Categoria: Sociedade

  • Incêndios: Quatro municípios são responsáveis por mais de metade da área ardida

    Incêndios: Quatro municípios são responsáveis por mais de metade da área ardida

    A área ardida por incêndios rurais em 2025 já ultrapassou a média registada entre 2018 e 2024, mas o dado mais revelador – e menos explorado no debate público – é que bastaram quatro concelhos para concentrar mais de metade da destruição. A geografia do fogo, como em tantas outras décadas em Portugal, mantém-se desigual e profundamente localizada.

    Segundo dados do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) a que o PÁGINA UM teve acesso, até à tarde desta quarta-feira tinham ardido 74.887 hectares. Este valor, embora ainda inferior aos de 2022 e 2023, já supera a média do período 2018-2024 (66.522 hectares). Convém recordar que 2017 foi um ano negro: arderam 540.654 hectares, equivalentes a 6,1% de todo o território continental.

    people walking near fire

    O padrão repete-se: a atenção mediática às chamas contrasta com a realidade de que estas incidem quase sempre nas mesmas regiões. Este Verão não é excepção. Mais de 71% da área ardida localiza-se a norte do Mondego, distribuída sobretudo pelos distritos da Guarda (16.770 hectares), Viana do Castelo (10.658), Vila Real (10.597), Viseu (8.873) e Aveiro (6.343).

    Já a sul, o impacto tem sido residual: três distritos – Lisboa, Leiria e Faro – apresentam valores inferiores a 100 hectares. No caso de Leiria, trata-se de uma situação atípica, recordando-se que em 2017 o Pinhal de Leiria foi severamente afectado por incêndios fora da época estival, em Outubro.

    A análise detalhada dos dados do ICNF revela o que está por detrás das estatísticas globais: não é o número de ignições que explica a devastação, mas sim a ocorrência de grandes incêndios concentrados em áreas específicas. Em 2025, quatro concelhos são responsáveis por 54,1% da área ardida nacional. Trancoso, no distrito da Guarda, lidera com 15.559 hectares queimados – quase 43% do seu território – apesar de ter registado apenas nove ignições.

    Trancoso: 46% do seu território ardeu este ano.

    O maior incêndio neste concelho ainda não foi completamente debelado, tendo atingido já concelhos vizinhos, como Celoirico da Beira e Fornos de Algodres. Segue-se Ponte da Barca (Viana do Castelo), com 7.478 hectares (41% do concelho), Vila Real, com 7.133 hectares, e Arouca (Aveiro), com 6.201 hectares.

    A lista alarga-se com outros cinco concelhos acima da marca dos 2.000 hectares: Sátão (Viseu), com 3.737 hectares; Arganil (Coimbra), com 3.072; Penamacor (Castelo Branco), com 2.893; Cinfães (Viseu), com 2.126; e Alandroal (Évora), com 2.025 hectares. Somando estes nove municípios, obtém-se uma destruição equivalente a 78% da área total ardida. E se se juntarem mais nove concelhos – Moimenta da Beira, Penafiel, Arcos de Valdevez, Celorico de Basto, Montalegre, Aljustrel, Nisa, Ponte de Lima e Ribeira de Pena –, conclui-se que apenas 18 concelhos são responsáveis por 93% de toda a superfície ardida no país.

    O reverso desta concentração é igualmente revelador: mais de metade dos municípios portugueses praticamente não foi afectada pelas chamas. Este ano, 146 concelhos (53% do total) não registaram mais de cinco hectares queimados. E há 51 que não chegam sequer a um hectare, ficando os fogos reduzidos a pequenos focos ou falsos alarmes. É o caso, por exemplo, de Espinho – terra natal do primeiro-ministro Luís Montenegro – que contabilizou apenas uma ignição e quatro falsos alarmes, com área ardida de zero hectares.

    Luís Montenegro: o seu ‘concelho’, Espinho, é um dos 51 onde nem um hectare ardeu este ano.

    O contraste entre territórios devastados e outros intactos levanta questões sobre a narrativa nacional dos incêndios. A “época de fogos” é tratada como um fenómeno homogéneo, mas a realidade é uma sucessão de dramas locais que dificilmente se reflectem de forma proporcional na percepção pública. Enquanto alguns concelhos enfrentam incêndios que consomem quase metade do seu território, outros assistem ao drama à distância, através dos noticiários.

    Esta disparidade não é apenas geográfica, é também estrutural: as políticas de prevenção e combate tendem a seguir uma lógica de reacção mediática, mais do que de gestão preventiva adaptada às vulnerabilidades específicas de cada região. O facto de quatro concelhos concentrarem metade da área ardida deveria servir de alerta para uma abordagem mais inteligente e localizada, que privilegie o reforço dos meios e da vigilância onde o risco real se materializa.

  • Mais de 41 mil falsos alarmes de incêndios rurais na última década

    Mais de 41 mil falsos alarmes de incêndios rurais na última década

    Nos últimos dez anos, mais de 41 mil alertas de incêndios florestais e agrícolas acabaram por não passar de falsos alarmes, segundo dados do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) a que o PÁGINA UM teve acesso. Estes registos representam mais de 40% do total de chamadas relacionadas com incêndios rurais, um fenómeno persistente que, ano após ano, mobiliza meios humanos e materiais para situações que afinal não existem.

    Só este ano, até às 18h30 de hoje, o ICNF já contabiliza 2.389 falsos alarmes, correspondendo a 41% das 5.847 ocorrências registadas — entre fogachos, incêndios florestais e incêndios agrícolas. Em muitos destes casos, o alerta chega através do número de emergência 112 ou por contacto directo com as corporações de bombeiros. A consequência é sempre a mesma: deslocação de meios que se revelam desnecessários e desgaste acrescido para equipas já sobrecarregadas em períodos de risco elevado.

    O fenómeno não se limita aos incêndios. Também nos serviços de assistência médica e de protecção civil são frequentes ocorrências falsas, mas no caso específico dos incêndios rurais, a dimensão é particularmente expressiva e dispersa por todo o território nacional. Não existe, no entanto, qualquer estudo conhecido que permita identificar padrões regionais ou causas mais frequentes.

    Hoje mesmo, a base de dados do ICNF registava 19 falsos alarmes, dos quais quatro em Vila Nova de Gaia e um em cada um dos seguintes concelhos: Torres Novas, Vinhais, Alvaiázere, Cascais, Paredes, Viseu, Torres Vedras, Tomar, Condeixa-a-Nova, Nelas, Vouzela, Mealhada, Seixal, Gondomar e Vila do Conde. Ontem, domingo, contabilizaram-se 42 falsos alarmes; no sábado, 35; na sexta-feira, 40; e na quinta-feira, 28. Em apenas cinco dias, foram 164 falsos alarmes em 638 ocorrências, ou seja, cerca de 26% dos registos.

    A análise do PÁGINA UM mostra que, desde quinta-feira, os falsos alarmes afectaram 81 municípios, com maior incidência em Paredes e Vila Nova de Gaia (11 cada), Valongo (8), Gondomar, Tavira e Torres Vedras (5 cada) e Amarante, Aveiro, Cascais, Cinfães, Sintra e Vila do Conde (4 cada). Quanto à origem das chamadas, seis em cada dez chegam através do 112, duas em cada dez por telefone directo para os bombeiros, e as restantes por outras vias.

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    Apesar de elevados, os números deste ano ainda ficam aquém dos de 2024, quando foram registados 3.547 falsos alarmes em 6.255 ocorrências, o que representou um rácio de 57%. O ano com mais falsos alarmes na última década foi 2017, com 5.512 registos, embora correspondendo a apenas 26% das ocorrências — recorde-se que 2017 foi o pior ano de que há registo em termos de área ardida, com 540.654 hectares consumidos pelo fogo, sobretudo nos dois períodos trágicos de Junho e Outubro, que também provocaram a morte de mais de uma centena de pessoas.

    Desde 2001, o ano com maior número de falsos alarmes foi o de 2007, com 5.707 registos deste tipo de ocorrências, mas como nesse ano houve mais de 25 mil intervenções, o peso relativo rondou apenas os 23%. Aliás, somente a partir de 2018 o peso dos falsos alarmes ultrapassaram, de forma consistente, a fasquia dos 40%.

    Contactado pelo PÁGINA UM, António Nunes, presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, admite não conhecer as causas para estes números tão elevados.

    Registo de falsos alarmes de incêndios rurais. Fonte: ICNF.

    “Nunca foi um assunto que tivéssemos estudado em termos de conhecer as causas”, afirma o líder máximo dos bombeiros voluntários, sublinhando que, como sucede noutros tipos de emergência, os falsos alarmes podem constituir um problema por afectar recursos humanos e materiais. Ainda assim, considera provável que, em muitos casos, estes episódios resultem de percepções erradas ou interpretações precipitadas de sinais que, afinal, não correspondem a incêndios reais.

    A ausência de um estudo aprofundado sobre esta realidade deixa por esclarecer questões essenciais: quantos falsos alarmes resultam de boa-fé e quantos são fruto de chamadas negligentes ou mesmo maliciosas? E até que ponto o peso destas ocorrências no dia-a-dia dos bombeiros afecta a sua capacidade de resposta a situações reais e urgentes? Enquanto essas respostas não chegam, os números mostram que, todos os anos, milhares de deslocações de meios se fazem para combater fogos que nunca existiram.

  • Bordalo II ‘vende’ Lisboa enquanto não pára de fazer fortuna a vender arte a autarcas de norte a sul

    Bordalo II ‘vende’ Lisboa enquanto não pára de fazer fortuna a vender arte a autarcas de norte a sul

    É um déjà vu, que começa a ficar estafado. O artista Bordalo II — nome artístico de Artur Bordalo — está de novo nas notícias e é assunto nas redes sociais. Dois anos depois da polémica que criou com uma instalação artística nas Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ), este ano o artista de projecção internacional já ‘atacou’ na capital com bons efeitos de marketing: em Maio com um tabuleiro do Monopólio, alegadamente uma ideia plagiada, e ontem instalou um ‘banner‘ no Cais das Colunas que simula um anúncio imobiliário, com a inscrição “Vende-se Lisboa“.

    A obra será uma crítica à crise na habitação que tem afligido a capital, mas que tem gerado um disparar de preços das casas e das rendas por todo o país. O artista já tinha colocado, em Maio, um jogo do Monopólio na Praça Duque da Terceira, no Cais do Sodré, também como crítica à crise na habitação.

    O artista Bordalo II instalou um ‘banner’ no Cais das Colunas em Lisboa a simular um anúncio de da conhecida rede imobiliária Remax. / Foto: D.R. | Bordalo II.

    Agora, numa publicação nas redes sociais, Bordalo II colocou as imagens do ‘banner‘que instalou no Cais das Colunas acompanhadas de um texto que simula um anúncio, com frases como: “Uma oportunidade de sonho numa cidade onde a maioria nem pode sonhar em viver”. Saliente-se que Bordalo II não está incluído nessa maioria, porque viverá na capital: a sede da Mundo Frenético, na zona de Marvila, é uma moradia unifamiliar de dois pisos com sotão e garagem.

    Mas enquanto alguns em Portugal sentem os efeitos da crise económica, do mesmo não se pode queixar este artista, que nos últimos sete anos acumulou uma pequena fortuna a vender obras de arte a municípios de norte a sul do país.

    De facto, através da sua empresa Mundo Frenético, o artista tem-se vendido a municípios onde muitos portugueses já não conseguem viver, ou vivem mas com muitas dificuldades. No total, em sete anos, Bordalo II amealhou 941.515 euros em 29 negócios feitos com 21 autarquias ou empresas municipais de todo o país. Só este ano, o artista já facturou 210.940 euros em dois negócios angariados junto de duas autarquias.

    O ‘banner’ instalado no Cais das Colunas tem o número de contacto do departamento ‘Habitar Lisboa’, da Câmara Municipal de Lisboa. / Foto: D.R. | Bordalo II

    O negócio de ‘venda de arte’ mais recente, feito com o município de Ponte de Lima, rendeu-lhe 79 mil euros, o que somado o IVA à taxa de 6% resulta num ganho de 83.740 euros. Esta transacção diz respeito à “criação, execução e instalação de escultura e mural de Bordalo II”. O contrato foi adjudicado por ajuste directo e assinado no dia 30 de Julho.

    Numa outra transacção angariada este ano, junto do Município de Sines, no litoral alentejano, Bordalo II cobrou 120 mil euros, ou 127.200 euros com IVA incluído, num negócio de “aquisição de elemento escultório” pela autarquia. O contrato por ajuste directo foi assinado no dia 14 de Fevereiro.

    Segundo o caderno de encargos deste procedimento, o município de Sines pagou pela “aquisição de serviços para conceção, execução e instalação de uma obra de arte única e original da autoria do artista Bordalo II“.

    Instalação de Bordalo II na Praça Duque da Terceira, no Cais do Sodré, em Maio deste ano. / Foto: D.R. | Bordalo II

    Neste contrato, entre as condições impostas pela autarquia, o artista comprometeu-se a fornecer uma “escultura(s) de exterior, composta por uma estrutura de suporte em ferro, forrada a madeira e revestida com desperdícios de plástico e outros materiais descartados”.

    A escultura envolve um “animal a representar um polvo, com dimensões aproximadas de 11 m x 8 m”. Outras condições referiam que se pretendia “a apresentação de draft, projeto 3D e maquete, com execução de estudo e projeto de estabilidade (engenharia)” e a “produção e materiais em estúdio e instalação no local pelo artista Bordalo II”.

    Não se conhecendo ainda maquete, certo é que Bordalo II não recicla apenas materiais; recicla ideias: já existe um polvo da sua autoria na Costa da Caparica.

    Polvo de Bordalo II na Costa da Caparica. Foto: DR.

    No caso da instalação em Sines, a autarquia assume també todos os encargos respeitantes ao “alojamento para quatro pessoas”, bem como o “transporte entre as instalações do cocontratante e o local de instalação em camião apropriado, bem como camião grua a plataforma elevatória no local durante a instalação”. Também serão pagos pelo município alentejanos os custos com “camião grua e plataforma elevatória para efeitos de instalação”, além de “autorizações, licenças e policiamento em caso de necessidade de corte de via”.

    Antes, a 25 de Novembro do ano passado, Bordalo II já tinha angariado um contrato com a Inframoura-Empresa de Infraestruturas de Vilamoura, para a “execução de peça artística alusiva à circularidade na Alameda da Praia da Marina, com utilização de bicicletas do sistema partilhado da Inframoura e outros materiais em fim de vida”. Neste contrato, o artista facturou 73.988 euros, com IVA incluído.

    De resto, no ano passado o artista ganhou 164.416 euros com obras vendidas a uma empresa municipal e três municípios em Portugal: Arcos de Valdevez; Lousada; e Mealhada. Desde que há registos de contratos com o artista na plataforma de registo de compras Públicas — Portal Base — Bordalo II já fez negócios com 21 municípios, além de juntas de freguesia e empresas municipais, num total de 29 contratos. Além destes contratos, há ainda negócios feitos com outras entidades públicas. No global, em 35 contratos públicos, Bordalo II facturou 1.212.875 euros em sete anos.

    A escultura ‘Sketchy Crab’ de Bordalo II em Vilamoura custou 73.988 euros e foi produzida com materiais em fim de vida fornecidos pela empresa municipal Inframoura, que encomendou a obra.
    / Foto: Inframoura

    Curiosamente, o primeiro contrato público que o PÁGINA UM encontrou no Portal Base foi efectuado precisamente com a Câmara Municipal de Lisboa, em 18 de Maio de 2018, para o “fornecimento de uma escultura com materiais recicláveis da autoria de Bordalo II”. O negócio foi realizado através da Mistaker Maker – Associação de Intervenção Criativa e rendeu ao artista 15.900 euros, com IVA incluído.

    Certamente, alguém na autarquia lisboeta estará a pensar se não teria sido apropriado reforçar uma relação comercial com o artista que teve apenas esse contrato público no tempo do socialista Fernando Medina. Recorde-se que em 2019, ainda no tempo de Medina, foi anunciado que um mercado no Martim Moniz contaria com esculturas de Bordalo II, mas tal não avançou no primeiro mandato de Carlos Moedas.

    Assim, com crise ou sem crise, Bordalo II continua a ter nos municípios portugueses clientes regulares que anualmente lhe trazem receita na entrega de murais e esculturas feitas com materiais de desperdício disponíveis nas cidades onde as obras de arte ficam instaladas.

    Antes desta acção em Lisboa, o artista já tinha partilhado nas redes sociais, no dia 18 de Julho, um ‘banner’ similar em Loures. / Foto: D.R. | Bordalo II

    E enquanto o capitalismo selvagem e políticas públicas têm promovido a especulação na habitação e o aumento da desigualdade e da pobreza, para Bordalo II a crise não chegou. No caso dos negócios feitos entidades públicas, sobretudo autarquias e empresas municipais, é dinheiro certinho que chega directamente dos cofres públicos. Mais precisamente, são notas de euro que perfazem 1.212.875 euros que entraram na conta bancária do artista nos últimos sete anos.

    Nada mau, ser-se um artista milionário num país em eterna crise. Traz o bónus de haver sempre oportunidade para mais instalações polémicas e oportunidades para promover o nome e, quem sabe, angariar mais umas esculturas e murais pelas cidades onde muitos já não conseguem viver.

  • Regulador acha normal emissão de ‘ménage à trois’ entre adolescentes no ‘Morangos com Açúcar’

    Regulador acha normal emissão de ‘ménage à trois’ entre adolescentes no ‘Morangos com Açúcar’

    A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) decidiu arquivar uma participação contra o canal Biggs, dedicado ao público juvenil, na sequência da emissão de um episódio da conhecida série juvenil Morangos com Açúcar, transmitido às 21h00 no passado dia 10 de Maio, que inclui uma cena sugestiva de um encontro sexual a três entre adolescentes.

    Agora em canal por cabo operado por uma empresa detida pela NOS e a empresa norte-americana AMC Networks, esta é um ‘reboot’ da série criada em 2003 na TVI, e que se prolongou até 2012, lançando actores como João Catarré, Benedita Pereira, Pedro Teixeira, Cláudia Vieira, Sara Matos, Lourenço Ortigão, Diogo Amaral, Gabriela Barros e Isaac Alfaiate, entre muitos outros.

    Cartaz do ‘reboot’ na Biggs da série ‘Morangos com Açúcar’.

    A deliberação sobre o polémico episódio de um ‘ménage à trois’, a que o PÁGINA UM teve acesso, aprovada por unanimidade no passado dia 16 de Julho, considera que não existem indícios de violação da Lei da Televisão, que estabelece limites à liberdade de programação no que diz respeito a conteúdos susceptíveis de influírem negativamente na formação da personalidade de crianças e adolescentes.

    A cena em causa, com uma duração total de 1 minuto e 38 segundos, distribuída por dois momentos no final do episódio, mostrava três adolescentes – dois rapazes e uma rapariga – numa cama, a beijarem-se alternadamente, a despirem-se parcialmente, com exibição dos troncos nus dos rapazes e das costas nuas da rapariga. A sequência integrava um enredo narrativo em que um casal de namorados convidava um terceiro jovem a juntar-se a eles, sendo mais tarde percebido tratar-se de uma alusão a um ménage à trois.

    A participação à ERC foi apresentada por uma espectadora, que manifestou indignação com o conteúdo transmitido às 21h00, criticando a exibição de “rebeldia injustificada” e “uso e abuso de sexo infantil”, e associando esse tipo de cenas a fenómenos como bullying, consumo de álcool e gravidezes na adolescência. A espectadora classificou o programa como um exemplo de conteúdos que poderiam ser imitados por crianças e adolescentes.

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    Em resposta, o canal Biggs, operado pela Dreamia – que também detém os canais Hollywood e Panda, entre outros na televisão por cabo –, defendeu que o programa está classificado como “12AP” – para maiores de 12 anos, com aconselhamento parental – e que o seu público-alvo são adolescentes dos 12 aos 18 anos, sustentando que, ao contrário do que se aplica à programação infantil, o conteúdo dirigido a adolescentes pode abordar temas como a sexualidade, desde que o seu tratamento seja adequado às diferentes fases.

    A empresa salientou que os conteúdos emitidos seguiam o Acordo de Classificação de Programas de Televisão, além de ter sido este subscrito pelas principais operadoras privadas e reconhecido pela ERC. O canal acrescenta ainda que “no contexto actual, os jovens têm acesso a uma panóplia de conteúdos audiovisuais, seja através das redes sociais e plataformas over-the-top (OTT), em que muitas vezes são confrontados com cenas de nudez, linguagem ofensiva, violência e representação de actos sexuais significativamente mais explícitos, frequentes e detalhados do que aqueles que se encontram em discussão”.

    Na deliberação, a ERC acompanha em grande parte os argumentos do canal, considerando que a cena não inclui nudez explícita nem representação de actos sexuais, surgindo como parte integrante da narrativa do episódio.

    Cena da temporada 1 da nova série da Biggs.

    O regulador, presidido por Helena Sousa, concorda que “os conteúdos de natureza sexual fazem parte do quotidiano, e é pouco razoável esperar que os pré-adolescentes e adolescentes não tomem contacto com aspectos da sexualidade ou com a exibição da nudez no espaço mediático actual”.

    E conclui que a emissão das cenas implícitas de um ménage à trois entre adolescentes numa série juvenil “não são susceptíveis de influir de modo negativo na formação da personalidade de crianças e adolescentes, nem serão de difícil descodificação por parte do público-alvo do canal Biggs”, ou seja, espectadores entre os 12 e os 18 anos.

  • Concertos ‘grátis’ dos James já custaram mais de meio milhão de euros ao erário público

    Concertos ‘grátis’ dos James já custaram mais de meio milhão de euros ao erário público

    São espectáculos realizados a convite de autarquias que visam promover os municípios — e os autarcas. Uma das bandas que tem facturado no último ano com concertos deste género é a banda britânica James, liderada por Tim Booth — tio da actriz portuguesa Maya Booth. Os seus concertos têm sido noticiados nos media como sendo de entrada “grátis”. Mas, na realidade, são pagos por todos os contribuintes. E não saem nada barato.

    No caso da banda britânica — que actua este Sábado em Penamacor —, no último ano, os seus três concertos de entrada “grátis” a convite de municípios custaram aos contribuintes a quantia de 518.937 euros.

    Os James actuaram em Vila Real no dia 5 de Julho. O concerto custou 194.832 ao erário público, mas a entrada era “grátis”. / Foto: D.R.

    O espectáculo desta banda — a qual se tornou popular nos anos 90 — que saiu mais caro aos bolsos dos contribuintes foi o que se realizou no dia 5 de Julho em Vila Real, a propósito das comemorações do centenário de elevação de Vila Real a cidade.

    Só este concerto garantiu aos James uma receita de 194.832 euros, com IVA incluído. A contratação feita pelo município de Vila Real foi fechada no dia 27 de Março, com a assinatura de um contrato por ajuste directo com a empresa Malpevent, Consultadoria e Produção de Eventos.

    Mas a banda agradeceu com a publicação de um vídeo do seu concerto em Vila Real nas redes sociais.

    De resto, como o PÁGINA UM noticiou, os custos dos eventos a realizar este ano no âmbito da comemoração do centenário de Vila Real iam já em meio milhão de euros no mês de Março e ainda havia contratos por publicar no Portal Base, a plataforma de registo das compras públicas.

    A banda britânica vai actuar hoje a convite da autarquia de Penamacor. Os contribuintes pagaram 183.270 euros por este concerto. Mas a entrada é “grátis”. / Foto: D.R.

    Um mês depois do concerto em Vila Real, os James actuam em Penamacor. O concerto está agendado para este sábado, dia 2 de Agosto, inserido na anual Feira Terras do Lince.

    A contratação foi formalizada no dia 30 de Junho através de um contrato por ajuste directo adjudicado pelo município de Penamacor à empresa Malpevent, Consultadoria e Produção de Eventos. O preço do concerto dos James ficou em 183.270 euros. É esse o valor pago pelos contribuintes para alguns poderem assistir a este concerto “grátis”.

    A autarquia de Penamacor, de resto, abriu os cordões à bolsa e, em pleno ano de eleições autárquicas, contratou ainda, para a Feira Terras de Lince de 2025, outro nome sonante. Os Gipsy Kings, com Nicolas Reys, actuaram ontem no evento pela “módica” quantia de 162.975 euros. A contratação foi efectuada no dia 2 de Julho num contrato por ajuste directo também adjudicado à empresa Malpevent.

    Foto: D.R.

    Em resumo, os contribuintes pagaram um total de 346.245 euros por estes dois concertos contratados pelo município de Penamacor, que tem apenas 4.797 habitantes. Ou seja, significa que estes dois concertos “grátis” custaram, na verdade, 72 euros por cada habitante do município.

    Os valores cobrados este ano pelos James aos municípios de Penamacor e Vila Real são mais elevados do que os cobrados à autarquia do Crato, no Verão do ano passado.

    A banda britânica actuou no dia 30 de Agosto de 2024 no Festival do Crato. A contratação da banda foi fechada a 19 de Junho de 2024, através de um contrato por ajuste directo adjudicado à empresa Bam! Bookings Management Unipessoal. O concerto gerou uma receita de “apenas” 140.835 euros para os James, que saiu dos bolsos dos contribuintes. Mais uma vez, segundo a imprensa, o concerto teve entrada “grátis”.

    Foto: D.R.

    Este ano, a banda ainda vai actuar, pelo menos, mais uma vez, em Portugal. Os James integram o cartaz do Festival de Vilar de Mouros e vão subir ao palco no dia 20 de Agosto. Mas aqui a entrada não é paga por todos os contribuintes. Só mesmo os que querem assistir é que terão de desembolsar o custo do bilhete diário do Festival, de 53,50 euros.

    Mas mesmo sem a receita obtida em Vilar de Mouros, os James já levaram mais de meio milhão de euros para casa graças a três generosos municípios portugueses.

    Assim, não é de espantar se no Verão do próximo ano houver mais concertos “grátis” da banda de Manchester a convite de municípios, apesar de 2026 não ser ano de eleições autárquicas. Basta que haja centenários para comemorar pagos pelos contribuintes e Feiras anuais com orçamento de luxo. Os James agradecem.

  • Governo contrata à pressa mais cinco helicópteros para combate aos incêndios

    Governo contrata à pressa mais cinco helicópteros para combate aos incêndios

    Com vastas áreas do país a arder, a Força Aérea está a alugar, à pressa, mais cinco helicópteros para reforçar o dispositivo aéreo de combate aos fogos por um valor que, no total, deverá chegar aos 3,7 milhões de euros.

    O primeiro contrato, assinado ontem, alegando “urgência imperiosa”, prevê a operacionalização de um helicóptero médio a partir de amanhã e até 15 de Outubro, pagando a Força Aérea 892 mil euros. Este contrato foi adjudicado à empresa Avincis Aviation Portugal por ajuste directo.

    Foto: D.R.

    Este é o lote 3 de 5 previstos no caderno de encargos de um procedimento que visa alugar cinco helicópteros, sendo que os outros lotes ainda não têm os respectivos contratos publicados no Portal Base. Neste procedimento são ainda mencionadas as empresas Helibravo Aviação, Avincis Aviation Iberia e Gesticopter Operations. Contudo não é referido se estas são as empresas às quais foram adjudicados outros lotes.

    A Força Aérea tinha avançado com um concurso para o recrutamento de mais cinco meios aéreos de combate aos fogos, segundo noticiou o Correio da Manhã (CM) no dia 15 de Julho. Mas aquela entidade admitiu ao CM, na altura, que apenas conseguiu contratar 71 dos 76 meios aéreos previstos no Dispositivo Especial de Combate aos Incêndios Florestais (DECIR) para 2025. O procedimento para a contratação dos últimos cinco helicópteros teria ficado vazio de propostas.

    Portugal registava, às 18H50 de hoje, um total de 86 fogos e incêndios rurais activos, dos quais: 11 em despacho; nove em curso; 15 em resolução e 51 em conclusão. Para estas ocorrências, foram mobilizados 22 meios aéreos, 1.008 meios terrestres e 3.176 operacionais, segundo informações disponibilizadas pelo Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais.

    Mapa de fogos e incêndios rurais activos em Portugal Continental, às 18H50 de 31 de Julho. / Foto: Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais.

    Em cinco dias, a área ardida em Portugal duplicou e equivale a três vezes a cidade de Lisboa, noticiou o Público. Esta quarta-feira, à saída de uma reunião com o conselho executivo da Liga dos Bombeiros Portugueses, em Lisboa, o secretário de Estado da Protecção Civil, Rui Rocha afirmou que estão a ser feitas “todas as diligências” necessárias “para garantir o efectivo de 76 meios aéreos que estão previstos”.

    Segundo Rui Rocha, a partir de 1 de Agosto, vão ser disponibilizadas 72 aeronaves, depois de a Força Aérea Portuguesa recorrer a um ajuste directo para contratar dois meios aéreos, e que a eficácia destes está dependente das características dos incêndios.

    Hoje, à saída de uma reunião com a Liga dos Bombeiros, o secretário de Estado da Protecção Civil, Rui Rocha, já informara que estavam a ser feitas “todas as diligências” para garantir um efectivo de 76 meios aéreos previstos, embora apenas 72 estivessem já operacionais a 1 de Agosto, depreendendo-se assim que se venham a concretizar novos ajustes directos nos próximos dias.

    Rui Rocha, secretário de Estado da Protecção Civil. / Foto: ANEPC | D.R.

    Embora a resposta política imediata às crises associadas aos incêndios rurais seja quase sempre a contratação adicional de meios aéreos, sabe-se que não existe uma correlação directa entre a eficácia do combate e o maior uso desses meios, nem tampouco se tem verificado uma redução da área ardida quando há reforço de aeronaves.

    As causas principais das crises cíclicas dos incêndios rurais em Portugal residem sobretudo na desordenamento florestal, na proliferação de matos (agravado pelo abandono de áreas agrícolas que antes serviam de ‘tampão’) e de espécies altamente inflamáveis (como o eucalipto e o pinheiro-bravo), bem como na ineficácia estrutural da política de prevenção, frequentemente subordinada a uma lógica reactiva e mediática centrada no combate.

    Foto: D.R.

    Para a Avincis Aviation Portugal, este novo contrato vem somar aos dois concursos públicos que ganhou este ano junto da Força Aérea, no âmbito do reforço de meios aéreos relativos ao DECIR. Num dos concursos, cujo contrato foi assinado no dia 4 de Junho, a empresa facturou 30,2 milhões de euros. Num anterior concurso, cujo contrato foi assinado a 8 de Maio, encaixou 2,9 milhões de euros.

    No total, só este ano, a Avincis facturou assim 34 milhões de euros em contratos públicos para o fornecimento de meios aéreos para combate aos incêndios.

    Segundo contas do PÁGINA UM, em Portugal, o negócio de aluguer de meios aéreos para combate aos fogos já envolveu, desde o início do ano e até ao final de Maio, 16 contratos de valor global superior a 181 milhões de euros.

  • Incêndios: Protecção Civil ‘queima’ 722 mil euros em contratos jurídicos com ‘água no bico’

    Incêndios: Protecção Civil ‘queima’ 722 mil euros em contratos jurídicos com ‘água no bico’


    Enquanto os incêndios não dão tréguas e se apela a São Pedro por uma trégua meteorológica, a Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil (ANEPC) tem sido, por sua vez, generosa em “ajudinhas” à conhecida sociedade de advogados Sérvulo & Associados para assessoria jurídica em contratos de meios aéreos que dão para o torto.

    Na passada segunda-feira, caiu mais um contrato por ajuste directo — sem qualquer concurso — nas mãos da sociedade fundada pelo advogado Sérvulo Correia e onde pontifica, como um dos sócios principais, Rui Medeiros, ex-ministro da Modernização Administrativa do efémero Governo de Passos Coelho, em 2015. O valor do novo contrato, publicado no Portal BASE, ascende a 123 mil euros (com IVA incluído), e tem como objecto declarado a “aquisição de serviços jurídicos para apoio no âmbito de uma acção administrativa comum instaurada pela Heliportugal”.

    José Manuel Moura é presidente da ANEPC desde Janeiro deste ano.

    Contudo, a leitura do contrato revela um conteúdo muito mais vasto e específico do que a genérica descrição pública: o documento estipula uma panóplia de tarefas, desde o levantamento e análise de quatro acções arbitrais anteriores e de três processos administrativos ainda em curso entre a ANEPC e a Heliportugal; à análise das acções da empresa Everjets e da documentação relativa aos autos de desconsignação de peças aeronáuticas; passando pela avaliação técnica da documentação trocada entre as partes; até à elaboração de todas as peças processuais — incluindo contestação, reconvenção, réplica e alegações finais —, bem como a preparação das audiências, das testemunhas e da instrução do julgamento.

    Ou seja, a minúcia do contrato é tal que estipula sete categorias distintas de tarefas e prevê ainda a criação de uma “bolsa de 305 horas” para fazer face a alegadas necessidades futuras de contratação, que, por não estarem ainda concretizadas, permitirão eventuais prorrogações ou novos ajustes directos.

    Porém, apesar deste detalhe — que indicaria a existência de condições para lançar um concurso público ou, no mínimo, uma consulta prévia — a ANEPC invocou uma norma de excepção do Código dos Contratos Públicos (CCP) para justificar o ajuste directo. Esta norma permite a contratação directa apenas quando “a natureza das respectivas prestações, nomeadamente as inerentes a serviços de natureza intelectual, não permita a elaboração de especificações contratuais suficientemente precisas”.

    No entanto, como se verifica na cláusula segunda do contrato, essa suposta impossibilidade é desmentida pelo próprio documento, onde as tarefas são descritas em detalhe e os tempos de trabalho quantificados. Em suma, a prestação não só está objectivamente definida como também é mensurável.

    Um advogado especialista em contratação pública, que pediu anonimato por receio de represálias institucionais, disse ao PÁGINA UM que este “é um caso típico de torção do Direito à medida da prática administrativa”, salientando ainda que “a norma de excepção foi pensada para serviços genuinamente imprevisíveis — pareceres inovadores, estudos exploratórios, criações intelectuais livres —, pelo que, quando temos um contrato com bolsa de horas e sete blocos de tarefas jurídicas claramente especificadas, não há justificação para dispensar a concorrência.”

    Para além da fragilidade legal da norma invocada, acresce o facto de muitas das tarefas agora contratualizadas já constarem de contratos anteriores com a Sérvulo & Associados. Desde 2021, a ANEPC celebrou seis contratos por ajuste directo com esta sociedade num total que ultrapassa agora os 722 mil euros (com IVA). Os valores individuais variam entre 22 mil e 214 mil euros, estando pelo menos três desses contratos directamente ligados a processos arbitrais com a empresa Everjets. Um dos contratos, datado de Dezembro de 2024, refere-se à “conclusão” da “3.ª arbitragem Everjets”, o que levanta dúvidas sobre se se tratam de fases distintas de um único processo ou de adjudicações redundantes e sucessivas.

    Sérvulo Correia, quando recebeu uma condecoração em 2018, ao lado de Marcelo Rebelo de Sousa. Foto: Presidência da República.

    O caso da Everjets arrastou-se desde 2017 em tribunal arbitral, com acusações mútuas entre a empresa privada e a ANEPC por causa dos famigerados helicópteros Kamov. O acórdão do tribunal arbitral em 2022 concedeu à ANEPC, representada pela Sérvulo & Associados, o direito de ser indemnizada em apenas 2,5 milhões de euros por incumprimentos contratuais, mas também a ter de pagar à Everjects uma compensação de 140 mil euros por ter fechado, sem razão, em 2018, o hangar onde estavam os Kamov, expulsando os funcionários e pondo em causa a reputação da empresa.

    Contas feitas, como só em serviços da Sérvulo & Associados, a ANEPC pagou mais de 577 mil euros, significa que a indemnização ficou em menos de 1,8 milhões de euros. 

    O contrato agora assinado refere também expressamente a análise de quatro acções arbitrais anteriores, o que reforça a suspeita de que a sociedade Sérvulo & Associados poderá estar a ser remunerada mais de uma vez pela análise de documentação e procedimentos em acções executadas no passado.

    Este padrão de contratação directa, sistemática e reiterada com o mesmo escritório de advogados, não se limita ao caso da ANEPC. Têm vindo a generalizar-se em múltiplos organismos públicos, incluindo câmaras municipais, institutos públicos e direcções-gerais, contratações por ajuste directo de sociedades de advogados próximas de decisores políticos, quer por vínculos partidários, quer por relações pessoais com membros do Governo, autarcas ou altos quadros da administração.

    O subterfúgio jurídico é quase sempre o mesmo: invoca-se a suposta impossibilidade de definição objectiva do serviço jurídico, mesmo quando o contrato — como no caso presente — é exaustivamente descritivo e quantificado. Este expediente tem permitido escapar às regras de concorrência e abrir espaço para adjudicações por convite, em moldes juridicamente frágeis e eticamente questionáveis. Em muitos casos, nem sequer é possível apurar se os serviços foram efectivamente prestados, dado o carácter imaterial das prestações, a ausência de relatórios públicos e a opacidade dos resultados.

    Tudo isto se faz nas ‘barbas’ do Tribunal de Contas, cuja actuação tem sido, no melhor dos casos, burocraticamente conformista. O controlo prévio, quando existe, limita-se a verificar o cabimento orçamental e a legalidade formal do acto administrativo, mas raramente escrutina o fundamento substantivo da contratação nem a plausibilidade da norma invocada para contornar a concorrência pública.

    Assim, sobretudo para a contratação de sociedade de advogados, esta norma de excepção do CCP, criada para situações excepcionais, transformou-se num atalho administrativo com aparência legal, mas usado à margem do seu espírito original.

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    Este expediente tornou-se tão rotineiro que até o actual primeiro-ministro, Luís Montenegro, dele beneficiou. Em Janeiro de 2022, o Banco Português de Fomento contratou por ajuste directo a sociedade Sousa Pinheiro & Montenegro — da qual era sócio — por 100 mil euros, alegando igualmente a impossibilidade de definição objectiva do serviço. O PÁGINA UM tem pendente no Tribunal Administrativo de Lisboa uma intimação contra o Banco Português de Fomento para obter acesso a documentação que comprove a efectiva prestação de serviços (pareceres, relatórios, minutas, etc.) nesse contrato.

    Perante esta prática generalizada, a excepção transformou-se em regra, o direito em pretexto, e a transparência num véu de linguagem jurídica cuidadosamente redigida para encobrir favorecimentos. No Estado português, aparentemente nem São Pedro ajuda a apagar este tipo de incêndio.

  • ‘Nem no Brasil isto me aconteceu’

    ‘Nem no Brasil isto me aconteceu’

    Sobem de noite pelas escadas de incêndio dos prédios e entram nos apartamentos, enquanto as famílias dormem. Levam o que podem, sobretudo telemóveis, carteiras, tablets e computadores portáteis, consolas de jogos. No mês de Junho, numa só noite foram várias as casas roubadas numa rua no centro de Lisboa, perto da Graça.

    A Polícia de Segurança Pública (PSP) confirmou estes roubos e as invasões de domicílio. Mas não investigou nem procurou prender os ladrões nem recuperar os bens roubados.

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    Foto: D.R.

    O motivo avançado pela PSP para não procurar e deter os meliantes é o facto de as famílias que foram vítimas dos roubos não terem pedido um “procedimento criminal”.

    Não se sabe ao certo quantas famílias foram vítimas deste tipo de assalto naquela noite de Junho na mesma zona. A PSP indicou que apenas “foram registadas 2 (duas) ocorrências de furto em residência com recurso a escalamento através de janelas que se encontravam abertas”. O PÁGINA UM apurou que houve mais.

    Por outro lado, a PSP omitiu que, nas duas ocorrências que ficaram registadas, as janelas que estavam abertas situavam-se a uma altura de 10 e 15 metros. Para lá chegarem, os criminosos tiveram de passar por cima de estendais, correndo risco de vida, e percorrer cerca de dois metros em parapeitos de poucos centímetros.

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    Foto: D.R.

    Foi o caso da família de “João”, um imigrante brasileiro que acabara de se mudar para aquele apartamento, perto da Graça. O andar onde agora vivem corresponde a um quarto andar alto, na zona das traseiras. Numa manhã de Junho, a família acordou com um grito. Quando João se levantou, percebeu que faltavam objectos em casa. E havia coisas remexidas. Os ladrões deixaram também notas de dinheiro de brincar, de um jogo de tabuleiro, espalhadas pelo chão junto à cozinha. Não pertenciam à família. Tinham sido retiradas de outra das casas assaltadas no prédio.

    “Estou em choque. Nem no Brasil isto me aconteceu”. Durante pelo menos um mês, João não conseguiu dormir de noite. Ficou traumatizado. Na noite do roubo, estava a dormir com a sua mulher. A filha, bebé, dormia no quarto ao lado. “Não consigo deixar de pensar que entraram na nossa casa connosco a dormir. Andaram pela casa. A nossa filha estava a dormir sozinha no seu quarto.”

    “Por sorte”, não fizeram mal a ninguém. Nem à bebé. Levaram um telemóvel, um tablet, um portátil. O telemóvel do João não estava visível e escapou do assalto.

    Agora, João instalou um alarme com sensor que dispara ao mínimo movimento. Mas ainda não consegue dormir descansado.

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    Foto: D.R.

    Também foi assaltada outra família no mesmo prédio naquela mesma noite. E outras casas sofreram tentativa de assalto.

    Foi o caso da vizinha de cima do João, que naquela noite estava sozinha em casa com o seu bebé de poucos meses. O marido estava ausente nessa noite. Ouviu barulhos na zona das traseiras da casa. Estava alguém a tentar abrir as janelas e a mexer no puxador da porta. Acendeu as luzes e fez telefonemas. Estava apavorada.

    Mas, segundo apurou o PÁGINA UM, mais casas foram assaltadas ou sofreram tentativas de assalto na zona, na mesma noite e em outras noites. O modus operandi é similar: os ladrões saltam os muros que cercam as traseiras dos prédios; depois vão subindo pelas escadas de incêndio, andar por andar, em busca de janelas abertas ou portas mal fechadas. Mas não só. Em alguns casos, basta forçar ligeiramente e as janelas abrem. Nem pequenas janelas de casas-de-banho escapam. Numa das casas assaltadas este ano na zona, a entrada dos ladrões foi feita pela pequena janela da casa-de-banho. Também os andares que não têm estores a proteger as janelas são os mais propensos a ser alvo de intrusão.

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    Foto: D.R.

    O PÁGINA UM solicitou à PSP dados sobre o número deste tipo de assaltos, feitos com as famílias a dormir, que ocorreram este ano em Lisboa. Também quis saber se há zonas mais afectadas por este tipo de roubos ou se as áreas centrais, com prédios mais antigos e janelas menos seguras, são as mais afectadas. Mas ainda aguardamos pelas respostas.

    Na zona em redor da Graça e em Arroios, a situação não é nova. Mas segundo os múltiplos testemunhos que ouvimos, têm vindo a multiplicar-se estes casos de assaltos com as famílias a dormir. Nem todas as famílias fazem queixa na polícia. Até porque algumas só se apercebem que foram vítimas de roubo quando dão por falta de algum dos bens roubados.

    De resto, nestas zonas, nada se pode deixar nas traseiras de casa. Mesmo roupas estendidas no estendal ‘voam’ de madrugada.

    Lisboetas queixam-se de falta de patrulhamento, sobretudo durante a noite. / Foto: D.R.

    Do mesmo modo, ouvimos relatos que apontam que se tornaram comuns os assaltos a viaturas estacionadas na via. As de matrícula estrangeira são mais propensas a ter os seus vidros partidos, já que os ladrões procuram ver se os turistas deixaram algo de valor guardado na bagageira. Mas não há viatura que escape. Todas as semanas há roubos a carros na zona. Além de motas e bicicletas que são levadas ou que são danificadas pelas tentativas de roubo, ficando, por exemplo, sem rodas ou sem selins.

    Também os donos de estabelecimentos comerciais estão fartos dos roubos e dos assaltos. Nas zonas da Graça, Arroios, Anjos e Intendente, os empresários têm falado na existência de um clima de insegurança. Alguns estabelecimentos já foram assaltados várias vezes. “Só na rua da Graça, na mesma noite, houve três montras de lojas partidas por assaltantes”, disse ao PÁGINA UM uma fonte de uma junta da freguesia.

    Foi mesmo criada uma petição, reunindo assinaturas de dezenas de proprietários de estabelecimentos destas zonas, a pedir um reforço de segurança e policiamento. “Abrimos as nossas portas todas as manhãs, sem saber se seremos as próximas vítimas”, lê-se no texto da petição. “Esta onda implacável de crimes não só coloca em risco a nossa segurança e a de nossos colaboradores, mas também abala a confiança e a tranquilidade dos nossos clientes”, adianta.

    Um dos estabelecimentos junto à Graça que foi alvo de assalto este ano. / Foto: PÁGINA UM

    Além da insegurança, a permanência de sem-abrigo e aumento de toxicodependentes na zona tem criado ainda mais problemas de segurança e distúrbios, e contribuído para a degradação de equipamentos e acumulação de lixos. É o caso da situação vivida no Jardim da Cerca da Graça, que foi objecto da primeira reportagem do PÁGINA UM sobre os ‘males’ que afectam a capital.

    “Nunca imaginei que viesse a ter estes problemas em Lisboa. É muito assustador”, lamentou João. A sua família foi uma das duas ocorrências registadas pela PSP após aquela noite fatídica. Foram aconselhados a apresentar queixa apenas para poderem accionar o seguro dos bens roubados. De resto, não esperam vir a recuperar os bens roubados ou que sejam detidos os ladrões que invadiram a sua casa durante a noite.

    A PSP indicou ao PÁGINA UM que só é feita uma investigação e recolhidas provas, como as impressões digitais, se as vítimas assim o solicitarem. “Sempre que ocorre um furto no interior de residência e, caso o lesado manifeste vontade de procedimento criminal, sendo detetados indícios de introdução ilícita e outros elementos probatórios, é acionada uma equipa de Inspeção Judiciária da PSP”.

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    Foto: D.R.

    Nestes casos, a PSP apontou que havia janelas abertas. E que não consta “qualquer referência nos registos policiais à colocação em perigo da vida de pessoas, nomeadamente de crianças”.

    Ou seja, fica-se à espera de uma tragédia para actuar. Até lá, os mesmos ladrões, possivelmente de forma organizada, irão continuar a entrar em casas, com as famílias a dormir, noite após noite.

    Contudo, a PSP “relembra que o conhecimento das ocorrências é fundamental para uma melhor monitorização da criminalidade e adequada afetação de meios”. Dos casos ouvidos pelo PÁGINA UM ocorridos na mesma noite em Junho, só dois reportaram à PSP o sucedido. Assim, “apela-se a todos os cidadãos que comuniquem formalmente quaisquer situações de que tenham sido vítimas ou testemunhas, reforçando o compromisso com a segurança de todos”. Na prática, quando mais queixas houver, maior a probabilidade de ser reforçado o patrulhamento policial.

    Os assaltantes entram nas casas pela noite e madrugada, através das escadas de incêndio. Aproveitam janelas abertas ou forçam ligeiramente janelas ou estores mais frágeis. Chegam a correr risco ao passar por cima de estendais de roupa a uma altura superior a 15 metros. / Foto: D.R.

    Indicou ainda que “a PSP mantém o policiamento regular e de visibilidade, ainda que de forma não contínua, garantindo uma presença preventiva e dissuasora no local, de acordo com os princípios da atuação policial em função do risco e da necessidade identificada”.

    No caso em concreto deste tipo de roubos com invasão de domicílio, “a PSP continuará a monitorizar a situação com atenção, ajustando a sua atuação sempre que os indicadores de segurança assim o justifiquem”.

    Na Graça, Arroios e redondezas, os residentes queixam-se do mesmo: há mais roubos, assaltos e insegurança. E poucas vezes vêm algum polícia ou carro da PSP a passar. Sentem que estão por sua conta e risco.

    an open door with a handle on it

    O PÁGINA UM também colocou questões ao Ministério da Administração Interna e à Polícia Judiciária mas remeteram o tema para a PSP, a quem caberá competências neste tipo de crime.

    Quanto às famílias vítimas de roubo, põem trancas às portas e às janelas, reforçam a segurança e passam a viver com o medo e o trauma. Para os ladrões, a via da impunidade continuará aberta. Nem sequer precisam de usar luvas ou máscaras. Não irão ser identificados nem detidos pelos crimes cometidos e pelos bens roubados.

  • Até os gelados são roubados neste jardim de Lisboa

    Até os gelados são roubados neste jardim de Lisboa

    Seringas, dejectos, lixo. É este o cenário que os visitantes do Jardim da Cerca da Graça encontram quando visitam o espaço, situado numa das zonas centrais da capital. A degradação do jardim acelera a olhos vistos.

    Ali, os assaltos são constantes e mesmo o café quiosque que se situa no local teve de se adaptar a este novo ‘normal’ no jardim, em que os roubos são mais do que frequentes.

    O Jardim da Cerca da Graça, em Lisboa, situa-se junto numa zona adjacente à Igreja da Graça. Foi inaugurado em 17 de Junho de 2015 pelo então presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina. Foi alvo de trabalhos de requalificação em 2019, mas muitos problemas de segurança persistem há anos e têm-se vindo a agravar.

    Depois de receber várias denúncias e alertas, o PÁGINA UM decidiu visitar o local. Desci as escadas que estão na entrada do jardim, junto à Calçada do Monte. À direita, decidi passar pelo café quiosque que existe no jardim. Pedi um café e um gelado. “Esse gelado não temos”, respondeu um dos funcionários. “Não temos gelados quase nenhuns. A arca foi assaltada. Tivemos de a mudar de local. Agora temos de a guardar na casa de banho todas as noites”. Antes, a arca de gelados estava no exterior, dentro de um pequeno abrigo de metal, fechado a cadeado.

    Mas não foram só os gelados a serem levados deste estabelecimento. Barris de cerveja também ‘voaram’. Nem as lâmpadas do quiosque escaparam aos assaltantes. Os clientes habituais, esses começaram a deixar de aparecer.

    Este início de reportagem não augurava nada de bom sobre o espaço. Os assaltos ao café quiosque acabaram por ser o mal menor do que encontrámos naquele jardim lisboeta.

    No parque infantil, o chão encontra-se repleto de dejectos de cães (ou pessoas), pontas de cigarros, lixo e isqueiros. Encontrei num dos escorregas uma pilha de lixo que inclui ‘restos’ de roubos: cartões bancários e de crédito, carteiras abertas. Seringas.

    O que encontrei confirma o que já nos tinha relatado um morador, imigrante brasileiro, pai de uma menina. “Levei uns amigos ao Jardim da Cerca no fim-de-semana e as nossas meninas foram para o escorrega e tem lá um abrigo de madeira. Estava lá um rapaz a consumir droga. Havia seringas. Fugimos dali.”

    O Jardim da Cerca da Graça no dia da sua inauguração. / Foto: D.R.

    Ao lado do escorrega maior, três tendas ocupam o espaço destinado a correrias e brincadeiras de crianças. A mesa redonda existente no parque infantil, outrora usada para piqueniques e festas de aniversário infantis, estava ocupada por três jovens de aparência hippie e descontraída a fumarem drogas ‘leves’. O cheiro similar a ‘haxixe’ sente-se em várias zonas do parque infantil.

    Nas mesas e cadeiras ao lado, na zona de ‘piquenique’, vários homens hindustânicos conversavam. Mas, testemunhas relataram que a zona de piquenique serve sobretudo para grupos consumirem álcool, designadamente ao fim da tarde e à noite. O parque encontra-se encerrado durante a noite, mas continua com actividade, incluindo consumo e tráfico de droga.

    Crianças no parque infantil, havia uma — um menino a brincar na ‘aranha’. Havia ainda duas adolescentes a andar nos baloiços, perto do parque que foi construído para se passear os cães. Junto a elas, nova tenda e uma ‘casa’ improvisada ocupavam um dos cantos do parque para canídeos.

    Caminhando de regresso ao relvado, um monte de cobertores e edredons repousava num dos ‘bancos’ longos de pedra situado junto a uma das ‘ruas’ do jardim. Ao fim dessa ‘rua’, mais tendas.

    Alguns turistas passavam incrédulos pelo jardim, maravilhados com a vista mas a comentar o “triste” estado do jardim.

    Passeando pelo espaço, são visíveis seringas, beatas, isqueiros, garrafas e latas de bebidas. Passaram a fazer parte da ‘paisagem’ daquele espaço verde da cidade. Os moradores deixaram, na sua maioria, de lá ir. “Já lá fiz a festa de anos da minha filha mas hoje não ponho lá os pés”, disse Joana, que reside na Graça. “Está uma vergonha e é perigoso. Não dá para os miúdos andarem no escorrega sequer quanto mais estar no relvado. É uma pena o que aconteceu a este parque”.

    Não há no jardim nenhuma zona que escape à degradação. Mesmo o ‘parque de areia’ para as crianças brincarem está impróprio para uso. Vários objectos, como isqueiros, e lixos diversos, sobretudo beatas, estão misturados com a areia.

    Os testemunhos são idênticos, à medida que ouvimos alguns dos residentes no bairro. “Só os turistas é que aturam aquilo. E alguns jovens e o pessoal que vai passear o cão. Mas não passeiam o cão no parque dos cães; deixam-nos fazer tudo na relva e depois a malta que se sente em cima da porcaria, se quiser.”

    De resto, os testemunhos que ouvimos deram conta de serem frequentes os assaltos no jardim. Os telemóveis são os objectos mais roubados, a par das carteiras e malas de senhora. Mas tudo vale. Alguém mais distraído que se descalçou no relvado, ficou sem os ténis num piscar de olhos.

    A Junta de Freguesia de São Vicente confirmou que recebe queixas frequentes sobre os problemas existentes no Jardim da Cerca da Graça, mas diz ser alheia ao caso, remetendo responsabilidades para a autarquia. O PÁGINA UM enviou ontem perguntas para o gabinete do presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), Carlos Moedas, e para o vereador com o pelouro dos espaços verdes, Rui Cordeiro, e ainda aguardamos pelas respostas.

    O jardim, inaugurado em 17 de Junho de 2015 pelo então presidente da CML, Fernando Medina, já foi alvo de trabalhos de requalificação em 2019. Na pandemia, houve períodos em que chegou a estar aberto apenas a quem tinha cão. Um polícia à porta impedia a entrada de crianças, jovens ou ‘adultos sem cão’. Na altura, o parque da EMEL, junto ao futuro hotel de luxo, serviu de parque infantil para os que queriam jogar à bola, andar de triciclo ou de trotineta.

    Hoje, o jardim é o espelho e o principal sintoma de uma ‘doença’ que tem levado à crescente degradação do bairro da Graça e que tem uma vertente social, ambiental e urbanística.

    São visíveis os amontoados de lixo que cobrem a colina junto à Calçada do Monte. Garrafas, roupas, vidros partidos misturam-se com plásticos, papéis, sacos e embalagens de comida sujas.

    No outro lado da estrada, o muro que ‘desce’ com a Calçada está coberto de grafitis e nas saliências existentes, onde pombos costumam ter ninhos, há agora garrafas de vinho e latas de refrigerantes.

    Os que arriscam deixar os carros estacionados na Calçada do Monte durante a noite encontram, frequentemente, as viaturas com os vidros partidos ou interiores remexidos. De resto, os assaltos a carros, roubos ou tentativas de roubos de motas e bicicletas estacionados na rua tornaram-se comuns.

    Seguindo em direcção à Graça, pela Rua Damasceno Monteiro, avista-se uma ruína, que é o que sobrou da ‘casa de electricidade’ localizada no antigo parque da EMEL, e que foi incendiada recentemente. Depois do incidente, funcionários da CML estiveram no local para ‘limpar’ a zona que tinha sido ocupada por um casal sem-abrigo. O homem passou a ser conhecido na zona por causar distúrbios e extorquir dinheiro a turistas no estacionamento. Antes da limpeza, o local acumulava diariamente objectos, roupas e lixo diverso.

    Também o parque de estacionamento existente do outro lado da rua foi ‘limpo’ na semana passada, tendo sido retiradas as tendas e lixo que se encontravam no local. Mas já lá estão tendas de novo.

    Estes dois parques de estacionamento foram encerrados há cerca de quatro anos para a construção de um hotel de luxo no antigo Quartel da Graça. O hotel, cuja abertura estava prevista para 2022, ainda nem uma telha nova tem em meados de 2025 e o projecto tem sido alvo de contestação popular.

    Com o passar do tempo, e dada a escassez de estacionamento na zona, um dos parques foi reaberto informalmente, não sendo gerido por nenhuma entidade. Os tapumes que se encontram a tapar os antigos parques de estacionamento servem agora de mictório ao ar livre e contribuem para o aspecto degradado da zona.

    “Eles vêm limpar isto e passado uns dias está tudo sujo de novo”, lamentou uma residente no bairro. “Ninguém tem mão nisto e está cada vez pior”.

    O sentimento de insegurança e impunidade instalaram-se. A par do lixo e da permanência de sem-abrigo e toxicodependentes na zona, somam-se os assaltos a quem passa na Calçada do Monte e também aos estabelecimentos comerciais.

    Os agentes da PSP que foram chamados no dia da retirada de tendas do parque de estacionamento ‘informal’, já tinham interagido várias vezes com os sem-abrigo residentes no local. Em breve, serão chamados de novo. As tendas voltarão a ser retiradas. E tudo se irá repetir sem se resolver em definitivo.

    Sem respostas e sem soluções, este bairro lisboeta assiste ao fenómeno esquizofrénico de ver nascer cafés gourmet ao mesmo ritmo em que surgem tendas de sem-abrigo e a insegurança cresce.

    Para as famílias que residem na zona, a realidade é que têm vindo a perder espaços urbanos, como o jardim comunitário onde podiam fazer piqueniques com as crianças. Em troca, ganharam insegurança, lixo nas ruas, a que acresce o movimento contínuo de tuk-tuks. É caso para dizer que a Graça já teve graça, mas parece que agora caiu em desgraça.

    Fotos: PÁGINA UM

  • Florbela Espanca a dobrar: Isaltino pagou 100 mil euros por cópia de escultura

    Florbela Espanca a dobrar: Isaltino pagou 100 mil euros por cópia de escultura

    “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”- assim escreveu Fernando Pessoa. Cerca de nove décadas depois, Inácio Esperança, presidente da Câmara Municipal de Vila Viçosa, diz que viu “a estátua de Florbela Espanca no Parque dos Poetas”, em Oeiras, e decidiu falar com Isaltino Morais para “ter uma igual” na vila alentejana onde a poetisa nasceu em 1894.

    E deste sonho, “nasceu uma permuta” e um acordo que, segundo declarações à imprensa de Inácio Esperança, “passou pela cedência de blocos de mármore alentejano à Câmara de Oeiras”, e a entrega na vila alentejana de uma réplica da estátua do Parque dos Poetas.

    Inácio Esperança ‘sonhou’ e o escultor Francisco Simões ganhou mais 100 mil euros pagos pela autarquia de Oeiras, i.e., pelos contribuintes..

    Mas a história não termina aqui. Apesar da inauguração dessa réplica ter ocorrido no final de Março deste ano, na passada quinta-feira, 17 de Julho, a autarquia de Oeiras celebrou um contrato de 100 mil euros para pagar ao escultor Francisco Simões, autor da escultura original inaugurada em 2003.

    Apesar de a escultura estar ainda abrangida por direitos de autor, por norma o escultor deveria receber entre 5% e 10% do preço de venda, ou seja, do contrato inicial com a autarquia de Oeiras. Em casos de artistas consagrados, ou quando o escultor tem forte controlo sobre a produção, esse valor pode ir até aos 15% ou 20%.

    Original da estátua de Florbela Espanca, no Parque dos Poetas, em Oeiras. / Foto: Vítor Oliveira/ D.R.

    Ora, os 100 mil euros pagos, ainda mais tendo a autarquia de Vila Viçosa cedido os materiais (ou seja, o mármore) será bastante exagerado.

    No contrato assinado na semana passado não é referido sequer o destino da réplica nem que a obra já estava executada há mais de três meses e meio, o que aliás inviabilizaria a adjudicação. No ajuste directo celebrado entre o vice-presidente de Oeiras, Francisco Rocha Gonçalves, e Francisco Simões apenas é referido ser “necessário proteger direitos exclusivos, incluindo direitos de propriedade intelectual”..

    Assim, ficando protegidos os direitos do autor da estátua original, ficam dúvidas se foram protegidos os direitos dos contribuintes à boa gestão dos dinheiros públicos.

    O escultor Francisco Simões tem tido na Câmara de Oeiras um ‘patrono’ de luxo. Pelo menos desde 2009, o escultor ganhou cinco contratos por ajuste directo com aquele município, mas isso nem sequer incluiu ainda as 20 esculturas que fez para o Parque dos Poetas. Certo é que só com a autarquia de Oeiras, facturou 1,3 milhões de euros nos últimos 16 anos.

    Isaltino Morais, presidente da Câmara Municipal de Oeiras. / Foto: D.R.

    Aliás, foi precisamente com Oeiras que o escultor ganhou o seu maior ajuste directo público. Foi em 2012, no montante de 850 mil euros relativo à “Aquisição de um conjunto escultórico em homenagem ao poeta Luis Vaz de Camões e a sua obra Os Lusíadas”.

    No global, em 16 anos – período em que estão disponíveis contratos com o escultor no Portugal Base – Francisco Simões ganhou mais 450 mil euros em ajustes directos com outros seis municípios: Vila Franca de Xira (três contratos), Covilhã (dois), Lisboa, Grândola, Fundão e Boticas. Ou seja, Oeiras representou 75% da facturação do escultor com contratos públicos.