Numa luta com potência e muito metal, manifestantes contra as restrições da gestão da pandemia pelo Governo do Canadá pressionam Justin Trudeau a deixar cair a quarentena obrigatória de camionistas transfronteiriços. O protesto pacífico já aparenta, porém, agregar apoiantes de outras vertentes, tanto assim que já houve donativos para esta causa superiores a nove milhões de dólares canadianos, ou seja, 6,4 milões de euros.
O denominado “Comboio da Liberdade” (Freedom Convoy) que iniciou este fim-de-semana um imprevisível cerco físico e político a Ottawa, capital do Canadá – em contestação da política transfronteiriça de gestão da pandemia – tem estado a alcançar uma adesão popular inesperada e avultada.
Esta madrugada, as verbas recolhidas para apoio dos manifestantes, através da plataforma de crowdfunding GoFundMe, ultrapassaram já os nove milhões de dólares canadianos, ou seja, quase 6,4 milhões de euros. Este valor é quase o dobro daquele que tinha sido angariado até ao dia 25.
Após um breve período de diferimento da administração da plataforma GoFundMe – para garantir a correcta aplicação dos fundos para pagamento dos combustíveis, alimentação e eventualmente dormidas dos camionistas –, já foi libertado o primeiro milhão de dólares canadianos. Até às 7:30 horas desta manhã realizaram-se mais de 112 mil donativos, totalizando 9.077.990 dólares canadianos. Duas dezenas de doações individuais atingiram 10.000 ou mais dólares.
A coluna de camionistas – em número que tem sido alvo de controvérsia – iniciou a travessia pelo Canadá a partir da costa oeste, no dia 23, em direcção à capital, na costa leste. O objectivo é pressionar o governo federal do liberal Justin Trudeau – que abandonou entretanto a cidade para evitar os protestantes – para abandonar a obrigatoriedade de os camionistas transfronteiriços não-vacinados tenham de cumprir sempre uma insustentável quarentena.
Actualmente, o Canadá tem 79% da sua população vacinada contra a covid-19 e os Estados Unidos 64%. No primeiro país, a mortalidade atribuída a esta doença ronda agora, em pleno Inverno (com temperaturas que, esta noite, chegaram aos 17 graus negativos), os 161 óbitos por dia (média móvel), equivalente a 42 óbitos em Portugal. No caso dos Estados Unidos, a mortalidade ronda os 2.175 óbitos (média móvel), equivalente a 66 óbitos em Portugal.
Apesar de os protestos serem dinamizados por camionistas, os apoios populares têm sido crescentes, e mesmo o dono da Tesla, Elon Musk – nascido na África do Sul, mas também canadiano de nacionalidade, por via materna – já deu o seu apoio explícito. Ainda ontem, através do Twitter, publicou uma foto irónica sobre o Freedom Convoy.
Apesar das autoridades canadianas terem já acusado os manifestantes de diversas acções ilegais e de distúrbio, a manifestação dos camionistas ameaça, sim, transformar-se numa contestação generalizada às políticas de gestão da pandemia. Antes de sair da capital, Trudeau garantiu estar-se perante “uma pequena minoria”, muitos dos quais “expressam opiniões inaceitáveis”, acusando-os de não quererem que se continue “a garantir nossas liberdades, nossos direitos, nossos valores como país”.
Porém, os organizadores da angariação de fundos – entre os quais Tamara Lich, uma dirigente do Maverick Party, um partido separatista de direita, mas que oficialmente não está ligado ao evento – têm apelado ao pacifismo das iniciativas, defendendo que as medidas estão a destruir emprego e a vida de muitas famílias, e que as medidas restritivas têm de terminar.
“Não podemos atingir nossos objetivos se houver ameaças ou atos de violência. Este movimento é um protesto pacífico e não toleramos nenhum ato de violência”, salientam na página do GoFundMe, alertando que “a difusão da Internet e a comunicação global instantânea dão mais poder às palavras e ideias do que qualquer arma física, tornando-se uma ferramenta poderosa que pode ser usada contra a tirania e o autoritarismo”. E concluem ainda: “por isso que eles nos censuram; e por isso, devemos permanecer pacíficos, não importa o custo.”
Certo é que, ao fim de dois dias de ocupação, o Comboio da Liberdade “sitiou” o centro de Ottawa, transformando-se num melting pot de frustração e raiva já contra todas as medidas rigorosas de gestão da pandemia.
A CTV News, um canal televisivo canadiano, refere que têm sido escassos os incidentes, sempre sem violência. O município da capital tem sistematicamente indicado os encerramentos de vias rodoviárias no centro da cidade, sobretudo em redor de Parliament Hill, e sempre com um aviso sobre a duração: unknown (desconhecida). Nesta segunda-feira, além de escolas, bibliotecas e outros serviços públicos, a própria sede do município estará encerrada.
Nos próximos dias, não será ainda previsível conhecer um vencedor nesta luta de paciência e política. Será longa, por certo, até porque dinheiro já não falta aos manifestantes.
Graça Freitas tem sido acérrima defensora do secretismo na gestão da pandemia. O PÁGINA UM tem recorrido sistematicamente à Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), um diploma com mais de 25 anos, criado para mudar a postura obscurantista da Administração Pública. Um processo lento, porque a comissão que regula este diploma demora meses a emitir um parecer, que nem sequer é vinculativo. O Tribunal Administrativo pode ter de ser o passo seguinte, mas com custos e maiores adiamentos.
A Direcção-Geral da Saúde (DGS) tem de ceder ao PÁGINA UM todos os pareceres e comunicações dos membros da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC), criada em Novembro de 2020, determinou a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) em parecer emitido na passada quinta-feira.
Embora este parecer da CADA não seja vinculativo – podendo o processo “subir” ao Tribunal Administrativo –, a directora-geral da Saúde, Graça Freitas, fica mais pressionada a mudar a sua atitude de secretismo em redor da gestão da pandemia.
Esta decisão da CADA surge no decurso de um requerimento do PÁGINA UM de Outubro passado – ainda antes do polémico programa vacinal das crianças –, e abrange assim a necessária disponibilização da totalidade dos documentos emanadas pela CTVC, pelos seus membros e pela própria DGS.
Primeira página do parecer da CADA.
Significa assim que, de acordo com o pedido do PÁGINA UM – considerado legítimo pela entidade presidida pelo juiz conselheiro Alberto Oliveira –, a DGS terá de revelar tanto os pareceres da CTVC, sobre todos os assuntos, como também os ofícios enviados por esta entidade ao Ministério da Saúde, “contendo o(s) dito(s) parecer(es) e recomendações, e também todos e quaisquer documentos escritos ou sob a forma áudio ou audiovisual de especialistas consultados pela CTVC”. Também no caso de existirem actas das reuniões, estas devem ser também disponibilizadas.
Essa consulta permitirá, deste modo, e pela primeira vez, um escrutínio transparente e independente desta comissão, que esteve sempre envolvida em polémica, sobretudo a partir do Verão passado, quando a vacinação de menores de idade foi colocada em cima da mesa.
Graça Freitas tem sido uma adepta tenaz e incondicional do secretismo e obscurantismo do Governo em matérias relacionadas com a gestão da pandemia, recusando sistematicamente disponibilizar informação ou responder a pedidos de esclarecimento sobre matérias mais sensíveis.
Nos últimos meses, o PÁGINA UM enviou já uma dezena de requerimentos à DGS, nunca tendo obtido qualquer resposta favorável. A única informação que o PÁGINA UM recebe da DGS são os monótonos diários dos casos, dos óbitos e dos números de vacinação contra a covid-19, de utilidade reduzida para aferir a qualidade da gestão da pandemia.
Mesmo no recente e polémico episódio dos pareceres da CTVC sobre o programa vacinal de crianças, na primeira quinzena de Dezembro passado, Graça Freitas sempre defendeu a não-divulgação de documentos, justificando serem “internos”, e que “o habitual é não serem divulgados”. Somente após pressão política, a DGS acabaria por disponibilizar o parecer integral da CTVC, incluindo outros dois pareceres: um de um grupo de pediatras e outro de uma jurista de bioética.
Graça Freitas, directora-geral da Saúde.
Devido à divulgação integral daqueles documentos administrativos, o PÁGINA UM pôde então revelar, em artigo publicado em 12 de Dezembro passado, que os membros da CTVC admitiam que “os riscos, a longo prazo, associados à administração da vacina, nas idades 5-11 anos, não são ainda definitivamente conhecidos”.
Além disso, ficou também a saber-se que os membros da CTVC, alguns dos quais distintos professores universitários, usaram relatórios não publicados e outros sem revisão científica (peer review), sendo que, em todo o caso, estes abordavam impactes em grupos etários mais velhos.
Perante o conteúdo do parecer da CADA agora conhecido, o PÁGINA UM já solicitou à DGS para indicar hora e local para a consulta da documentação em causa.
Caso Graça Freitas mantenha a postura de secretismo, então apenas o Tribunal Administrativo a poderá obrigar a agir de forma diferente, mais transparente e prestativa perante os cidadãos.
Quando o PÁGINA UM obtiver toda esta documentação da CTVC, irá disponibilizá-la imediatamente no seu servidor, para acesso geral e universal, excepto se a DGS o fizer, entretanto, no seu site.
Parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos determina que Miguel Guimarães deve permitir consulta a todos os documentos relacionados com a doação de máscaras no valor de 380.000 euros por uma farmacêutica norte-americana. A Ordem dos Médicos critica os pedidos do PÁGINA UM, considerando-os que integram “a prática de crimes” contra bastonário e alguns dos médicos seus membros.
A Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) considera que a Ordem dos Médicos “deve facultar o acesso” ao protocolo entre aquela entidade, presidida por Miguel Guimarães, e a farmacêutica Merck, bem como a todos os documentos que comprovem a aplicação de um donativo em género (máscaras FFP2) no valor de 380.000 euros. Este montante é o maior registado em 2021 na Plataforma da Transparência e Publicidade do Infarmed.
Saliente-se que, de acordo com esta base de dados, a Ordem dos Médicos recebeu só no ano passado um total de 448.326 euros de diversas farmacêuticas, um montante jamais visto anteriormente. No período anterior à pandemia, e desde 2013, esta instituição nunca tivera mais de 75 mil euros num ano provenientes deste sector empresarial.
O parecer da CADA – que funciona junto da Assembleia da República e é presidida pelo juiz conselheiro Alberto Oliveira –, enviado hoje e emitido na quinta-feira passada, resulta de um pedido do PÁGINA UM em 10 de Novembro à Ordem dos Médicos.
Primeira página do parecer da CADA sobre o acesso a processo do donativo da Merck à Ordem dos Médicos no valor 380.000 euros.
Nesse requerimento solicitava-se, além do protocolo, “documento administrativo que confirme a recepção do donativo da Merck S.A. para a Ordem dos Médicos em numerário (por transferência bancária ou cheque) ou em género (máscaras propriamente ditas), documento(s) administrativo(s) que comprove(m) a distribuição das ditas máscaras FFP2 pelas diversas entidades, e correspondente identificação das entidades e quantidades, no âmbito da campanha Todos por Quem Cuida, e ainda o “relatório de execução, ou outro qualquer documento administrativo”, sobre a execução plena desta iniciativa.
Recorde-se que esta campanha – fomentada pelas Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos e APIFARMA – pretendia angariar dinheiro, material e equipamentos de combate à pandemia para depois distribuir por “profissionais que estão na linha da frente dos consultórios, hospitais, farmácias, lares e de todos os outros locais”, de acordo com um site específico.
Até ao momento, a campanha terá recebido 1.401.545 euros, que beneficiou 1.238 entidades, mas os promotores não as identificam (nem os montantes financeiros ou géneros recebidos que cada uma recebeu), nada dizem sobre os critérios de distribuição nem se existiram fees arrecadados pelas duas Ordens e pela Apifarma.
A campanha Todos por Quem Cuida contou com o apoio de inúmeras figuras públicas, entre as quais o próprio secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, que prestou um depoimento audiovisual. O site ainda está activo, embora a última informação nas redes sociais (Facebook) seja de Fevereiro do ano passado, e a conta bancária de angariação já foi eliminada, conforme confirmou o PÁGINA UM.
Apesar de o PÁGINA UM ter invocado uma legislação de “arquivo aberto” com mais de 25 anos – promotora da transparência e administração aberta da res publica –, para o processo da CADA, que viria a determinar um parecer favorável às justas pretensões do PÁGINA UM, a Ordem do Médicos teceu um feroz ataque à liberdade de imprensa.
Com efeito, de acordo com este organismo presidido por Miguel Guimarães, o “reclamante [jornalista e director do PÁGINA UM] (…) desde há vários meses, tem vindo a adotar um comportamento suscetível de integrar a prática de crimes [não especificados] para com a Ordem dos Médicos, o Bastonário (…) e alguns dos médicos seus membros, que, no tempo e lugar próprio, serão objecto da respectiva avaliação”.
Financiamento anual (em euros) das farmacêuticas à Ordem dos Médicos desde 2012. Fonte: Infarmed.
A Ordem dos Médicos acusa mesmo o PÁGINA UM de ter uma “atitude de manifesta animosidade”, a qual “pretende instrumentalizar a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos para atingir os seus objectivos”. Como não explicita quais são esses objectivos, presume-se que sejam o direito de informar, previstos, consagrados e defendidos pela Constituição da República Portuguesa.
Tendo chegado a exigir prova documental do estatuto de jornalista ao director do PÁGINA UM – algo que poderia ser confirmado em segundos no site da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista –, a Ordem dos Médicos também defendeu junto da CADA que, “atento até o volume de documentos que têm sido solicitados pelo Requerente, não está obrigada (…) a permitir o acesso ao solicitado”. Saliente-se que o PÁGINA UM apenas fez mais outro requerimento à Ordem dos Médicos nos últimos quatro meses.
No seu parecer, aprovado por unanimidade, a CADA acaba por refutar toda o argumentário da Ordem dos Médicos. Confirmando que o director do PÁGINA UM, que possui a carteira profissional 1786, jamais sequer estava obrigado a provar o seu estatuto de jornalista, a CADA defende que se está perante documentos de “livre acesso”, ou seja, qualquer cidadão os poderia requerer.
Por outro lado, quanto aos alegados pedidos de acesso reiterados – na verdade, dois requerimentos em quatro meses –, a CADA conclui que o comportamento do PÁGINA UM não “evidencia prosseguir finalidades que não se enquadrem nas razões do regime aberto – de garantia da transparência, do controlo da atividade administrativa, da participação dos cidadãos na vida pública – ou se apresenta de tal modo desproporcionado entre a vantagem que concede ao interessado e o sacrifício que impõe à entidade requerida.” Ou seja, como seria de esperar, legitima a acção do PÁGINA UM e do jornalismo de investigação independente integrado num sistema democrático.
António Guterres depôs em campanha que a Ordem dos Médicos quer esconder de escrutínio.
A CADA também relembra à Ordem dos Médicos, face à ameaça da instituição presidida por Miguel Guimarães de se reservar “o direito de continuar a recusar o acesso à documentação (para além daquela que se encontra publicada no seu site)”, que essa postura não pode ser pré-anunciada, mas sim, “sempre devidamente fundamentada”, feita “na sequência da apreciação de cada caso concreto, não sendo, por conseguinte, generalizável para pedidos ainda não formulados”. Ou seja, as recusas da Ordem dos Médicos não podem ser justificadas por caprichos ou baseando-se na falácia do argumentum ad hominem.
Aliás, sobre as queixas da Ordem dos Médicos contra o alegado mau comportamento do PÁGINA UM, a CADA defende que não lhe cabe “pronunciar-se”, por serem assuntos fora do âmbito da questão essencial: o acesso a documentos administrativos.
Como o parecer da CADA não é vinculativo, a Ordem dos Médicos tem agora um prazo de 10 dias para comunicar ao PÁGINA UM “a sua posição final fundamentada”. Em caso de manter a recusa, somente através de uma acção no Tribunal Administrativo o bastonário da Ordem dos Médicos de um país democrático poderá ser mesmo obrigado a abrir as portas à transparência e escrutínio independente. Algo que o PÁGINA UM, se necessário for, fará.
O município de Lisboa tem decidido pagar testes de antigénio aos residentes e não-residentes da capital – que permite assim que qualquer pessoa possa, no limite, fazer 14 testes por mês –, através da contratação de uma empresa ligada à Associação Nacional de Farmácias. Em apenas dois contratos nos últimos nove meses, o município agora liderado por Carlos Moedas gastou 9 milhões de euros, mais do que todas as outras autarquias juntas gastaram para o mesmo fim. Na capital portuguesa vive 5% da população do país.
Desde Maio do ano passado, a Câmara Municipal de Lisboa gastou 9 milhões de euros no financiamento de testes de diagnóstico da covid-19, um montante que daria para quatro anos do Plano de Saúde Gratuito prometido por Carlos Moedas aos munícipes carenciados da capital com mais de 65 anos. Ainda sobraria um milhão para financiamento de um ano da Fábrica de Empresas, o hub criativo de startups anunciado pelo novo presidente da autarquia.
Este gasto foi, até agora, consubstanciado sobretudo em dois contratos, ambos assinados entre a Câmara de Lisboa e a Farminvest – uma empresa pertencente à Associação Nacional de Farmácias –, e que está na base da generalização dos testes gratuitos em farmácias da capital.
Estratégia de testagem massiva em Lisboa não encontra paralelo em outro qualquer município.
Os detalhes dos contratos com a Farminvest, sempre por ajuste directo – ou seja, sem qualquer concorrência nem avaliação de preços de mercado –, não estão ainda sequer no Portal BASE, mas a atender a outro contrato similar concretizado entre aquela empresa e o Instituto de Administração da Saúde da Madeira, cada teste de antigénio deverá ter custado 15 euros.
Este é, aliás, o valor máximo fixado numa portaria do secretário de Estado da Saúde, Diogo Serra Lopes, em 3 de Dezembro passado. O Estado português garante, em qualquer região, a comparticipação integral de quatro testes por mês a cada pessoa.
O primeiro contrato, assinado em 26 de Maio, ainda no tempo de Fernando Medina à frente dos destinos da edilidade lisboeta, a Farminveste recebeu 5.699.885 euros, para garantir testes gratuitos aos munícipes durante seis meses em farmácias aderentes.
Na quarta-feira passada, dia 19, foi concretizado um novo contrato, desta vez com o valor de 3.225.000 euros e uma duração de 120 dias, ou seja, até meados de Maio.
Em termos globais, significa que a Câmara Municipal de Lisboa gastará, nos 300 dias dos dois contratos, uma média diária de quase 30 mil euros.
Recorde-se que a Câmara Municipal de Lisboa decidiu reforçar a “comparticipação” – leia-se, pagamento integral – de testes rápidos de antigénio na rede de farmácias aderentes da Associação Nacional das Farmácias, para além dos quatro testes mensais suportados pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS). E alargou também esse “direito” aos não-residentes. Cada pessoa poderá fazer um teste a cada três dias, o que tem vindo a ser utilizado massivamente sobretudo por jovens na sexta-feira, com ajuntamentos à porta destes estabelecimentos. No limite, qualquer pessoa em Lisboa consegue assim fazer 14 testes de antigénio por mês.
Esta estratégia de testagem massiva em Lisboa é ímpar a nível nacional. Embora desde o início da pandemia se contabilizem dezenas de autarquias que optaram por reforçar a comparticipação do SNS, pagando testes à população, a edilidade da capital portuguesa tem-se esmerado e destacado, oferecendo testes “à discrição”.
Gastos totais e per capita nos 10 municípios com maior despesas em contratos de testes de diagnóstico da covid-19
Contabilizando todos os contratos para a realização de testes PCR e de antigénio (rápidos), incluindo compra de reagentes, constantes no Portal BASE, o PÁGINA UM apurou que 59 Câmaras Municipais gastaram já 16.486.928 euros, sendo que a autarquia de Lisboa foi responsável por quase 55% do total.
A autarquia de Cascais – que tem sido uma das que mais tem gastado na luta contra a covid-19 – pagou 1.925.730 euros em testes de diagnóstico à presença do SARS-CoV-2, enquanto a autarquia do Porto despendeu 1.032.400 euros. Em montantes menos elevados, acima dos 100.000 euros (mas inferiores a 400.000 euros) encontram-se mais 11 autarquias: Albufeira, Amadora, Oeiras, Loulé, Braga, Vila Nova de Gaia, Vizela, Guimarães, Vila Franca de Xira, Loures e Castelo Branco).
Em termos relativos, o gasto da autarquia alfacinha também se salienta em comparação com as demais autarquias, caso se se considere a população de cada concelho, de acordo com os recentes Censos do ano passado. Com efeito, no lote das 10 autarquias que mais gastaram em contratos para testagem desde o início da pandemia, a autarquia de Lisboa pagou 16,5 euros por cada um dos seus 545.923 munícipes, quase o dobro da segunda mais gastadora, Cascais (9,0 euros). O Porto despendeu, até agora, 4,5 euros por munícipe e Vila Nova de Gaia – o terceiro mais populoso concelho do país – nem chega ao um euro por munícipe (74 cêntimos).
Note-se que a autarquia de Sintra, a segunda do país com mais população, não consta da lista de adjudicante em contratos de testes, havendo apenas contratos feitos pelos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento destinados ao rastreio de funcionários.
Tribunal diz que não vale tudo para criticar terapias alternativas – que até são praticadas em hospitais públicos – e condenou o médico João Júlio Cerqueira por difamar Pedro Choy em 18 publicações nas redes sociais durante quase dois anos. O autor do blogue Scimed defendia que Choy deveria “encaixar” as críticas, mas não está disposto agora a “encaixar” a condenação e vai recorrer da sentença. Se transitar em julgado, Cerqueira terá de pagar uma indemnização de 15.000 euros e mais 3.000 euros de multa.
Por difamação agravada – e não por qualquer delito de opinião sobre medicinas alternativas –, o médico João Júlio Cerqueira foi esta manhã condenado em primeira instância a pagar 15.000 euros a Pedro Choy, um dos rostos mais conhecidos da medicina tradicional chinesa em Portugal.
Em causa esteve em conjunto de 18 publicações e republicações deste médico da região do Porto no seu blog e na sua página do Facebook denominados Scimed – e que se auto-intitula “Ciência Baseada na Evidência” – e no seguimento de um escaldante programa Prós & Contras na RTP1 em 1 de Abril de 2019, em que esteve em representação da Ordem dos Médicos. Além de criticar as práticas seguidas por Pedro Choy, Cerqueira adornou-o com epítetos como “desonesto”, “burro”, “ignorante” “vigarista”, “Chop Choy” e “palhaço”, classificando-o ainda de “vendedor de carros em segunda mão” e “costureiro de pele”.
Pedro Choy e João Júlio Cerqueira debateram ideias no Prós & Contras de 1 de Abril de 2019. A partir daí, o médico montou uma campanha de difamação cerrada contra as práticas do acupunctor português de mãe chinesa.
A juíza do processo 7660/19.7T9LSB também aplicou a João Júlio Cerqueira uma multa de 300 dias à taxa diária de 10 euros, perfazendo 3.000 euros. A magistrada avisou que, se o processo transitar em julgado e não for feito o pagamento ou solicitado troca por trabalho comunitário, a multa “é passível de ser convertida em pena de prisão […] cumprida em estabelecimento prisional”.
Apesar de defendido por Francisco Teixeira da Mota – um dos mais prestigiados advogados de direitos humanos e patrono de Rui Pinto, fundador do Football Leaks – e ter contado com testemunhas de relevo (como Carlos Fiolhais, David Marçal e Nuno Lobo Antunes), a juíza considerou que João Júlio Cerqueira não esteve sentado no banco dos réus por discordar das práticas da medicina chinesa. Foi sim pelas expressões reiteradamente usadas ao longo de dois anos.
Nas sessões deste julgamento, iniciado em Setembro do ano passado, João Júlio Cerqueira e as suas testemunhas abonatórias sempre tentaram justificar as expressões, agora consideradas difamatórias pelo tribunal, como sendo um alerta para a suposta perigosidade das terapias alternativas na saúde dos pacientes.
No seu blog e página de Facebook, João Júlio Cerqueira mimoseou Choy com várias expressões consideradas agora difamatórias pelo tribunal.
Porém, a juíza clarificou, durante a sentença, que nunca esteve em julgamento comparar a eficácia entre a medicina convencional e as terapias alternativas, embora tenha relembrado que a acupuntura, mesmo podendo ser criticável, é uma competência acreditada na Ordem dos Médicos e usada em hospitais públicos.
Saliente-se, aliás, que a mãe de João Júlio Cerqueira, a também médica Berta Nunes – actual secretária de Estado das Comunidades e ex-presidente da autarquia de Alfândega da Fé – é uma reputada especialista em Antropologia Médica, tendo lecionado esta disciplina na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. A sua tese de doutoramento, publicada em livro sob o título “O saber médico do povo”, abrange “a cultura e as práticas do cuidado do corpo e da saúde de uma população rural” transmontana, demonstrando a “importância do conhecimento e valorização dos saberes locais pelo saber oficial”, ou seja, pela medicina convencional. Berta Nunes já participou mesmo no conhecido Congresso de Medicina Popular de Vilar de Perdizes, no concelho de Montalegre.
A juíza também não se mostrou sensível aos apelos das testemunhas de Cerqueira de ele usar certas expressões por ser “um homem do Norte”, defendendo que tal suposto estatuto nunca poderia legitimar ofensas. Aliás, a magistrada demonstrou que o médico nortenho tinha consciência de as suas palavras poderem resultar em processos judiciais, razão pela qual recorreu ao Patreon para obter financiamento, junto dos seus apoiantes, para sua defesa em casos de litígio. Saliente-se que a sua página no Facebook tem, neste momento, cerca de 79 mil seguidores.
João Júlio Cerqueira reagiu já à condenação na sua página do Facebook.
Pedro Choy manifestou ao PÁGINA UM alívio e satisfação pelo veredicto, embora não total, alegando que João Júlio Cerqueira teve também intenção de “achincalhar a medicina tradicional chinesa, ainda mais deturpando afirmações minhas”. Choy diz que, “tendo em conta aquilo que tem sido a interpretação dos tribunais para casos deste género, a sentença pode ser vista como uma condenação pesada”.
Embora se queixe do “sofrimento, reclusão, vergonha e noites sem dormir” que todo este processo lhe causou, Pedro Choy tem esperanças de que o médico nortenho “reveja a sua forma de estar no mundo e aprenda a expressar as suas opiniões sem ofender as pessoas”.
O estilo provocatório de João Júlio Cerqueira aparenta, contudo, manter-se incólume mesmo após esta sentença. Nas redes sociais, o médico anunciou esta manhã que “esta página [Scimed] pertence, a partir de hoje, a um criminoso (ainda passível de recurso)… Faz cuidado!”
Em sede de julgamento, João Júlio Cerqueira defendeu que Pedro Choy deveria ter tido “poder de encaixe” perante as suas frases, mas aparentemente não quer “encaixar” a sentença. O seu advogado Teixeira da Mota já anunciou que vai recorrer da condenação para o Tribunal da Relação.
No segundo ano da pandemia, as farmacêuticas “insuflaram” quase 1,3 milhões de euros para os “pulmões” da Sociedade Portuguesa de Pneumologia. A norte-americana Pfizer deu uma “ajuda” de cerca de 370 mil euros, quase tudo para uma campanha generalizada de promoção de uma vacina – a pneumocócica – que a Direcção-Geral da Saúde só recomenda para maiores de 65 anos e grupos de risco.
A Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP) recebeu 320.000 euros da Pfizer, na segunda metade do ano passado, destinada a desenvolver uma campanha de promoção da vacinação contra a pneumonia pneumocócica em pleno processo de vacinação contra a covid-19 entre a população jovem. Este apoio financeiro é o maior jamais concedido a uma sociedade médica por parte da indústria farmacêutica para um só “evento”, de acordo com os dados da Plataforma da Transparência e Publicidade do Infarmed, uma base de dados que compila este tipo de informação desde 2013.
A mensagem da campanha – “Sou maior e quero ser vacinado” – remete exclusivamente para a vacina contra a pneumonia pneumocócica, cuja vacina é comercializada em Portugal sobretudo pela Pfizer (sob a marca Prevenar) e, em menor quantidade, pela Merck (sob a marca Pneumovax). Porém, a sua leitura remetia de imediato para a vacinação contra a covid-19. A campanha decorreu até à segunda quinzena de Dezembro, recorrendo aos órgãos de comunicação social, a outdoors e ao online. Os canais televisivos e as rádios acabaram por beneficiar bastante com os spots publicitários.
Campanha decorreu entre Setembro e Dezembro do ano passado
Saliente-se que a Pfizer já assegurou em Portugal a venda de vacinas contra a covid-19 no valor de 88.909.898 euros, de acordo com o Portal Base, mas em virtude da redução da actividade gripal – que “abre portas” para infecções bacterianas, como a causada pelo Streptococcus pneumoniae –, as vendas da sua vacina pneumocócica têm-se reduzido, embora nunca tenham ultrapassado muito os cinco milhões de euros por ano.
Ou seja, o financiamento da Pfizer à SPP para o desenvolvimento da campanha de promoção da vacinação pneumocócica – que a Direcção-Geral da Saúde (DGS) apenas recomenda a maiores de 65 anos e a grupos de risco maiores de 18 anos –, surge algo desfocada face aos montantes envolvidos e à população-alvo (toda a população) que supostamente pretende alcançar.
A pneumonia pneumocócica foi a causa de morte de 4.700 pessoas em 2019, mas 96% dos óbitos ocorreu em maiores de 65 anos. Na população com menos de 35 anos – que representa 34,9% da população portuguesa – registaram-se 12 mortes (0,26% do total), seis das quais com menos de 15 anos.
Um outro aspecto incomum desta campanha da SPP – presidida por António Morais, pneumologista do Hospital de São João (Porto), e que tem Filipe Froes como coordenador do Grupo de Trabalho de Infecciologia Respiratória – é o reforço da parceria comercial com a Pfizer.
Em Portugal, esta farmacêutica atribuiu verbas para marketing às sociedades médicas através de duas subsidiárias: a Pfizer Biofarmacêutica Sociedade Unipessoal e a Laboratórios Pfizer. Entre 2017 e 2019, ambas deram à SPP apenas uma média anual de 10.183 euros. No primeiro ano da pandemia (2020), esse valor subiu para apenas 12.000 euros. No ano passado (2021) disparou para 358.500 euros – ou seja, cerca de 30 vezes mais do que o habitual.
Filipe Froes coordena o Grupo de Trabalho de Infecciologia Respiratória da SPP.
Além da campanha de promoção da vacinação em 2021, a Pfizer atribuiu também um inédito apoio à SPP de 35.000 euros para o 37º Congresso Nacional de Pneumologia, que se realizou em Novembro passado na cidade de Albufeira, e que registou até um surto de covid-19 que atingiu 15 médicos, conforme noticiou o Observador.
O valor atribuído pela Pfizer num só ano à SPP não encontra paralelo em nenhum outro ano nem com outra qualquer farmacêutica. Antes de 2021, o valor máximo conseguido por esta sociedade médica de uma só farmacêutica situava-se em 205.338 euros, atribuído em 2017 pela italiana A. Menarini.
O ano de 2021 foi, aliás, bastante favorável financeiramente para a SPP, que parece ter encontrado um filão monetário com o surgimento da pandemia da covid-19. Embora fosse já uma das sociedades médicas portuguesas mais beneficiadas pelas farmacêuticas – que ajustam as verbas de marketing em função da facturação –, o ano passado foi excepcional: 1.298.422 euros, de acordo com o levantamento exaustivo feito pelo PÁGINA UM, tendo assim ultrapassado pela primeira vez a fasquia de um milhão de euros. Em relação ao ano anterior (2020), o crescimento destas receitas foi de 65%.
A Pfizer foi, com grande destaque, a farmacêutica mais generosa para a SPP em 2021, mas mesmo assim ainda nem sequer atinge o pódio no período 2017-2021. A alemã Boehringer Ingelheim ocupa a primeira posição, tendo doado 524.668 euros nos últimos cinco anos. Por exemplo, para patrocínio do recente Congresso Nacional de Pneumologia foram 113.400 euros. Segue-se a helvética Novartis, que deu uma média de quase 91 mil euros por ano no último quinquénio, e um total de 454.572 euros no período. Fecha o pódio de “mecenas” da SPP a portuguesa BIAL com 446.181 euros ao longo dos últimos cinco anos.
Verbas concedidas pelas farmacêuticas e empresas de produtos médicos à Sociedade Portuguesa de Pneumologia entre 2017 e 2021 (Fonte: Infarmed)
No total, de entre 30 farmacêuticas e empresa de produtos médicos, a SPP recebeu 4.349.011 euros no período 2017-2021.
No âmbito da investigação que o PÁGINA UM está a desenvolver sobre o financiamento das sociedades médicas, a SPP não mostrou disponibilidade, mesmo com insistência, para responder a um conjunto de questões nem quis fornecer informação financeira sobre as suas relações comerciais com farmacêuticas.
Um longo parecer do Conselho Superior da Magistratura, advoga que os jornalistas têm de justificar qual a finalidade dos documentos que desejam consultar para que se pondere uma autorização. A autora desta temerária tese num país democrático é filha de Vítor Manuel Wengorovius, que durante mais de duas décadas defendeu a imprensa como advogado do Sindicato dos Jornalistas e foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade.
Em 27 de Fevereiro de 2020, a juíza Ana Sofia Wengorovius – adjunta do Conselho Superior de Magistratura (CSM) – considerou, em apenas três páginas, que esta entidade nem sequer deveria pronunciar-se sobre um projecto de lei para a regulamentação da actividade de lobbying e para a criação de registo de transparência e de mecanismo de pegada legislativa.
Menos de dois anos depois, a mesma juíza – destacada como Encarregada da Protecção de Dados do CSM – deu-se ao trabalho de elaborar um extenso parecer de sete páginas para exigir que o PÁGINA UM justificasse “a finalidade do acesso” a documentos administrativos relacionados com a Operação Marquês. Ou seja, que justificasse aquilo que é o direito e o dever de um jornalista: informar sem amarras num país democrático, sem censura nem condicionalismos. Como argumento, a juíza expôs seis diplomas legais, a Constituição, um acórdão judicial e ainda um regulamento e uma directiva europeia.
Conselho Superior da Magistratura continua a lutar para não ceder documentos administrativos, exigindo que jornalistas expliquem os motivos para a consulta.
Em causa estava somente um habitual pedido de um jornalista para consulta de documentos administrativos, neste caso o processo de averiguação sumária nº 2018-346/AV. Em concreto, trata-se do inquérito do CSM relativo aos procedimentos que nortearam a distribuição do processo da Operação Marquês em 2014 – então entregue sem sorteio ao juiz Carlos Alexandre –, que o ex-primeiro-ministro José Sócrates quis ver no ano passado. Numa primeira fase, os conselheiros do CSM recusaram essa pretensão, alegando “segredo de justiça”, mas Sócrates apresentou queixa à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), que lhe veio a dar razão em 13 de Outubro do ano passado, como o PÁGINA UM deu em primeira-mão.
Considerando que “um documento administrativo [a averiguação sumária nº 2018-346/AV], ainda que possa ser utilizado em processo judicial, não perde, só por isso, a sua natureza de documento administrativo”, a CADA – presidida pelo juiz desembargador Alberto Oliveira – recomendou que o CSM entregasse ao antigo governante uma cópia daquele inquérito à Operação Marquês, o que terá sucedido no mês passado.
Perante o parecer da CADA, o PÁGINA UM decidiu também solicitar, no passado dia 2 de Novembro, o inquérito sobre a distribuição da Operação Marquês – ou seja, os mesmos documentos concedidos a José Sócrates –, bem como o “acesso aos documentos administrativos elaborados na [sua] sequência”. Após uma troca de e-mails, em que o PÁGINA UM foi logo convidado a “esclarecer qual a finalidade do acesso e da recolha” dos documentos solicitados, o CSM acabou por elaborar um parecer, assinado por Ana Sofia Wengorovius.
Ana Sofia Wengovorius, juíza de direito e adjunta do CSM (foto do site da CSM)
Esta juíza – que de acordo com uma nota curricular, em Diário da República, concluiu a licenciatura em Direito na Universidade Lusíada (privada) em 1994 com 13 valores – defende que, mesmo após o arquivamento de um inquérito – que não teve qualquer sanção –, este é “confidencial”, porque se deve ter “em vista assegurar a defesa dos direitos fundamentais de personalidade como o direito ao bom nome e à reputação”, invocando a Constituição.
Nem sequer justificando como o acesso a documentos administrativos por parte de um jornalista poderia violar ou afectar “os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação” – conforme estabelece o tal artigo da Constituição –, Ana Sofia Wengorovius salienta ainda que, para alguém poder consultar o inquérito, teria obrigatoriamente de invocar um “interesse atendível ou legítimo”.
Ora, o PÁGINA UM invocou, implicita (porque o pedido foi feito por um jornalista) e explicitamente (repetindo, por palavras, quais as funções de um jornalista). Com efeito, não apenas a Constituição Portuguesa, a Lei da Imprensa e o Estatuto dos Jornalistas concedem direitos inalienáveis de acesso livre à informação para um jornalista como também a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos determina que “todos, sem necessidade de enunciar qualquer interesse, têm direito de acesso aos documentos administrativos, o qual compreende os direitos de consulta, de reprodução e de informação sobre a sua existência e conteúdo.”
Mesmo no caso de documentos com dados nominativos – como sejam moradas, e-mails, números de cartão de cidadão ou fiscal, mas não abrangendo o nome –, a lei concede legitimidade a um jornalista, uma vez que este “demonstra ser titular de um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante”. Mas mesmo que assim não fosse, a legislação determina que haja “comunicação parcial sempre que seja possível expurgar a informação relativa à matéria reservada.” Ou seja, no máximo, se o inquérito tivesse, por exemplo, o número de telefone pessoal de alguém, bastaria “apagar” essa informação e libertar o acesso.
Primeira página do parecer do CSM enviado ao PÁGINA UM.
No seu parecer, Ana Sofia Wengorovius faz também interpretações pouco ortodoxas do Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD). Com efeito, a juíza chega a invocar como justificativa da não-cedência sem condições de documentos administrativos a um jornalista, um artigo da lei de execução do RGPD que estipula exactamente o contrário daquilo que ela defende.
De facto, esse normativo destaca sim que “a proteção de dados pessoais (…) não prejudica o exercício da liberdade de expressão, informação e imprensa, incluindo o tratamento de dados para fins jornalísticos e para fins de expressão académica, artística ou literária”. Ou seja, o direito de informação está acima da protecção de dados pessoais, mesmo se existem depois normas que devam ser cumpridas, mas que um jornalista que cumpra princípios deontológicos sabe bem.
De facto, as normas do RGPD apenas consubstanciam aquilo que o Código Deontológico dos Jornalistas já prevê, como por exemplo, o respeito, quando estejam em causa dados pessoais, pelo “princípio da dignidade humana previsto na Constituição da República Portuguesa, bem como os direitos de personalidade nela e na legislação nacional consagrada”, ou ainda as restrições de divulgação de “moradas e contactos, à excepção daqueles que sejam de conhecimento generalizado”.
Porém, esses aspectos nem sequer estarão em causa nos documentos solicitados pelo PÁGINA UM que, enfim, se referem a um simples inquérito do CSM, e já arquivado e sem sanções, no decurso da Operação Marquês.
Certo é que, apesar de uma reclamação do PÁGINA UM a considerar ser absurdo explicar, numa democracia, as razões de um jornalista – que se identifica como tal – para consultar documentos administrativos, Ana Sofia Wengorovius manteve a sua posição num segundo parecer, mais curto, assinado em 28 de Dezembro passado.
A juíza – numa longa frase sem vírgulas – diz que “em face da resposta apresentada explicito que o requerente não atentou nos fundamentos do parecer querendo transpor o seu pedido para o campo dos documentos administrativos em geral sem curar na especificidade dos documentos constantes do procedimento especial de inquérito e escudando-se num parecer emitido pela CADA numa situação em que o requerente era parte nos autos o que não sucede no caso pois ainda que possa invocar as prorrogativas de ser jornalista não deixa de ser um terceiro em relação ao processo.” (sic)
Saliente-se que a Lei do Acessos aos Documentos Administrativos abrange todos os documentos administrativos independentemente da entidade pública, não discriminando qualquer tipo. Apenas os documentos classificados como “segredo de Estado ou por outros regimes legais relativos à informação classificada”, com legislação própria e procedimentos especiais – têm restrições de acesso, o que não é o caso de um simples inquérito administrativo de uma entidade como o CSM.
Nesse seu segundo parecer, Ana Sofia Wengorovius mostra mesmo pretender condicionar o livre exercício da actividade dos jornalistas, ao defender que “o acesso e/ou recolha solicitada só é lícito se forem recolhidos apenas os dados estritamente necessários para uma finalidade reconhecida por Lei que o legitima, pelo que só conhecendo a finalidade se pode fazer a ponderação que a lei impõe”.
Ora, como o PÁGINA UM se recusa a informar a juíza ou o CSM sobre se vai, ou como vai, fazer uma notícia com base em documentos que ainda nem sequer consultou, seguiu uma queixa para a CADA, sobretudo para defesa da liberdade de imprensa e contra obstáculos ao seu exercício pleno.
Ana Sofia Wengorovius é filha de Vítor Manuel Wengorovius – fundador, com Jorge Sampaio, do Movimento de Esquerda Socialista (MES) –, que foi advogado do Sindicato dos Jornalistas durante mais de duas décadas, entre 1970 e 1991, tendo falecido em 2005. Considerado um homem “generoso, solidário, tribuno empolgado”, Wengorovius foi agraciado, em 1998, com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade.
O mediático pneumologista do Hospital Pulido Valente, que acumula com a coordenação do gabinete de crise da Ordem dos Médicos para a pandemia, é um dos médicos portugueses com maiores ligações à indústria farmacêutica. Mas tem mantido o seu estatuto de consultor da Direcção-Geral da Saúde porque alegadamente nunca ultrapassou o limite financeiro previsto por lei. O PÁGINA UM desvenda agora a contabilidade pessoal e empresarial de Filipe Froes – incluindo os montantes pagos por 22 farmacêuticas. E revela ainda que ele entrou em incompatibilidade a partir deste ano.
O pneumologista Filipe Froes – uma das figuras mais mediáticas durante a pandemia – está em risco de perder o seu estatuto de consultor da Direcção-Geral da Saúde (DGS) por ultrapassar o limite de 50.000 euros anuais pagos por farmacêuticas no último quinquénio (2017-2021). Essa apetecível função, embora não remunerada, permite a certos profissionais de saúde acederem directamente às autoridades de Saúde e integrar grupos de trabalho ou equipas com poder de decisão em matérias normativas, abrindo assim possibilidades para as farmacêuticas exercerem “lobby” e terem eventualmente acesso a informação privilegiada.
Para evitar conflitos de interesse, um decreto-lei de 2014 estabeleceu, entre outros impedimentos, que estes consultores não podem receber mais de 50.000 euros por ano provenientes de “empresas produtoras, distribuidoras ou vendedoras de medicamentos ou dispositivos médicos”. Porém, esse limite máximo deve ser calculado com base na média móvel de cinco anos, embora o diploma legal não estabeleça quem ou como tal se inspecciona. Cabe a cada consultor, voluntariamente, atestar por escrito, num formulário, com uma simples cruz, que não tem qualquer incompatibilidade legal.
Mostra-se, porém, notório que Filipe Froes – auferindo verbas tanto em nome individual como da sua empresa Terras & Froes, da qual é gerente desde 2012 – tem procurado, nos anos mais recentes, “gerir” os montantes recebidos das farmacêuticas para nunca ultrapassar o limite legal, embora esse exercício contabilístico possa tornar-se impossível de manter face aos montantes que recebeu em 2021. Pelo menos se houver oficialmente cruzamento de dados contabilísticos. A última declaração de ausência de incompatibilidades que Filipe Froes entregou na DGS data de 10 de Maio de 2021.
Filipe Froes, durante um webinar em Abril de 2021, patrocinado pela Ascensia Diabetes Care, Boehringer Ingelheim, Roche, Gasomed e Medtronic, intitulado “Um ano de covid-19 ou o bom, o mau e o vilão”.
De acordo com a investigação do PÁGINA UM, Filipe Froes ultrapassou, desde 2013, a fasquia dos 50.000 euros anuais por três vezes (2016, 2018 e 2021), mas quando calculada a média móvel de cinco anos fica sempre ligeiramente aquém desse limiar.
Através dos valores registados no Portal da Publicidade e Transparência do INFARMED, a média móvel de cinco anos dos recebimentos de Filipe Froes foi de 35.949 euros em 2017, de 44.043 euros em 2018, de 45.125 em 2019, de 45.457 em 2020, e de 45.349 em 2021. Ou seja, por aqui, até agora, nunca terá ultrapassado o valor “proibitivo”. Mas por uma “unha negra”.
Ora, mas os valores constantes do portal do INFARMED referem-se tanto a verbas recebidas por Filipe Froes em nome individual como pela sua empresa Terras & Froes. E é no cruzamento contabilístico dessas duas “fontes” que se observam discrepâncias que podem, por um lado, indiciar “contabilidade criativa”, e, por outro lado, prenunciam, para já, uma incompatibilidade para o quinquénio 2017-2021.
Com efeito, analisando todos os relatórios e contas anuais da Terras & Froes entre 2016 e 2020 (o último ano acessível) – como o PÁGINA UM fez –, as receitas (prestações de serviços) obtidas foi, para este quinquénio, de 47.271 euros. Assim, caso Filipe Froes venha a contabilizar na sua empresa os montantes pagos pelas farmacêuticas, e registado no portal do INFARMED, durante o ano de 2021 (56.097 euros), a média móvel passará a ser, para o quinquénio 2017-2021, de 50.381 euros. Ou seja, superará então os 50.000 euros, resultando assim numa incompatibilidade. Nessas circunstâncias, Froes não se pode manter como consultor da DGS.
Contudo, não será de estranhar que Filipe Froes tente contornar esse “problema” como em anos anteriores parece já ter feito. De facto, no seu caso particular, observam-se grandes discrepâncias entre os valores registados no Portal da Transparência e Publicidade (onde se obtém supostamente os pagamentos a título individual e os feitos à sua empresa) e aqueles que contam nas contas da Terras & Froes.
Por exemplo, em 2016, Froes declarou que recebeu 56.637 euros ao INFARMED das farmacêuticas, mas na contabilidade oficial da sua empresa aparecem apenas receitas anuais de 40.547 euros. Em 2020, Froes declarou no INFARMED apenas ter recebido 41.474 euros das farmacêuticas, embora as suas contas empresariais apontem 74.293 euros de proveitos, isto é, uma diferença de quase 33 mil euros.
Receitas (em euros) de Filipe Froes declaradas pela sua empresa Terras & Froes e proveitos registados na Plataforma da Transparência e Publicidade do INFARMED.
Recorde-se que, em Novembro passado, o semanário Novo anunciou que Filipe Froes estaria a ser alvo de um inquérito de averiguações pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde sobre as suas relações profissionais e financeiras com as farmacêuticas. As conclusões ainda não foram divulgadas.
Apesar de trabalhar em exclusividade no Serviço Nacional de Saúde (SNS), Filipe Froes é um dos médicos portuguesas com maiores relações com as farmacêuticas, que aumentaram com a sua exposição pública no decurso da pandemia. Além de coordenar uma unidade de cuidados intensivos do Hospital Pulido Valente, este pneumologista também lidera o Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos para a Covid-19 e tem, nos últimos dois anos, como consultor da DGS, participado activamente na elaboração de normas técnicas relacionadas com a pandemia.
De acordo com o Portal da Transparência e Publicidade, Froes estabeleceu, desde 2013, um total de 263 contratos comerciais, em seu nome ou na Terras & Froes, envolvendo 22 farmacêuticas. O montante global já alcançado é de 380.932 euros, o que representa um “salário” médio mensal superior a 3.500 euros nos últimos nove anos. Nos dois anos da pandemia (2020 e 2021), o pneumologista encaixou uma média mensal de 4.065 euros, superior ao que ganha como médico do SNS.
No ano passado, este médico – que, como consultor da DGS, é um dos responsáveis pela determinação das terapêuticas contra a covid-19 – teve como principal beneficiário a Merck Sharp & Dohme, que lhe pagou 22.825 euros, sobretudo por palestras e webinars. Por cada uma, Filipe Froes recebeu valores que rondam os 1.100 euros, e mesmo mais, por vezes.
Verbas recebidas por Filipe Froes, por ano e farmacêutica. Fonte: INFARMED
Saliente-se que a Merck abandonou, há alguns meses, a “corrida” para as vacinas contra a covid-19, apostando agora sobretudo na comercialização de um anti-viral, o molnupiravir, já aprovado nos Estados Unidos e Reino Unido, mas ainda a aguardar decisão da Agência Europeia do Medicamento.
Filipe Froes já teceu elogios a este medicamento – sem nunca emitir qualquer conflito de interesses. Por exemplo, em declarações em Novembro ao jornal Nascer do Sol, Froes considerou que o novo fármaco é “sem dúvida (…) um game-changer”, um complemento à vacinação, e garantindo também que “reduz a carga viral e reduz em 50% a gravidade da doença”.
Apesar do reforço em 2021 do contributo da Merck nas finanças pessoais e empresariais de Filipe Froes (85.322 euros recebidos desde 2013), a Pfizer continua a ser a número um. Embora nos últimos dois Froes tenha auferido apenas 12.196 euros desta farmacêutica, o pecúlio acumulado desde 2013 é substancial: 134.574 euros, com o ano de 2016 a atingir os 47.544 euros). No ano passado, Filipe Froes realizou pelo menos 13 palestras financiadas por esta empresa norte-americana, quase sempre tendo a covid-19 como tema central.
A terceira farmacêutica mais lucrativa para Filipe Froes é a Bial, que desde 2013 lhe rendeu 47.339 euros. A farmacêutica portuguesa, sedeada na Trofa, tem interesses comerciais na área da pneumologia (doença pulmonar obstrutiva crónica e asma brônquica). Um dos apoios mais substanciais que o pneumologista recebeu destinou-se à sua participação no CHEST Annual Meeting que se realizou em Outubro de 2019 em Nova Orleães, nos Estados Unidos. Froes embolsou 9.960 euros e mais 50 cêntimos.
A francesa Sanofi – a principal produtora de vacinas contra a gripe –, a anglo-sueca AstraZeneca – uma das produtoras de vacinas contra a covid-19 –, a norte-americana Gilead Sciences e a alemã Bayer Portugal também têm sido relevantes “clientes” de Filipe Froes. No caso específico da Gilead Sciences, as mais recentes colaborações de Filipe Froes são polémicas. O pneumologista integrou o conselho consultivo (advisory board) do fármaco remdesivir – um anti-viral criado para tratamento do ébola, e cuja eficácia contra a covid-19 foi prometida, mas que se manifestou um logro –, enquanto tinha poderes de aconselhamento para a sua aplicação em doentes. A própria Organização Mundial de Saúde (OMS) acabou mesmo por fazer uma recomendação contra o seu uso em Novembro de 2020. Contudo, Filipe Froes sempre se mostrou favorável, desde o início da pandemia, ao seu uso, e a Comissão Europeia comprometeu todos os Estados-membro a fazerem compras massivas à Gilead. No caso português, a DGS adquiriu, em finais de 2020, doses no valor de cerca de 20 milhões de euros.
Por esta prestação à Gilead, desenvolvida ao longo de 2020, Froes recebeu 4.330 euros, a que acresceram mais 3.690 euros em webinares sobre este fármaco. Mesmo depois dos conselhos contrários da OMS, Froes nunca se cansou de elogiar o remdesivir, e de mantê-lo, nas normas da DGS, como um medicamente a usar. Por exemplo, em Março de 2021, no âmbito do webinar “Avanços no tratamento antiviral da covid-19”, patrocinado pela Gilead, este médico (que recebeu 1.230 euros por este evento) manteve-se um adepto incondicional. Em declarações à revista digital Médico News, sem referir o seu estatuto de conselheiro da Gilead, o pneumologista garantia que “vários estudos publicados em revistas médicas de elevado factor de impacto têm documentado a utilidade do remdesivir em subgrupos de doentes hospitalizados”.
O PÁGINA UM tentou obter comentários de Filipe Froes sobre os seus financiamentos da indústria farmacêutica, mas não obteve resposta.
A ex-presidente do INFARMED, a pediatra Maria do Céu Machado, tem sido o rosto da acusação da líder do extinto movimento Médicos pela Verdade, Margarida Oliveira. Por alegadas violações deontológicas quer aplicar uma suspensão de três meses à sua colega. Porém, enquanto decorria o processo disciplinar, a mulher do falecido neurologista João Lobo Antunes deu consultadoria pontual à Janssen, uma das produtoras das vacinas contra a covid-19. E foi também júri de um prémio patrocinado por uma farmacêutica, ao lado do bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, e de Pedro Rebelo de Sousa, irmão do Presidente da República.
A relatora do processo disciplinar da Ordem dos Médicos que castigou a anestesiologista Margarida Oliveira – acusada de “negacionismo” por integrar o extinto movimento “Médicos pela Verdade” e de violar uma dezena de normas do Regulamento de Deontologia desta profissão – tem ligações à indústria farmacêutica e, no ano passado, chegou a prestar serviços de consultadoria à Janssen Cilag, uma das produtoras de vacinas contra a covid-19. O acórdão final, datado de 7 de Dezembro do ano passado, foi divulgado no final da passada semana, podendo ser consultado aqui.
De acordo com a investigação do PÁGINA UM, Maria do Céu Machado – que foi casada com o cirurgião João Lobo Antunes, falecido em 2016 – tem colaborado pontualmente com empresas farmacêuticas, após a sua saída do INFARMED, a que presidiu entre 2017 e 2019.
Pela consulta do Portal da Transparência e Publicidade desta autoridade nacional que regula os medicamentos, a pediatra Maria do Céu Machado – também professora jubilada da Faculdade de Medicina de Lisboa e com um vastíssimo currículo académico e institucional – apresenta em 2021 um registo de recebimento por “serviços de consultoria” não especificados à Janssen, no valor de 700 euros, com duração e âmbito incertos.
Também recebeu, naquele ano, montantes de mais três farmacêuticas: Lilly Portugal (600 euros), Ferrer Portugal (130 euros para participação no Congresso Português de Cardiologia) e ainda 1.550 euros pagos pela Boehringer Ingelheim por ser membro do júri no “BI Award for Innovation in Healthcare”.
Note-se que estes montantes, constante numa base de dados do INFARMED, podem não reflectir todos as vantagens económicas que envolvem médicos e farmacêuticas, uma vez que basta ser usada uma empresa para que seja difícil rastrear o beneficiário final.
Aliás, no caso específico dos montantes concedidos pela Boehringer Ingelheim para o júri daquele prémio, apenas Maria do Céu Machado e o psiquiatra Júlio Machado Vaz registaram um valor no Portal da Transparência e Publicidade. Sobre outros pesos-pesados da Medicina e influencers da política de Saúde do país que também foram membros do júri deste prémio, nada consta. São os casos, entre outros, de Miguel Guimarães, bastonário da Ordem do Médicos; Alexandre Lourenço, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares; Ana Paula Martins, bastonária da Ordem dos Farmacêuticos; Carlos Robalo Cordeiro, catedrático de pneumologia da Faculdade de Medicina de Coimbra; David Marçal, comunicador de Ciência da Universidade Nova de Lisboa; Maria de Belém Roseira, ex-ministra da Saúde; e ainda Pedro Rebelo de Sousa, irmão do actual Presidente da República.
Maria do Céu Machado consta da lista de membros do júri de um prémio da Boehringer Ingelheim, ao lado do bastonário da Ordem dos Médicos. Recebeu 1.500 euros pela tarefa.
Estas ligações não terão sido consideradas incompatíveis pela própria Maria do Céu Machado, que liderou um grupo de 17 membros do Conselho Disciplinar Regional do Sul da Ordem dos Médicos. Numa primeira decisão, em Fevereiro do ano passado, pretendeu suspender Margarida Oliveira por um período de seis meses. Agora, por recurso, estipula uma pena disciplinar de três meses.
Em causa, neste polémico processo, iniciado em finais de 2020 após três denúncias – entre as quais a de Pedro Abreu, ex-presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior –, estão, segundo a relatora Maria do Céu Machado, “conversas na rede social Telegram” em que Margarida Oliveira terá aconselhado “terceiros nas formas de eliminação de ‘restos virais’ dos locais onde é feita a recolha das amostras para testagem (PCR) ao vírus SARS-CoV-2”, e a sua participação em Janeiro do ano passado “numa manifestação, junto da Assembleia da República, onde proferiu diversas declarações contra a DGS [Direcção-Geral da Saúde], a Ordem dos Médicos, os testes RT-PCR e as Vacinas”.
Margarida Oliveira defendeu, segundo os autos, que “a dita ‘receita’ para a lavagem das fossas nasais e da orofaringe (…) é na sua essência uma recomendação de higiene e de hábitos de vida saudável a que qualquer médico está obrigado”. E, apesar de ser acusada de “negacionista”, sempre assumiu que “há efetivamente um surto epidémico associado a um agente virológico”, embora contestando o conceito de pandemia aplicado à covid-19 e muitas das medidas da DGS. Na mesma linha estiveram os médicos que testemunharam a favor desta anestesiologista, entre os quais Fernando Nobre, também ele alvo de um processo disciplinar.
Margarida Oliveira, anestesiologista de uma clínica privada, tem a Ordem dos Médicos “à perna” desde o final de 2020. Processo deverá arrastar-se até aos tribunais.
O fundador da AMI, que tem sido uma das poucas vozes críticas à gestão da pandemia, comparou mesmo o processo contra Margarida Oliveira aos processos inquisitoriais dos séculos passados: “No julgamento da inquisição, ele [Galileu] contestava aquela ideia peregrina que tudo girava à volta da Terra e para não ir parar à fogueira ele até, enfim, deu o dito por não dito, perjurou-se, não obstante à saída disse, no entanto, a Terra gira à volta do Sol”, afirmou Fernando Nobre, transcrito nos autos, defendendo o arquivamento por estar apenas em causa um delito de opinião.
Os testemunhos dos defensores, ouvidos quase como pro forma, acabaram em saco roto. Maria do Céu Machado entendeu “que tem a médica arguida liberdade para ter as suas próprias convicções, todavia tais convicções devem estar associadas a um dever de cuidado no aconselhamento médico que faz à comunidade”. A pediatra defendeu também, por escrito, que ao médico não cabe proferir declarações “sobre a credibilidade em tratamentos, vacinas e testes numa situação em que impera o princípio da precaução em saúde pública.”
Porém, Maria do Céu Machado entra aqui em contradição com o que praticou durante o ano passado, pois prestou, por diversas vezes, declarações sobre a credibilidade das vacinas em crianças, mas nesses casos sempre de forma muito favorável. Por exemplo, em Agosto passado, defendeu no Público “a vacinação de jovens saudáveis a partir dos 12 anos só com uma dose”. E ainda mais falou, no mês passado, em entrevista ao Diário de Notícias, quando estalou a polémica sobre o parecer da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 sobre as crianças, com alguns pediatras a aconselharem prudência ou a desaconselharem mesmo o avanço do programa vacinal para esta faixa etária. Recorde-se que, conforme revelou recentemente o PÁGINA UM, ainda não se registou ainda qualquer morte por covid-19 em crianças portuguesas e a taxa de internamento tem sido extremamente baixa.
No acórdão do processo disciplinar a que o PÁGINA UM teve acesso, Maria do Céu Machado advoga mesmo a subjugação dos médicos, em geral, e de Margarida Oliveira, em especial, às posições e decisões governamentais. Na página 8 deste acórdão advoga “o dever especial de cuidado a que a médica [visada no processo] está adstrita, bem como o dever de garante da saúde em geral, norteada pelas orientações emanadas pela DGS, [que assim] deveriam tê-la impedido de expor as suas exaltações e preocupações em público e de dar recomendações públicas a terceiros, contrárias ao veiculado pelos órgãos de soberania portugueses.”
E a antiga presidente do INFARMED ainda vai mais longe no veredicto, ao afirmar, de forma dogmática, que “a médica arguida, ao agir da forma como agiu actuou de forma leviana e infundada, utilizando tanto uma rede social, como o espaço público, para transmitir mensagens de inquietação pública, instigando a um clima de tensão e colocando em causa, tanto a DGS, como os seus colegas médicos, bem como, em última análise, esta ordem profissional.” No total, a relatora apontou a violação de uma dezena de normas do Regulamento de Deontologia Médica.
O acórdão deste processo da Ordem dos Médicos – que curiosamente Maria do Céu Machado assina em nome de mais três colegas – ainda é passível de apelo para o Conselho Superior da Ordem dos Médicos, e posteriormente, se a defesa assim entender, para os tribunais. Ou seja, a anestesiologista Margarida Oliveira ainda não cumpriu nem cumprirá qualquer sanção enquanto a decisão sancionatória não transitar em julgado, algo que pode demorar anos.
A Direcção-Geral da Saúde preferiu ouvir Helena Pereira de Melo, vice-presidente da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, do que pedir parecer ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. A jurista tem ligações ao Partido Socialista e é presidente de uma associação em consórcio com o Grupo José de Mello.
A conselheira de bioética da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC), que proferiu um parecer favorável para a vacinação universal de crianças – sem sequer analisar as incertezas a longo prazo e as questões éticas que tal encerra –, tem fortes ligações ao Partido Socialista e também ao Grupo José de Mello, que integra a CUF, gestora de 14 hospitais e clínicas privadas.
A alegada inexistência de problemas éticos, assumida no parecer final da CTVC, terá sido um dos aspectos determinantes para a decisão esta semana da Direcção-Geral da Saúde (DGS) em aprovar a vacinação universal de crianças.
Recorde-se que, até ao momento, nenhuma criança entre os 5 e os 11 anos morreu em Portugal por causa de covid-19. Além disso, apenas 0,21% dos casos positivos nesta faixa etária tiveram necessidade de hospitalização ao longo deste ano, uma significativa redução na gravidade em relação a 2020, que apresentou um rácio quase três vezes superior (0,61%), de acordo com dados divulgados no recente parecer da CTVC.
Helena Pereira de Melo
Uma investigação do PÁGINA UM descobriu que a autora do parecer de bioética, a jurista Helena Pereira de Melo – cuja identidade apenas foi revelada ontem com a divulgação a contragosto de todos os documentos do polémico parecer integral da CTVC –, foi indicada em 2019 pelo Partido Socialista para integrar o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida.
No ano anterior integrou também, por convite do Governo socialista, a comissão para a revisão da Lei de Bases da Saúde, presidida por Maria de Belém.
Além das suas funções académicas e como vice-presidente da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, esta jurista é ainda preside à ABIO – Associação para o Estudo do Biodireito. Criada em 2016, esta associação surge apresentada como um “consórcio entre a José de Mello Saúde e a Universidade Nova de Lisboa”, que inclui a TAGUS Tank – Tagus Academic Network for Knowledge, com actividades na área da Medicina e apoio à investigação.
Apesar de também acumular a vice-presidência da Associação Portuguesa de Bioética, Helena Pereira de Melo não integra a lista obrigatória de consultores da DGS, segundo confirmado pelo PÁGINA UM no site da DGS. Ou seja, o pedido de parecer solicitado pela CTVC terá sido pontual e específico para o fim em vista.
Saliente-se que, por obrigação legal, os consultores da DGS não podem ser membros de órgão social de sociedade científica, associação ou empresa privada que tenham recebido financiamento superior a 50 mil euros por ano (em média no último quinquénio) de empresa produtora, distribuidora ou vendedora de medicamentos ou dispositivos médicos.
Em todo o caso, refira-se que, apesar da directora-geral Graça Freitas ter nomeado por despacho os membros da CTVC, não os obrigou a apresentar qualquer declaração de incompatibilidades. Assim, de entre os membros desta comissão, apenas Manuel do Carmo Gomes e Válter Fonseca o fizeram, por já serem consultores da DGS há vários anos. Todos os outros – Ana Maria Correia, António Sarmento, Diana Costa, João Rocha, Luís Graça, Luísa Rocha, Maria de Fátima Ventura, Maria de Lurdes Silva, Marta Valente, Raquel Guiomar e Teresa Fernandes – não apresentaram qualquer documento desta natureza. Por exemplo, Luís Graça, imunologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, recebeu este ano um pouco mais 7.000 euros de farmacêuticas, dos quais 2.050 euros da AstraZeneca.
No entanto, aquilo que mais poderá chocar no parecer de Helena Pereira de Melo é a ligeireza na abordagem da ética na vacinação de crianças, porque nada refere sobre a incerteza e os efeitos a longo prazo.
No seu texto de apenas três páginas, a jurista ocupa grande parte do espaço a apresentar uma mera síntese de documentos enviados pela DGS e a expor uma súmula da “leitura dos relatórios que nos foram facultados, da autoria do Centro Europeu de Controlo de Doenças (ECDC) e da Agência Europeia de Medicamentos (EMA). Lista depois os “efeitos benéficos prováveis”, e acrescenta existirem “benefícios para a saúde mental da criança decorrentes de ser vacinada, uma vez que, se não for infectada, não sofrerá os efeitos negativos associados a uma ou várias situações de confinamento”.
Um artigo publicado em 5 de Outubro passado na revista Nature, que cita David Eyre, epidemiologista da Universidade de Oxford, revelou que o efeito benéfico da vacina na transmissão da variante Delta diminui para níveis quase insignificantes pouco tempo depois. Por exemplo, em pessoas que sejam infectadas já com a vacina da Pfizer em acção (duas semanas após a tomada das doses), o risco de contaminar outra é de 42%, aumentando para 58% pouco mais tarde. O risco de um não-vacinado contaminar outra pessoa é de 67%.
Ou seja, se o objectivo for beneficiar as crianças vacinadas em detrimento das não-vacinadas – um aspecto polémico do ponto de vista legal e ético, e ainda não decidido pelo Governo à data do parecer –, não mandando para quarentena os primeiros, os efeitos da medida serão nulos do ponto de vista epidemiológico.
Na verdade, sobre questões concretas de bioética, o parecer de Helena Pereira de Melo elenca só os mais básicos princípios da bioética, que se podem encontrar num simples manual académico.
Com efeito, a jurista escreve em apenas um breve parágrafo que a vacinação de crianças contra a covid-19 cumpre os “três princípios da não-maleficência (não causa, previsivelmente, prejuízo à sua vida, à sua saúde e à sua integridade pessoal), da beneficência (apresenta probabilidade elevada de prevenir a contração da doença e contribui, deste modo, para a saúde física e mental da criança), e da justiça (contribui para a quebra das cadeias de transmissão da doença, pelo menos relativamente às variáveis conhecidas, em particular a Delta (…)”. E justifica isto com “os dados epidemiológicos [que] revelam uma alta transmissibilidade da doença nesta faixa etária, em Portugal”.
Por fim, destaca ainda que o princípio da autonomia nem sequer merece discussão no caso das crianças, porque “este grupo etário não goza de maturidade indispensável para consentir ou não consentir na administração da vacina em causa”.
No seu parecer, Helena Pereira de Melo não apresenta sequer uma reflexão teórica nem uma única referência bibliográfica sobre bioética e vacinas, e especialmente sobre vacinas contra a covid-19 e aplicadas a crianças – um dos temas sociológicos actualmente em ebulição nas ciências sociais.
Por exemplo, uma consulta breve ao Google Scholar identifica cerca de 18.200 artigos científicos que debatem as questões de ética relacionados com a vacinação (obrigatória ou não), incluindo largas centenas sobre a vacinação contra a covid-19, a aplicação de certificados de acesso, a eventual vacinação universal obrigatória e a discriminação de não-vacinados. Temas nem sequer foram aflorados neste parecer da professora de Direito da Universidade Nova de Lisboa.
Recorde-se que anteontem, em declarações à rádio TSF, Maria do Céu Patrão Neves, presidente da Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida – que seria o organismo “natural” para emitir um parecer ético desta natureza – defendeu “o maior interesse das crianças”, pelo que “ponderar a vacinação em termos de proteção dos adultos não é aceitável do ponto de vista ético”.
Esta professora catedrática de Ética na Universidade dos Açores, e também consultora do Presidente da República para a Ética da Vida – e que foi eurodeputada do PSD entre 2009 e 2014 – considerou que a decisão de se avançar, nas actuais circunstância, para um programa de vacinação neste grupo etário deveria ser tomada “na sua dimensão física, psicossocial, afectiva, ou seja, uma forma holística”.