Categoria: Sociedade

  • Ridículo: Estado só concluiu 12 fogos habitacionais no ano passado

    Ridículo: Estado só concluiu 12 fogos habitacionais no ano passado

    Apesar do coro político sobre a prioridade nacional para a habitação, o Estado português – nas suas diversas vertentes, desde a Administração Central até às autarquias, passando pelos Governos Regionais – conseguiu um ‘feito inaudito’: concluir apenas 12 fogos habitacionais em todo o país durante o ano passado. Nem uma centena. Nem meia centena. Doze. É esse o número de casas novas em todo o ano de 2024, de acordo com os dados provisórios do Instituto Nacional de Estatística (INE), agora analisados pelo PÁGINA UM.

    No total de todas as habitações familiares concluídas no ano passado, o sector público foi responsável por menos de 0,05% – ou seja, apenas uma em cada 2.000 casas familiares terá sido construída por entidades públicas.

    low angle photography of cranes on top of building

    Num país onde vigora um Plano de Recuperação e Resiliência com centenas de milhões atribuídos à chamada “Habitação Acessível”, a acção directa do Estado revela-se, na prática, estatisticamente irrelevante.

    Apesar de se assistir a um novo dinamismo na construção de habitações familiares – o ano passado, com 25.311 fogos, foi o melhor da última década, superando mesmo o conjunto do triénio 2015-2017 –, tem sido a iniciativa privada que se tem destacado, tanto ao nível de pessoas singulares (famílias) como de empresas.

    Ao longo de 2024 foram concluídos 15.030 fogos construídos por empresas e mais 10.168 por pessoas singulares. Estes valores são também os máximos da última década, sendo que os crescimentos relativos face a 2023 foram de 15% e 2,7%, respectivamente. Uma parte também reduzida (101 fogos em 2024) foi concluída por iniciativa de empresas de serviço público, cooperativas de habitação e instituições sem fins lucrativos.

    Total de fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por entidade promotora entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    O mapa dos fogos públicos concluídos é quase caricatural: três em Mafra, três em Miranda do Douro, e um em cada um dos seguintes concelhos: Braga, Paredes, Caldas da Rainha, Vila do Conde, Lagoa (Açores) e Valença.

    Esta é a cartografia da acção do Estado português enquanto construtor de habitação. Sempre se poderá dizer que, conforme alerta o INE, não existem ainda dados nos últimos dois anos para os concelhos de Lisboa, Faro e Póvoa de Varzim, por ausência ou insuficiência de informação, mas esse quadro não se modificará muito quando houver dados desses municípios. Por exemplo, a capital de Portugal só tem referidos 100 fogos de iniciativa pública concluídos entre 2015 e 2022.

    A análise da última década mostra uma tendência contínua de afastamento do Estado enquanto promotor directo de habitação. Em 2015, os organismos públicos ainda concluíram 88 fogos. Não era quase nada, mas era sete vezes mais do que em 2024. O número manteve-se baixo ao longo dos anos seguintes, com um breve pico em 2021, quando foram contabilizados 262 fogos públicos – o valor mais elevado da década.

    Mas desde então, o colapso é evidente: 21 em 2022, 63 em 2023 e apenas 12 em 2024. Mesmo com eventuais acertos quando os dados forem definitivos, por agora o INE aponta para apenas 727 fogos familiares por iniciativa pública na última década, que contrastam com os 72.653 fogos por iniciativa de pessoas singulares, os 78.884 por empresas privadas e 556 por outras entidades.

    Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por todas as entidade promotora entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Este desinvestimento é tanto mais escandaloso quanto mais se recorre ao discurso público como cortina de fumo. Nunca se falou tanto de habitação pública, nunca se prometeram tantos apoios, tantos programas, tantas metas. Mas o resultado, medido em tijolos e telhados, é medíocre. Os números não mentem: o Estado não constrói.

    Os dados do INE, que não são matéria de opinião, demonstram que o que se vende como política pública de habitação não passa, em grande medida, de engenharia retórica. Em suma, dos 151.820 fogos habitacionais novos construídos entre 2015 e 2024, praticamente 52% foram de empresas privadas, cerca de 47,2% foram de iniciativa particular, 0,5% por iniciativa pública e um pouco mais de 0,3% por outras entidades.

    Em todo o caso, de forma global, observa-se uma tendência de crescimento do número total de fogos – que passou de pouco mais de 7 mil em 2015 para mais de 25 mil em 2024 –, mas o Estado, além de não contribuir para o volume, está muito longe de ter poder de regulação dos preços de mercado. Aliás, o Estado e as autarquias até beneficiam directamente da especulação, por via dos montantes tributados de IMT (Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis) e de IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis).

    Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por iniciativa de empresas privadas entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.
    Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por iniciativa de pessoa singular (família) entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Os números do INE – que acabam por mostrar que os projectos, os planos, as primeiras pedras e os anúncios de entrega de chaves (que em muitos casos são de casas reabilitadas ou já existentes) – revelam que os sucessivos Governos prometem combater a especulação e a crise habitacional, mas é o mercado, com a iniciativa particular e de empresas privadas, que mostra dinamismo. Estamos perante a radiografia de um modelo de governação que trocou o cimento pelo soundbite. A política da habitação em Portugal continua a ser feita em conferências de imprensa, não em estaleiros de obra. E os cidadãos pagam, todos os dias, o preço dessa encenação.

    O dinamismo da construção de fogos habitacionais novos na última década tem estado concentrado sobretudo nos concelhos urbanos do eixo Porto-Braga e Lisboa-Setúbal, onde se intrometem Leiria, Aveiro e Viseu. O município que mais construiu entre 2015 e 2023 foi o Porto, com 6.590 fogos habitacionais, seguindo-se Vila Nova de Gaia, com 5.543 fogos. Braga é o outro concelho acima da fasquia dos cinco mil (5.045).

    Na Área Metropolitana de Lisboa, o Seixal foi o município que mais construiu (4.291 novos fogos). Segue-se depois, novamente a Norte, Guimarães (3.272), Leiria (3.062) – o primeiro concelho fora das duas áreas metropolitanas – e Vila Nova de Famalicão (3.041). Acima de dois mil fogos estão ainda Barcelos e Odivelas (ambos com 2.658), Matosinhos (2.398), Sintra (2.394), Lisboa (2.328), Mafra (2.311), Loures (2.285), Aveiro (2.234), Viseu (2.146) e Cascais (2.060). Fecham o top 20 os concelhos de Almada (1.991), Maia (1.862) e Setúbal (1.816). Quase quatro em cada 10 novos fogos habitacionais (39,3% do total) foram construídos nestes 20 municípios.

    Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por iniciativa de entidades públicas (Administração Central, Local e Regional) entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.
    Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por iniciativa de outras entidades (empresas de serviço público, cooperativas de habitação e instituições sem fins lucrativos) entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Porém, as dinâmicas mais recentes mostram algumas diferenças. Apesar de o Porto e Vila Nova de Gaia terem sido os que mais fogos concluíram em 2024 – 1.542 e 1.431, respectivamente –, o terceiro lugar é ocupado por Braga (mais 669 fogos), seguido do Seixal (649), Maia (567), Leiria (564), Cascais (540), Funchal (481), Sintra (472) e Oeiras (465). Estes 10 municípios foram responsáveis por 29,4% dos fogos concluídos no ano passado em todo o país.

    Recorde-se que no mês passado, o Programa do Governo estabeleceu como meta a construção de “59 mil casas públicas” e  a disponibilização de financiamento para mais projectos, incluindo parcerias público-privadas em imóveis do Estado devolutos com aptidão habitacional. Mas as promessas nem quatro paredes possuem, quanto mais tecto e acabamentos, pelo que, o mais provável, pelo histórico, é a montanha parir um rato.

    Aliás, também a promessa do Governo socialista de transformar a empresa pública Parque Escolar em Construção Pública – para assim passar a deter competências na área da habitação social – não passou do papel. E acabou por ser mais uma promessa não concretizada no sector da habitação.

  • Falhas de segurança  informática nas autarquias duplicaram em quatro anos

    Falhas de segurança informática nas autarquias duplicaram em quatro anos

    Num mundo cada vez mais digital, os cibercriminosos têm também cada vez mais alvos disponíveis para os seus ataques informáticos. E no grande oceano digital, os organismos públicos não estão imunes a caírem nas ‘redes’ de piratas informáticos em busca de roubar dados para revenda, a exigir dinheiro para não apagar informações vitais ou para ‘devolver’ um servidor tornado ‘refém’.

    No caso das autarquias, em cinco anos, duplicou o número de munícipios que detectou problemas de cibersegurança. Em concreto, no ano passado, uma em cada quatro das 308 câmaras municipais do país identificou a existência de falhas de segurança ou mesmo ataques cibernéticos, segundo dados disponibilizados hoje pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), usando dados de um inquérito da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC).

    flat screen computer monitor displaying white and black screen
    Foto: D.R.

    Em 2020, de acordo com os dados oficiais, apenas 39 municípios tinham identificado identificaram falhas na segurança informática. No ano passado, foram já 77 as autarquias a encontrar problemas. Este é o valor mais elevado desde que existem registos, iniciados em 2005.

    Aliás, nos últimos três anos este número tem vindo a escalar de forma evidente em termos absolutos e relativos. Em 2020 foram detectados problemas de segurança informática em 39 municípios, diminuindo no ano seguinte para 35, mas depois contabilizam-se crescimentos assinaláveis: 48 em 2022 e 60 em 2023.

    Dependendo da vulnerabilidade, se uma autarquia for alvo de ataque informático podem ficar expostos dados sensíveis dos munícipes, funcionários da autarquia e até dos fornecedores. No limite, o município pode ficar incapaz de fornecer serviços aos cidadãos.

    person in black long sleeve shirt using macbook pro
    Foto: D.R.

    Apesar de todos os 308 municípios do país terem software anti-vírus instalado, três ainda não dispõem de firewal. Por razões de segurança, o INE não divulga quais os municípios alvo de ataques ou mais susceptíveis a ciberataques por deficiências do sistema de defesa. Do total, há ainda 15 autarquias que não estão equipadas com servidores seguros e 51 não dispõem sequer de um sistema de backup externo, para poder ter uma cópia dos seus dados em lugar seguro. Em termos de filtros anti-spam, há oito autarquias que não têm qualquer sofware instalado.

    Ainda assim, estes dados de 2024 mostram uma melhoria face ao ano anterior. Mais uma autarquia passou a ter um firewall instalado e mais três instalaram servidores seguros. De 2023 para 2024, foram onze os municípios que passaram a guardar uma cópia dos seus dados num local externo e três instalaram filtros anti-spam.

    Contudo, apesar destas melhorias, e apesar dos riscos crescentes em matéria de crime informático, menos de metade das câmaras municipais do país tem implementada uma estratégia para garantir a segurança dos seus dados e sistemas.

    ai generated, lock, encryption, cybersecurity, security, laptop, computer, technology, business, data
    Foto: D.R.

    Segundo os dados do INE, apesar de serem 241 autarquias as autarquias com uma estratégia definida nesse âmbito, apenas 142 estão em conformidade, apresentando efectivamente um plano em funcionamento. Do total, 78 municípios até têm uma estratégia, mas o processo para sua implementação está ainda sob revisão. Em 21 municípios nem sequer existe um plano de cibersegurança definido.

    A situação mais grave é nos Açores, onde apenas um quarto dos municípios está em conformidade em matéria de ter uma estratégia de cibersegurança implementada. Das 19 câmaras municipais existentes naquela Região Autónoma, apenas cinco tem um plano em vigor.

    Na região Autónoma da Madeira, quase dois terços dos municípios não tem em vigor nenhum plano de segurança informática.

    Foto: Captura de ecrã de comunicado emitido no site do Município de Murça a 13 de Março de 2025.

    No Continente, a situação melhora mas ainda é assim é alarmante: mais de metade das autarquias não está em conformidade em termos de ter em vigor uma estratégia. Assim, dos 278 municípios do território continental, apenas 133 tem uma estratégia a vigorar na prática. Um sinal de que a vulnerabilidade das autarquias face a ataques informáticos é real.

    Por exemplo, em Novembro do ano passado foram públicos os casos de ataques informáticos maliciosos às câmaras municipais de Chaves, Nelas e Alcobaça. Este ano, a 13 de Março, a Câmara de Murça sofreu também um ciberataque.

    Assim, a tendência crescente de municípios afectados por problemas de segurança informática que se verificou nos últimos três anos deverá continuar. Até porque, os 77 municípios que detectaram problemas de cibersegurança no ano passado, são apenas a ‘ponta’ visível de um icebergue de falhas que pode estar por debaixo deste oceano digital que tem piratas cada vez mais sofisticados.

  • Helicópteros: INEM celebra ajuste directo com Gulf Media para evitar ter de lhe aplicar sanções de milhões

    Helicópteros: INEM celebra ajuste directo com Gulf Media para evitar ter de lhe aplicar sanções de milhões

    Numa manobra que deixa em aberto sérias implicações jurídicas e financeiras, o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) celebrou ontem, pelas 14 horas, um ajuste directo com a empresa Gulf Med Aviation, com sede na ilha de Malta, no valor de 4.011.500 euros (acrescido de IVA), para garantir a operação de três helicópteros de emergência médica em regime de prontidão diária de 12 horas (H12).

    Este novo contrato, com uma duração de 123 dias, anula na prática os efeitos de um polémico contrato de 77.475.160 euros (mais IVA), adjudicado à mesma empresa num concurso público internacional lançado em Novembro do ano passado para vigorar a partir de 1 de Julho deste ano, mas cuja execução não está a decorrer porque a empresa de Malta não conseguiu disponibilizar a totalidade dos quatro meios aéreos em todas as horas do dia.

    Na prática, como se a Gulf Med não estava a dar cumprimento do contrato adjudicado após concurso público, o INEM poderia aplicar multas por incumprimento contratual de 730 mil euros por dia, como destacou hoje a TVI.

    O ajuste directo agora celebrado – invocando razões de “urgência imperiosa” – prevê agora a disponibilização de três aeronaves: dois helicópteros médios H145 e um helicóptero ligeiro H135, que deverão estar operacionalmente prontos para missões de emergência médica em território continental português. Um dos helicópteros médios só estará disponível a partir do próximo dia 15.

    O contrato estabelece um custo diário por helicóptero de 11.300 euros mais IVA, englobando operação, manutenção, tripulação e certificações técnicas, sem possibilidade de indisponibilidade superior a 12 horas sem substituição gratuita por aeronave equivalente.

    Este recuo estratégico surge após o falhanço da Gulf Med em garantir a entrada plena em funcionamento das aeronaves a 1 de Julho, como estipulado no contrato público original. Os dois helicópteros baseados em Macedo de Cavaleiros e Loulé só operam de dia, e por tempo indeterminado. O terceiro só estará disponível em Évora a partir de 15 de Julho. A base de Viseu deverá ter aeronave disponível em Agosto, sendo que todas estas operarão, numa primeira fase, exclusivamente em horário diurno. O uso de helicópteros da Força Aérea foi colocada em cima da mesa, mas com limitações técnicas e até jurídicas fortes. O INEM justificava que a passagem para operação 24 horas por dia será “gradual”, de acordo com uma mensagem interna citada pela CNN Portugal.

    Recorde-se que o concurso público internacional foi severamente criticado pela limitação de prazos e penalizações avultadas previstas para falhas operacionais (183 mil euros por base inactiva por dia). Apenas três empresas apresentaram propostas, entre as quais a Gesticopter, que já avançou com uma acção judicial para impugnação do concurso, actualmente em curso nos tribunais administrativos.

    A opção do INEM por este ajuste directo com a Gulf Med – ignorando por completo os pressupostos e o cronograma do concurso anterior – coloca em risco os próprios gestores públicos, que poderão vir a ser responsabilizados pelo Tribunal de Contas caso haja perdão implícito de penalidades à empresa maltesa, numa alegada “fase de transição”. Em casos semelhantes, os tribunais têm imposto restituição integral de verbas ao Estado e aplicação de multas individuais.

    doctors doing surgery inside emergency room

    Este novo contrato, ontem assinado entre o presidente do INEM e os representantes da Gulf Med, reforça assim a sensação de improvisação e falta de planeamento que tem marcado a gestão do sistema de emergência médica aérea, agora dependente de um ajuste directo de quase cinco milhões de euros por apenas quatro meses, enquanto se espera pela regularização – ou colapso – do contrato plurianual de 77 milhões.

    A polémica está longe de terminar. E os tribunais serão, ao que tudo indica, o palco principal onde se decidirá se houve mera urgência técnica ou fraude ao espírito do concurso público. Uma das empresas que perdeu o concurso público, a Gesticopter, já prometeu uma participação ao Tribunal de Contas e uma queixa-crime por indícios de favorecimento público e também à Comissão Europeia.

  • Mais circo do que pão: na região mais pobre do país, Calheta gasta quase 4% do orçamento num festival de música

    Mais circo do que pão: na região mais pobre do país, Calheta gasta quase 4% do orçamento num festival de música

    Nos Açores, a região com a maior taxa de pobreza do país, há um município que acaba de fazer um ajuste directo recorde. Tem apenas 3.500 habitantes, mas isso não impediu o a autarquia açoriana de Calheta, São Jorge, de gastar “à grande e à francesa”. No passado dia 4 de Julho, a autarquia adjudicou o seu maior contrato por ajuste directo de sempre. E não, não foi para tapar buracos numa estrada nem para mudar o telhado numa escola nem para apoio social. Calheta decidiu fazer o ajuste directo milionário para organizar um festival de música.

    A despesa recorde, efectuada em ano de eleições autárquicas, supera os 343 mil euros e destina-se a contratar músicos e serviços de montagem e desmontagem de palco no âmbito de um festival que se realiza entre o dia de hoje, 10 de Julho, e o dia 14 deste mês.

    O irlandês Gavin James é a principal estrela do Festival de Julho 2025, na Calheta, Açores. / Foto: D.R.

    Segundo o contrato, adjudicado sem concurso à empresa Excellent Vanguard, entre os artistas que vão actuar neste festival contam-se Gavin James, David Fonseca, The Gift, À variações, Némanus, Wet Bed Gang, Karetus, Tropa do Lima e os DJ’s John c e Oram. O preço final inclui a montagem e desmontagem do palco, som e luz..

    Assim, David Fonseca e À variações actuam hoje, 10 de Julho e os Némanus actuam amanhã. Já os Wet Bed Gang e os Karetus actuam no dia 12 enquanto a banda The Gift sobe ao palco no dia 13. Gavin James encerra o evento com um concerto no dia 14. Quanto aos dois DJ’s contratados, actuam no dia 12. Todos os concertos têm uma duração aproximada de duas horas.

    Para o município açoriano, trata-se do quinto maior contrato de sempre registado pela autarquia na plataforma de contratos públicos, o Portal Base. Só é superado por quatro despesas referentes a empreitadas de reabilitação de infrastruturas.

    David Fonseca sobe ao palco hoje na Calheta. / Foto: D.R.

    Em termos de despesa, este ajuste directo ‘comeu’ 3,6% do orçamento anual global da autarquia, da ordem dos 9,5 milhões de euros. Comparando com o caso do orçamento de Lisboa, é como se a capital decidisse gastar 49 milhões de euros com um só evento.

    Tendo em conta o número de habitantes, este festival ‘grátis’ na Calheta corresponde a 98 euros por residente naquele município açoriano que engloba cinco freguesias.

    Para a empresa que ganhou este contrato sem concurso, trata-se da maior facturação de sempre com uma entidade pública. Dos cinco contratos que tem no Portal Base, o segundo maior contrato que obteve com o sector público foi no ano passado, também o município de Calheta, para organizar o Festival de Julho 2024.

    The Gift. / Foto: D.R.

    Mas o contrato obtido no ano passado com aquela autarquia foi de ‘apenas’ 135.736 euros, ou seja, um valor que corresponde a 40% do montante que a empresa conseguiu facturar com o contrato feito agora para o ‘Festival de Julho 2025’.

    O contrato assinado em 4 de Julho do ano passado aparece em branco no documento que é disponibilizado no Portal Base, estando apenas registados os dados com um resumo do procedimento.

    A empresa Excellent Vanguard foi criada em Setembro de 2017 e é detida por um casal que reside em Angra do Heroísmo. A maior quota está nas mãos de Elisa Margarida Oliveira Terroso e uma quota menor pertence ao marido, Rui Duarte Alves Álamo.

    A Excellent Vanguard anunciou que fez o ‘bis’ e ganhou a organização do ‘Festival de Julho 2025’. / Foto: Captura de imagem do Instagram

    Rui Álamo conseguiu, individualmente, um outro ajuste directo no ano passado, no valor de 60.614 euros. Tratou-se de um contrato adjudicado pelo município de Angra do Heroísmo relativo à aquisição de “serviços de manutenção de pavimentos através do corte de infestante no centro urbano da cidade de Angra do Heroísmo”.

    De resto, não se encontra site da empresa na Internet, mas nas sua página na rede social Instagram, a Excellent Vanguard apresenta-se como a organizadora de outros eventos nos Açores, designadamente o Graciosa Sound Fest e o Festas na Praia, na Terceira, e a ‘Festa do imigrante’, nas Flores.

    Para os residentes nos Açores, música não faltará este Verão. No caso da Calheta, haverá música e festa a ‘bombar’ nos próximos dias.

    O cais da Calheta, São Jorge, Açores. / Foto: D.R.

    Segundo o relatório ‘Balanço Social 2024‘, uma em cada 10 famílias na Região Autónoma dos Açores não consegue fazer uma refeição proteica de dois em dois dias, sendo que “a taxa de pobreza está quase 8 pontos percentuais acima da média nacional nos Açores, a região com maior taxa de pobreza em Portugal”.

    De resto, segundo o mesmo relatório, a região apresenta o valor mais alto de privação em diversos indicadores de pobreza, a nível nacional. Os Açores registaram, em 2023, o mais alto coeficiente de desigualdade — GINI — (36,0)em Portugal. Em 2024, a região apresentava a maior taxa de risco de pobreza a nível nacional, chegando aos 24,2%. No relatório, os Açores surgem ainda como a região do país com maior nível de desigualdade.

    Mas, apesar destes indicadores, música não faltará. Pelo menos na Calheta.

  • Presidente do Infarmed arrisca multa por ter mutilado base de dados das reacções adversas das vacinas

    Presidente do Infarmed arrisca multa por ter mutilado base de dados das reacções adversas das vacinas

    O PÁGINA UM interpôs esta terça-feira, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, uma acção destinada a que seja aplicada uma sanção pecuniária compulsória ao presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo, em virtude do incumprimento reiterado e injustificado de um acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul (TCAS), proferido a 11 de Julho de 2024.

    No processo está em causa a recusa do Infarmed – que Rui Santos Ivo lidera desde 2019 e que acumula com a presidência da Agência Europeia do Medicamento – em cumprir na íntegra uma decisão judicial que o condenou a facultar ao PÁGINA UM o acesso às bases de dados contendo informação integral sobre as reacções adversas ao antiviral Remdesivir e, sobretudo, às vacinas contra a covid-19.

    Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed.

    A acção agora intentada visa compelir a entidade a cumprir de forma integral e rigorosa a decisão judicial, sem novas tergiversações técnicas nem omissões deliberadas, e requer ao tribunal que fixe uma sanção diária não inferior a 200 euros, a incidir pessoalmente sobre Rui Santos Ivo, caso o incumprimento persista.

    A iniciativa surge após três anos de resistência institucional do Infarmed, que se escudou durante todo o processo judicial em argumentos tecnocráticos e escassamente fundamentados, tentando impedir o escrutínio cívico e jornalístico sobre os efeitos adversos das vacinas administradas em Portugal. O Infarmed respondeu ao acórdão com um gesto de aparente cumprimento: em Agosto de 2024 remeteu uma ligação com acesso condicionado a uma base de dados.

    Porém, como o PÁGINA UM denunciou de imediato, o ficheiro disponibilizado estava manifestamente truncado e manipulado, suprimindo variáveis essenciais como o grau de causalidade (improvável, possível, provável ou definitiva), o número da dose administrada, a identificação do lote, a idade exacta da vítima, o concelho e a qualificação profissional do notificador – todos dados públicos até então disponíveis no Portal RAM e que, além de não constituírem dados pessoais identificáveis, são indispensáveis para qualquer avaliação epidemiológica séria.

    A mutilação deliberada da base de dados, contrariando de forma flagrante a letra e o espírito do acórdão judicial, levou o PÁGINA UM a interpelar o Infarmed por carta registada em Outubro de 2024, sem que tenha obtido qualquer resposta ou sinal de correção. Mais grave ainda, o ficheiro entregue continha apenas os dados relativos ao primeiro ano da campanha de vacinação – entre Dezembro de 2020 e Dezembro de 2021 – ocultando os anos seguintes, precisamente quando se iniciou a vacinação em massa de adolescentes e crianças.

    Com efeito, mesmo os dados manipulados revelam já um cenário inquietante: durante o primeiro ano, foram registadas 27.220 reacções adversas, das quais 7.110 classificadas como graves. Dessas, pelo menos 104 culminaram na morte do notificado, embora em cerca de quatro dezenas de casos o ficheiro omitisse por completo o intervalo entre a administração da vacina e o desfecho fatal – sinal inequívoco da negligência do Infarmed na recolha e no acompanhamento dos dados clínicos.

    Entre os casos mais chocantes identificados pelo PÁGINA UM estão reacções fulminantes que ocorreram minutos após a vacinação. Uma mulher com mais de 80 anos morreu dois minutos depois de receber a vacina da Pfizer; um homem da mesma idade faleceu quinze minutos após a toma, vítima de tromboembolismo pulmonar; uma mulher entre os 65 e os 79 anos morreu em trinta minutos após inoculação com a vacina da AstraZeneca; e outro homem, sem identificação da marca da vacina, morreu de forma súbita uma hora depois de vacinado.

    também se registam diversos casos de reacções graves registadas entre jovens adultos e mesmo adolescentes, incluindo episódios de miocardites, tromboses, síndromes inflamatórias pediátricas e paralisias faciais, cujo desfecho clínico o Infarmed indicou como “desconhecido”, revelando uma inacreditável ausência de monitorização – precisamente a função basilar da farmacovigilância.

    Entre as 27.220 reacções adversas reportadas no primeiro ano da vacinação, o PÁGINA UM identificou 513 casos classificados como graves ocorridos em pessoas com menos de 25 anos, dos quais 225 permanecem sem qualquer registo de evolução clínica. Nove mortes ocorreram em pessoas com idades entre os 25 e os 49 anos, grupo etário para o qual a mortalidade associada à covid-19 era, mesmo antes da vacinação, residual.

    Há ainda casos de recém-nascidos, não vacinados, que sofreram reacções adversas através do leite materno após a vacinação das mães, e situações de embolias pulmonares, acidentes vasculares cerebrais, tromboses venosas cerebrais e perturbações raras do sistema nervoso, todas registadas como graves – mas também, na maioria, sem que o Infarmed tenha feito qualquer seguimento. No caso das alterações menstruais, fenómeno amplamente reportado em todo o mundo, o Portal RAM já contabilizava duas centenas de notificações apenas até Dezembro de 2021, mas nenhuma foi objecto de análise pública ou contextualização por parte do regulador.

    brown wooden smoking pipe on white surface

    O incumprimento por parte do Infarmed da ordem judicial proferida pelo TCAS configura, segundo a acção agora apresentada pelo PÁGINA UM, uma violação do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que determina a aplicação de sanções pecuniárias compulsórias sempre que uma decisão de intimação para prestação de informações não seja cumprida sem justificação aceitável.

    Ao pretender compelir Rui Santos Ivo a suportar pessoalmente as consequências do incumprimento do acórdão, o PÁGINA UM coloca a nu uma realidade incómoda: em Portugal, mesmo em face de sentenças judiciais inequívocas, as entidades reguladoras continuam a agir com arrogância institucional, confiando na passividade dos poderes públicos e no silêncio da restante comunicação social. E isso demonstra não apenas uma cultura de opacidade administrativa, como uma deliberada resistência ao princípio da administração aberta.

    Recorde-se, aliás, que, apesar de sentenças e acórdãos favoráveis nos tribunais administrativos, começa a ser sistemática a disponibilização dos dados de forma truncada ou insuficiente, o que tem obrigado o PÁGINA UM a interpor novas acções com vista à aplicação de multas diárias aos responsáveis dessas entidades.

    Essa situação verificou-se este ano quando o próprio presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que acumula com a presidência do Conselho Superior da Magistratura, Henrique Araújo, teve de acatar um acórdão para ceder sem restrições o inquérito sobre a distribuição da Operação Marquês, sob pena de pagar do seu próprio bolso uma multa de 50 euros por cada dia de atraso.

    Também ainda se aguarda uma decisão similar relativamente a uma base de dados dos internamentos hospitalares na posse da Administração Central do Sistema de Saúde, cuja entidade se recusa há dois anos a acatar um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo.

  • Subsídios de doença custaram quase mil milhões de euros em 2024

    Subsídios de doença custaram quase mil milhões de euros em 2024

    Os valores pagos pelo Estado em subsídios de doença aproximaram-se, no ano passado, da fasquia de mil milhões de euros. De acordo com os dados hoje divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística, as prestações de apoio ao longo de 2024 atingiram os 962,1 milhões de euros – o valor nominal mais elevado desde que há registo.

    Esta subida foi acompanhada também por um aumento expressivo de beneficiários, que ultrapassaram os 845 mil, o que representa mais 131 mil pessoas do que em 2020, o primeiro ano da pandemia, quando foi comum a atribuição de subsídio de doença a pessoas que, mesmo sem sintomas, mas com teste positivo à covid-19, tinham de permanecer em casa. O envelhecimento da população activa e os problemas de acesso aos cuidados de saúde ajudam a explicar esta tendência, mas uma coisa é certa: os seus impactos são estruturais para a sustentabilidade da Segurança Social.

    person lying on gray sofa

    Com efeito, a evolução dos números, tanto das prestações como do número de beneficiários, não deixa margem para dúvidas quanto ao agravamento estrutural deste tipo de despesa pública: em apenas quatro anos registou-se um crescimento superior a 18%. Já o montante total subiu 15,5% no mesmo período: de 832,7 milhões de euros em 2020 para os actuais 962,1 milhões. Face ao período pré-pandémico, a subida é ainda mais acentuada: em 2019, o valor pago tinha sido de 692,6 milhões de euros, com 650.958 beneficiários.

    Embora o valor médio por beneficiário se tenha mantido relativamente estável – cerca de 1.139 euros por pessoa em 2024, face a 1.167 euros em 2020 –, o número crescente de indivíduos a recorrer a este apoio tem tido um impacto significativo nas contas públicas. E tudo indica que o fenómeno poderá não ser transitório, mas sim reflexo de transformações profundas no mercado de trabalho e na estrutura etária da população portuguesa.

    Entre os factores explicativos identificados por analistas e especialistas em segurança social, destacam-se quatro causas principais: o envelhecimento da população activa, as alterações no mercado de trabalho, os problemas de acesso a cuidados de saúde primários e hospitalares e, mais recentemente, a normalização do recurso ao subsídio de doença em contextos menos graves.

    a person holding a crutch and walking cane

    Desde 2011, tem-se verificado um crescimento sustentado da população activa com mais de 55 anos, em contraste com a redução dos grupos mais jovens. Ora, esta faixa etária tem naturalmente maior probabilidade de sofrer doenças crónicas, lesões incapacitantes e períodos prolongados de baixa médica, o que contribui directamente para o aumento dos subsídios atribuídos.

    Por outro lado, a precarização das relações laborais em alguns sectores e o desgaste emocional associado a profissões altamente exigentes – como as ligadas à saúde, educação ou transportes – geram um contexto propício ao aumento do absentismo.

    A existência de ambientes laborais tóxicos, o burnout e os distúrbios de ansiedade são hoje factores relevantes para compreender os padrões de incapacidade temporária. No entanto, não é possível, com os dados disponibilizados pelo INE, destacar qual a tipologia de doenças e afecções que mais têm crescido.

    Evolução do número de beneficiários de subsídio de doença por ano desde 1990. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Todavia, mostra-se evidente que tem aumentado o número de horas inactivas nos últimos anos. Segundo os dados do INE, em 2024 foram processadas 42.750.697 horas de ausência por doença, valor ligeiramente inferior ao de 2023 (44,3 milhões) e ao de 2020 (44,6 milhões), mas muito superior ao verificado entre 2013 e 2019, período durante o qual a tendência de crescimento foi praticamente contínua: de 25,5 milhões de horas em 2013 para 38,8 milhões em 2019, num aumento superior a 50% em apenas seis anos. Nos últimos cinco anos, desde a pandemia da covid-19, têm sido processadas, em cada ano, mais de 42 milhões de horas de ausência por doença.

    Este crescimento não é proporcional ao aumento da população activa, nem ao crescimento da população imigrante residente em Portugal.

    Com efeito, a população activa total em Portugal cresceu apenas cerca de 10% entre 2013 e 2024, e o número de imigrantes com actividade profissional tem registado aumentos relevantes, mas longe de justificar isoladamente a duplicação do esforço financeiro do Estado com este tipo de apoio social. Isto significa que o absentismo por doença cresce a um ritmo autónomo e estrutural, exigindo análise e respostas políticas.

    Evolução das prestações sociais por subsídio de doença desde 1999, em milhares de euros. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM

    A tudo isto soma-se a fragilidade dos cuidados de saúde primários. A ausência de médicos de família para milhões de portugueses, as longas listas de espera para consultas e exames e a falta de resposta atempada nos hospitais levam a que muitos doentes permaneçam em situação de baixa por mais tempo do que seria necessário se tivessem acesso a um diagnóstico e tratamento céleres. A gestão ineficiente da doença, mesmo quando não grave, pode prolongar a incapacidade e acentuar a despesa.

    Comparando com o início da série estatística, a diferença é ainda mais relevante: em 1999, o número de beneficiários era de 417.486 e o montante pago ascendeu a 417,5 milhões de euros, o que corresponde a cerca de mil euros por pessoa. Ou seja, em 25 anos, o número de pessoas apoiadas duplicou e o valor pago também – um crescimento sem paralelo em outras áreas da protecção social.

  • Surpreendente: Lisboa foi o concelho com mais novos residentes nos últimos três anos

    Surpreendente: Lisboa foi o concelho com mais novos residentes nos últimos três anos

    Lisboa está a renascer — ou a gerar novos problemas. Depois de quase meio século de declínio demográfico — e de sucessivos diagnósticos que a davam como cidade em esvaziamento crónico —, o concelho da capital portuguesa voltou, com inesperada força, a crescer em população.

    Entre 2021 e 2024, Lisboa foi o município do país com maior atractividade e registou um aumento de 24.425 residentes, passando de 547.010 para 571.435 habitantes, segundo a análise do PÁGINA UM aos dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE). Nenhum outro concelho português registou um crescimento absoluto tão expressivo neste curto intervalo de três anos, o que representa, em média, mais 22 pessoas por dia — um valor ainda mais notável se considerarmos que o saldo natural de Lisboa continua fortemente negativo.

    Este dado, que à primeira vista poderá parecer auspicioso para quem defende o repovoamento das cidades, levanta, no entanto, questões prementes quanto à sustentabilidade urbana, à coerência das políticas municipais e à capacidade de resposta dos serviços públicos e das infra-estruturas.

    O crescimento abrupto ocorre num concelho cuja estratégia nas últimas décadas assentou sobretudo na promoção do turismo, na requalificação urbana orientada para o investimento imobiliário externo e numa política habitacional que, na prática, favoreceu o arrendamento de curta duração, a alienação de imóveis a estrangeiros e a gentrificação de bairros populares. A crise habitacional numa cidade em crescimento populacional, sobretudo associado à imigração pouco qualificada, tende a criar ainda mais problemas de degradação das condições de vida.

    De facto, a pressão sobre o parque habitacional intensifica-se, os transportes públicos dão sinais de saturação e os equipamentos sociais — escolas, centros de saúde, serviços municipais — revelam limitações perante esta nova realidade. Longe de ser o resultado de um plano urbanístico estruturado, este crescimento demográfico parece atropelar uma cidade que ainda não digeriu o seu passado recente como “resort urbano” de milhões de turistas.

    A título histórico, importa recordar que os números actuais de Lisboa continuam abaixo dos registados há quase um século. Nos Censos de 1930, a cidade contava com 591.939 habitantes e atingiu o seu pico em 1981, com 807.937 residentes — embora já estivesse então em curso um processo de despovoamento iniciado nos anos 60 e apenas atenuado nos anos 70 pela chegada de milhares de retornados após a descolonização. Mas essa era uma fase em que as famílias se ‘amontoavam’ em residências com poucas condições.

    Desde então, Lisboa entrou numa trajectória demográfica descendente, alimentada pela suburbanização, pelo envelhecimento demográfico e pelo êxodo da classe média para os concelhos periféricos. Os Censos de 2021 fixaram a população alfacinha em 545.796 residentes, traduzindo uma quebra acumulada de quase 33% desde 1981.

    O recente crescimento populacional de Lisboa — como o de Portugal em geral — não assenta num rejuvenescimento interno. O país continua a registar um saldo natural negativo, com mais mortes do que nascimentos. Ainda assim, entre 2021 e 2024, a população residente aumentou quase 287 mil pessoas, passando para um total de 10.694.681 habitantes, o que corresponde a um acréscimo médio de 262 pessoas por dia.

    Imigração tem sido o grande motor da recuperação demográfica de Lisboa, mas tem criado tensões sociais.

    Este crescimento deve-se, exclusivamente, ao saldo migratório, uma vez que o saldo natural continua a afundar-se. Em 2023, segundo o INE, morreram mais 33.824 pessoas do que as que nasceram, agravando o já elevado défice de 2022, que se fixara em 32.596. Ou seja, em três anos, o saldo migratório terá sido próximo das 400 mil pessoas.

    Os maiores crescimentos populacionais absolutos verificaram-se sobretudo nos municípios urbanos. A larga distância de Lisboa — com os já referidos 22 residentes adicionais por dia — surge o concelho do Porto, que, não obstante também registar um saldo natural negativo, viu a sua população crescer em 16.290 pessoas no último no triénio, o equivalente a mais 16 por dia.

    Seguem-se Sintra (mais 10 por dia), Braga, Seixal e Amadora (7), Maia (6), e depois Vila Nova de Gaia, Cascais, Matosinhos, Odivelas, Loures, Leiria, Aveiro, Valongo e Oeiras, todos com cerca de cinco novos residentes diários. Em comum, estes concelhos integram áreas metropolitanas e beneficiam de dinâmicas urbanas, oferta de emprego, habitação mais acessível ou atracção universitária.

    Abrantes foi o concelho de país que mais população perdeu no último triénio. Foto: CMA.

    Apesar da tendência de crescimento agregada, cem concelhos — quase um terço do total nacional — perderam população entre 2021 e 2024. Em termos absolutos, os maiores recuos ocorreram em Abrantes (menos 575 residentes), Felgueiras (menos 523) e Portalegre (menos 494). Também a cidade da Guarda, sede de distrito, perdeu habitantes: menos 190 face a 2021. Este decréscimo não é apenas estatístico, mas evidencia a persistência das assimetrias entre litoral e interior, bem como o falhanço das políticas de coesão territorial.

    Em termos relativos, o maior crescimento verificou-se em concelhos com forte presença de imigração laboral ligada ao sector agrícola. O caso mais extremo é o de Odemira, que viu a sua população crescer 11% em apenas três anos, passando de 30.186 para 33.495 residentes — um acréscimo de 3.309 pessoas.

    Seguem-se Sobral de Monte Agraço, no distrito de Lisboa, com uma subida de 10,7%, Óbidos e Vila Nova da Barquinha (10,5%), Arruda dos Vinhos (9,0%), Porto Santo (8,9%), Corvo (8,7%), Entroncamento e Bombarral (8,4%), Albufeira (8,1%), Oliveira do Bairro (8,0%), Benavente e Alenquer (7,9%), Lourinhã (7,4%), Ílhavo e Salvaterra de Magos (7,1%), Porto (7,0%), Vagos (6,9%) e São João da Madeira (6,8%).

    Odemira, com as suas estufas, tem atraído bastante população: cresceu 11% nos últimos três anos.

    Estes aumentos percentuais, por vezes mais discretos em números absolutos, são, ainda assim, relevantes. Assinalam novas dinâmicas locais, associadas à atracção de mão-de-obra estrangeira, a políticas de habitação menos especulativas ou à retoma económica pós-pandemia.

    Porém, muitos destes territórios não dispõem de recursos, serviços públicos nem planeamento urbanístico suficientes para absorver, com qualidade, uma população em crescimento acelerado.

  • Até com polémico ‘balão de oxigénio’ do Governo, Santa Casa da Misericórdia do Porto atinge décimo ano de prejuízos contínuos

    Até com polémico ‘balão de oxigénio’ do Governo, Santa Casa da Misericórdia do Porto atinge décimo ano de prejuízos contínuos

    Há sete anos, a Associação Portuguesa de Ética Empresarial decidiu distinguir António Tavares com uma Medalha de Mérito. O então — e ainda — presidente da Mesa Administrativa da Santa Casa da Misericórdia do Porto (SCMP) foi considerado um exemplo de Ética, Responsabilidade Social e Sustentabilidade. É provável que, à época, não existissem elementos suficientes que colocassem em causa a justeza da distinção no plano da ética pessoal. Porém, no campo da gestão, António Tavares — também professor na Universidade Lusófona e antigo deputado do PSD — dificilmente receberá algum dia um galardão, excepto se for um Prémio Razzie, os famosos anti-Óscares de Hollywood, aplicados ao sector da Economia.

    Com efeito, nos últimos dez anos, a SCMP — sob direcção ininterrupta de António Tavares desde 2011 — acumulou um buraco de 30,4 milhões de euros. Desde 2014 que não sabe o que é apresentar lucros. Em catorze anos de gestão, Tavares conheceu apenas dois exercícios positivos: em 2011 e em 2014.

    A cada ano, os resultados têm vindo a escavar mais fundo o fundo patrimonial da instituição: o que eram 234,8 milhões de euros em 2011 são hoje cerca de 138,5 milhões. Ou seja, o capital próprio da SCMP — para usar o jargão empresarial — emagreceu 96,3 milhões de euros sob a gestão de António Tavares, o que representa uma queda de 41%. A “sustentabilidade” — outro dos termos inscritos na distinção de 2017 — parece ter desaparecido por completo do léxico da Misericórdia do Porto.

    O ano de 2024 deveria ter sido o momento da inversão, até pela bênção do Governo de Luís Montenegro. Em Agosto do ano passado, um Conselho de Ministros autorizou um reforço de verbas para o Hospital da Prelada, propriedade da SCMP, no âmbito da criação de um Centro de Atendimento Clínico (CAC) para receber doentes não urgentes dos hospitais de São João e de Santo António.

    Por outras palavras, o Estado passou a pagar à Misericórdia do Porto para aliviar as urgências do SNS — o que, na prática, representou uma injecção directa de dinheiro numa unidade hospitalar deficitária há anos.

    De acordo com o relatório e contas de 2024, analisado pelo PÁGINA UM, este reforço de financiamento especificamente dirigido ao Hospital da Prelada foi substancial. Se em 2023 esta unidade hospitalar teve receitas de vendas e prestações de serviços de 34,1 milhões de euros, em 2024 essa rubrica subiu para quase 38,7 milhões — ou seja, um aumento de quase 14%. Teria servido, em teoria, para “limpar” a instituição de uma linha contínua de prejuízos.

    Mas não deu, porque as despesas também aumentaram. E há sobretudo um departamento, denominado Serviços Partilhados, que insiste em apresentar mais de quatro milhões de euros de prejuízos anuais. Em suma, o “balão de oxigénio” concedido pelo Governo de Luís Montenegro — de cerca de 4,6 milhões de euros — serviu apenas para reduzir o prejuízo global em cerca de 1,5 milhões de euros.

    Curiosamente, no mesmo dia em que o Diário da República oficializava o reforço de verbas para o Hospital da Prelada, o primeiro-ministro Luís Montenegro encontrava-se a gozar férias no Brasil, numa casa pertencente a Eurico Castro Alves — o coordenador da task force do Plano de Emergência da Saúde (autor do modelo dos CAC) e, até há poucos meses, membro suplente da Mesa Administrativa da SCMP.

    Membros da Mesa Administrativa da Santa Casa da Misericórdia com ‘obra feita’: 10 anos de prejuízos consecutivos.

    Não é apenas António Tavares e Eurico Castro Alves que mantêm ligações ao PSD. Manuel Pinto Teixeira, membro efectivo da Mesa Administrativa da SCMP e antigo chefe de gabinete de Rui Rio na Câmara Municipal do Porto, também aparenta ter bom trânsito entre os sociais-democratas.

    O relatório e contas de 2023 associa-o directamente à tutela do Hospital da Prelada. Entre Julho de 2020 e Julho de 2022, Pinto Teixeira integrou a Comissão Política Nacional do PSD — onde se sentava ao lado de Ana Paula Martins (actual ministra da Saúde) e de Joaquim Miranda Sarmento (actual ministro das Finanças). A proximidade é de tal ordem que, mesmo em tempos de contenção orçamental, se arranja sempre dinheiro para os amigos do Porto.

    Não há memória recente de qualquer medida de reestruturação significativa na Misericórdia do Porto. Pelo contrário: os gastos com fornecedores e serviços externos continuam a subir. Em 2011, ascendiam a 13,2 milhões de euros; em 2023, já ultrapassavam os 19,5 milhões; e, no ano passado, subiram para 21,6 milhões de euros.

    Também os gastos com pessoal aumentaram: entre 2023 e 2024, o acréscimo foi de 7,1%, passando de 34 milhões para quase 36,5 milhões de euros. O salário médio dos 1.261 trabalhadores da SCMP é de 2.065 euros mensais, calculado em catorze meses. A SCMP, tal como uma empresa pública em fim de ciclo, mantém a estrutura e o esbanjamento — na expectativa de que o Estado a venha salvar no fim.

    Hospital da Prelada, um sorvedouro de dinheiros públicos, mas que nem assim faz a SCMP sair do ‘vermelho’.

    Saliente-se que, ao contrário da sua congénere lisboeta, a SCMP não tem receitas provenientes dos jogos. Vive, por isso, exclusivamente da sua actividade empresarial e de acordos com o Estado. Entre 2008 e 2023, o Ministério da Saúde transferiu cerca de 500 milhões de euros para a Misericórdia do Porto. Só no último quinquénio, foram aproximadamente 160 milhões. Mas, nem assim, a SCMP conseguiu apresentar lucros.

    O PÁGINA UM contactou a SCMP para obter comentários sobre a situação financeira da instituição, bem como para saber se António Tavares considera manter condições para continuar em funções após o décimo ano consecutivo de prejuízos. A resposta foi lacónica: “Não nos será possível enviar as respostas solicitadas no prazo definido, uma vez que, por motivos de agenda, não foi possível obter em tempo útil os contributos necessários para o efeito.”

  • Lisboa tem uma dezena de mesquitas (em condições precárias)

    Lisboa tem uma dezena de mesquitas (em condições precárias)

    Fez lembrar um slogan pós-25 de Abril sobre soldado para África, mas deturpado com um leve travo identitário excludente (use-se o eufemismo, que não quiser usar a palavra xenófobo): “Nem mais uma mesquita em solo português.”

    A frase, lançada pelo líder do Chega, André Ventura, surgiu como reacção à polémica provocada por uma recomendação aprovada na 8.ª Comissão Permanente da Assembleia Municipal de Lisboa — com votos do PS, Bloco de Esquerda, Livre e PAN — sugerindo à autarquia encontrar um local adequado para a construção de uma mesquita no eixo da Avenida Almirante Reis, entre o Martim Moniz e a Alameda. Uma recomendação, recorde-se, não é uma deliberação vinculativa. Mas bastou para incendiar o habitual discurso político identitário do Chega, porque o seu representante absteve-se.

    Mesquita informal na Rua Alves Torgo, na zona da Praça do Chile.

    E, no entanto, se muitos lisboetas pensam que a capital tem apenas uma mesquita — a Mesquita Central de Lisboa, situada na zona de Sete Rios —, a realidade é bem mais difusa. Em Lisboa, existem formalmente 11 locais de culto islâmico, embora a maioria funcione em condições precárias, improvisadas em antigas lojas ou apartamentos devolutos.

    Aliás, um destes locais, situado na Rua Maria Andrade, na zona dos Anjos, foi encerrado pela Câmara Municipal de Lisboa em Janeiro deste ano, por questões de segurança, por estar defronte à linha do eléctrico 28. O espaço — que acolhia a Associação Cultural Pontos & Capítulos e dispunha de uma ampla sala de oração — era frequentado por uma comunidade significativa. Encerrado sem alternativa, deixou mais uma vez a nu a escassez de condições de dignidade para o culto islâmico.

    Exceptuando a Mesquita Central — um edifício construído com apoio de fundos estrangeiros, e inaugurado em 1985 —, os restantes locais de culto são soluções transitórias, improvisadas em espaços exíguos e por vezes pouco seguros. Entre os mais movimentados destacam-se dois na zona do Martim Moniz e da Rua do Benformoso: a Jam-e-Masjid (“Mesquita Congregacional”, em urdu), situada na Rua do Terreirinho; e a Baitul Mukarram Masjid (“Mesquita da Casa Bendita”), na Calçada Agostinho de Carvalho, que acolhe também o Centro Islâmico do Bangladesh.

    Mesquita na Rua Maria Andrade foi encerrada pela autarquia de Lisboa em Janeiro deste ano.

    Na Graça, mais precisamente na Travessa da Senhora da Glória, funciona o Baitur Rahman Jame Masjid (“Mesquita da Misericórdia de Deus”), instalado no rés-do-chão de um prédio de habitação, sem qualquer sinalização exterior visível.

    Do outro lado da colina, na zona dos Anjos, próximo do Centro Nacional de Apoio à Integração de Migrantes, localiza-se outro espaço de culto, discreto e modesto, na Rua da Palmira. Pelas imagens disponíveis online, percebe-se que o interior é apertado, cabendo talvez uma centena de fiéis

    Mais acima, junto ao Banco de Portugal, na Avenida Almirante Reis, ergue-se um edifício algo singular. No número 20 da Rua Passos Manuel, num prédio que alberga também um espaço da Junta de Freguesia de Arroios, está indicado o funcionamento de mais uma mesquita.

    No entanto, o espaço situa-se numa cave, acedida por uma porta lateral. O PÁGINA UM visitou o local e encontrou um espaço desarrumado, com objectos pessoais, mas sem presença de fiéis. Poderá funcionar como mesquita, como dormitório improvisado — ou ambos.

    Subindo até às imediações da Praça de Chile, surge talvez o espaço de maiores dimensões, pelo menos à primeira vista: o Masjid Baitur Rahim (“Mesquita da Casa do Clemente”) na Rua Alves Torgo, acolhe dezenas de fiéis mesmo a meio da tarde, como pôde constatar o Página Um. Já na Rua Quirino da Fonseca, na zona da Alameda, situa-se a Alameda Jame Masjid, outra mesquita reconhecida pela comunidade muçulmana e instalada numa área residencial, sem sinalização exterior que denuncie a sua função.

    Espaço referido como sendo uma mesquita na Rua Passos Manuel.

    Além destas, existem em Lisboa mais duas mesquitas: uma na Portela e outra na zona das Galinheiras. Na Amadora conseguiu-se identificar pelo menos três em funcionamento. De acordo com o Instituto Halal de Portugal estão identificadas 54 mesquitas e outros locais de culto em território nacional.

    A verdade é que este tipo de soluções — espaços improvisados em prédios residenciais, garagens ou antigas lojas — não é exclusivo da religião islâmica. Outras comunidades religiosas, com menor implantação histórica em Portugal, seguem caminhos semelhantes, sobretudo nas grandes áreas urbanas. E nenhuma é tão profusa nesse modelo como a miríade de igrejas evangélicas que têm proliferado em Lisboa nas últimas décadas.

    Tal como acontece com os locais de culto islâmico, também a proliferação de igrejas evangélicas em Lisboa segue uma lógica de improvisação e ocupação de espaços originalmente não destinados à prática religiosa. O PÁGINA UM identificou mais de quatro dezenas de igrejas evangélicas activas na cidade, muitas das quais instaladas em antigas lojas, garagens, andares residenciais ou edifícios de escritórios.

    Na zona da Rua do Benformoso existem duas mesquitas mas em condições precárias.

    A maior parte destas comunidades tem origem no Brasil, embora algumas provenham dos Estados Unidos, da China e até do Nepal. A diversidade de nomes reflecte uma pulverização denominacional — Baptistas, Pentecostais, Assembleia de Deus, Igreja Cristã Maranata, entre outras — mas a realidade urbana é semelhante: a religião instala-se onde pode, não onde deve. Exemplo disso é a Assembleia de Deus Paço de Jacó, situada num quinto andar de um prédio de escritórios junto à Praça do Chile, onde no primeiro piso funciona a Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra em Lisboa.

    Noutras zonas da cidade, igrejas como a Embaixada Cristã Portugal, a Cidade de Refúgio Lisboa, a Igreja Batista Renovada ou a Igreja Pentecostal Deus é Amor adaptaram lojas devolutas, espaços comerciais desactivados ou pisos de edifícios mistos, partilhando muitas vezes o quarteirão com cafés, cabeleireiros ou pequenas mercearias. A United Nepali Christina Church Portugal é outro caso curioso: situa-se numa antiga loja defronte à igreja Católica da Nossa Senhora do Resgate, nos Anjos.

    Igrejas evangélicas pululam por Lisboa ocupando espaços de antigas lojas. Hámais de quatro dezenas.

    Nomes como Igreja Verbo da Vida, Igreja Cristã Internacional, Igreja dos Santos Doze Apóstolos e da Sua Rainha ou Terceira Igreja Evangélica Baptista de Lisboa confirmam a vitalidade destas comunidades, mas também a ausência de uma política urbana coerente que permita o seu enraizamento em condições dignas.

    O fenómeno não é exclusivo da fé evangélica, mas nesta atinge uma expressão visível: igrejas em série, dissimuladas entre as montras comerciais da cidade, quase sempre sem placa nem fachada. A fé, aqui, vive de improviso — e reza entre paredes alugadas.

  • Doenças cardiovasculares: cada minuto a mais até às urgências causa 567 mortes por ano

    Doenças cardiovasculares: cada minuto a mais até às urgências causa 567 mortes por ano

    No espaço de apenas um mês, foram divulgados dois conjuntos de informação que, apesar de não terem merecido uma única manchete nos jornais do regime, encerram uma tragédia silenciosa com implicações gravíssimas para a política de saúde pública e o ordenamento do território.

    Com poucas semanas de intervalo, o INE publicou, por um lado, os tempos medianos (no sentido de abranger 50% da população) no acesso em automóvel ligeiro ao hospital com urgência mais próximo, e, por outro, as taxas de mortalidade por doenças do aparelho circulatório (que por simplificação se denominará por doenças cardiovasculares), ambas discriminadas por concelho. São, ao todo, os 308 concelhos de Portugal.

    Patient in hospital bed with heart monitor showing blood pressure and heart rate.

    À primeira vista, parecem variáveis inconciliáveis — como quase tudo o que se publica com etiquetas burocráticas. A mortalidade cardiovascular, dirão os especialistas, depende de múltiplos factores: grau de envelhecimento da população, prevalência de diabetes, hipertensão, obesidade, estilos de vida, hábitos alimentares, níveis de pobreza, isolamento, rede de cuidados primários, acesso a medicamentos.

    Tudo verdade. Mas o PÁGINA UM colocou uma questão que parece, à partida, ingénua ou até simplista: e a distância até à urgência hospitalar — só por si — será um factor determinante, ou sequer relevante, para as variações da mortalidade por doenças do aparelho circulatório?

    A resposta estatística é directa e inegável: sim. E o que se segue é a demonstração dessa evidência — sem alarme gratuito, mas com o peso sereno dos números. Recorrendo aos dados disponíveis, o PÁGINA UM cruzou as duas variáveis — tempo de acesso às urgências por veículo para 50% da população (2.º quartil) e taxa de mortalidade por doenças do aparelho circulatório — e construiu um modelo de regressão linear simples.

    Distribuição do tempo mediano de acesso às urgências hospitalares e a taxa de mortalidade por doenças do aparelho circulatório nos concelhos portugueses. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    O resultado pode surpreendeu até os mais cépticos: a correlação (de Spearman) é estatisticamente significativa e robusta (ρ = 0,60), indicando uma associação moderadamente forte entre as variáveis, mesmo sem pressupor linearidade. E com outro modelo estatístico — o de regressão por mínimos quadrados — constata-se que o tempo mediano de acesso à urgência explica, isoladamente, 30,5% da variabilidade das taxas de mortalidade entre concelhos.

    Trata-se de um valor elevado, sobretudo tratando-se de um modelo univariado — ou seja, sem controlar factores como idade, rendimento ou prevalência de doenças crónicas. Em estudos populacionais, raramente uma única variável explica tamanha parte da variação. Este resultado revela, por si só, a força preditiva da distância até ao hospital.

    Traduzido em linguagem comum: a Estatística comprova que, quanto mais longe está o hospital com urgência, maior tende a ser a taxa de mortalidade por doenças cardiovasculares — como enfartes do miocárdio, tromboses ou acidentes vasculares cerebrais (AVC). E esta relação não é simbólica: é mensurável. Na prática, o modelo do PÁGINA UM mostra que cada minuto adicional no tempo de acesso está associado a um aumento médio de 0,053 mortes por mil habitantes por ano. Ou noutra perspectiva, mesmo se de forma simplista, cada minuto a mais na chegada à urgência ceifa 567 vidas por ano em Portugal.

    Mas se isto ainda parece uma visão abstracta, passemos ao concreto. Aplicando a taxa de agravamento calculada pelo modelo, é possível estimar o impacto dessa diferença em diversos cenários.

    Por exemplo, se todo o país tivesse tempos de acesso às urgências semelhantes aos da Grande Lisboa — cerca de 7,6 minutos —, a taxa de mortalidade por doenças do aparelho circulatório desceria de 2,8‰ para 2,53‰, evitando-se cerca de 2.900 mortes por ano. Pelo contrário, se os tempos se agravassem para os valores médios da Beira Baixa (29,7 minutos) ou do Baixo Alentejo (35,2 minutos), essa taxa subiria para 3,70‰ e 3,99‰, o que significaria mais 9.600 e 12.700 mortes anuais, respectivamente.

    Com efeito, os valores tornam-se ainda mais expressivos quando se observam as desigualdades territoriais. Muitos concelhos com elevadas taxas de mortalidade cardiovascular são aqueles onde o tempo mediano de acesso às urgências ultrapassa largamente os 30 minutos, em alguns casos mais de uma hora. De entre os 94 concelhos com taxas de mortalidade 50% acima da média nacional — ou seja, com taxa superior a 4,2‰ —, 53 têm tempos medianos de mais de 30 minutos. Ou seja, quase seis em cada 10 concelhos (56%) com taxas de mortalidade elevada para este tipo de doenças súbitas têm grande parte da sua população a mais de 30 minutos de uma urgência.

    brown concrete houses on mountain
    Viver numa aldeia pode ser paradisíaco, mas fatal em caso de doenças súbitas.

    Estes concelhos dispersam-se sobretudo entre o Alentejo profundo, as serranias do Centro, os vales raianos e as franjas da Madeira, e merecem destaque: Penalva do Castelo, Castro Daire, Montemor-o-Novo, Vila de Rei, Sátão, Resende, Portel, Redondo, Sertã, Estremoz, Nisa, Aljezur, Aljustrel, Gavião, Fornos de Algodres, Alvito, Manteigas, Arganil, Santana, Castro Verde, Vila Nova de Paiva, Almeida, Sabugal, São Pedro do Sul, Vieira do Minho, Vinhais, Coruche, Proença-a-Nova, Penamacor, Serpa, Idanha-a-Nova, Alandroal, Góis, Vimioso, Avis, Sousel, Oleiros, Porto Moniz, Monção, Ourique, Aguiar da Beira, Montalegre, Mêda, Mértola, Pampilhosa da Serra, Mora, Moura, Mogadouro, Sernancelhe, Figueira de Castelo Rodrigo, Alcoutim, Melgaço e Freixo de Espada à Cinta

    Têm em comum o mesmo fardo estrutural: o afastamento dos equipamentos de saúde. Mas o problema não é exclusivo de aldeias esquecidas. Mesmo concelhos de média dimensão — como Castelo Branco, Viseu, Évora, ou zonas periféricas de Coimbra e Leiria — enfrentam tempos medianos de acesso superiores a 30 minutos. A dispersão populacional, a escassez de serviços de atendimento permanente e o desinvestimento em redes viárias e extensões hospitalares contribuem para essa penalização.

    Em sentido inverso, a análise aos 63 concelhos com tempo de acesso inferior a 10 minutos confirma o efeito protector da proximidade: apenas 21 ultrapassam a média nacional de mortalidade (2,8‰), e destes só três — Elvas, Beja e Abrantes — apresentam taxas de mortalidade 50% acima da média nacional, ou seja, mais de 4,2‰. Ou seja, estes casos isolados não invalidam a tendência dominante.

    Silhouette of a person with a glowing red neon heart in the dark, symbolizing love.

    E essa tendência é ainda mais clara nos grandes centros urbanos. Lisboa com 4,3 minutos de distância mediana até ás urgências regista 3,1‰ de taxa de mortalidade é a excepção, embora seja um concelho bastante envelhecido (quase um quarto da população tem mais de 65 anos), o que permite aferir o desastre que seria se os tempos fossem maiores.

    De resto, todas as principais cidades estão abaixo da taxa de mortalidade e abaixo da média do tempo mediano: Porto (5,5 min), 2,7‰; Oeiras (6,0 min), 2,6‰; Coimbra (6,6 min), 2,5‰; Cascais (7,1 min), 2,6‰; e Vila Nova de Gaia (7,2 min), apenas 2,1‰. Mesmo com uma população envelhecida e elevada carga de doenças crónicas, estes concelhos têm mortalidade cardiovascular bastante abaixo da média nacional. A explicação é simples: chegam ao hospital mais cedo — muitas vezes, a tempo de serem salvos.

    Num país que se gaba de ter um Serviço Nacional de Saúde universal e igualitário, a geografia continua a ser um factor de desigualdade brutal. Viver em Alvito, Nisa ou Montalegre não devia ser, por si só, uma ameaça cardiovascular. Mas é. E essa ameaça não decorre apenas de heranças do passado: resulta de opções políticas recentes, de centralizações disfarçadas de modernização e de cortes orçamentais que não chegam à opinião pública, mas chegam às portas fechadas dos centros de saúde.

    black sand

    A distância, neste caso, mata. Mata com estradas estreitas, com ambulâncias em falta, com urgências encerradas, com extensões sem capacidade de estabilização. Mata com o silêncio estatístico da negligência. Mas os números não mentem. Nem se comovem. Apenas revelam.

    E estes apenas pelo PÁGINA UM servem para apelar para a necessidade análises estatísticas mais rigorosas e modelos mais refinados, de modo a se conseguir isolar outros factores determinantes da mortalidade, permitindo identificar com precisão onde as desigualdades são mais profundas e como podem ser eficazmente combatidas. Porque saúde pública não se faz apenas despejando dinheiro em medidas genéricas ou politicamente vistosas — faz-se, antes de tudo, com estudo, método e sabedoria na aplicação dos recursos.

    ***

    N.D. Os resultados apresentados neste artigo — com destaque para a associação estatisticamente significativa entre o tempo mediano de acesso às urgências hospitalares e a taxa de mortalidade por doenças do aparelho circulatório — assentam em modelos estatísticos simples e transparentes, construídos a partir de dados oficiais. No entanto, cumpre assinalar que se trata de um modelo univariado, ou seja, não ajustado para outros factores relevantes como o envelhecimento demográfico, a prevalência de doenças crónicas, a distribuição dos cuidados de saúde primários ou os níveis socioeconómicos locais.

    Neste sentido, a associação estatística identificada não deve ser confundida com uma prova de causalidade directa, embora a evidência científica internacional reconheça, de forma robusta, que a rapidez no acesso a cuidados médicos especializados é determinante na sobrevivência em situações de doença súbita, como enfartes agudos do miocárdio ou acidentes vasculares cerebrais.

    O objectivo desta análise foi, por isso, identificar padrões territoriais de risco que justificam estudos mais aprofundados, com modelos multivariados e abordagens geoestruturais, permitindo orientar a política pública com base em evidência e não apenas em pressupostos administrativos ou igualitarismos abstractos.