Categoria: Sociedade

  • 19 hastes curvas encimadas por um ‘anel de rubi’ custam 406 mil euros

    19 hastes curvas encimadas por um ‘anel de rubi’ custam 406 mil euros

    Escultores da casa podem não fazer milagres, mas podem fazer ‘desaparecer’ cerca de 406 mil euros do erário público para celebrar os 51 anos de um acontecimento histórico português que, ironicamente, para além da liberdade, concedeu igualdade de oportunidades.

    Na pequena cidade de Cantanhede, no distrito de Coimbra, a autarquia local decidiu escolher, sem qualquer pré-selecção, por ajuste directo, um escultor da terra, Celestino Alves André, para executar um ‘monumento de celebração’ ao 25 de Abril, que passou a estar exposto no parque urbano local.

    Nascido em 1959, Alves André destaca-se sobretudo como medalhista e como ‘criador’ de bustos e estátuas em tamanho natural ou monumental, frequentemente fundidas em bronze. No entanto, esta encomenda da autarquia de Cantanhede, liderada pela social-democrata Helena Teodósio, foge completamente ao estilo do artista: trata-se de uma estrutura ascensional de metal composta por 19 hastes curvas e verticais, encimada por um ‘anel de rubi’ representando o brasão de Cantanhede, simbolizando as freguesias do concelho à data da Revolução dos Cravos. Para os mais incautos, parecerá uma estrutura para um ninho de cegonhas.

    Mas o mais surpreendente nesta obra colocada no Parque Urbano de São Mateus é o custo e também o seu faseamento. De acordo com o contrato publicado no Portal Base, que nem sequer contém o caderno de encargos – impossibilitando perceber se o ‘anel de rubi’ é de vidro ou de resina –, a obra teve um custo total de 405.900 euros, ou seja, 330 mil euros acrescidos de IVA. Este é um valor extraordinariamente elevado para obras de arte desta natureza, sobretudo quando se está perante um município de menos de 35 mil habitantes com escassos recursos finaceiros. A título de exemplo, os dois conjuntos escultórios de autoria de Francisco Tropa no terminal intermodal da Campanhã – “Penélope”, composta por quatro figuras em bronze, e “Dánae”, duas fontes em bronze –, também por ajuste directo, tiveram este custo total, pago pela empresa municipal Gestão e Obras do Porto.

    A escolha por ajuste directo, por um valor tão elevado, mesmo que seja invocado o carácter artístico, levanta questões sobre a transparência e os critérios de atribuição deste tipo de contratos, sobretudo tendo em conta o envolvimento de um artista com ligação ao município.

    Com efeito, Alves André tem estabelecido diversas parcerias com a edilidade de Cantanhede, realizando mesmo visitas guiadas promovidas pela autarquia ao seu ateliê na aldeia de Portunhos. Naquele município encontram-se também já várias esculturas da sua autoria, designadamente o Monumento ao Ourives Ambulante, inaugurado em 1990, em Febres; o Monumento ao bandeirante Pedro Teixeira, inaugurado em 1993, no centro da cidade; e a imponente estátua equestre do Marquês de Marialva, inaugurada em 1999, na praça que lhe é dedicada.

    No restante distrito de Coimbra, Alves André também tem ‘muita saída’. Na cidade do Mondego, o escultor assinou diversas obras de relevo, com destaque para o busto do pintor José Maria Cabral Antunes, inaugurado em 1987; a Tricana de Coimbra, estátua em bronze, colocada na Rua de Quebra Costas em 2008; a Guitarra de Coimbra, no Largo da Almedina, e a estátua da Irmã Lúcia, ambas inauguradas em 2013. No concelho de Mira estão mais duas: uma evocando o Infante D. Pedro, primeiro duque de Coimbra, erguida em 1996 na sede do município; e outra dedicada aos pescadores da Praia de Mira, inaugurada em 1998. Fora do ‘seu’ distrito, Alves André tem o busto de Francisco Stromp, junto ao Estádio de Alvalade, uma estátua em memória do Papa João Paulo II em Cascais e outra ao mesmo pontífice em Timor-Leste.

    Além do processo por ajuste directo, o contrato – que previa a “concepção, execução e instalação de obra de arte para espaço público evocativa do 50.º aniversário do 25 de Abril” – foi assinado apenas no passado dia 17 de Março, o que, considerando a complexidade do seu fabrico, mostra que, antes da adjudicação, já o escultor estava a trabalhar na peça.

    Helena Teodósio, presidente da autarquia de Cantanhede, cortou a fita na inauguração. Foto: CMC.

    Antes da escultura ao 25 de Abril com um custo de 405 mil euros, segundo dados consultados no Portal Base – que compila informação desde 2008 –, o artista tinha apenas dois contratos: o busto em bronze do Visconde da Corujeira, encomendado em 2021 pelo Município de Mira por ajuste directo, no valor de 17.500 euros, e uma obra escultórica de homenagem a Idalécio Cação, também por ajuste directo, pelo Município da Figueira da Foz, pelo montante de 8.500 euros.

    Apesar de a presidente da autarquia de Cantanhede não ter respondido às questões colocadas pelo PÁGINA UM, durante a cerimónia de inauguração, Helena Teodósio destacou que a obra “teve o envolvimento de todas as forças políticas com assento na Assembleia Municipal” e que visa “perpetuar o carácter emblemático da efeméride”, reforçando os valores do 25 de Abril junto das novas gerações. Na mesma cerimónia, de acordo com o transmitido pelo site do município, Alves André afirmou que a escultura “celebra os valores de Abril” e também “o desenvolvimento das freguesias do concelho”, destacando que se trata de “uma peça agradável, elegante e concebida a partir de elementos identitários locais”.

    Pese embora o contexto comemorativo e a intenção simbólica da obra, o investimento elevado e a forma desta contratação directa motivam interrogações quanto à gestão dos dinheiros públicos, sobretudo num momento em que muitas autarquias enfrentam constrangimentos orçamentais.

    Escultura de Alves André na Praia de Mira. A obra de arte sobre o 25 de Abril ‘foge’ ao seu estilo, mas permitiu-lhe facturar mais de 400 mil euros.

    O Código dos Contratos Públicos impõe os princípios da concorrência e da igualdade de tratamento, não existindo qualquer norma no articulado legal que permita beneficiar expressamente os artistas locais em procedimentos de contratação. A legislação portuguesa, alinhada com o direito europeu, proíbe qualquer discriminação com base na origem geográfica do concorrente, mesmo que essa preferência pudesse traduzir-se numa valorização do património cultural de uma comunidade.

    Ainda assim, os responsáveis políticos ou autárquicos dispõem de algumas margens de manobra. Nos contratos de menor valor, adjudicados por ajuste directo ou por consulta prévia, a escolha de artistas locais torna-se mais viável, desde que fundamentada com critérios objectivos e devidamente publicitada. Mas tal não se aplica a uma das obras de arte de valor mais elevado dos últimos anos encomendada por um município português.

    Em todo o caso, nos concursos públicos convencionais, a introdução de critérios de adjudicação que valorizem a ligação da obra à identidade local — desde que expressos com clareza e aplicados a todos os concorrentes — pode permitir a selecção de propostas oriundas da comunidade artística da região sem violar a lei. Mas a opção da autarquia de Cantanhede foi pelo contrato de ‘mão-beijada’.

  • REN desinveste na rede eléctrica portuguesa e prefere apostar no Chile

    REN desinveste na rede eléctrica portuguesa e prefere apostar no Chile

    Uma semana antes do apagão eléctrico histórico registado em Portugal, a empresa concessionária da rede de transporte de electricidade em muito alta tensão não aparenta ter um especial interesse em focar-se somente na salvaguarda da infraestrutura eléctrica nacional. Apesar de deter uma concessão estratégia, a REN, que tem como maior accionista a estatal chinesa State Grid Corporation of China, e já quase não conta com capitais de investidores portugueses, mostra sobretudo ambições de crescer no outro lado do Atlântico, mais concretamente no Chile, com uma população quase o dobro da portuguesa.

    No passado dia 21 de Abril, a segunda-feira anterior ao dia em que Portugal mergulhou no caos devido ao ‘blackout’, a REN, liderada pelo português Rodrigo Costa — antigo gestor do grupo Portugal Telecom —, anunciou a compra de mais uma empresa chilena: a TENSA – Transmisora de Energía Nacimiento, por 71,4 milhões de dólares (62,5 milhões de euros). Esta aquisição reforça a aposta declarada da empresa no Chile, onde já detém participações significativas na Electrogas e é accionista único da Transemel, adquirida em finais de 2019.

    Se o negócio chileno prossegue com ambição — somando a nova aquisição, os investimentos no país sul-americano ultrapassam já os 100 milhões de euros desde 2023 —, o mesmo não se pode dizer da estrutura patrimonial em Portugal, ou seja, da rede nacional de transporte de electricidade e da rede de gás.

    De facto, entre 2019 e 2024, de acordo com a análise do PÁGINA UM aos indicadores financeiros mais relevantes da empresa, obtidos através dos relatórios e contas, a REN registou uma redução real de cerca de 939 milhões de euros em activos não correntes, quando ajustada à inflação acumulada de 17,36% neste período.

    Em euros reais, estes activos, constituídos maioritariamente pelas infra-estruturas concessionadas (e que necessitam de manutenção, substituição e expansão) caíram de um equivalente a 5.762 milhões em 2019 (o valor nominal foi de cerca de 4.910 milhões) para apenas 4.823 milhões em 2024 — uma redução efectiva de 16,3% do seu património técnico e operacional. Este número é sintomático: o investimento realizado pela empresa não tem sido suficiente para repor sequer o valor dos activos que se vão amortizando.

    No mesmo período, os investimentos líquidos da REN em Portugal foram negativos quando se descontam os cerca de 279 milhões de euros em subsídios ao investimento concedidos pelo Estado entre 2019 e 2024.

    Com efeito, excluindo a componente relativa ao Chile, os investimentos da REN em Portugal — conforme reportado nas demonstrações dos fluxos de caixa — ascenderam a 1.374 milhões de euros nos últimos seis anos, enquanto as amortizações (associadas aos activos intangíveis concessionados, como as linhas de muito alta tensão) totalizaram 1.476 milhões de euros. Ou seja, sem o apoio público através de subsídios, a concessionária teria investido menos do que aquilo que os seus principais activos perderam em valor, o que evidencia uma trajectória de desinvestimento líquido real na infraestrutura eléctrica nacional.

    Nos seus documentos estratégicos, a REN tem destacado como objectivo a expansão das suas operações no Chile com “crescimento orgânico e aquisições pontuais”. No caso da Tensa, agora adquirida, trata-se de uma empresa que opera cerca de 190 quilómetros de linhas de transmissão, situadas maioritariamente na zona Centro-Sul do Chile.

    Com esta operação, a REN passa a operar cerca de 280 quilómetros de linhas e cinco subestações no país sul-americano, consolidando uma presença que já consome recursos significativos: foram ali investidos 107 milhões de euros entre 2019 e 2024.

    Este avanço para o Chile faz parte do plano estratégico da REN que prevê um investimento entre 1.500 e 1.700 milhões de euros a efectuar no período 2024-2027. No seu plano estratégico, a REN garante aos investidores que vai acelerar o “compromisso de permitir a transição energética e promover o crescimento económico, intensificando o nosso plano de investimento para permitir o crescimento em energias renováveis”.

    Entretanto, os accionistas da empresa — onde, além dos chineses da State Grid Corporation, se destacam a Pontegadea, a Lazard Asset Management, a Fidelidade e a Red Eléctrica — têm colhido dividendos generosos. Tal não se tem devido tanto à expansão da actividade e da prestação de serviços, mas sobretudo à contenção de investimentos — uma postura típica de empresas em fase de exploração de activos maduros. Ou seja, a REN comporta-se num regime de “vaca leiteira”, como se o sistema de transporte eléctrico português existisse apenas para gerar retorno financeiro.

    No passado dia 15 de Abril, os accionistas da empresa aprovaram em assembleia-geral a distribuição de 104.749.028 euros em dividendos. Este montante corresponde a uma distribuição de 68,7% do resultado consolidado da REN no ano de 2024, que atingiu os 152,5 milhões de euros — um aumento de 2,2% face ao ano de 2023. A entrega desta verba aos accionistas foi feita através de reservas acumuladas disponíveis, o que reflecte uma política financeira focada na remuneração de capital, mesmo num contexto de estagnação dos activos operacionais.

    O conselho de administração da REN — composto por 14 membros — já tinha aprovado, no dia 6 de Março deste ano, o pagamento antecipado de 42,7 milhões de euros em dividendos aos accionistas da empresa. Assim, a empresa avançou com o pagamento de mais 62 milhões de euros aos seus investidores.

    Num país onde a infraestrutura eléctrica sofreu a sua maior falha em décadas, e onde os activos técnicos da rede de transporte se degradam em valor real, a aposta prioritária em geografias distantes como o Chile — aliada à drenagem sistemática de lucros sob a forma de dividendos — suscita dúvidas legítimas sobre as prioridades da REN. A empresa que nasceu da tutela do Estado português mostra hoje actuar segundo lógicas financeiras globais, sem compromisso estratégico claro com o investimento sustentado na infraestrutura crítica nacional.

    As trocas comerciais na passada segunda-feira — em que o mercado grossista estava a exportar electricidade para Espanha até cerca de três horas e meia antes do apagão, num cenário em que Portugal viria depois a importar 30% do seu consumo — são um exemplo paradigmático de como o sistema opera no fio da navalha. Embora estas decisões estejam automatizadas no quadro do mercado ibérico MIBEL e não dependam directamente da REN, o episódio levanta legítimas questões sobre a resiliência operacional e a eventual ausência de margens de segurança. Ironicamente, ficou-se a saber que se tem electricidade ‘sem rede’.

  • Portugal continua a exportar grandes quantidades de electricidade apesar das garantias da REN

    Portugal continua a exportar grandes quantidades de electricidade apesar das garantias da REN

    Apesar das declarações da REN, transmitioas ontem ao jornal Público, de que foram suspensas as trocas comerciais de electricidade com Espanha “até ao final da semana”, Portugal continuou esta madrugada a exportar energia de forma significativa, numa operação que põe em causa a clareza e transparência da comunicação da empresa responsável pela gestão do sistema eléctrico nacional e a rede de transporte.

    Ontem, a REN afirmou ter “limitado para amanhã [hoje] e dias seguintes a capacidade de trocas no sentido importador a zero MW”, sustentando que a decisão visava assegurar a estabilidade do sistema ibérico e que as interligações com Espanha estariam “a ser utilizadas nos fluxos normais em tempo real”, apenas para efeitos de equilíbrio técnico.

    No entanto, dados de exportação de energia eléctrica recolhidos entre as 00h00 e as 8h00 (hora espanhola), consultados pelo PÁGINA UM, permitem concluir, com base em cálculos, que Portugal exportou durante esse período um total de 8.524 MWh de electricidade. Esta quantidade seria suficiente para abastecer durante um dia inteiro cerca de 676 mil pessoas, com base no consumo médio diário de 12,6 kWh.

    A exportação praticamente contínua desde a meia-noite e crescente ao longo da madrugada, com potências instantâneas superiores a 1.800 MW a partir das 6h00 da manhã, contrariando a imagem de suspensão de trocas dada pela REN. Com a chegada do dia, a exportação de Portugal para Espanha está a diminuir.

    A aparente contradição entre a posição da REN e a realidade reside na distinção – técnica mas ambígua – entre “trocas comerciais” e “fluxos técnicos”.

    transmission towers and wind turbines on the field
    Foto: D.R./ REN

    As trocas comerciais referem-se às operações registadas nos mercados organizados de electricidade, com contratos definidos, enquanto os fluxos técnicos referem-se a ajustes automáticos e operacionais executados pelos operadores de rede, de modo a garantir o equilíbrio entre geração e consumo. No entanto, nada impede que um fluxo técnico possa, na prática, equivaler a uma transferência económica disfarçada, especialmente se for contínuo e previsível.

    A electricidade, recorde-se, não transporta ‘etiquetas’, ou seja, não é possível distinguir fisicamente se um determinado KWh ‘trocado’ é oriundo de uma transacção comercial ou ser por equilíbrio de rede. Assim, a distinção invocada pela REN baseia-se mais em critérios administrativos e operacionais, e não físicos, permitindo que a interligação continue a funcionar como canal de exportação, mesmo quando publicamente se declara o oposto.

    Esta prática pode configurar, assim, uma mera operação semântica de desresponsabilização, permitindo à REN afirmar que não há importações nem exportações comerciais, embora mantenha o funcionamento efectivo das interligações com Espanha em larga escala. O risco mostra-se evidente, pois sem uma auditoria pública dos fluxos e das justificações técnicas em tempo real, é impossível saber se estas transferências não estão a servir, afinal, apenas o habitual interesses de mercado.

    Gráfico da produção durante as últimas horas em Espanha, integrando a parte da exportação de Portugal (mancha verde no topo). A linha amarela representa a procura de electricidade em Espanha. Fonte: Red Eléctrica de España.

    Acresce ainda que a necessidade de electricidade espanhola oriunda de Portugal durante a madrugada não aparenta ter sido imprescindível. Analisando os registos da Red Eléctrica, registou-se durante a recente noite uma redução voluntária da produção hidroeléctrica em Espanha, com parte das turbinas das barragens a serem desligadas, o que fez baixar a potência hidráulica de cerca de 7.000 MW às 21h00 de ontem para cerca de 5.000 MW ao longo da madrugada de hoje. Ao mesmo tempo, Espanha manteve exportações activas para Marrocos, o que mostra que não se encontrava em situação de défice urgente de energia.

    Por outro lado, a reactivação das centrais nucleares espanholas também se tornou visível, com os níveis de produção nuclear a situarem-se já em cerca de 40% do valor anterior ao apagão da passada segunda-feira, reforçando a ideia de que a procura espanhola por electricidade portuguesa foi motivada por razões comerciais ou estratégicas, e não por necessidade técnica imperiosa.

  • Com a ‘ajuda’ de Luís Montenegro, Tony Carreira passa fasquia de meio milhão de euros em quatro meses

    Com a ‘ajuda’ de Luís Montenegro, Tony Carreira passa fasquia de meio milhão de euros em quatro meses

    Foi uma sorte para Tony Carreira o adiamento decretado pelo Primeiro-Ministro das festividades do 25 de Abril para o Dia do Trabalhador. Se assim não fosse, o cançonetista mais popular de Portugal dificilmente teria agenda para actuar, mesmo que num mini-concerto de uma hora, para duas mil pessoas, nos jardins do Palácio de Belém. De facto, na noite de 24 de Abril, Tony Carreira cantou a partir das 22 horas, no Barreiro, num concerto comemorativo dos 51 anos da Revolução dos Cravos. A entrada, tal como amanhã, foi gratuita, embora tenha custado aos contribuintes — ainda que paga pelos cofres da autarquia da Margem Sul — um total de 73.185 euros, com IVA incluído.

    Ignora-se se Luís Montenegro vai reviver o dueto (desafinado) que fez com Tony Carreira em Dezembro de 2019 no programa ‘Casa da Cristina’, na SIC, tal como também se ignora quanto custará o concerto com entrada gratuita nos jardins da residência oficial do Primeiro-Ministro. O gabinete de Luís Montenegro não respondeu aos insistentes pedidos do PÁGINA UM sobre esta matéria — que, aliás, seria escusado solicitar se a Presidência do Conselho de Ministros tivesse já colocado, como determina a lei, o contrato no Portal Base. Certo é que Tony Carreira não costuma ser barato; pelo contrário, é o artista com cachets mais elevados.

    Dueto na SIC em 2019 vai repetir-se?

    E isso tem-se notado ainda mais nos últimos anos. Por exemplo, o ano de 2025 vai ainda com apenas quatro meses completos, e Tony Carreira já garantiu uma agenda recheada de actuações financiadas por dinheiros públicos, mesmo se todos anunciam “entrada gratuita”. Segundo os dados publicados no Portal BASE — que compila os contratos públicos celebrados por entidades do Estado —, estão já contratados, até ao momento, 10 espectáculos com o artista, num total de 466.944,05 euros com IVA incluído, pagos por municípios, através de ajuste directo, sem concurso público. Será previsível que, com o contrato para a actuação nos jardins de São Bento, a fasquia do meio milhão de euros seja ultrapassada em apenas quatro meses.

    Tony Carreira tem-se destacado por ser um dos mais caros artistas portugueses, no sentido emocional e financeiro, sobretudo por actuar, em regra, sozinho, apenas com músicos acompanhantes. De entre os contratos deste ano, o de valor mais baixo (45.510 euros com IVA) foi assumido pelo Município de Alter do Chão, no distrito de Portalegre, e o mais elevado pelo Município de Vila Nova de Gaia, no distrito do Porto.

    No primeiro caso, o concerto realizou-se no dia 25 deste mês, nas Festas de São Marcos, naquela vila alentejana — o que inviabilizaria, assim, também, um eventual pulo a São Bento, se não tivesse ocorrido o adiamento —, enquanto o contrato com Gaia serviria para a autarquia socialista abrilhantar a inauguração do Pavilhão Nelson Mandela. Este concerto esteve agendado para o dia 11, mas este centro multiusos acabou por não estar ainda concluído. Para amanhã está previsto um concerto em Gaia com Mickael Carreira, filho de Tony Carreira, mas não foi possível, em tempo útil, apurar se este espectáculo servirá para cumprir o contrato.

    Jardins de São Bento.

    Além dos contratos com o Barreiro, Gaia e Alter do Chão, pelo menos outras sete autarquias também já decidiram este ano contratar Tony Carreira com verbas públicas. O município de Mértola já garantiu a presença do cantor nas Festas da Vila, em 21 de Junho, e não se fez rogado em pagar 49.200 euros (com IVA), enquanto a empresa municipal FESNIMA, de Olhão, adjudicou por 59.206 euros (com IVA) um contrato para um espectáculo inserido nas Festas da Cidade, a realizar em 16 de Junho.

    Para não se ser exaustivo, a agenda de Tony Carreira deste ano tem passagens pela Feira do Fumeiro de Vinhais, pela FACIT em Tábua, pela FIAPE em Estremoz, pela Festa do Emigrante em Chaves, pela Ficabeira em Arganil. A visibilidade de Tony Carreira tem um valor médio, este ano, a rondar os 52 mil euros com IVA.

    A prática de ajuste directo, muito comum nos contratos culturais, continua a permitir às autarquias evitar processos de concurso ou consulta prévia, bastando-lhes justificar a escolha do artista e adjudicar directamente o valor orçamentado. Em todos os contratos agora divulgados, os valores encontram-se dentro do limite legal (até 75 mil euros para prestações de serviços), mas levantam questões sobre critérios de selecção artística e repetição dos mesmos nomes em diferentes municípios, com cachets bastante elevados e sem concorrência.

    Tony Carreira actuou no dia 24 de Abril no Barreiro e no dia seguinte em Alter do Chão (na foto). Sem o adiamento das festividades do 25 de Abril em São Bento, o cançonetista não teria agenda.

    Em grande parte dos concertos, Tony Carreira beneficia também dos valores de produção, uma vez que uma parte destes contratos públicos é celebrada através da sua empresa Regi-Concerto. De entre os concertos já previstos em contratos, este ano, a empresa de Tony Carreira facturará 370.230 euros com IVA. Mas a Regi-Concerto também produz outros concertos, como se verificou no recente espectáculo de Passagem de Ano em Lisboa.

    Poucos meses depois de ver Carlos Moedas a entregar-lhe a medalha de mérito cultural, a Regi-Concerto de Tony Carreira teve uma oferta de mão-beijada concedida pela Câmara Municipal de Lisboa: organização das festas de Ano Novo, no valor de 265 mil euros, incluindo IVA. Com um cartaz que não custava mais de 80 mil — constituído pelo veterano José Cid e pelo seu próprio filho Mickael —, e como a EGEAC ainda assumiu diversas despesas, Tony Carreira terá tido um lucro, sem subir ao palco lisboeta, próximo dos 150 mil euros.

  • Apagão deverá ‘apagar’ centrais nucleares de Espanha por 72 horas

    Apagão deverá ‘apagar’ centrais nucleares de Espanha por 72 horas

    Às 14h35 desta quarta-feira, hora de Lisboa, cinquenta horas após o colapso eléctrico que mergulhou a Península Ibérica numa falha de geração sem precedentes, as centrais nucleares espanholas permanecem totalmente desligadas. A análise contínua dos dados da Red Eléctrica de España, verificada pelo PÁGINA UM, confirma que nenhum dos sete reactores nucleares operacionais retomou a produção de energia até ao momento — uma situação inédita na história do sistema energético espanhol.

    O ‘silêncio operacional’ das centrais Almaraz, Ascó, Cofrentes, Vandellós II e Trillo, cujos reactores representam cerca de 7 GW de capacidade instalada, prolonga-se agora por mais de dois dias, sem que o Consejo de Seguridad Nuclear (CSN) tenha emitido qualquer explicação técnica detalhada sobre o atraso. A última comunicação oficial do CSN ocorreu às 3h15 da madrugada de terça-feira, onde apenas foi referido o fim do “pré-alerta de emergência” após restabelecimento externo do fornecimento eléctrico.

    Central de Almaraz.

    Os sistemas automáticos de paragem de emergência, designados SCRAM, servem exactamente para evitar riscos muito graves, estando previsto sobretudo em planos anti-sísmicos. A ausência de reactivação ao fim de 50 horas ainda não é suficiente para levantar questões de segurança sobre o impacte do incidente do apagão operacionais, mas se se prolongar por mais de 72 horas indiciará outro tipo de problemas.

    Segundo fontes técnicas ouvidas pelo PÁGINA UM, um dos factores mais prováveis para este atraso na reactivação das centrais nucleares espanholas será o chamado “envenenamento por xenón-135”, um fenómeno bem conhecido na operação nuclear, embora raramente se manifeste de forma simultânea e prolongada em múltiplos reactores de um mesmo país.

    O xenón-135 é um produto radioactivo de fissão com enorme capacidade de absorção de neutrões térmicos, que se forma tanto directamente, na fissão do urânio-235 e plutónio-239, como, sobretudo indirectamente, por decaimento radioactivo do iodo-135, que possui uma meia-vida de 6,6 horas.

    Quando um reactor é abruptamente desligado por SCRAM, como ocorreu em Espanha pelas 12h35 de segunda-feira, a produção de neutrões cessa quase de imediato, mas os precursores radioactivos da cadeia de fissão continuam a decair, acumulando xenón-135. Sem neutrões disponíveis para capturá-lo e destruí-lo, a sua concentração atinge um pico entre 8 a 10 horas após a paragem, fenómeno que impede a reanimação do reactor, mesmo que todos os sistemas estejam tecnicamente operacionais.

    A única forma de reduzir os níveis de xenón-135 é esperar o seu decaimento natural para césio-135, processo que exige um período até 72 horas, dependendo da potência anterior do reactor e do regime de operação. A operação de arranque prematuro poderá inclusive falhar ou danificar sistemas se for tentada antes da recuperação total da margem de reactividade.

    As centrais nucleares espanholas — todas do tipo água leve pressurizada (PWR), com excepção de Cofrentes (do tipo BWR) — estão desenhadas para lidar com este fenómeno, mas a simultaneidade de sete reactores em SCRAM dificulta a gestão operacional, requerendo planeamento cuidadoso de reactivação sequencial, para garantir estabilidade na rede eléctrica e segurança reaccional.

    a close up of a control panel with knobs and gauges

    Se se confirmar a reactivação das centrais nas próximas 24 horas, este tipo de fenómeno não representará um risco de segurança, mas sim um limite técnico de reactivação temporária reconhecido pelas normas internacionais da International Atomic Energy Agency (IAEA) e da U.S. Nuclear Regulatory Commission (NRC).

    Actualmente, não há indícios de danos estruturais nos reactores, o que reforça a tese de que o apagão foi uma consequência de falha sistémica na rede, e não provocado pelas centrais. A activação do SCRAM nos sete reactores, que estavam a produzir cerca de 3.400 MW às 12h30 (hora espanhola) de segunda-feira, coincidiu com quedas abruptas de frequência e tensão, indicando um colapso no equilíbrio entre produção e consumo.

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  • 35 horas: centrais nucleares de Espanha estão inactivas desde o apagão

    35 horas: centrais nucleares de Espanha estão inactivas desde o apagão

    Às 22h30 desta terça-feira, hora de Lisboa, trinta e cinco horas após o colapso eléctrico que mergulhou grande parte da Península Ibérica na escuridão, as centrais nucleares espanholas continuam sem produzir energia.

    O cenário, confirmado pela análise do PÁGINA UM dos despachos da Red Eléctrica de España, é inédito: as cinco centrais nucleares operacionais permanecem desligadas, deixando os seus sete reactores fora da rede.

    Central nuclear de Almaraz, a mais próxima da fronteira portuguesa.

    Embora fosse de aguardar uma maior lentidão no restabelecimento complexo de uma central nuclear ‘desligada’ num contextio de ‘blackout’, não é normal um tão longo período de inactividade absoluta e escasseiam as explicações do Conselho de Segurança Nuclear (CSN) de Espanha. A última comunicação desta entidade espanhola surgiu na na madrugada desta terça-feira, às 3h15 (hora local), informando que fora levantado o estado de pré-alerta de emergência em todas as centrais nucleares do país, após o restabelecimento estável do fornecimento de electricidade do exterior. A central de Cofrentes, em Valência, foi a última a sair do estado de pré-alerta, depois de já o terem feito Almaraz (Cáceres) e Trillo (Guadalajara), esta última desligada para operações de reabastecimento.

    Espanha conta actualmente com cinco centrais nucleares em operação: Almaraz, Ascó, Cofrentes, Vandellós II e Trillo. As centrais de Almaraz e Ascó têm unidades gémeas, o que eleva o total de reactores em funcionamento para sete. Existe ainda uma sexta central, Santa María de Garoña, actualmente desactivada. Estas sete unidades de produção de energia utilizam dois tipos diferentes de tecnologia: água leve pressurizada (PWR) e água leve fervente (BWR). No grupo PWR, a lista inclui Almaraz, com duas unidades (1980 e 1983), Ascó também com duas unidades (1982 e 1985), Vandellós II (1987) e Trillo (1987), a mais recente do parque nuclear espanhol.

    Durante o apagão de grandes dimensões que afectou Espanha nesta segunda-feira, o CSN garantiu que os sistemas de segurança das instalações nucleares funcionaram como previsto, e em nenhum momento esteve em causa a segurança de trabalhadores, da população ou do ambiente. A Organização de Resposta a Emergências (ORE) do CSN esteve activa em modo de monitorização. Com o fim do pré-alerta, a ORE foi desactivada e o organismo regulador regressou ao seu funcionamento normal, mas certo é que não havia ‘sinais de vida’, isto é, de início de produção até à hora de publicação da notícia do PÁGINA UM, pelas 22h30 desta terça-feira, dia 29 de Abril.

    Geralmente, os tempos de reposição demoram menos de 24 horas, excepto se a causa sistémica ainda não esteja plenamente resolvida, ou decorram procedimentos de verificação. Apenas se não for restabelcida a produção ao fim de 72 horas se poderá desconfiar de o apagão ter causado danos relevantes.

    green trees near snow covered mountain during daytime

    No momento do apagão, ocorrido às 12h35 de segunda-feira, hora local de Espanha, as centrais nucleares espanholas estavam a produzir cerca de 3.387 MW, um contributo de apenas 10% no total naquele momento, mas essencial para a estabilidade do sistema. A súbita interrupção desta produção revela a gravidade do incidente e sugere a ocorrência de falhas sistémicas graves na rede eléctrica espanhola.

    Uma das questões mais intrigantes — e decisivas — para compreender o evento de ontem é saber se a paragem abrupta das centrais nucleares foi a causa do apagão, ou se foi uma instabilidade prévia do sistema que forçou a sua paragem. À luz da análise detalhada dos dados reais, registados a cada cinco minutos, a resposta é inequívoca: a activação dos sistemas de emergência dos reactores — o chamado SCRAM — foi uma consequência da instabilidade da rede, e não a causa inicial do colapso.

    O SCRAM é um mecanismo automático de protecção que desliga instantaneamente a reacção nuclear através da inserção súbita de barras de controlo no núcleo do reactor. Não é uma falha técnica: é um sistema rígido, extremamente sensível a perturbações externas, como variações bruscas da frequência (normalmente abaixo dos 49,5 Hz), quedas de tensão significativas ou perda de sincronismo com a rede.

    Central nuclear de Cofrentes, na Comunidade Valenciana.

    No caso espanhol, o facto de todos os reactores se terem desligado em simultâneo reforça a tese de que se tratou de uma reacção defensiva perante uma instabilidade já em curso.

    Apesar de Pedro Sánchez, primeiro-ministro espanhol, ter criticado as centrais nucleares pelo facto de não permitirem “uma recuperação tão rápida” do sistema, e de que alguns reactores estavam desligados porque as empresas dizem que “não são competitivas, comparadas com as renováveis”, os dados técnicos mostram que as centrais foram vítimas, e não culpadas, de um colapso eléctrico generalizado.

    Os dados, confirmados técnicos contactados pelo PÁGINA UM, mostram que o apagão teve um carácter transversal, afectando de forma sincronizada outras fontes de geração — solar, eólica, hidroeléctrica e cogeração —, o que aponta para causas sistémicas, como um erro grave de despacho, um colapso de tensão de grande escala ou uma falha de controlo algorítmico na gestão do equilíbrio produção-consumo, num sistema cada vez mais dependente de energias renováveis voláteis.

    a close up of a control panel with knobs and gauges

    A análise do comportamento das interligações internacionais reforça esta conclusão. No momento da falha, as exportações espanholas para Portugal caíram abruptamente de 2.652 MW para apenas 7 MW, e depois para 1 MW às 12h40, provocando um blackout quase instantâneo em território português. As ligações para França e Marrocos registaram igualmente quedas súbitas para zero. Esta quebra massiva de fluxos agravou a perda de estabilidade do sistema espanhol, desencadeando os mecanismos automáticos de defesa que culminaram no SCRAM nuclear.

    Em suma, todos os elementos técnicos e cronológicos disponíveis indicam que o desligamento das centrais nucleares espanholas foi uma reacção defensiva perante uma grave falha sistémica da rede eléctrica. O apagão de 28 de Abril de 2025 deverá, assim, servir de lição para os decisores e operadores da Península Ibérica sobre os riscos de sistemas excessivamente dependentes de fontes renováveis intermitentes e da necessidade de garantir reservas de estabilidade robustas para evitar futuras catástrofes eléctricas.

  • Horas antes do apagão, Portugal andou a vender ao ‘desbarato’ electricidade a Espanha

    Horas antes do apagão, Portugal andou a vender ao ‘desbarato’ electricidade a Espanha

    Até às 9 horas da manhã de ontem, antes de o sistema eléctrico espanhol colapsar e arrastar consigo Portugal para um dos maiores apagões da história recente da Península Ibérica, o nosso país esteve a vender electricidade em larga escala ao seu vizinho. Segundo dados recolhidos pelo PÁGINA UM na plataforma gerida pela Red Eléctrica de España (Redeia), entre as 21h00 de domingo, dia 27 de Abril, e as 9h00 de segunda-feira, 28 de Abril – ou seja, até cerca de três horas e meia antes do blackout –, Portugal exportou um total de 22.118,25 megawatts-hora (MWh) para Espanha.

    Esta transferência de electricidade, contínua e robusta ao longo de toda a noite, e que se iniciou às 20h10 de domingo, teve o seu pico às 21h50, quando a exportação atingiu os 2.273 MW. Durante o período nocturno de domingo para segunda-feira, Portugal manteve uma média de exportação de cerca de 1.830 MW – valores registados a cada cinco minutos – correspondendo a uma produção constante que teve, cruzando com dados da Rede Eléctrica Nacional (REN), um contributo decisivo das centrais hidroeléctricas portuguesas, especialmente no Norte. Tendo em conta os preços típicos do mercado ibérico de electricidade (MIBEL), esta operação poderá ter rendido ao sistema eléctrico português entre 1,1 milhões e 2,6 milhões de euros de receita.

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    Com o amanhecer de segunda-feira e a forte insolação matinal – traduzida numa produção em massa de energia fotovoltaica em território espanhol –, a situação inverteu-se radicalmente. Dados da Redeia mostram que, a partir das 9h00, Portugal deixou de exportar e passou a importar electricidade. Pelas 9h30, já estava a receber 1.137 MW da rede espanhola, valor que não parou de subir: às 10h55, a importação já roçava os 3.000 MW e, imediatamente antes do blackout – às 12h30 – Portugal estava a importar 2.652 MW.

    Durante essas cerca de três horas e meia em que Portugal esteve a importar energia, o volume total recebido ascendeu a 7.049 MWh, o que equivale, aos preços usuais do MIBEL, a um negócio entre 350 mil e 850 mil euros, desta vez a favor da parte espanhola. Tudo indicava normalidade, apesar da reversão dos fluxos de energia. No entanto, pouco depois das 12h30, a rede espanhola colapsou, apanhando desprevenido o sistema eléctrico português, altamente interligado com o espanhol.

    A quebra abrupta da interligação ibérica – sem qualquer capacidade de compensação interna imediata – precipitou o blackout nacional, que mergulhou o país numa situação caótica. As comunicações caíram em simultâneo com a energia, afectando a totalidade das redes móveis, os transportes, o funcionamento de instituições públicas e privadas e o próprio sistema de emergência nacional. O apagão durou mais de seis horas em várias zonas do país, evidenciando uma alarmante vulnerabilidade estrutural da rede eléctrica portuguesa perante perturbações exteriores.

    green trees near snow covered mountain during daytime

    Apesar de não existir, até ao momento, uma explicação oficial detalhada sobre a origem do colapso em Espanha, os dados analisados pelo PÁGINA UM evidenciam a forte dependência entre os dois sistemas eléctricos, mas mais para trocas comerciais do que para garantir segurança no abastecimento. Em geral, estas vendas sucedem-se sobretudo para ‘gastar’ excedentes de produção, para bombar água para montante nas barragens quando a energia é barata, ou então para desligar as centrais hidroeléctricas quando a produção das outras renováveis (eólica e fotovoltaica) é elevada.

    Mas existe um problema neste contexto: mesmo se a previsão meteorológica consegue estabelecer um padrão expectável de produção de electricidade por via eólica e solar, mostra-se mais falível do que em sistemas tradicionais. E, em sistemas exageradamente assentes em renováveis, a capacidade de reposição pode causar problemas drásticos.

    Ora, quando o apagão repentino em Espanha ocorreu, cortando de imediato quase 3.000 MW de electricidade, não houve ‘tempo de reacção’. E num sistema eléctrico nacional, não basta fazer como numa casa quando os fusíveis colapsam: repor a situação é muito mais moroso e complexo. O chamado black start pode demorar várias horas, mesmo havendo potência instalada suficiente.

    light bulb

    Assim, mais do que uma questão técnica, este episódio levanta sérias interrogações sobre a gestão estratégica da produção e do consumo de energia em Portugal, nomeadamente a aposta crescente na exportação nocturna e a ausência de garantias de abastecimento interno em cenários de emergência.

    O apagão revelou ainda outro problema crítico: a falta de capacidade de “ilha eléctrica” em Portugal. Na prática, isso significa que, uma vez interrompida a ligação com Espanha, o sistema nacional não foi capaz de se manter autonomamente a funcionar, nem mesmo com recurso a centrais térmicas ou hídricas de emergência. O blackout propagou-se quase instantaneamente, demonstrando que a tão propalada transição energética assente em fontes intermitentes – como a solar e a eólica – carece de mecanismos eficazes de estabilidade e resposta rápida.

  • Excessiva dependência energética de Espanha causou ‘blackout’ em Portugal

    Excessiva dependência energética de Espanha causou ‘blackout’ em Portugal

    A opção política nos últimos anos de encerrar as centrais térmicas nacionais, nomeadamente a carvão e a gás, e de adoptar um modelo energético baseado na produção por renováveis e na importação de electricidade, tornou Portugal especialmente dependente do funcionamento do sistema eléctrico espanhol. Antes, apenas raramente Portugal recorria às importações de electricidade de Espanha; agora são praticamente diárias.

    Esta dependência estrutural, assente na interligação ibérica e na redução da capacidade de resposta interna, fragilizou a segurança energética do país, tornando mais vulnerável o equilíbrio da rede nacional em caso de perturbações externas. E hoje esse problema tornou-se evidente.

    green trees near snow covered mountain during daytime

    Segundo apurou o PÁGINA UM, a origem do “apagão” em Portugal teve como causa um problema ocorrido no sistema eléctrico espanhol. No momento da falha, o consumo em território nacional rondava os 8.000 MW (ver nota em baixo), dos quais cerca de 3.000 MW provinham de importações de Espanha. Desde a madrugada, por opções estratégicas no despacho energético, a produção interna — através de centrais hidroeléctricas e eõlicas — tinha vindo a reduzir-se consideravelmente.

    Durante a noite de hoje, os consumos estavam a basear-se na produção hidroeléctrica e de energia não-renovável, mas a partir do nascer do sol seguiu-se o agora ‘protocolo’ habitual em dias ensolarados: aumentou a produção de energia fotovoltaica, houve uma redução expectável na produção eólica, mas em vez de se compensar com a produção hidroeléctrica, optou-se por ‘desligar’ as barragens e aumentar as importações de Espanha. O colapso deveu-se a esta opção.

    A sugestão do ministro Adjunto e da Coesão Territorial, Manuel Castro Almeida, de se estar perante um eventual ciberataque ainda coloca maior fragilidade ao sistema eléctrico português, porque está agora bastante mais dependente do seu único vizinho, Espanha, algo que não sucedia no passado. Portugal tinha, há poucos anos, um excesso de potência instalada.

    Repartição do consumo de electricidade em Portugal no dia de hoje (até às 12h15) em função do tipo e origem de produção. Fonte: REN.

    Devido a uma perturbação no fornecimento externo, aliada à impossibilidade de resposta imediata da produção nacional, gerou-se um desequilíbrio crítico: um blackout ocorre quando o consumo instantâneo excede de forma significativa a capacidade de produção disponível (ver nota em baixo). Ora, com o corte abrupto da electricidade proveniente de Espanha e sem alternativas técnicas para compensar esse défice, o sistema entrou em colapso.

    A reposição da rede eléctrica — processo designado por “black start” — pode demorar várias horas (ver nota explicativa em baixo), dependendo da necessidade de reiniciar, de forma sequencial e controlada, as diversas centrais produtoras, garantindo a estabilização da frequência da rede (50 Hz) e evitando novos desequilíbrios.


    Notas Explicativas:

    1. MW vs MWh:
      O consumo instantâneo de electricidade mede-se em megawatts (MW), enquanto o megawatt-hora (MWh) é uma unidade de energia consumida ao longo do tempo. No contexto de um apagão, o valor relevante é a potência instantânea.
    2. Equilíbrio da Rede e Frequência:
      O sistema eléctrico europeu opera de forma síncrona a 50 Hz. Pequenas oscilações são normais, mas uma queda abrupta da frequência devido a défice de produção leva ao desligamento automático para proteger equipamentos e evitar danos de maior escala.
    3. Black Start:
      A reposição de energia após um blackout não pode ser feita automaticamente. Apenas certas centrais (normalmente hidroeléctricas) têm capacidade de arranque autónomo. Estas são usadas para religar gradualmente outras centrais e restabelecer a rede, num processo que pode demorar várias horas, dependendo da extensão do apagão e das infra-estruturas afectadas.

  • Graça Morais ganha meio milhão de euros em duas encomendas públicas

    Graça Morais ganha meio milhão de euros em duas encomendas públicas

    Apenas duas encomendas garantiram à pintora Graça Morais a façanha de facturar meio milhão de euros em cinco meses. E engana-se quem pense que se trata de encomendas feitas por bancos ou outros patronos ricos do sector privado. O gasto é público e é superior ao valor investido no ano passado pelo Estado na compra das 12 peças de arte proposta pela Comissão para a Aquisição de Bens Culturais para os Museus e Palácios Nacionais, que envolveu 428 mil euros.

    No caso das encomendas à pintora de 77 anos, membro da Academia Nacional de Belas Artes, os mecenas que abriram generosamente os cordões à bolsa são duas entidades públicas: o Município de Oeiras e a Provedoria da Justiça, que vão desembolsar 420 mil euros, que com o IVA ultrapassarão meio milhão de euros.

    Graça Morais / Foto: Egidio Santos/Centro de Arte Contemporânea Graça Morais

    A primeira encomenda, e a mais valiosa, no valor de 300 mil euros (excluindo o IVA), foi feita pela autarquia liderada por Isaltino Morais. Por ajuste directo, assinado a 22 de Novembro do ano passado, o munícipio assume a despesa milionária para a “aquisição da prestação dos serviços para criação, aquisição e trabalhos de um Mural Artístico em Caxias/Oeiras, no âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril”.

    Como é habitual, o caderno de encargos deste ajuste directo não está disponível na plataforma de contratação pública, o Portal Base, contrariando a legislação e as melhores práticas de transparência. Assim, não são conhecidos todos os contornos e condições da encomenda, cujo contrato é válido por 289 dias. O ajuste directo foi justificado com o facto de ser “necessário proteger direitos exclusivos, incluindo direitos de propriedade intelectual“. Mas não é referido como foi seleccionado o nome da pintora.

    Em Abril do ano passado, a autarquia divulgou uma publicação nas redes sociais sobre as iniciativas do município relacionadas com as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. Nessa publicação, destaca “o mural ‘Passeio da Democracia’, em homenagem à Revolução do 25 de Abril, dedicado aos presos políticos que estiveram no Forte de Caxias, da autoria da artista Graça Morais” e avança que “este mural irá gravar os 10 mil nomes de homens e mulheres que por ali passaram”.

    Isaltino Morais num discurso sobre as iniciativas de Oeiras no âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. / Foto: Captura de imagem de vídeo da autarquia de Oeiras

    Na mesma publicação, é divulgado um vídeo com o edil de Oeiras, Isaltino Morais, a afirmar que “a Graça Morais vai fazer um monumento escultórico, um mural alusivo à revolução e depois vamos ter um grande mural, um painel, um memorial, onde irão ser gravados os nomes de 10 mil homens e mulheres que passaram pela prisão de Caxias”.

    No contrato consultado pelo PÁGINA UM é referido que a encomenda artística será paga através da dotação orçamental com a classificação económica “artigos e objectos de valor” e “sistemas de solidariedade e segurança social”. Refere ainda que “a repartição plurianual de encargos no presente contrato foi autorizada por deliberação da assembleia municipal”.

    Em representação da pintora no contrato com a autarquia de Oeiras a assinatura é do advogado Francisco Teixeira da Mota. Da parte da autarquia, Emanuel Gonçalves, vice-presidente da Câmara Municipal de Oeiras. O PÁGINA UM apurou que a primeira tranche do contrato, no valor de 60.000 euros (73.800 euros, incluindo o IVA), foi paga à pintora na altura da adjudicação, com a factura-recibo emitida com data de 5 de Dezembro de 2024.

    blue hair brushes in vase

    Cinco meses depois, a pintora voltou a ‘cair nas graças’ de uma entidade pública. Desta vez, foi a Provedoria de Justiça que decidiu fazer uma encomenda a Graça Morais. O contrato por ajuste directo, no valor de 120 mil euros (excluindo o IVA), foi celebrado a 15 de Abril e visa a “aquisição de serviços de produção de obra de arte”, tendo um prazo de execução de 168 dias. Neste caso, a justificação para ter sido efectuado o ajuste directo é o facto de o “objeto do procedimento” ser “a criação ou aquisição de uma obra de arte ou de um espetáculo artístico“.

    Tudo indica que a encomenda foi feita no âmbito das comemorações dos 50 anos da existência da Provedoria de Justiça. Outra hipótese, menos provável, seria a encomenda de um retrato para a galeria de retratos de antigos provedores, que foi inaugurada a 18 de março de 2015, graças “à generosidade da Fundação Engenheiro António de Almeida, presidida por Fernando Aguiar-Branco, e ao traço do pintor João Freitas”.

    Mas não foi possível confirmar o motivo da encomenda porque o caderno de encargos deste ajuste directo também não está disponível ao público, com a Provedoria de Justiça a incorrer na mesma falta de transparência de que padecem muitas entidades públicas que omitem detalhes de contratos do Portal Base. A Provedoria de Justiça, contactada pelo PÁGINA UM, também se escusou a explicar o motivo da encomenda e como foi escolhido o nome da pintora.

    A provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, numa audição na Comissão Eventual para o Acompanhamento Integrado da Execução e Monitorização da Agenda Anticorrupção no Parlamento, em Fevereiro de 2025. / Foto: Captura de imagem a partir do vídeo da audição

    Na secção ‘Observações’ no Portal Base, a Provedoria de Justiça justificou que a aquisição da encomenda à pintora foi efectuada “por total ausência de número de trabalhadores e de competências internas para a realização do serviço em causa”. No caso desta contratação, a pintora recebeu 48.000 euros na assinatura do contrato e receberá a verba restante aquando da entrega da obra encomendada, segundo os termos do contrato.

    Curioso é facto de, apesar de ser uma pintora muito conceituada, no Portal Base apenas se encontram estes dois contratos feitos directamente com Graça Morais, desconhecendo-se se haverá outros adjudicados à pintora mas em nome de uma empresa, ou se possam ter sido feitos mas não terem passado pela plataforma de contratação pública.

    No entanto, pelo menos duas obras de Graça Morais foram já compradas por entidades públicas: em 2023, a Direção-Geral do Património Cultural comprou por 60 mil euros a pintura ‘O Bordel’, para expor no Museu do Côa; e em 2013 a autarquia de Loulé comprou uma obra de arte não especificada por 10 mil euros.

    A provedora de Justiça numa visita à galeria de retratos de antigos provedores com a presença do então líder do PSD, Rui Rio, durante a Semana da Justiça. / Foto: D.R.

    Sendo actualmente a pintora ainda no activo mais valorizada em Portugal, os 420.000 euros (516.600 euros com IVA incluído à taxa de 23%) que Graça Morais vai arrecadar em apenas duas encomendas, a desenvolver em menos de seis meses, aparenta ser ‘obra’. Com efeito, em diversos leilões realizados nos últimos anos em Portugal, apenas algumas das suas pinturas ultrapassam a fasquia dos 10 mil euros, sendo um dos casos a pintura ‘Sophia e o Anjo‘, um acrílico sobre papel vendido por 18 mil euros em 2018.

    No  Centro de Arte Contemporânea de Bragança, que tem o seu nome, está exposta uma parte importante do seu espólio artístico constituída por mais de 120 obras. Em 2021, a pintora transmontana, nascida em Vila Flor, doou um conjunto de 70 pinturas a este centro, atribuindo ao lote um valor de meio milhão de euros, ou seja, um valor médio um pouco acima de sete mil euros.

  • Poluição hídrica agravou: 39 concelhos sem ‘água de jeito’

    Poluição hídrica agravou: 39 concelhos sem ‘água de jeito’

    Num país onde a palavra Ambiente passou apenas a representar preocupações com as alterações climáticas e investimentos na chamada transição energética, a poluição hídrica mostra estar para durar — e a piorar. E nem é preciso ser cientista, ambientalista ou ecologista: basta saber ler e comparar os indicadores revelados esta semana pelo Instituto Nacional de Estatística, com base em informação da Agência Portuguesa do Ambiente (APA).

    Preto no branco — ou melhor, mais negro do que transparente —, a qualidade das águas superficiais — leia-se, rios e ribeiras — piorou globalmente na última década. De acordo com os dados agora divulgados — e que abrangem a totalidade dos 278 concelhos do Continente —, a proporção de massas de água com bom ou excelente estado ecológico baixou de 53,9% em 2015 para 46,6% em 2024. Um retrocesso de 7,3 pontos percentuais, com impactos particularmente devastadores nas zonas mais populosas e urbanizadas do país.

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    Com excepção da Área Metropolitana de Lisboa (AML) — que registou uma ligeira melhoria, passando de 12,3% em 2015 para 16,4% —, todas as regiões pioraram neste intervalo de tempo. Em todo o caso, a AML mantém-se como a região portuguesa com maior degradação ecológica, muito atrás das restantes. No Alentejo, em 2024, apenas 36% das massas de água estão em boas ou excelentes condições; no Centro, 50%; no Norte, 55%; e no Algarve, 63%.

    Os dados da APA — recolhidos com uma periodicidade trienal, e que começou em 2012 — abrangem cursos de água naturais, como rios, ribeiros e regatos, bem como canais de rega, uso industrial, navegação, sistemas de drenagem, aluviões (águas sub-superficiais) e reservatórios naturais e artificiais. Estão excluídas a água do mar, massas de águas estagnadas permanentes e as águas das zonas de transição, como pântanos salobros, lagoas e estuários.

    A análise concelhia revela em 2024 uma degradação transversal, com 39 concelhos sem qualquer massa de água classificada como de bom ou excelente estado. Esta falência ecológica absoluta estende-se por concelhos urbanos e industrializados — como Amadora, Barreiro, Estarreja, Lisboa, Loures, Maia, Odivelas, Oliveira do Bairro, Santarém, São João da Madeira, Santo Tirso, Seixal, Trofa, Valongo, Vila Nova de Famalicão e Vizela —, mas também por concelhos mais agrícolas, onde a poluição difusa, ainda que menos visível, é igualmente perniciosa. São os casos, entre outros, de Almeirim, Alpiarça, Bombarral, Cadaval, Carregal do Sal, Cuba, Golegã, Santa Comba Dão e Santa Marta de Penaguião. Zonas esquecidas e negligenciadas, que revelam uma governação ambientalmente falida e um alheamento político gritante.

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    Lisboa, um dos 39 concelhos do país sem qualquer massa de água em boas ou excelentes condições.

    Em 2015, a situação nacional já era má: 30 concelhos apresentavam 0% de massas de água em bom estado. Destes, 20 concelhos mantêm-se hoje na mesma condição, sem qualquer melhoria: Alenquer, Alpiarça, Amadora, Arruda dos Vinhos, Azambuja, Barreiro, Bombarral, Cadaval, Cartaxo, Golegã, Moita, Odivelas, Rio Maior, Santa Comba Dão, Santarém, São João da Madeira, Seixal, Sobral de Monte Agraço, Trofa, Valongo, Vila Nova de Famalicão. Ou seja, se em 2015 já estavam muito mal, em 2024 continuam exactamente no mesmo estado — ou pior.

    A Área Metropolitana de Lisboa, com os seus 18 municípios, apresenta o pior cenário nacional. A capital do país, Lisboa, surge agora com 0% de massas de água em bom ou excelente estado ecológico, descendo face aos 20% registados em 2015. A esmagadora maioria dos concelhos da AML mantém-se abaixo dos 25%, com excepção de Setúbal (50%) e Cascais (40%). O caso de Setúbal, que regista melhorias, esconde a estagnação geral da região — ou até o agravamento. A indústria da narrativa ambiental, sempre generosa em relatórios, brochuras e eventos, omite sistematicamente este colapso ecológico urbano.

    A Área Metropolitana do Porto também não escapa à indigência hídrica. A média dos seus 17 concelhos é de 35,2%, ligeiramente acima dos 34,7% registados em 2015. O Porto permanece nos 25%, Vila Nova de Gaia nos 40%, e Espinho nos 20%. Municípios como Maia, Santo Tirso, São João da Madeira, Trofa e Valongo continuam com 0% de massas de água em boas ou excelentes condições. Os números globais da região são apenas sustentados pela boa qualidade hídrica em Arouca (77%) e Vale de Cambra (90%).

    No quadro nacional, apenas sete concelhos apresentam 100% das massas de água com boa ou excelente qualidade em 2024: Arcos de Valdevez, Castanheira de Pêra, Manteigas, Montalegre, Pedrógão Grande, Ponte da Barca e Vila de Rei. Desses, apenas dois — Castanheira de Pêra e Vila de Rei — já ostentavam essa classificação em 2015. Por outro lado, concelhos como Lousã, Vila Nova de Poiares e Miranda do Corvo, que em 2015 estavam no patamar máximo de qualidade, sofreram quedas abruptas.

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    Rios der boa qualidade: uma miragem em muitas regiões do país.

    No cômputo geral, a degradação superou as melhorias. Comparando os dados de 2015 e 2024, identificam-se 80 concelhos que melhoraram, 128 que pioraram e 70 que mantiveram o seu desempenho — entre os quais os 20 que se mantiveram a 0% e os dois que mantiveram os 100%. Em termos de progressos mais expressivos, Belmonte, Pedrógão Grande, Rio Maior, Vila Flor, Fronteira e Castelo de Paiva registaram aumentos superiores a 40 pontos percentuais. Já em sentido inverso, concelhos como Anadia, Entroncamento, Estarreja, Mealhada, Nelas, Oliveira do Bairro e Vizela sofreram quedas superiores a 50 pontos percentuais.

    As causas para esta regressão da qualidade das águas superficiais são múltiplas: descargas poluentes não tratadas, redes de saneamento degradadas, expansão descontrolada da agricultura intensiva, ausência de investimentos estruturais em despoluição e, sobretudo, inacção política e mediática. O país mergulhou num discurso ambiental dominado pelas alterações climáticas e pela energia verde, esquecendo o essencial para a saúde pública e ecológica: a qualidade da água. Porque, como se sabe, o que está longe da vista está também longe do coração — e da acção.