Quercus: Ministério Público arquiva inquérito contra ex-presidente expulso

    A luta pelo poder na associação ambientalista Quercus parecia ter-se ‘extinguido’ com a expulsão recente de quatro antigos dirigentes, mas a guerra prossegue, agora na Justiça. E ganhou novo fôlego com ‘vitórias’ judiciais obtidas por dois dos ex-dirigentes expulsos, João Branco e Paulo Mendes, na recente assembleia-geral da associação nascida em 1995 e que já foi uma das mais dinâmicas.

    Para a actual presidente da Quercus, Alexandra Azevedo, a polémica em torno das expulsões dos quatro antigos dirigentes ficou encerrada com a assembleia-geral. E, entretanto, já está agendada para 29 de Março a assembleia-geral eleitoral que vai eleger os órgãos sociais da Quercus para o mandato de 2025-2026. Porém, apesar de terem sido expulsos os quatro ex-dirigentes, ficando impedidos de concorrer a eleições, nem tudo são ‘favas contadas’.

    Numa das decisões judiciais recentes, o Ministério Público decidiu arquivar o inquérito que investigava João Branco, ex-presidente da Quercus, que foi acusado de cometer irregularidades e de má-gestão da organização não-governamental do ambiente (ONGA), através de uma denúncia anónima feita a 15 de Dezembro de 2017.

    As lutas da Quercus têm sido externas, em defesa do ambiente, mas também internas, com acusações cruzadas entre actuais e antigos dirigentes . A luta pelo poder deverá continuar, agora na Justiça.
    / Foto: D.R.

    A decisão de arquivamento, a que o PÁGINA UM teve acesso, foi assinada no passado dia 11 de Fevereiro pelo magistrado Joaquim Morgado, com o fundamento de que não foi possível ao Ministério Público obter indícios suficientes da verificação de crime ou de quem foram os agentes.

    No despacho de arquivamento, com 138 páginas, o procurador concluiu que “da apreciação crítica, conjunta e objetiva das provas indiciárias recolhidas em sede de inquérito, não nos foi possível formar a convicção de que, com os elementos de prova juntos aos autos, é mais provável que os arguidos venham a ser condenados pela prática dos imputados crimes, em sede de julgamento, do que o não venham a ser, razão pela qual entendemos que não se mostra reunida a indiciação exigida pelo artigo 283.º do Código de Processo Penal”.

    João Branco afirmou ao PÁGINA UM que avançou, entretanto, com uma providência cautelar para que seja anulada a sua expulsão da ONGA. O engenheiro florestal está confiante de que vai voltar a fazer parte da associação e quer mesmo concorrer à liderança da associação ambientalista..

    “A providência cautelar serve para defender a minha reputação, mas também o faço com a intenção de me candidatar à liderança a nível nacional”, disse o antigo presidente da Quercus. “Ninguém duvida que a decisão de me expulsarem foi tomada para me impedirem de me candidatar”, acusou.

    João Branco, ex-presidente da Quercus, foi um dos quatro sócios e antigos dirigentes da associação ambientalista que foram expulsos por deliberação da recente assembleia-geral extraordinária da ONG. / Foto: D.R.

    João Branco lamentou, de resto, que a sua expulsão já o tenha impedido de ser candidato à liderança do núcleo regional de Vila Real, cujas eleições decorreram no passado mês de Fevereiro. As eleições para a liderança nacional da Quercus deverão ocorrer nos próximos meses.

    Numa outra acção, segundo João Branco, a Quercus sofreu um outro revés. No passado, a ONG já tinha suspendido João Branco como sócio da organização, o que levou o engenheiro florestal a avançar com uma providência cautelar, a qual evoluiu para uma acção principal na Justiça. Numa audiência recente no âmbito deste processo, a Quercus procurou que a acção ficasse sem efeito, argumentando que o ex-presidente já foi expulso na recente assembleia-geral. Mas o juiz decidiu prosseguir com o caso, visto que a providência cautelar em curso pode resultar na anulação da expulsão do antigo dirigente da ONG.

    Num outro processo, um ex-dirigente que foi expulso, Paulo Mendes, antigo dirigente do núcleo regional de Braga da associação, obteve uma vitória judicial. O Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa decidiu “anular a deliberação da direção nacional da associação ré [Quercus], tomada em 18/05/2023, que destituiu a direção do seu núcleo regional de Braga, eleito em 19/11/2022”.

    Foto: D.R.

    Segundo a sentença, assinada no passado dia 7 de Fevereiro, a decisão da destituição da direcção do núcleo regional de Braga foi “arbitrária, porque aleatória e fortuita”. O Tribunal indicou até que a destituição com base num dos fundamentos invocados — a alegada de falta de indicação do associado para iria presidir à assembleia de núcleo — “é contrária aos próprios estatutos [da Quercus] e, consequentemente, aos interesses da associação ré”.

    O Tribunal considerou ainda que a destituição efectuada com base num outro fundamento — o alegado não envio de actas de reuniões da assembleia de núcleo e da direção de núcleo e o relatório de atividades e de gestão, o orçamento e o plano de atividades — “é arbitrária e, até, desproporcional”.

    Paulo Mendes afirmou ao PÁGINA UM que ficou satisfeito com a decisão judicial, mas garantiu que não pretende voltar para a associação ambientalista. Até porque diz que foi ele próprio quem pediu à Quercus para deixar de ser sócio, tendo recebido da ONG a confirmação da sua exclusão enquanto associado antes da assembleia-geral que deliberou a sua expulsão.

    Alexandra Azevedo, presidente da Quercus. / Foto: D.R.

    Contactada, a presidente da direcção nacional da Quercus escusou-se a comentar os últimos desenvolvimentos que surgiram após a assembleia-geral. Alexandra Azevedo indicou ao PÁGINA UM que o caso relativo aos quatro antigos dirigentes ficou encerrado com a deliberação da assembleia-geral e prefere concentrar-se nas comemorações do 40º aniversário da ONG, que se celebra este ano.

    Resta saber se os últimos desenvolvimentos, a que se somam outras acções a correr na Justiça em torno da associação ambientalista, não trarão prendas indesejadas para a histórica organização que há precisamente 10 anos ficou ‘amputada’ após a saída de membros para fundarem a ‘rival’ Zero.

    Notícia actualizada às 16H00 para acrescentar o anúncio do agendamento da assembleia-geral eleitoral que vai elegar os órgãos sociais da Quercus para o mandato de 2025-2026.

    N.D.: Como é referido na Declaração de Transparência do PÁGINA UM, o director do jornal, Pedro Almeida Vieira, foi dirigente da Quercus, tendo desempenhado funções de vogal na direcção nacional no período de 1993-1995. Actualmente, não é sócio da Quercus. Também foi sócio-fundador da Zero (sem qualquer actividade).

  • Frequência e conteúdo dos relatórios da pandemia mostram que Instituto Superior Técnico quis manipular políticos

    Frequência e conteúdo dos relatórios da pandemia mostram que Instituto Superior Técnico quis manipular políticos

    Afinal, os 51 relatórios do Instituto Superior Técnico (IST) sobre a evolução da pandemia da covid-19 existiam. Ou, pelo menos, passaram a existir – e foram, finalmente, enviados, em papel, para o advogado do PÁGINA UM, depois de um kafkiano processo no Tribunal Administrativo. O envio apenas ocorreu após um pedido de execução da sentença, com solicitação de aplicação de uma sanção pecuniária compulsória ao presidente do IST, Rogério Colaço, uma vez que a instituição universitária pública não cumpriu os prazos estabelecidos pelo acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, emitido em Dezembro passado.

    Dura lex sed lex. E pese embora o caso ainda não estar encerrado, porque o IST expurgou indevidamente dados dos relatórios – há já questões pertinentes a revelar. Uma análise, ainda que superficial, aos 52 relatórios – que a própria instituição chegou a designar como “esboços embrionários que consubstanciam meros ensaios para eventuais relatórios” – revela, de forma inequívoca, que alguns não foram produzidos com o propósito de fazer ciência, mas sim de fazer política e gerar alarme público, sem sequer apresentar a metodologia ou os dados utilizados.

    Essa instrumentalização nota-se particularmente na frequência com que o IST produziu os relatórios, que, a partir de Julho de 2021, passaram a contar com o dedo da Ordem dos Médicos – e, em particular, do então bastonário e actual vice-presidente da bancada parlamentar do PSD, Miguel Guimarães, e do pneumologista Filipe Froes, um dos médicos com maiores ligações comerciais à indústria farmacêutica.

    Com efeito, numa primeira fase, os chamados Relatórios Rápidos tiveram uma frequência quase diária. O primeiro foi produzido a 19 de Março de 2021 – embora, estranhamente, a capa indique 19 de Maio de 2021 – e, até ao final desse mês, foram elaborados nove documentos. Em dois meses, até finais de Abril de 2021, o IST tinha já feito 23 relatórios rápidos. Em Maio, foram apenas elaborados quatro, e em Junho, cinco.

    Nessa altura, os relatórios tinham apenas uma circulação restrita, entre académicos – até porque a intenção inicial era modelar um índice pandémico usando diversos indicadores epidemiológicos. Isso fica evidente logo no primeiro relatório, no qual os autores do IST escreveram, em Março de 2021: “Estamos disponíveis para responder a qualquer solicitação possível na análise dos dados disponíveis da pandemia”. Uma frase irónica à luz do processo que se seguiu: o PÁGINA UM teve de percorrer um calvário de 31 meses, através de uma intimação no Tribunal Administrativo, para obter aquilo que, afinal, os investigadores diziam estar disponíveis a dar, se solicitado.

    Certo é que se torna evidente que foi a partir de Julho de 2021 que os relatórios se politizaram, com a entrada em jogo da Ordem dos Médicos. Através de uma parceria nunca oficializada documentalmente – mas apresentada numa conferência de imprensa –, a Ordem começou a divulgar esparsamente os relatórios, conforme as conveniências.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes na sede do Ordem dos Médicos, em Julho de 2021, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. A partir daí, os relatórios do Instituto Superior Técnico ganharam um cunho mais político e com uma frequência para influenciarem medidas políticas.

    O primeiro Relatório Rápido também com a chancela da Ordem dos Médicos foi publicado a 19 de Julho de 2021 e recebeu o número 35. Nesse mês, de baixa incidência da covid-19, foi apenas publicado outro, o número 36. Seguiu-se então um hiato de quase dois meses: somente a 17 de Setembro foi publicado o relatório 37. E quase dois meses mais tarde, a 15 de Novembro, surgiu um novo relatório – coincidindo com o aparecimento da variante Ómicron e com a desejada (pela Ordem dos Médicos) vacinação de adolescentes e crianças. A partir desse momento, os relatórios rápidos voltaram a aumentar de frequência, quase sempre com um tom alarmista e com fraca base estatística a sustentá-los.

    Assim, entre 15 de Novembro e as vésperas do Natal de 2021, a equipa do IST / Ordem dos Médicos produziu cinco relatórios. Com a entrada em 2022, os relatórios foram cirurgicamente publicados, surgindo acompanhados de notícias que tinham o claro objectivo de influenciar as diversas medidas restritivas ainda em vigor.

    Por exemplo, o Relatório Rápido número 46 foi produzido a 15 de Fevereiro de 2022 para coincidir com reuniões informais no Infarmed. O IST deixou escapar o relatório para a agência Lusa, onde, sem qualquer sustentabilidade científica e estatística, se afirmava que “ainda existe a possibilidade da introdução de novas mutações” do coronavírus SARS-CoV-2, sendo muito recomendável uma vigilância por amostragem dos viajantes vindos de zonas de maior risco epidemiológico.

    O relatório seguinte, número 47, serviu novamente para fazer política, pois, mais uma vez, foi deixado escapar para a Lusa – mas nunca divulgado publicamente –, avançando a tese de que se estaria a ver o desenho de uma sexta vaga de forma muito clara. Acrescentava-se ainda que “o risco pandémico ainda não é muito elevado, mas é necessário perceber como vai continuar a evolução dos números”.

    Relatórios em 2022 serviram sobretudo para alimentar, na comunicação social, um clima de alarme para prolongamento das medidas restritivas e da testagem em massa.

    E, mais uma vez sem a prudência que a ciência exige – pois não existiam dados estatísticos para corroborar essas recomendações –, os investigadores do IST escreveram que “deve ser mantida a monitorização, todas as medidas em vigor devem ser mantidas sem relaxamento e deve ser indicado à população que é necessário tomar cuidados individuais”. Argumentaram, ainda, que o seu indicador de gravidade estava “em nível de alerta, com forte tendência de subida, e que a protecção imunitária estava, segundo a evidência recolhida, a descer”.

    O grau de ingerência política por parte dos investigadores do IST, em colaboração com a Ordem dos Médicos, atingiu o seu apogeu a 28 de Julho de 2022, quando os relatórios 51 e 52 chegaram ao cúmulo de quantificar, sem qualquer base científica, o número de infecções (350 mil casos) que as festividades populares causariam. Para além disso, atribuíam mesmo um número concreto de mortes (790, das quais 330 associadas às festas populares de Junho), recorrendo a uma lógica contrafactual sem base científica, sustentada apenas no facto de não se ter mantido a testagem e o uso de máscaras.

    Foi por sentir que a ciência estava a ultrapassar os limites da seriedade mínima – com atitudes indignas de uma instituição científica com o estatuto do IST – que o PÁGINA UM decidiu solicitar a totalidade dos relatórios. E perante a recusa, lutou nos tribunais até que um catedrático, Rogério Colaço, descesse do seu pedestal e se convencesse que Portugal não é a sua ‘sala de aula’ onde pode ser um tiranete sem consequências.

    A Lusa noticiou, em 28 de Julho de 2022, as conclusões de um estudo do Instituto Superior Técnico sobre o suposto impacte das festividades em Junho desse ano na transmissão e mortes por covid-19. A instituição universitária, que faz Ciência, quis convencer o Tribunal Administrativo de que aquilo que fez não foi um estudo, mas apenas “um esboço embrionário”. Ou uma “mera abordagem embrionária”.

    O processo demorou 32 meses, mas conseguiu-se. E conseguiu-se também que o IST deixasse de fazer mais “relatórios rápidos” deste quilate – o que também foi outra vitória do PÁGINA UM.

    Nos próximos dias, dado ser necessário digitalizar quase quatro centenas de páginas dos 52 relatórios – o IST não quis enviar os documentos digitalizados -, o PÁGINA UM irá divulgar integralmente os documentos. E assim se poderá livremente expor e avaliar-se a qualidade da ciência portuguesa nos tempos em que investigadores da academia decidiram também fazer política. O relatório rápido 1 – com o curioso engano logo na data – pode já ser consultado AQUI.


    N.D. Este longo caso, com uma sentença e um acórdão, levou 33 longos, com muito trabalho de um dos advogados do PÁGINA UM, Rui Amores, que foi inexcedível. Mas também se deveu muito aos leitores que, desde 2022, têm suportado os elevados custos dos processos administrativos, através do FUNDO JURÍDICO. O PÁGINA UM está a retomar mais processos de intimação, dois dos quais serão revelados ainda esta semana.

    N.D. 2 – Desde já se declara que este artigo noticioso se baseia em factos, em análise preliminar dos relatórios e da interpretação dos factos e do contexto no espírito da liberdade de imprensa e de expressão defendida pela imprensa. Não existe, nem se justifica, o alegado direito ao contraditório sobretudo para uma entidade que nunca mostrou disponibilidade para disponibilizar os relatórios, contrariando os princípios da Ciência e mesmo aquilo que escreveu no relatório rápido. Em todo o caso, quem desejar, pode ler a interpretação de Rogério Colaço num texto de direito de resposta publicado AQUI.

  • Câmara de Sesimbra ‘chuta’ 240 mil euros para empresa de antigo jogador do Benfica

    Câmara de Sesimbra ‘chuta’ 240 mil euros para empresa de antigo jogador do Benfica

    Carnaval é sinónimo de folia e diversão. Mas também é um negócio lucrativo para quem ‘fornece’ os municípios do país com eventos e desfiles. Sesimbra é um dos pontos do país que, mesmo no Inverno lusitano, atrai visitantes em busca de desfiles e mascarados, e, segundo a autarquia, recebe anualmente milhares de visitantes por esta altura do ano, em busca de diversão.

    E este ano, o município liderado pelo comunista Francisco de Jesus abriu os cordões à bolsa e, só a organização logística da ‘festa’, custará 240.000 euros (sem IVA). A empresa escolhida para prestar o serviço foi a SigmaConstellation, fundada em 2014 pelo antigo futebolista Paulo Jorge, que, entre outros clubes, jogou no Benfica na época de 2006/2007, tendo passado também por Espanha e pela Arábia Saudita (no Al-Ittihad, que lidera esta época o campeonato saudita) e terminado a carreira no Belenenses em 2014.

    A empresa de Paulo Jorge tem tido um assinalável sucesso sobretudo no mundo autárquico. Começou por ser uma sociedade unipessoal com um objecto social bastante lato: “Compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, comunicação empresarial, marketing, prospecção e estudos de mercado, económicos e financeiros, gestão de empresas, organização e gestão dee ventos, prestação de serviços de consultoria para os negócios, administração e gestão de imóveis, restauração e hotelaria”.

    Porém, tem sido na organização de provas e eventos desportivos, sob a marca Sigma Stars, e operando ainda a marca Sigma Academy, que se tem destacado, pelo menos na parte da contratação pública.

    Carnaval de Sesimbra 2025. / Foto: D.R.

    Mas, em 2019, passou a sociedade por quotas, detida em partes iguais pelo antigo futebolista do Benfica – de seu nome completo Paulo Jorge Vieira Alves – e por Paulo Gomes Faria, que, entre 2009 e 2014. Este sócio da empresa foi director de marketing e comunicação de eventos da João Lagos Sports, do empresário que criou o Estoril Open.

    A autarquia sesimbrense justificou esta contratação por ajuste directo com um argumento muito sui generis: “dada a relevância cultural, turística e económica do ‘Carnaval de Sesimbra‘ foi necessário mudar o paradigma da organização, assegurando uma estrutura de organização com experiência na logística de eventos de grande escala e com condições de segurança e comodidade para acolher milhares de visitantes”.

    A inexistência de concurso público, mesmo considerando estar-se perante um montante bastante elevado, foi justificado por uma excepção no Código dos Contratos Públicos, pese embora a interpretação lata feita pela autarquia comunista coloque sérias dúvidas. Isto porque o Carnaval de Sesimbra passou a ser considerado como “serviços de eventos” para justificar a exclusão do concurso público. Porém, na descrição do Portal Base em vez de a autarquia identificar o serviço contratado pelo código CPV [Common Procurement Vocabulary] 79952000-2, relativo a serviços de eventos na área da cultura, indica o CPV 79000000-4, que diz respeito a “serviço a empresas: direito, comercialização, consultoria, recrutamento, impressão e segurança”, Ou seja, ‘gato escondido com rabo de fora”.

    De acordo com o contrato, a SigmaConstellation ficou mesmo só com a logística do evento. Isto porque a decisão de contratar só surgiu nas vésperas do Carnaval, uma vez que a decisão de contratar a empresa de Paulo Jorge ocorrer apenas no passado dia 11 de Fevereiro, e o contrato foi assinado no dia 19, tendo um prazo de execução de 22 dias.

    Carnaval de Sesimbra 2025 / Foto: D.R.

    Assim, segundo explica a autarquia no contrato, “para o efeito foram consultadas empresas especializadas na organização deste tipo de eventos”, tendo a SigmaConstellation “apresentado proposta que vai ao encontro do figurino organizativo atualmente mais adequado à dimensão atingida pelo Carnaval de Sesimbra”. Mas essa informação não configura uma factualidade, de contrário teriam de ser cumpridas as formalidades da consulta prévia.

    De resto, não se compreende a urgência pela opção de um ajuste directo, porque a Câmara Municipal de Sesimbra revela que está “a trabalhar há vários meses” com escolas de samba e grupos de afro-axé “para que esta edição supere as anteriores, tanto em termos de espetáculo, como das condições para receber os milhares de visitantes”.

    No Portal Base não está disponível, apesar de ser parte integrante do contrato, qualquer caderno de encargos, como deveria estar por uma questão de cumprimento das melhores práticas de transparência. Mas fica patente no contrato que a empresa fica encarregue da parte operacional do evento, incluindo a organização da “logística dos desfiles dos estabelecimentos de ensino”.

    Paulo Jorge (à esquerda) fundou a SigmaConstellation em 2014 como sociedade unipessoal e tem organizado, sobretudo, eventos de cariz desportivo. Desde 2019, a empresa passou a ser uma sociedade por quotas detidas em partes iguais pelo ex-jogador de futebol e Carlos Gomes Faria (à direita) que passou a assumir a gerência da empresa.

    A autarquia reforça, no contrato, que “a contratação destes serviços garante um aumento de qualidade, divulgação e segurança de todo o evento e vai ao encontro das atribuições e competências municipais constantes do anexo I da Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, nomeadamente no domínio da cultura”.

    Esta não é a primeira vez que a SigmaConstellation é escolhida para organizar e gerir a logística de um evento de natureza lúdica. Dos 16 contratos públicos adjudicados a esta empresa, nove foram relativos a eventos não desportivos. O contrato de maior valor, de 250.000 euros, foi feito pelo município de Portimão e envolveu a “aquisição do projeto Portimão a Magia do Natal 2019”.

    De resto, a empresa também foi contratada cinco vezes por entidades públicas para prestar serviços no âmbito de eventos relacionados com o Natal. Também foi contratada pelo município de Portimão para prestar serviços no âmbito do evento de celebração da ‘Passagem de Ano 2020/2021’.

    Dos contratos, feitos com oito autarquias, 14 foram por ajuste directo. Entre os municípios com mais de dois contratos adjudicados à SigmaConstellation constam o de Tomar, com cinco contratos, Portimão, com três, Odivelas e Maia, com dois contratos. No total, a empresa facturou quase 1,6 milhões de euros (sem IVA) em contratos com autarquias.

    Assim, de folia em folia, de Natal em Natal, a empresa especializada na organização de eventos desportivos vai somando receita com a ajuda do erário público. Resta aos contribuintes aproveitar bem as festas e as máscaras, porque, como diz o ditado, no Carnaval ninguém leva a mal. Nem mesmo se forem contratos chorudos para gerir a logística de desfiles neste Entrudo.

  • Mercado de trabalho qualifica-se com ‘voz feminina’

    Mercado de trabalho qualifica-se com ‘voz feminina’

    A força de trabalho em Portugal está cada vez mais qualificada, e este progresso tem sido impulsionado sobretudo pelas mulheres. Os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE), referentes ao 4.º trimestre de 2024, mostram que o número de trabalhadores com ensino superior atingiu um máximo histórico, fixando-se nos 1,821 milhões. Trata-se de um aumento de 51% em relação a 2014, quando o número de licenciados, mestres e doutores na população activa era de 1,287 milhões.

    O aumento líquido da população activa com pelo menos a licenciatura foi de 533,8 mil em apenas uma década, superando mesmo o crescimento da população activa absoluta que cresceu apenas 520,5 mil. Esta situação deveu-se ao facto de, por via da saída do mercado de trabalho das pessoas menos qualificadas, observarem-se reduções significativas. Assim, observou-se uma redução de 70,2 mil para 34,9 mil de trabalhadores no mercado de trabalho sem qualquer formação, enquanto aqueles que têm apenas o primeiro ciclo do ensino básico diminuíram de 652,2 mil para 354,1 mil, e os que têm o segundo ciclo diminuíram de 669,6 mil para 503,9 mil na última década.

    three women sitting around table using laptops

    Os únicos dois grupos que aumentaram foram os das pessoas com o ensino secundário e com o ensino superior, embora este segundo grupo tenha passado a dominar nos últimos dois anos. Se no final de 2014, representavam 50,5% da população activa, agora ultrapassam os 67%. Considerando apenas a população activa com ensino superior concluído, no final do ano passado representavam já 34% do total, uma subida de 9,3 pontos percentuais face ao último trimestre de 2014.

    Mas o aspecto mais marcante desta evolução da última década é o reforço da contribuição das mulheres na qualificação do mercado de trabalho em Portugal. Embora o peso relativo das mulheres se tenha mantido estável – passou de 49,2% para 49,6% ao longo dos últimos 10 anos –, o aumento em termos absolutos faz-se notar na formação. No quarto trimestre de 2014, de acordo com o INE, havia 750,6 mil mulheres com ensino superior; dez anos depois, esse número subiu acima de 1,1 milhões, um crescimento de 47%.  No caso dos homens, passaram de 488 mil para 772 mil, uma subida de 58%, mas em termos absolutos menos significativa do que a das mulheres. De facto, em termos líquidos, o aumento de 640 mil licenciados no mercado de trabalho veio de 356 mil mulheres e 284 mil homens.

    O peso feminino na força de trabalho qualificada é inegável. Enquanto os homens continuam a ser maioria nos níveis de escolaridade mais baixos, as mulheres já dominam o ensino superior. No total, 40,5% das mulheres activas têm um grau académico superior, contra 27,8% dos homens. Em finais de 2024, esses valores eram, respectivamente, de 30,6% e 19,2%. Ou seja, o fosso entre os dois sexos ainda aumentou mais 1,3 pontos percentuais, favorável às mulheres.

    Evolução da população activa em função do nível de ensino entre 2014 e 2024 (quarto trimestre de cada ano). Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

     Esta disparidade confirma um padrão que já se vinha a consolidar há décadas no sistema educativo português, onde as raparigas superam consistentemente os rapazes nos resultados escolares e na frequência universitária. A maior qualificação das mulheres no mercado de trabalho não é um fenómeno isolado. O sistema educativo português há muito que reflecte essa tendência, com as alunas a obterem melhores resultados escolares e a prosseguirem mais os estudos do que os seus colegas masculinos. Os números do INE confirmam que essa vantagem académica se traduziu, na última década, numa transformação estrutural da força de trabalho portuguesa.

    No entanto, este progresso ainda não encontra eco de forma proporcional nos salários ou mesmo no acesso a cargos de topo. A disparidade salarial entre homens e mulheres mantém-se, tal como a menor presença feminina em funções de liderança nas empresas e no sector público. O crescimento da qualificação das mulheres é, assim, um avanço inegável, mas que levanta novas questões sobre a efectiva valorização das suas competências no mercado de trabalho.

  • ‘Há pais endividados e outros terão de retirar os filhos da escola’

    ‘Há pais endividados e outros terão de retirar os filhos da escola’

    “Do nada, disseram-nos que temos de arranjar 380 euros para pagar ao colégio na próxima semana ou temos de retirar a nossa filha da escola”. O relato é de Ana, mãe de uma criança com três anos, que, como outros pais foi informada pela escola, situada em Mafra, de que a filha deixa de beneficiar do apoio estatal para frequentar a creche a partir de Março. “Não esperávamos nada disto. Ficou toda a gente em pânico. A situação é dramática. Há pais endividados, outros terão de retirar os filhos da escola”, disse esta mãe ao PÁGINA UM.

    Também João foi informado pela escola que a filha de três anos frequenta, nos arredores de Lisboa, de que a menina não tem apoio estatal. A mensalidade em Março passa a ser de quase 300 euros. Além disso, João e outros pais foram informados de que terão também de pagar, retroactivamente, as mensalidades relativas aos meses entre Setembro e Fevereiro. Ou seja, João tem agora uma dívida de 1800 euros junto da escola da filha. “Não sabemos como vamos fazer. Estamos a analisar. Mas não podemos tirar a nossa filha da escola porque precisamos de trabalhar”, disse.

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    Os casos repetem-se por todo o país: famílias com crianças de três anos de idade em creches do ensino privado são informadas que o apoio anunciado pelo Governo, em Junho, afinal ainda não se concretizou e terão de pagar as mensalidades na íntegra para manter os filhos na escola, no ensino pré-escolar.

    O PÁGINA UM encontrou casos similares a afectar dezenas de pais com crianças em escolas privadas em diferentes zonas do país, mas sabe que há mais colégios a viver a mesma situação e o número de famílias que está a viver este dilema será muito superior.

    Na origem desta situação está a forte expectativa criada pelo anúncio do Governo, em Junho de 2024, de que iria garantir o acesso universal de crianças ao ensino pré-escolar e apoiar a sua transição gratuita após a creche, que tem sido apoiada pelo programa denominado ‘Creche Feliz’. Em comunicado, o Governo revelou quer iria criar um grupo de trabalho para realizar, até ao final de desse mês, um diagnóstico detalhado da rede existente de estabelecimentos de creche e de jardim de infância, com vista à
    apresentação de um plano de ação que garanta a gratuidade na educação pré-escolar em 2024/2025. E prometia também, até ao final de Novembro do ano passado, uma estratégia para dar continuidade na transição da creche para a educação pré-escolar e a qualidade pedagógica em crianças entre os 0 e os
    6 anos.

    Dois meses depois, em Agosto, o Executivo emitiu novo comunicado com o título: “Governo garante resposta para crianças a partir dos três anos”. Neste comunicado, o Executivo de Luís Montenegro indicava que “respondeu à necessidade das crianças beneficiárias da ‘Creche Feliz’ que fazem três anos em 2024, na sequência do levantamento da rede de estabelecimentos de creche e de jardim de infância, feito pelo Grupo de Trabalho nomeado pelo Executivo”.

    Segundo o Governo, mais de 12.000 crianças continuavam sem acesso à educação pré-escolar. Na sua maioria, são crianças com três anos, mas também com quatro e cinco anos que não têm vaga, sobretudo nos grandes centros urbanos.

    a child is drawing on a piece of paper

    As crianças mais afectadas são as chamadas de ‘condicionais’, nascidas entre 16 de Setembro e 31 de Dezembro de 2021. Nas escolas, a escassez de vagas, leva a que transitem para o ensino pré-escolar, o qual não tem apoio estatal e a promessa do Governo tarda em chegar. O problema é que, neste ano lectivo, tanto pais como escolas ficaram a contar com a concretização da promessas. Agora, a factura ‘rebentou’ nas mãos dos pais’.

    “Disseram-nos que esta medida ia ser válida. Mas nada aconteceu. Agora, a escola fez-nos um preço ‘especial’ e em vez de 380 euros teremos de pagar 350 euros se quisermos manter as crianças na escola”, disse Ana.

    Segundo Susana Batista, presidente da Associação de Creches e Pequenos Estabelecimentos de Ensino Particular (ACPEEP), o cenário é aflitivo e urgente tanto para as muitas famílias que estão a ser afectadas pelo problema, como para as escolas. “Após o anúncio do Governo, ficou criada a expectativa de que iria haver apoio ao pré-escolar. Entretanto, muitas crianças saíram das escolas porque os pais não podiam suportar pagar mais tempo as mensalidades”, afirmou.

    A ACPEEP já tinha denunciado que o facto de o Governo não ter ainda concretizado as promessas feitas às famílias está a causar muitos constrangimentos, deixando crianças em situação vulnerável, sem acesso ao pré-escolar. Já os pais, procuram, em desespero, quem cuide dos filhos enquanto vão trabalhar. “As famílias estão desiludidas com as promessas que foram feitas antes do início do ano letivo 2024/2025, em como o Governo iria garantir a continuidade pedagógica às crianças que completaram 3 anos e saíram do programa ‘Creche Feliz’. Muitas voltaram para casa”, lê-se num comunicado que a associação emitiu no final de Janeiro.

    Segundo a ACPEEP, actualmente, os colégios privados conseguem assegurar quase metade das vagas em falta, podendo garantir o acesso ao ensino pré-escolar a 5.800 crianças.

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    Avisou que, “no desespero, para poderem ir trabalhar, há pais a deixar os filhos com amas ilegais, sem formação”.

    Já começam a chegar à ACPEEP mais casos de pais em situação de desespero. A associação pediu uma reunião urgente ao Governo, até porque daqui a poucas semanas começa a época de matrículas para o próximo ano lectivo. Mas, até ao momento, a associação não obteve qualquer resposta do Executivo.

    Para as escolas, o problema está mesmo na falta de cumprimento da promessa pelo Governo. “O maior problema é para os pais, porque são eles que têm de decidir se conseguem pagar”, disse Elsa Rodrigues, directora do infantário ‘Planeta dos Traquinas’, na Póvoa de Santa Iria. “Os pais ficaram esperançosos, visto que o Estado deu garantias de que iria apoiar, mas o apoio não chegou”, disse.

    Neste caso, como em outros colégios, as escolas alegam não poder manter as crianças de três anos nas salas de creche por falta de vagas.

    Fernando Alexandre, ministro da Educação, Ciência e Inovação. /Foto: D.R.

    Paulo Cardoso, da Confederação Nacional das Associações de Pais (CONFAP), afirmou ao PÁGINA UM que a organização vai contactar o Governo e aguardar uma resposta sobre a actual situação que afecta famílias em todo o país. “Vamos fazer chegar aos Ministérios e esperar uma resposta”, disse. Lamentou que parte do problema seja também o da falta de informação por parte dos pais, que nem sempre compreendem bem os procedimentos para ter acesso aos apoios, como por exemplo, terem de matricular os filhos no ensino público, mesmo que não existam vagas.

    Adiantou que a situação mais premente, em termos de escassez de apoios e vagas, envolve as famílias migrantes. “Há migrantes sempre a chegar e a situação com a falta de vagas já é complicada, ainda fica mais difícil”, afirmou.

    Wagner é brasileiro e reside em Portugal com a esposa e a filha há mais de três anos. Foi uma das famílias afectadas pelo não cumprimento da expectativa de garantir a transição gratuita das crianças que perdem o direito ao apoio para frequentar a creche. “Foi um choque. De repente, em Novembro, disseram-nos na escola que a mensalidade passava a ser de 330 euros. Não podemos pagar. Tirámos a menina da escola”, contou. A mãe da criança tinha acabado de ficar desempregada e procurava novo emprego, mas teve de ficar em casa com a filha. A menina não reagiu bem ao afastamento da sua rotina e dos amigos do colégio que frequentava em Vila Nova de Gaia. “Foi muito difícil. Teve de ficar em casa com a minha esposa. Ela colocava a mochila às costas e pedia para a levarmos para a escola, tinha saudades das educadoras e dos coleguinhas”. No caso de Wagner, houve um desfecho feliz. Após dois meses de angústia, teve resposta positiva de uma IPSS-Instituições Particulares de Solidariedade Social e conseguiu vaga na creche para a filha.

    Maria do Rosário Palma Ramalho, ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. / Foto: D.R.

    Mas muitas crianças não estão a ter a mesma sorte e os pais sentem que estão num beco sem saída. “Vamos organizar uma petição para pedir ao Governo que resolva este problema que foi criado pela promessa que fez e que ainda não cumpriu”, garantiu Ana, que já contactou também a ACPEEP e assegura que vai mobilizar mais pais. “Num outro colégio, na Amadora, que é do mesmo grupo do que é frequentado pela minha filha, há ainda mais crianças na mesma situação”, apontou.

    Para já, do Governo, há apenas o silêncio em torno deste problema que a sua promessa de Junho criou. Nem o gabinete do ministro da Educação, Ciência e Inovação, Fernando Alexandre, nem o gabinete da ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Maria do Rosário Palma Ramalho estiveram disponíveis para responder às questões do PÁGINA UM. Também a coordenadora nacional do programa Garantia para a Infância, Sónia Almeida, não se mostrou disponível para falar sobre este tema.

    Para muitos pais, a aflição vai continuar este ano lectivo, mas ameaça prolongar-se para o próximo, já que não se vislumbra um calendário de implementação do apoio prometido pelo Governo de Luís Montenegro para as crianças em transição para o pré-escolar.

  • Vidas arrancadas

    Vidas arrancadas

    A guerra na Ucrânia parece não ter fim à vista. As condições ao longo da frente oriental são abismais. A cada dia que passa, fazem lembrar cada vez mais os horrores da Primeira Guerra Mundial. A máquina imperial russa lavra tudo o que está no seu caminho.

     A Ucrânia, eterna prisioneira da geografia, luta para continuar a resistir. Para a Ucrânia, trata-se de uma luta pela sobrevivência. Para a Rússia, não é nada disso. O conflito ucraniano parece ter-se tornado mais uma guerra eterna que alimenta a indústria da morte, em rápida expansão.

    Dado que a guerra só pode ser descrita de forma credível pelos seus sobreviventes, falei com alguns soldados feridos nos hospitais militares ucranianos.

    Cemitério militar em Uzhhorod. (Foto: Boštjan Videmšek)

    “Eu e dois outros combatentes fomos numa missão de reconhecimento do campo de batalha em Donetsk. De repente, ouvimos o som de drones e procurámos refúgio num edifício em ruínas nas proximidades. Mas os três drones russos conseguiram detectar-nos”, relatou Andry Romanyak, de 55 anos, natural de Lviv.

    Recordou que dois deles lançaram bombas sobre o local onde se encontravam e o terceiro embateu contra o edifício, fazendo explodir a sua carga. “A última coisa de que me lembro antes de desmaiar foi de uma cadeia de explosões absolutamente angustiantes. Quando acordei, o meu primeiro impulso foi procurar os meus dois companheiros. Encontrei-os esquartejados a poucos metros do sítio onde estava”.

    “Eu sangrava dos pés e da parte inferior das pernas. Os estilhaços também me tinham atingido as costas. Tudo o que eu queria era sobreviver e voltar para a minha família, por isso consegui arrastar-me para fora dos escombros”, contou-me Romanyak, deitado no quarto do hospital da cidade de Uzhhorod.

    Pai de dois filhos e avô de dois netos, Romanyak foi ferido a 13 de Novembro de 2024. Tinha sido mobilizado seis meses antes. Tal como a toda a sua equipa, o serviço de mobilização tinha vindo buscá-lo ao estaleiro onde trabalhava como encarregado.

    Dois anos antes, tinha sido declarado apto a 60% para o serviço militar. O que, pelo menos em teoria, significava que tinha sido declarado inapto para o serviço na linha da frente.

    No entanto, dada a crescente falta de pessoal causada pela forte pressão russa, especialmente na parte oriental da Ucrânia, Romanyak foi mobilizado e imediatamente transformado em condutor de veículos blindados da linha da frente.

    Andry Romanyak (Foto: Boštjan Videmšek)

    O seu ferimento ocorreu após quatro meses de combates incessantes; quatro meses a fugir incessantemente à morte.

    “Estava um frio terrível”, diz Romanyak, recordando a sua luta frenética para se colocar em segurança após o  ataque do drone. “Felizmente, eu tinha juízo suficiente para saber a direcção de onde tínhamos vindo. Decidi regressar à minha unidade. Esperava que me encontrassem”.

    Todo o equipamento de comunicação tinha sido destruído no ataque e era claro para Romanyak que a evacuação era impossível. “Eu sabia, de facto, que eles não podiam salvar-me. Por isso, peguei numa arma e comecei a rastejar em direção ao sol. Só conseguia pensar na minha família”.

    Romanyak só conseguia mover-se de uma forma lenta e agonizante. A hipotermia crescente tornou-o alheio aos seus ferimentos. De vez em quando ouvia soldados russos a falarem. Ele está convencido de que em várias ocasiões chegou a estar a menos de dez metros deles. Quando se escondeu nos arbustos, uma patrulha russa inteira passou por ele.

    Durante a sua fuga não dormiu nem um minuto.

    Enquanto rastejava tentava encontrar lonas militares para se cobrir e descansar, já que, por todo o lado, o barulho da artilharia pesada aumentava a urgência da sua situação era insuportável.

    “Estava aterrorizado, mas que alternativa tinha”, referiu Romanyak com uma expressão mortalmente séria no seu rosto branco quase fluorescente.

    “Rastejei por entre um mar de soldados russos”, lembrou, explicando que esta parte do campo de batalha era altamente caótica. “Libertávamos alguns metros de território, e depois os russos recuperavam-no; recuperavam tudo. Estávamos sempre a andar para trás e para a frente”.

    Após três dias de uma miséria indescritível, Romanyak viu finalmente um grupo de soldados ucranianos. “Gritei “Slava Ukraini” e esperei não me ter enganado”.

    “Felizmente, eram de facto ucranianos. Limparam-me as feridas, puseram-me ligaduras e levaram-me para o hospital de campanha mais próximo. Ao contrário dos meus dois camaradas que morreram no ataque, eu tive uma sorte incrível”, lembrou.

    Devido aos seus ferimentos, os médicos do hospital militar decidiram amputar todos os dedos de ambos os pés. Quando falei com ele, Andry Romanyak ainda estava feliz por ter sobrevivido… Mas também temia não voltar a andar, o que o tornaria incapaz de cuidar da sua família.

    O seu prognóstico era, no entanto, bom.

    Assim que me despedi dele, foi-lhe marcada a sua primeira hora de exercícios de reabilitação.

    “O meu plano é simples”, confidenciou. “Quero voltar a pôr-me de pé e esquecer o que me aconteceu. Espero que isso me ajude a começar a dormir melhor”.

     “As condições lá são terríveis”

    Juriy Pakanich, cirurgião militar de 55 anos, pegou no seu telemóvel para me mostrar fotografias das complexas intervenções cirúrgicas e das feridas inimaginavelmente horríveis com que se deparou durante os seus mais de dois anos de serviço nos hospitais militares espalhados pelos campos de batalha ucranianos.

    Cemitério militar em Uzhhorod. (Foto: Boštjan Videmšek)

    As imagens eram tão abomináveis que tive de me esforçar muito para não desviar os olhos.

    “Habituamo-nos a isto”, explica Pakanich. “Caso contrário, não conseguimos fazer o nosso trabalho”.

    Enquanto cirurgião civil, o seu principal objetivo era salvar vidas, como cirurgião militar, a sua  tarefa é remendar as pessoas para que possam regressar aos combates.

    “Em determinadas alturas, tivemos tantas baixas que o nosso trabalho aqui assumiu aspectos quase industriais”, disse. “Uma vez tive de operar durante 12 horas sem pausa. Quando terminei, saí da sala de operações, apenas para constatar que a fila lá fora era maior do que quando comecei. Por isso, não tive outra hipótese senão voltar à sala de operações”.

    Durante os dois anos na frente, Pakanich operou vários milhares de soldados. A natureza da sua actividade obriga-o a decidir quem mais precisa de cirurgia – o que, na linha da frente, muitas vezes significa decidir quem vive e quem morre.

    Nas piores alturas, chegavam a ser trazidos diariamente 250 feridos para os hospitais militares onde o Dr. Pakanich trabalhava.

    Só deixou a linha da frente quando adoeceu com um grave surto de hepatite B. Uma parte dos seus pulmões teve de ser removida devido à infecção.

    Passou várias semanas num hospital e apesar de ter recuperado parcialmente, o seu estado de saúde impediu-o de regressar à frente de combate. O Dr. Pakanich ainda não se tinha conformado com esse facto.

    “Regressei à cirurgia civil”, explicou, “mas os meus pensamentos estão sempre com os nossos soldados na frente. Quero muito ajudá-los. As condições lá são horríveis”.

    Explicou que a Rússia continua a enviar novos soldados para a guerra e eles têm cada vez mais armas, enquanto o exército ucraniano está a resistir o melhor que pode.

    “Não conseguiríamos resistir sem a ajuda dos Estados Unidos e da Europa. O problema é que não recebemos nem de perto nem de longe a ajuda suficiente, mas simplesmente não nos podemos render e assim desonrar aqueles que já caíram pela nossa liberdade”, disse.

    O Dr. Pakanich é capitão no exército ucraniano e pai de três filhos. “Sou um homem muito diferente agora, do que era quando a guerra começou”, disse.

    “Todos nós aqui mudámos. Pessoalmente, tudo o que posso sonhar é com paz, descanso e boa saúde”.

    “Parecia não haver maneira de parar a hemorragia”

    Antes de se voluntariar para o exército, Ruslan Telegaj, de 35 anos, natural de Sarni, no noroeste da Ucrânia, trabalhava como guarda prisional.

    Praticamente sem descanso, lutou em todos os principais campos de batalha da guerra ucraniana: Kharkiv, Kherson, Zaporíjia… bem como nos campos de morte da interminável linha de frente do Donbass, que faziam lembrar os horrores da Primeira Guerra Mundial.

    Ruslan Telegaj (Foto: Boštjan Videmšek)

    “Estávamos numa missão de reconhecimento na fronteira entre Dnipropetrovsk e Donetsk. Seis de nós tinham-se amontoado num pequeno camião militar e quando ouvi o som de um drone, não tive tempo de reagir. Houve uma explosão selvagem e ficou tudo branco”, recordou Ruslan do seu quarto de hospital mobilado de forma ascética.

    Ao relatar os acontecimentos daquele fatídico dia 5 de Agosto de 2024, o seu tom podia ser descrito como ligeiramente dissociado.

    “Logo após a primeira explosão, tentei pôr-me de pé e avisar os meus companheiros para se abrigarem”, continuou, explicando que  a primeira vaga de drones ‘kamikaze‘ é normalmente seguida por uma segunda. “É uma táctica russa clássica”.

    “Tentei levantar-me, mas caí de novo no chão. A minha perna direita tinha sido rebentada e  três dos meus companheiros estavam mortos”.

    Ruslan arrastou-se  em busca de abrigo que encontrou na vala mais próxima. E, como esperado, a segunda onda abateu-se.

    “A minha hemorragia intensa alertou-me para o facto de também ter uma ferida enorme nas costas. Não tinha forças para me ajudar a mim próprio, quanto mais aos meus companheiros. Parecia não haver maneira de parar a hemorragia e a minha visão estava a girar, mas eu mantive-me consciente durante todo o tempo. Também estava com muita sede, por isso comecei a pedir ajuda”.

    Como as equipas de salvamento são elas próprias frequentemente alvo de ataques russos, a ajuda demorou cerca de uma hora a chegar aos sobreviventes. Ruslan desmaiou na ambulância, mas os médicos do hospital de campanha conseguiram estabilizar o seu estado. No hospital militar de Dnipro, a sua perna direita foi amputada abaixo do joelho.

    Não há fim à vista para a guerra (Foto: Boštjan Videmšek)

    “Estou a melhorar a cada dia que passa”, afirmou. “Também estou a começar a adaptar-me à minha nova situação. Com a ajuda de próteses, posso agora andar. E tudo o que consigo pensar é como estou prestes a regressar a casa depois de três longos anos”.

    Ao proferir estas palavras, Ruslan emocionou-se visivelmente. Como alguém que se descreve como tendo sido “criado nas ruas”, a sua mulher e o seu filho de três anos são sagrados para ele.

    No entanto, ainda não lhe é permitido juntar-se a eles – não por causa do seu estado de saúde, mas devido ao facto de, tal como centenas de centenas de outros doentes, ainda estar preso num limbo burocrático que o leva à eventualidade de ter alta do serviço.

    Passa os dias no hospital a fazer flexões intermináveis.

    “Não quero voltar para a frente de batalha. Já perdi muito. Quero viver como um ser humano normal. Quero estar com a minha família e ajudar a Ucrânia de outra forma. Se puder andar, aceito qualquer trabalho disponível”, disse com firmeza Ruslan Telegaj acerca das suas prioridades actuais.

    “O que nós, soldados, passamos não se vê na televisão”

    “23 de abril de 2024. Três de nós estávamos a fazer reconhecimento para a brigada mecanizada 116 quando ouvimos o som de um drone. Tentámos dispersar, mas mesmo assim fomos atingidos em cheio. A explosão deu-se perto de mim e fui projetado para o ar”, contou Andry Tarasov, da província de Mykolaiv, descrevendo telegraficamente o dia em que perdeu a perna direita.

    Andry Tarasov (Foto: Boštjan Videmšek)

    Quase perdeu a vida também. A unidade de resgate não conseguiu chegar ao local porque havia fortes combates por todo o lado. Andry, que tinha perdido uma quantidade crítica de sangue, foi colocado numa maca por um par de camaradas e levado para um local seguro, através de três quilómetros de fogo inimigo constante.

    Muitos dos soldados feridos chegam aos hospitais em muito mau estado. As enormes quantidades de antibióticos que lhes são administradas durante as primeiras fases do tratamento no terreno contribuíram para o desenvolvimento generalizado da resistência aos antibióticos, disse-me Oleg Holub, diretor do hospital municipal de Uzhhorod.

    Por esta razão, frequentemente as feridas dos soldados curam-se de forma muito mais lenta.  E, em muitos casos, toda a recuperação é posta em causa.

    “A guerra é assim”, diz Andry, com um ar sombrio, o olhar apontado para o chão. “Muito daquilo por que nós, soldados, passamos, não se vê na televisão”.

    A sua opinião sobre a guerra é certamente uma opinião qualificada. Andry lutou nos piores campos de batalha da frente oriental. É um veterano de teatros de batalha como Avdiivka, Kupiansk e vários outros. Já em 2017 – durante a chamada guerra tranquila com a Rússia – lutou pela infantaria da Marinha ucraniana contra formações paramilitares pró-russas em Mariupol.

    Ao todo, já passou nove meses em vários hospitais. No hospital militar de Lviv, foi-lhe colocada uma prótese à qual se está a habituar lentamente. Está desejoso de continuar no exército.

    Uzhoorod (Foto: Boštjan Videmšek)

    Depois de ter alta do hospital de Uzhhorod, gostaria de se tornar instrutor. Já tinha recebido ofertas das forças especiais e gostaria muito de transmitir os seus conhecimentos aos soldados mais jovens, que estão a entrar na frente cada vez menos preparados.

    No entanto, a situação com o exército agressor é inversa, uma vez que o lado russo é constantemente reforçado com tropas bem treinadas e quantidades de armamento praticamente ilimitadas.

    “Hoje estou zangado. Amanhã estou em paz. Depois, volto a ficar zangado. O meu humor é regido por fortes oscilações. Só sei que não seria capaz de viver sem trabalhar. Neste momento, a minha saúde é o mais importante, mas os meus pensamentos estão sempre com os meus colegas soldados na frente de batalha”, disse.

    Conta que antes da guerra, trabalhava no estaleiro de Chornomorsk, onde limpava os reservatórios dos navios. “Era um trabalho muito duro”.

    “Toda a minha vida trabalhei muito”, contou o homem com um rosto cinzento-escuro e profundamente cansado.

    Quando lhe perguntei se sofria de stress pós-traumático, Andry Tarasov apenas conseguiu esboçar um sorriso cínico.

    “Putin está a agir como um canibal”

    O Dr. Yuriy Fatula, chefe do departamento de cirurgia do hospital municipal de Uzhhorod, informou-me que três em cada 10 soldados feridos que tratavam no hospital sofriam de stress pós-traumático.

    De acordo com o Dr. Fatula, o hospital opera em média 10 soldados por dia, a maioria das quais são amputações. “Esta é uma guerra horrível. Faz-me lembrar a Primeira Guerra Mundial: uma longa frente fixa, trincheiras, artilharia pesada, baixas impensáveis. Vladimir Putin está a agir como um canibal”, afirmou o cirurgião, enquanto caminhávamos pelo cemitério militar de Uzhhorod, onde 150 rapazes e homens da cidade, perto da fronteira com a Eslováquia, estão enterrados.

    Dr. Yuriy Fatula (Foto: Boštjan Videmšek)

    Debaixo de um tímido sol de inverno, dois jovens cavavam buracos pouco profundos no meio de um tumulto de bandeiras ucranianas e coroas comemorativas. Os caixões de madeira já estavam preparados. Três ou quatro soldados são enterrados aqui todas as semanas – aqui e em todo o país, em todas as aldeias ucranianas.

    Pouco mais de um quilómetro separa o cemitério de Uzhhorod das fronteiras externas da União Europeia. Os europeus fariam bem em lembrar-se de que toda esta carnificina está a acontecer literalmente a um tiro de distância.

    “Sabe, o número real de baixas é significativamente mais elevado do que o citado pelo presidente Zelensky em Dezembro. Mencionou 45.000 – que, na verdade, é o número de soldados mortos directamente no campo de batalha. Mas o mesmo número de soldados terá morrido nos hospitais, durante o transporte, no cativeiro russo ou mais tarde em casa”, referiu o Dr. Fatula.

    O médico assumiu com orgulho as suas funções de chefe da cirurgia do hospital de Uzhhorod. Considera os seus esforços como um pequeno contributo para a liberdade ucraniana – embora essa liberdade pareça cada vez mais distante.

    “As pessoas estão tão cansadas”, disse-me enquanto nos conduzida de regresso ao hospital. “A guerra arrancou-as das suas vidas. É tão difícil para nós sentirmos qualquer tipo de felicidade ou alegria. Toda a gente aqui conhecia alguém que foi morto. Todas as famílias foram afectadas”. “É uma coisa horrível quando já não se pode planear o futuro – nem sequer o futuro dos nossos netos. A guerra faz com que o próprio tempo corra de forma diferente. Todos nós aqui estamos a envelhecer a um ritmo sem precedentes”, afirmou o Dr. Fatula.

    Lembrou que quando a guerra começou, “ficámos todos chocados”, realçando que cada vítima era uma tragédia colossal. “Mas ao fim de três anos, a guerra tornou-se o nosso estado por defeito. O nosso novo normal, se quisermos”. “Habituámo-nos às perdas constantes”, disse. “Mas continuamos a sofrer a toda a hora. E estou mesmo a falar a sério; a toda a hora.”

  • ‘Beija-mão’ do líder da Marinha no Supremo Tribunal Administrativo causa mal-estar

    ‘Beija-mão’ do líder da Marinha no Supremo Tribunal Administrativo causa mal-estar

    É um dos princípios mais óbvios, mas sagrados, de uma democracia e do Estado de Direito: a separação de poderes, garantindo que as funções legislativa, executiva e judicial actuem de forma independente. Nos tribunais administrativos, essa equidistância é ainda mais essencial, dada a necessidade de assegurar que todas as partes, desde o mais simples funcionário até ao mais alto dirigente, sejam tratadas em igualdade de condições.

    Nesse contexto, um encontro entre o presidente do Supremo Tribunal Administrativo (STA), Jorge Aragão Seia, e o Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), Almirante Nobre de Sousa, está a causar estupefacção entre os advogados dos militares castigados pelo antigo líder da Marinha, Almirante Gouveia e Melo, cujos processos ainda estão a ser dirimidos na mais alta instância da justiça administrativa, depois da derrota da Marinha no Tribunal Central Administrativo do Sul.

    O presidente do Supremo Tribunal Administrativo (STA), Jorge Aragão Seia, recebeu o Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA) em audiência para “apresentação de cumprimentos”. Prática similar ao ‘beija-mão’ da Monarquia pode conflituar com a equiistância exigida no Estado de Direito.

    Divulgada numa nota oficial do STA, acompanda por uma foto de Aragão Seia e Nobre de Sousa, lado a lado, em pose descontraída e sorridente, o encontro no passado dia 6, terá tido como objectivo a “apresentação de cumprimentos”, sem indicação do tempo e assuntos tratados, mas a situação causa estranheza, especialmente num momento delicado em que este tribunal superior está a analisar processos sensíveis relacionados com decisões da Marinha, incluindo as do anterior CEMA, Almirante Gouveia e Melo. Uma audiência formal para “apresentação de cumprimentos” constitui, nos tempos modernos, o equivalente cerimonial do “beija-mão” das monarquias, onde se prestava vassalagem para receber posteriormente benefícios.

    Recorde-se que, em Dezembro passado, o Tribunal Central Administrativo do Sul decidiu anular a decisão da Marinha, confirmada por Gouveia e Melo, de suspender 11 militares do Navio da República Portuguesa (NRP) Mondego. O acórdão, que deixava o putativo candidato a Belém numa posição pouco digna, mostrava assim que havia motivos para os militares terem recusado cumprir, em Março de 2023, por falta de condições, a missão de acompanhamento de um navio russo a norte da ilha de Porto Santo, no arquipélago da Madeira. O caso envolveu quatro sargentos e nove praças.

    Além de apontar várias falhas processuais, incluindo não ter sido concedido o direito ao contraditório, o TCAS referiu que um oficial que participara na instrução do processo disciplinar esteve também envolvido na cadeia de eventos do NRP Mondego, algo que não devia ter ocorrido, mas que Gouveia e Melo aceitou. Aliás, o antigo Chefe do Estado-Maior da Armada mostrou, desde o primeiro momento do incidente, uma vontade inabalável de castigar os militares, tendo mesmo dado uma repreensão pública para as televisões gravarem.

    Supremo Tribunal Administrativo vai decidir se castigos de Gouveia e Melo se mantêm, depois do Tribunal Central Administrativo do Sul os ter anulado m Dezembro do ano passado.

    O processo subiu agora ao Supremo Tribunal Administrativo – e é por esse motivo que os advogados dos militares se mostram estupefactos com esta audiência, apresentada como se fosse um encontro para um “chá das cinco” ou um “beija-mão” entre um supremo juiz conselheiro e um almirante de quatro estrelas.

    “À Justiça não basta ser, tem também de parecer ser!”, salientou ontem o advogado Garcia Pereira na rede social Facebook, acrescentando que “estando pendentes no STA vários recursos em que a Marinha é parte directamente interessada, entre os quais os dos militares do [NRP] Mondego, o respectivo Presidente concede uma audiência ao CEMA, o chefe máximo da Marinha?! Porquê e para quê??!!”

    Com efeito, a nota do STA nada mais diz sobre os assuntos nem a duração dessa audiência de apresentação de cumprimentos. Certo é que, não sendo inéditos, estes encontros são bastante raros, pelo menos a atender às frequentes notas de imprensa do STA, onde se destacam os encontros e audiências deste tribunal. Analisando todas as notas de imprensa desde 2017, verifica-se que nunca um presidente do STA recebeu o líder da Marinha em audiência para “apresentação de cumprimentos”. Encontra-se apenas uma audiência similar em Abril de 2023 com o Chefe do Estado-Maior do Exército e outras duas com o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, em Abril de 2023 e em Novembro de 2018.