Categoria: Sociedade

  • Banco Português de Fomento vai oferecer ‘carros desportivos’ aos directores de topo

    Banco Português de Fomento vai oferecer ‘carros desportivos’ aos directores de topo


    Numa sociedade guiada por valores materiais e ‘status’, um banqueiro tem de “parecer bem” e não pode ser visto num carro de gama baixa. Mas em Portugal basta ser director intermédio de um banco estatal, mesmo pequeno, para almejar sorte similar. Para quê ser austero quando se pode conduzir um topo de gama pago pelo erário público?

    Talvez tenha sido esse princípio de ouro da hierarquia social, de mostrar que se tem “status”, que fez com que o Conselho de Administração do Banco Português de Fomento (BPF), que é um banco estatal, lançasse um concurso público para encomendar, através de um contrato de aluguer de longa duração (ALD) de um total de 23 viaturas SUVs para a sua direcção de topo.

    Foto: D.R.

    O BPF é um banco estatal de apoio ao investimento, mas de pequeníssima dimensão face à mastodôntica Caixa Geral de Depósitos. Apesar de serem instituições financeiras muitíssimo distintas, basta dizer que a CGD teve um lucro de 1.735 milhões de euros no ano passado, enquanto o BPF teve resultados positivos de de 18 milhões de euros.

    Mas isso pouco parece importar na hora de mostrar ‘status’. O BPF vai desembolsar perto de 1,2 milhões de euros (981 mil euros, acrescido de IVA) para o aluguer de longa duração de 21 viaturas para dirigentes de topo, por cinco anos, e mais duas de luxo, por quatro anos, que incluirão vários extras.

    O concurso do banco público está, neste momento, a decorrer até finais deste mês, encontrando-se divido em cinco lotes, o que significa que pode ser entregues a diferentes empresas.

    Uma das viaturas que o BFE pretende alugar será da categoria deste Mercedes. / Foto: D.R.| Mercedes

    Segundo o caderno de encargos, consultado pelo PÁGINA UM, não são esquecidos alguns pormenores de luxo e distinção. O primeiro lote a concurso refere-se à encomenda de “uma viatura tipo SUV, com motorização híbrido plug-in/gasolina, tração integral, cinco portas” com uma potência combinada de 455 cavalos, de cor “preto ónix”.

    O equipamento mínimo obrigatório inclui “lotação máxima: sete lugares; cinco portas; depósito combustível 71 litros, pintura metalizada, tecto panorâmico, câmara 360º, vidros traseiros escurecidos”. A cor interior exigida é “nórdico acolchoado em carvão, jantes 21″ com 5 raios múltiplos pretos, corte em diamante”.

    Só este veículo terá um custo base de aluguer de 62.400 euros (76.752 euros com IVA), ou 1.600 euros por mês. A este valor acresce a despesa 3.150 euros com custos administrativos e operacionais.

    gray vehicle rim with tire
    Foto: D.R.

    O lote 2 abrange a encomenda de uma viatura sedan/limousine de cor “metalizada preto Obsidian”, com motorização híbrido plug-in/gasolina, de cinco portas, e potência de 280 kw – 381 cv. O custo desta viatura será de 65.067 euros, com uma renda mensal de 1.356 euros, a que se somam custos administrativos e operacionais de 2.600 euros.

    As especificidades mínimas obrigatórias incluem “pintura metalizada, jantes liga leve 18″, Apple car play, bancos dianteiros ajustáveis eletricamente”. Os interiores têm de ser em “couro Artico/microcut preto”. A encomenda exige ainda como extras um “pack desportivo premium, jantes 5 raios 18”, vidros traseiros
    escurecidos”.

    O lote 3 abrange 16 viaturas “tipo SUV, motorização híbrido plug-in/gasolina, cinco portas”. O custo será de 767.520 euros, com rendas mensais por viatura de 799 euros, num total de 12.784 euros, a pagar durante cinco anos.

    Estas viaturas têm de ter transmissão automática de
    oito velocidades, tracção às quatro rodas, barras de tejadilho (talvez para meter pranchas de surf, bicicletas ou caiaques), volante desportivo e bancos dianteiros também desportivos. Presume-se que são os “essenciais” para qualquer profissional “financeiro”. Como extras obrigatórios, o BFE exige ainda um “pack desportivo e vidros com protecção solar”.

    Das 16 viaturas, oito terão de ser de cor “cinza prata Space” e oito de cor “preto Sapphire metalizada”, enquanto os interiores ostentarão uma “combinação de Alcantara M/Veganza, preto/pesponto de contraste em azul”.

    Este novo modelo da Volvo encaixa nas exigências do BFE para uma das viaturas que vai alugar. / Foto: D.R.

    O lote 4, por sua vez, diz respeito a quatro veículos tipo SUV, de motorização híbrido/gasolina, com cinco portas, pintura metalizada e equipadas com sensores de estacionamento, cruise control adaptativo, jantes de liga leve de 17 polegadas, Apple Car Play, faróis led, câmara de assistência ao estacionamento, caixa automática e barras de tejadilho. Duas serão de cor “cinza Vapour” e duas de cor “preto Ónix”. Os interiores já serão mais “baratinhos”, apenas revestidos com “tecido antracite”. No caso deste lote, a despesa ficará em 191.880 euros, com uma renda global de 3.198 euros.

    Por fim, o lote 5 abrange uma viatura “SUV, híbrido/gasolina, cinco portas, sete lugares” com um custo de 47.970 euros e uma renda mensal de 799 euros. As especificidades mínimas obrigatórias incluem “pintura metalizada, barras de tejadilho, sistema de
    estacionamento traseiro e câmara traseira, vidros eléctricos
    condutor e passageiro, ar condicionado automático, luzes de
    circulação diurna em led, limpa vidros automático, faróis led e jantes de liga leve”.

    Como é habitual, o ALD de viaturas por entidades públicas é feito com o argumento de que a despesa engloba encargos com seguros, impostos e serviços de manutenção. Contudo, os veículos não ficam na posse do Estado, não podendo assim ser disponibilizados a outras entidades públicas após alguns anos de uso.

    person standing near the stairs
    Numa sociedade orientada para o “estatuto”, qualquer executivo que se preze conduz um carro topo de gama, mesmo que o mesmo seja pago pelo erário público. / Foto: D.R.

    Note-se que a despesa que o BPF pretende agora fazer com aluguer de viaturas para dirigentes contrasta com os 599.335 euros que o banco público gastou nos últimos cinco anos para o mesmo tipo de contratação, segundo dados do Portal Base.

    Com efeito, em 2021, o BPF gastou 165.970 euros (sem IVA) num contrato de aluguer de nove viaturas para os seus quadros. Em 2023, efectuou três contratos de 130.216 euros, 140.006 euros e 19.800 euros. Por fim, em 2024, fez um novo contrato para o aluguer de uma viatura de 31.272 euros. No total, estes contratos resultam na soma de 599.335 euros (com IVA).

    Assim, nos últimos cinco anos, somando todos os contratos, o BPF assumiu uma despesa de mais de 1,8 milhões de euros no aluguer de veículos para os seus quadros.

  • Mais flexíveis mas mais vulneráveis na amarração: cabos de alma de fibra foram escolha de um professor de Engenharia Mecânica

    Mais flexíveis mas mais vulneráveis na amarração: cabos de alma de fibra foram escolha de um professor de Engenharia Mecânica


    Foi um professor catedrático de Engenharia Mecânica do Instituto Superior Técnico (IST), Tiago Lopes Farias, que decidiu em Abril de 2022, um mês antes de deixar a presidência da Carris – que ocupou durante seis anos – substituir os tradicionais cabos de tração do elevador da Glória – e dos outros ascensores – passando de alma de aço por cabos com alma de fibra. E foi ele próprio, mais um dos seus vice-presidentes, quem assinou o contrato com a Sociedade de Aprestos por Navios, de acordo com documentos a que o PÁGINA UM teve acesso.

    Qual a razão desta alteração, Tiago Lopes Farias mantém um comprometedor silêncio. Aliás, apesar de inúmeros especialistas e investigadores do IST já se terem pronunciado sobre o desastre de 3 de Setembro, este professor catedrático – que esteve durante cerca de seus anos à frente da Carris e teve outros cargos em empresas públicas no sector dos transportes – mantém um comprometedor silêncio.

    Tiago Lopes Farias foi presidente da Carris entre 2016 e Maio de 2022. Foi ele que assinou o contrato que mudou a tipologia dos cabos dos ascensores. Não respondeu sobre os motivos técnicos dessa escolha, apesar de ser professor de Engenharia Mecânica do Instituto Superior Técnico.

    O PÁGINA UM questionou Tiago Lopes Farias, através de e-mail, sobre os fundamentos da troca dos cabos em 2022, sobre a existência de pareceres técnicos que sustentaram a mudança, se foram realizados ensaios de fadiga e de durabilidade antes da instalação, se houve comparação da vida útil dos dois materiais em condições reais de operação e se a alteração partiu da Carris ou foi sugerida pelo fornecedor. Nenhuma destas perguntas obteve resposta.

    A troca do cabo de alma de aço por cabo de alma de fibra não reside, segundo apurou o PÁGINA UM, na resistência à tracção, porque aí são praticamente semelhantes, se cumprirem as normas europeias de segurança. A diferença poderá estar no comportamento distinto sobretudo no ponto mais sensível: a zona de amarração, onde o cabo é fixado por terminais, grampos ou cunhas. É nesse local que se concentram esforços e curvaturas e onde se inicia, na maior parte das vezes, situações de degradação, por vezes lenta, que pode levar à ruptura ou ao deslizamento.

    O processo de amarração do cabo, que devem ser substituídos a cada cerca de dois anos, consiste em prender o cabo de forma a que este não deslize nem se solte, transmitindo toda a carga ao terminal. No caso de cabos com alma de aço, o núcleo metálico ajuda a manter a geometria interna e distribui parte das tensões, resistindo melhor ao esmagamento provocado pela pressão do terminal.

    Foto: D.R.

    Já nos cabos com alma de fibra, como o núcleo é deformável existe o risco de processos de ‘compactação’ ao longo do tempo, o que, a ocorrer, reduz o diâmetro do cabo, criando folgas internas e permitindo micro-movimentos dos fios exteriores. Esses movimentos não causam uma falha imediata – e, portanto, não é detectável no momento da substituição do cabo –, mas funcionam como uma espécie de ‘corrosão’ mecânica invisível, acumulando desgaste até gerar uma zona de fragilidade crítica.

    Caso suceda, como é uma hipótese plausível no acidente do elevador da Glória, o risco pode manifestar-se de duas formas. A primeira é o deslizamento lento: à medida que a alma de fibra se acomoda, a pressão do terminal deixa de ser suficiente para garantir a fixação, e o cabo pode começar a ceder milímetro a milímetro até perder totalmente a ancoragem. A segunda é a ruptura progressiva: os fios exteriores, sobrecarregados porque o núcleo não absorve esforços, vão sofrendo fadiga, partindo-se um a um até que o conjunto já não resiste à carga e colapsa subitamente. Ambos os processos podem ser demorados, desenvolvendo-se ao longo de meses – e pior: sem sinais visíveis até à iminência do acidente.

    Primeira página do contrato assinado por Tiago Lopes Farias que escolheu o cabo de alma de fibra, com boa resistência à tracção, mas mais vulnerável na zona da amarração.

    É por isso que, segundo especialistas consultados pelo PÁGINA UM que preferem o anonimato, os manuais técnicos e normas europeias, como a EN 12385-8, insistem que a escolha da alma do cabo não se deve limitar à resistência nominal, mas ao comportamento em serviço real, com destaque para a zona de amarração. A ciência dos materiais destaca, aliás, que falhas como as que terão ocorrido no elevador da Glória, raramente são instantâneas: começam com pequenas deformações internas, prossegue com micro-movimentos repetidos, instala-se com a fadiga acumulada e termina num colapso que, quando ocorre, já não pode ser evitado.

    Um presidente da Carris com formação em Engenharia Mecânica ou os departamentos de segurança e manutenção da empresa municipal tinham a obrigação de ter noção destes riscos? A resposta pode ser dada pelo senso comum – que já pouco vale para as 16 vítimas mortais.

  • Cabo de aço do elevador da Glória custou 7.783 euros em 2020, mas Carris decidiu depois ‘poupar uns cobres’

    Cabo de aço do elevador da Glória custou 7.783 euros em 2020, mas Carris decidiu depois ‘poupar uns cobres’


    A Carris gastou, em Agosto de 2020, apenas 7.783 euros na compra do cabo de aço que literalmente sustentava o Elevador da Glória. Dois anos depois, em Março de 2022, já em vésperas da entrada em funções da actual administração liderada por Pedro Bogas, decidiu “poupar” e adquiriu um cabo de menor qualidade, com alma de fibra, por um custo unitário 43% inferior. O barato poderá ter saído bem caro, com 16 mortos e mais de duas dezenas de feridos no desastre de 3 de Setembro passado.

    De acordo com facturas e notas de encomenda a que o PÁGINA UM teve acesso — e perante a incompreensível recusa da Carris em disponibilizar documentos que deveriam estar há anos no Portal Base —, tudo indica que a empresa municipal julgou poder “poupar uns cobres” optando por cabos com menos aço.

    Acidente de 3 de Setembro causou a morte de 16 pessoas e ferimentos em mais de duas dezenas.

    Na primeira metade de 2020, a Carris adquiriu à empresa ExtraCabos, com sede em Paio Pires, cabos certificados para uso em elevadores de passageiros, com alma de aço (IWRC), configurados para garantir boa resistência à tracção e maior durabilidade à fadiga provocada pelo contínuo dobrar e desdobrar nas polias.

    Essa opção seguia a prática consolidada no sector dos transportes e o espírito da norma europeia EN 12385-8, que admite diferentes tipos de núcleo, mas cuja aplicação em transporte de passageiros tem levado, por regra, à utilização de alma metálica, pelo nível de segurança exigido. Para assegurar essa conformidade, a Carris pagou mais 6.000 euros pela certificação, garantindo o cumprimento das regras específicas para transporte de pessoas.

    Tanto para o cabo do Ascensor da Glória como para o do Lavra, tratava-se de um modelo específico para transporte de passageiros, em aço galvanizado, com 32 milímetros de diâmetro e resistência de 1770 N/mm², cumprindo a norma EN 12385-8. Era um cabo 6×19 Seale IWRC, isto é, seis pernas com 19 fios cada, assentes sobre uma alma de aço independente, garantindo maior robustez e segurança. A carga mínima de ruptura (CRM) era de 662 kN, cerca de 67 toneladas-força. Para o Glória foram fornecidos 276 metros, ao preço unitário de 28,20 euros, num total de 7.783 euros (sem IVA).

    Em 2020, a Carris ainda comprou cabos com alma de aço e certificação EN 12385-8.

    Porém, em 2022, a Carris optou por uma solução distinta: cabos com alma de fibra (CF). À primeira vista, o diâmetro era o mesmo (32 mm), com CRM de 662 kN — equivalentes a cerca de 66 toneladas-força. Apesar de teoricamente suficiente para suportar as solicitações estáticas de um funicular, especialistas ouvidos pelo PÁGINA UM explicam que a questão crítica não é a resistência bruta, mas sim o comportamento em serviço.

    A alma de fibra — que, ao contrário do que escreveu erradamente o Expresso, só começou a ser usada em 2022, já no mandato de Carlos Moedas, e não em 1999, ainda no tempo de Fernando Medina — oferece menor resistência à compressão, maior alongamento e degrada-se mais rapidamente sob flexão repetida: exactamente o esforço a que estão sujeitos os ascensores históricos lisboetas.

    Além disso, ao contrário de 2020, a Carris não terá solicitado à fornecedora Sociedade de Aprestos para Navios, então ainda no Cais do Sodré, a certificação segundo a norma europeia. A decisão, em Março de 2022, foi da anterior administração, liderada por Tiago Farias, curiosamente doutorado e professor em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico.

    Cabos mais baratos, menos resistentes e sem garantia de certificação foram comprados apenas a partir de 2022: a Carris nem sequer quer agora explicar as explicar as decisões de um passado recente.

    “O problema destes cabos não é a força de ruptura, mas sim a fadiga. Um cabo com alma de fibra perde estabilidade mais depressa quando sujeito a ciclos repetidos de flexão — e isso é precisamente o que acontece nos funiculares da Glória, Lavra e Bica”, explicou ao PÁGINA UM um engenheiro de materiais com experiência em certificação de cabos de tracção.

    O argumento económico também ajuda a compreender a escolha. Entre 2020 e 2022 os preços das matérias-primas, sobretudo do aço, dispararam devido sobretudo à pandemia e à guerra da Ucrânia. Seria de esperar que os cabos de aço para elevadores históricos se tornassem mais caros. Mas os documentos mostram o inverso: em 2022 a Carris comprou cabos mais baratos por metro do que em 2020, apesar da conjuntura adversa.

    Nesse ano foram adquiridos 1.000 metros de cabos de 32 mm, suficientes não apenas para a substituição de 2022 mas também para a de 2024, dado que o Glória necessita de 276 metros e o Lavra de 188.

    Carlos Moedas, com a ministra do Ambiente e o presidente da Carris, ao fundo, no anúncio da Carris da formalização da candidatura da empresa para fornecimento de 15 elétricos, em 28 de Junho de 2024.
    / Foto: CML/ D.R.

    Em suma, ao mudar a especificação técnica, a Carris reduziu o custo por metro de 28,20 euros para 16,05 euros — uma poupança de 43% a preços nominais, mas sacrificando a durabilidade e o desempenho. “É uma poupança ilusória. Os cabos de fibra custam menos à cabeça, mas duram metade do tempo, e isso talvez não tenha sido ponderado quando se atribuiu a durabilidade prevista”, nota a mesma fonte.

    A diferença entre cabos com alma de aço (IWRC) e cabos com alma de fibra (CF) é crucial. Os primeiros oferecem maior resistência à ruptura, menor alongamento e duram mais sob esmagamento em polias e tambores, sendo por isso os mais indicados para sistemas de transporte de passageiros como os funiculares e acensores.

    Já os segundos — mais baratos e flexíveis, mas menos robustos — são adequados a guinchos, gruas de oficina ou sistemas auxiliares, mas não a equipamentos que puxam “trambolhos” como os ascensores de Lisboa. A capacidade de ruptura sobretudo em zonas sensíveis de ligação pode cair entre 7% e 10% face a um cabo equivalente com alma de aço.

    Logo após o acidente, o PÁGINA UM pediu repetidamente à Carris documentação sobre as compras de cabos. A administração, que inicialmente prometeu fornecer todos os elementos, passou a recusar, invocando que decorrem inquéritos do GPIAAF e do Ministério Público.

    Confrontada com os documentos relativos às aquisições de 2020 e 2022 — estes últimos usados, em princípio, na substituição de 2024 e que romperam em Setembro —, a Carris respondeu que “os elementos e a documentação, referidos nas perguntas, abrangem um período alargado que começa em 2020”, apesar de se tratar apenas de duas ou três compras em seis anos. E acrescentou que, por estarem em curso os inquéritos, “neste momento não nos podemos pronunciar sobre estas matérias”. Uma justificação que se tornou, afinal, uma conveniente desculpa para obscurecer um processo que exigia transparência absoluta.

    O PÁGINA UM também contactou a empresa Sociedade de Aprestos para Navios, agora com sede em Alcântara – que terá fornecido os cabos em uso aquando do acidente – no sentido de saber se estes cumpriam as normas europeias, mas não foi ainda possível falar com nenhum responsável.

  • Assim vão ter de arranjar outro nome: INPI dá nega ao podcast dos Gato Fedorento

    Assim vão ter de arranjar outro nome: INPI dá nega ao podcast dos Gato Fedorento


    O Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) recusou aceitar a protecção da denominação do podcast do jornal Expresso da autoria de Ricardo Araújo Pereira, Miguel Góis e José Diogo Quintela, três dos quatro membros do Gato Fedorento. “Assim vamos ter de falar de outra maneira”, lançado em Março deste ano, não conseguiu que a entidade responsável pelo registo de marcas aceitasse a expressão escolhida pelos três humoristas, alegando “falta de capacidade distintiva”.

    De acordo com um documento explicativo das causas de recusa, o INPI considera que a falta de capacidade distintiva “engloba tanto os sinais descritivos como todos aqueles que, não sendo totalmente descritivos, não atingem o patamar mínimo da distintividade”, dando como exemplo a denominação “polvo assado no forno com arroz do mesmo“. O despacho definitivo foi publicado em meados de Agosto e tornar-se-á definitivo no próximo mês de Novembro, caso não haja recurso.

    Podcast do Expresso começou em Março deste ano, mas não tem protecção jurídica para a marca.

    Requerida em 11 de Fevereiro, a denominação escolhida pelos três humoristas pretendia protecção para a classe 41 da Classificação de Nice – que cobre serviços de educação, entretenimento, publicação e eventos culturais – e chegou a ser publicada provisoriamente no boletim do INPI. Contudo, em Junho surgiu a recusa provisória, invocando o artigo 23.º do Código da Propriedade Industrial, que impede o registo de expressões banais ou demasiado descritivas ou genéricas.

    A consequência desta decisão não implica que Ricardo Araújo Pereira, Miguel Góis e José Diogo Quintela deixem de usar a denominação no podcast do Expresso, mas ficam sem protecção legal exclusiva. Assim, em teoria, qualquer outra entidade ou pessoa pode lançar um programa com designação idêntica ou muito semelhante sem incorrer em infracção de marca. A única salvaguarda possível dos três Gato Fedorento reside nos direitos de autor sobre os conteúdos originais, mas não sobre o nome do programa.

    Este episódio evidencia a importância do registo de marca no sector mediático, onde a diferenciação não se joga apenas no conteúdo, mas também no título. E Ricardo Araújo Pereira esteve indirectamente envolvido num processo que mostra essa importância. Com efeito, o humorista integrou desde 2008, com Pedro Mexia e João Miguel Tavares, e com moderação de Carlos Vaz Marques, a equipa do programa satírico Governo Sombra, inicialmente apenas na TSF.

    Ricardo Araújo Pereira, Miguel Góis e José Diogo Quintela, três dos quatro membros dos Gato Fedorento.

    À época, os quatro autores do programa não registaram a marca em seu nome próprio, mas, no mesmo mês em que foi inaugurado, em Outubro de 2008, houve um particular (Ricardo Manuel das Neves Campos) que solicitou o registo. O INPI deferiu o pedido poucos meses mais tarde, mas aparentemente nunca houve conflitos entre o titular da marca e os autores do programa radiofónico, que foi consolidando a sua notoriedade, primeiro na rádio e depois na TVI24, antecessora da CNN Portugal.

    “No primeiro ano de programa recebemos queixas de uma banda rap da Margem Sul, dizendo que lhes tínhamos roubado o nome”, relembrou Carlos Vaz Marques ao PÁGINA UM. “Não ligámos, por duas razões: porque uma banda rap (ainda para mais desconhecida) e um programa de televisão são produtos totalmente distintos. Também nunca ninguém confundiu o grupo GNR com a Guarda Nacional Republicana”, acrescenta. Em todo o caso, mesmo que chegasse a litígio, não haveria qualquer problema porque os registos de marcas aceita denominações comuns desde que para actividades distintas.

    Em todo o caso, os autores do ‘Governo Sombra’ não se preocuparam com o registo e em 2012 aceitaram o convite da TVI para que o programa passasse a ter também transmissão televisiva, “com a anuência da TSF”, conforme salienta Carlos Vaz Marques. Mas essa anuência, em 2012, não incluía o uso da marca, porque a empresa da TSF ainda não a detinha.

    black and silver headphones on black and silver microphone

    Só quando o detentor da marca (Ricardo Manuel das Neves Campos) registada em 2008 não a renovou é que a Rádio Notícias, sociedade gestora da TSF (hoje nas mãos da empresa Notícias Ilimitadas) se aproveitou e solicitou a caducidade do registo. E em Setembro de 2017, a Rádio Notícias obteve despacho favorável e passou a deter o registo do título Governo Sombra.

    Somente quando, em 2021, o moderador Carlos Vaz Marques saiu em litígio da TSF e quis levar o programa com Ricardo Araújo Pereira, Pedro Mexia e João Miguel Tavares para a SIC Notícias é que foram confrontados com a nova realidade. “Por ingenuidade nunca registámos o título”, lamenta o moderador do programa e editor da Zigurate, afirmando que “foi para nós uma surpresa e um choque quando percebemos que a TSF tinha registado a marca à nossa revelia”. Ainda mais surpreendente porque, como diz o moderador do ex-Governo Sombra, a TSF “nunca mais pagou um cêntimo” a Ricardo Araújo Pereira, João Miguel Tavares e Pedro Mexia depois de o programa passar a ser transmitido pela TVI, a partir de 2012.

    Certo é que, por causa do registo da marca no INPI, o quarteto ficou impedido de usar a denominação Governo Sombra, apesar da notoriedade do formato estar a eles associada. E daí nasceu o Programa cujo nome estamos legalmente impedidos de dizer – uma ironia explícita à perda do título anterior, mas que curiosamente ficou registado no INPI não em nome dos autores, mas da SIC Notícias.

    Por razões de registo de marca, o ‘Governo Sombra’ – criado por Ricardo Araújo Pereira, Carlos Vaz Marques, Pedro Mexia e João Miguel Tavares – foi obrigado a mudar a sua denominação.

    Ou seja, se um dia o programa sair do Grupo Impresa, provavelmente os autores terão de registar uma denominação do estilo Programa cujo nome estamos pela segunda vez legalmente impedidos de dizer, o que pode parecer anedótico, mas é juridicamente incontornável.

    Até à presente recusa, todos os pedidos de marca ligados a Ricardo Araújo Pereira, mesmo com as denominações mais estapafúrdias, tinham sido bem-sucedidos. O INPI concedeu-lhe, em exclusivo, o uso das marcas para programas televisivos e podcasts como Isto é gozar com quem trabalha, Gente que não sabe estar e Coisa que não edifica nem destrói.

    Também o nome Gato Fedorento está protegido como marca desde 2006, e pelo menos até 2027, mas neste caso o registo está em nome do quarteto original: Ricardo Araújo Pereira, José Diogo Quintela, Miguel Góis e o ‘renegado’ Tiago Dores. Nestes casos, o INPI reconheceu carácter distintivo suficiente, permitindo que as expressões funcionassem como sinais identificadores de origem.

    Registo da recusa da denominação da marca ‘Assim vamos ter de falar de outra maneira’.

    No entanto, no caso do podcast do Expresso, a decisão foi diferente. Para o INPI, a expressão “Assim vamos ter de falar de outra maneira” aproxima-se demasiado de um slogan comum ou de uma frase de uso corrente, sem a originalidade necessária para funcionar como marca. A entidade que regista marcas e patentes tem sido consistente: slogans são aceitáveis como marcas apenas quando adquirem singularidade ou fantasia capaz de individualizar serviços ou produtos. Expressões genéricas, mesmo que criativas, devem permanecer de uso livre.

    Em todo o caso, este desfecho acaba por ser irónico: os três humoristas que construíram a carreira com engenho linguístico e capacidade de manipular a língua portuguesa de forma criativa viram-se barrados precisamente pelo carácter “banal” da frase escolhida, segundo o burocrático INPI. Se o título pretendia ser um comentário metalinguístico, a lei exige originalidade suficiente para o registo. Assim vão ter de arranjar outro nome…

    N.D. (20h08 de 27/9/2025) – O PÁGINA UM recebeu o seguinte esclarecimento do Departamento de Relações Externas do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), que comenta no final:

    Na sequência do artigo publicado na edição do jornal digital Página Um de 22 de setembro de 2025, com o título “Assim vão ter de arranjar outro nome: INPI dá nega ao podcast dos Gato Fedorento”, gostaríamos de esclarecer alguns aspetos essenciais, de forma a clarificar o verdadeiro motivo da recusa da marca em questão.

    Ao contrário do que é referido na peça jornalística, o indeferimento não se deveu à utilização de “expressões banais ou demasiado descritivas ou genéricas”, mas sim à ausência de elementos obrigatórios no pedido, designadamente:

    • A indicação do número de identificação fiscal dos três requerentes da marca;
    • O envio de documento que comprovasse a legitimidade da signatária do requerimento para apresentar e assinar o pedido de registo em nome dos requerentes (declaração ou procuração).

    O Instituto Nacional da Propriedade Industrial envidou todos os esforços para que a irregularidade fosse suprida, emitindo sucessivas notificações para o efeito. Contudo, a correspondência foi devolvida ou não obteve resposta. Perante esta situação, a decisão de recusa provisória foi convertida em definitiva, nos termos do n.º 5 do artigo 229.º do Código da Propriedade Industrial.

    Estamos naturalmente ao dispor para prestar quaisquer esclarecimentos adicionais. Sempre que surjam dúvidas relacionadas com este ou outros processos, não hesite em contactar-nos.

    Com os melhores cumprimentos,

    O PÁGINA UM indica na notícia que o INPI destaca, na fundamentação da recusa, a alínea c) do artigo 23.º do CPI, que se refere à “inobservância de formalidades ou procedimentos imprescindíveis para a concessão do direito”. Se a causa da recusa foi o não envio dos números de contribuintes e a legitimidade de quem solicitou a marcam então deveria ser invocada a alínea b), ou seja, “a não apresentação dos elementos necessários para uma completa instrução do processo”. O PÁGINA UM pediu esclarecimentos subsequentes sobre esta matéria ao INPI, mas ainda não chegaram.

  • Festa do Livro em Belém 2025: Marcelo estoura em música o dinheiro que daria para 15 bolsas literárias

    Festa do Livro em Belém 2025: Marcelo estoura em música o dinheiro que daria para 15 bolsas literárias


    Na próxima quinta-feira, e durante quatro dias, os jardins do palácio presidencial de Belém abrem as portas aos amantes do livro para mais uma celebração dedicada à literatura e aos escritores. Mas a edição deste ano do evento cultural promovido por Marcelo Rebelo de Sousa desde 2016 dever-se-ia chamar antes, mais apropriadamente, Festa da Música Pop & Rock. Isto porque, na derradeira festa em prol da promoção dos escritores e das letras, o Presidente da Republica decidiu puxar da pena e do tinteiro e ‘passar um cheque’ de 235.594 euros para a contratação de estrelas da música rock e pop nacionais.

    Assim, em quatro dias de festa do livro, só em cantorias e guitarradas (e outros instrumentos, claro) a Presidência da República vai gastar uma verba equivalente a quase 16 bolsas anuais de criação literária de 15.000 euros, como as que são atribuídas anualmente pelo Governo. Essas bolsas podiam acrescentar-se às (apenas) 24 que serão atribuídas este ano pelo Governo para a poesia, ficção narrativa, dramaturgia e ensaio. A verba para os efémeros concertos daria para comprar quase 14 mil livros ao preço unitário de 17 euros.

    Feira do Livro de Belém: escritores são os reis, mas quem recebe são os músicos.. Foto: Pedro Matias / Museu da Presidência.

    O evento, que tem este ano a sua oitava edição — depois de uma pausa de dois anos na pandemia de covid-19 — sofreu um adiamento devido à tragédia no elevador da Glória. Vai agora ter lugar entre os dias 25 e 28 de Setembro e conta com uma programação que inclui jogos didáticos, debates, sessões de autógrafos, apresentações de livros mas, sobretudo, concertos musicais.

    O cartaz de música anunciado conta com a performance de cinco estrelas nacionais: Xutos & Pontapés, Rui Veloso Trio, Carolina Deslandes, Bárbara Tinoco e Fernando Daniel — este último adicionado à programação após o adiamento do evento.

    A animação musical do primeiro dia da Festa do Livro em Belém custou 68.080 euros aos contribuintes. Isto porque sobem ao palco no dia 27 de Setembro o Rui Veloso Trio, cuja contratação, feita através da PG Booking, ascendeu a 34.870 euros, com IVA incluído. O contrato não foi redigido a escrito, pelo que não está disponível no Portal Base, onde ficam registados os contratos públicos. Também actuará no mesmo dia a cantora Carolina Deslandes, por um custo de 33.210 euros, por via de um contrato feito com a empresa Sons em Trânsito, que também não foi redigido a escrito.

    Marcelo Rebelo de Sousa na primeira edição da Festa do Livro em Belém com o escritor luso-americano Richard Zimler / Foto: Miguel Figueiredo Lopes / Museu da Presidência

    No segundo dia do evento, a animação musical ficará a cargo de Bárbara Tinoco, que cobrou 33.210 euros à Presidência da República, através da empresa Primeira Linha.

    No dia 27 de Setembro, será a vez de subir ao palco o cantor Fernando Daniel, que bisa a presença neste evento anual da Presidência. A contratação do artista ainda não se encontra registada no Portal Base. Mas no ano passado, o cantor cobrou 31.057 euros, com IVA, através da Universal Music Portugal, para actuar na Festa do Livro em Belém.

    A edição deste ano do evento termina com um concerto dos Xutos & Pontapés que cobraram 53.505 euros para actuar, através da Xutos 6 Pontapés – Produções Musicais. O contrato também não foi redigido a escrito.

    A banda de rock Xutos & Pontapés encerra a Festa do Livro em Belém 2025 por um custo de 53.505 euros. / Foto: D.R.

    Aos custos da contratação destas “estrelas” acrescem mais três contratos. Um deles, no valor de 23.973 euros, é relativo à “aquisição de serviços de riders técnicos de som e luz para os concertos”. Para o efeito, foi contratada a empresa Rapsódia de Ritmos, sem haver contrato escrito.

    Foi também adjudicado um contrato no valor de 17.035 euros à empresa Wireless Voice referente à “aquisição de serviços audiovisuais, som e luz para os viveiros e cablagem e transmissão vídeo e áudio dos concertos no Led Wall”. Já a “aquisição de aluguer de palco” foi adjudicada à WiseDevotion, por 8.733 euros.

    Além de apostar em concertos de música rock e pop, esta edição da Festa do Livro em Belém contrasta com as anteriores em matéria de custos com animação musical. Uma análise aos contratos registados no Portal Base revela que a despesa com a contratação de cantores e bandas nos anos anteriores foi muito inferior à registada este ano.

    Jardins de Belém enche de livros mas escritores continuam a ser o parente pobre da Cultura. Foto: Museu da Presidência

    Marcelo Rebelo de Sousa despede-se, assim, com uma Festa do Livro de arromba do seu mandato final na Presidência. Mas, se tivesse antes aplicado os 235.594 euros gastos em concertos este ano, no investimento em literatura, Marcelo poderia ter incluído no seu legado como Presidente da República a criação de 15 bolsas de criação literária, e ainda dava mais um meses para uma mais.

    Mas, numa sociedade que vive de costas voltadas para a leitura e em que proliferam posts e selfies, não admira que até a Presidência prefira gastar verbas em arraiais de música, mas, claro, com a Literatura na lapela e os escritores no bolso.

  • Carris: investimento real na manutenção de eléctricos caiu 21% entre o último ano de Medina e o terceiro de Moedas

    Carris: investimento real na manutenção de eléctricos caiu 21% entre o último ano de Medina e o terceiro de Moedas


    A Carris sob a tutela de Carlos Moedas, no período 2022-2024, reduziu de forma expressiva o investimento real na manutenção e reparação dos eléctricos e ascensores, quando comparado com os quatro anos anteriores, em que Fernando Medina liderava a autarquia (2018-2021). Comparar o investimento do último do mandato do socialista (2018) com o terceiro ano do mandato do social-democrata é constatar que o investimento em manutenção caiu 566 mil euros em termos práticos.

    De acordo com a análise detalhada do PÁGINA UM aos relatórios e contas da empresa municipal desde 2018, verifica-se que no último ano de Medina, em 2021, foram aplicados cerca de 2,68 milhões de euros em valores reais — já corrigidos pelo efeito da inflação. Em 2024, essa verba caiu para apenas 2,11 milhões de euros, o valor mais baixo da série e que representa um corte de 21% em termos efectivos. Embora os montantes nominais tenham permanecido aparentemente estáveis ao longo de todo o período de análise desde 2018 — na ordem dos 2,5 a 2,7 milhões de euros anuais —, o impacto da inflação no último triénio traduziu-se num desinvestimento inequívoco.

    Carlos Moedas, com a ministra do Ambiente e o presidente da Carris no anúncio da Carris da formalização da candidatura da empresa para fornecimento de 15 elétricos, em 28 de Junho de 2024.
    / Foto: CML/ D.R.

    O contraste entre os dois ciclos autárquicos é notório. Entre 2018 e 2021, sob Medina, o investimento real em manutenção e reparação dos eléctricos cresceu de 2,41 para 2,68 milhões de euros, traduzindo um aumento efectivo de 11%. Já entre 2022 e 2024, sob Moedas, o percurso foi inverso: os valores reais caíram consecutivamente, de 2,37 milhões em 2022 para 2,11 milhões no ano passado. Esta trajectória anulou os ganhos do ciclo anterior e mergulhou a cidade numa situação de subfinanciamento estrutural, precisamente numa fase em que a inflação acelerava e exigia maior esforço orçamental. O ano de 2024 foi mesmo aquele com valores reais, a preços de 2018, mais baixos nos últimos sete anos.

    Compreender esta evolução obriga a distinguir valores nominais de valores reais. Os primeiros correspondem às verbas inscritas em orçamento e efectivamente gastas; os segundos resultam da aplicação de deflatores baseados no Índice de Preços no Consumidor (IPC), que corrigem a perda de poder de compra causada pela inflação. Assim, um milhão de euros em 2018 não tem o mesmo peso económico que um milhão de euros em 2023 ou 2024: para assegurar o mesmo nível de bens e serviços, é necessário gastar mais.

    No caso concreto da manutenção dos eléctricos, o PÁGINA UM recorreu à série histórica do IPC publicada pelo Banco de Portugal, tomando 2018 como ano-base (100 pontos). A divisão dos valores nominais pelos deflatores anuais permitiu calcular as despesas em preços constantes de 2015, neutralizando o efeito da inflação e assegurando uma comparação precisa.

    Evolução do investimento da Carris na manutenção e reparação de eléctricos e ascensores (2018-2024), em valores nominais (amarelo) e reais (vermelho). FM correspondem aos anos de mandato de Fernando Medina e CM aos de Carlos Moedas, Usaram-se os seguintes deflatores: 100,00 (2018, ano base); 100,30 (2019); 100,20 (2020); 101,10 (2021); 109,29 (2022); 115,08 (2023) e 117,85 (2024), Fonte: Relatórios e Contas da Carris no período 2018-2024 e INE (deflatores), Análise: PÁGINA UM.

    Os resultados são claros: em 2022, apesar de estarem orçamentados 2,59 milhões de euros, o deflator de 109,29 pontos reduziu a despesa efectiva para 2,37 milhões. Em 2023, com 2,66 milhões de euros nominais, o deflator de 115,08 pontos — que reflecte já uma inflação acumulada de 15% face a 2018 — cortou o valor real para 2,31 milhões. Finalmente, em 2024, os 2,49 milhões de euros inscritos corresponderam, após aplicação do deflator de 117,85 pontos, a apenas 2,11 milhões de euros reais, o nível mais baixo desde 2018.

    Durante o mandato de Medina, o efeito da inflação foi praticamente irrelevante: os deflatores oscilaram entre 100 e 101 pontos, pelo que os aumentos nominais significaram, na prática, aumentos reais. Ou seja, Medina aplicou mais verbas e garantiu mais manutenção efectiva da rede. Já Moedas, mantendo valores nominais semelhantes, deixou que a inflação corroesse esses montantes, conduzindo a uma quebra substancial e prolongada.

    O problema não é apenas aritmético. Ao contrário do que aconteceu com a rede de autocarros — que entre 2018 e 2024 aumentou de 75 para 102 carreiras —, o número de carreiras de eléctricos (seis) e de ascensores (três), a que se soma o elevador de Santa Justa, manteve-se inalterado. Ou seja, não houve qualquer redução de equipamentos que pudesse justificar a descida do investimento real.

    O corte de recursos traduziu-se directamente em menor capacidade de manutenção preventiva e correctiva, em maior desgaste da frota e das infra-estruturas, em mais falhas operacionais e em riscos acrescidos de acidentes.

    É neste enquadramento que o desastre do Elevador da Glória adquire um significado mais do que simbólico: não se trata de um episódio isolado, mas da consequência previsível de três anos consecutivos de cortes efectivos na verba destinada à manutenção. Uma negligência que, longe de ser acidental, é estrutural e revela a falta de prioridade política dada à preservação e segurança de um dos ícones mais emblemáticos da cidade.

  • Caricato: Autarquias pagam milhões de euros por formação em literacia financeira que o Estado até dá de borla

    Caricato: Autarquias pagam milhões de euros por formação em literacia financeira que o Estado até dá de borla


    No que toca a literacia financeira, há autarquias que, não se duvide, precisam de umas aulas para aprender a gerir melhor o seu orçamento e poupar. É que alguns municípios têm gastado milhares de euros a contratar, por ajuste directo, serviços de educação financeira nas escolas públicas quando têm disponível um programa educativo gratuito da iniciativa ‘Todos Contam’ dos três reguladores financeiros.

    Só este mês de Setembro, no espaço de oito dias, duas autarquias entregaram quase 100 mil euros à empresa privada Doutor Finanças para fornecer manuais sobre literacia financeira e disponibilizar um curso online.

    Foto: Imagem do vídeo sobre a plataforma gratuita ‘Todos Contam’ dos três reguladores financeiros: CMVM, Banco de Portugal e ASF. / D.R.

    O município de Santa Maria da Feira adjudicou no passado dia 8 de Setembro um contrato no valor de 74.250 euros à Doutor Finanças para a aquisição de “serviços para acções formativas de promoção de literacia financeira para alunos do 8.º ano do 3.º CEB (ciclo do ensino básico) enquadrado no Plano Estratégico Educativo Municipal”. O contrato tem um prazo de execução máximo, de forma continua, de 36 meses e foi adjudicado por ajuste directo após um procedimento de “contratação excluída”.

    O contrato foi registado incorrectamente no Portal Base, que justifica o ajuste directo com a alínea d) do artigo 20º do Código dos Contratos Públicos que permite a ausência de concurso público “quando o valor do contrato for inferior a 20.000 euros”.

    O contrato prevê a realização de “duas sessões de literacia financeira por turma, para um total de 50 turmas (um total de 100 sessões para o prazo total do contrato)” bem como a “elaboração
    de conteúdos programáticos de literacia financeira”.

    A empresa Doutor Finanças, fundada em 2014, presta aconselhamento financeiro e fornece outros serviços serviços, como a intermediação de crédito. / Foto: Captura de ecrã do site da empresa Doutor Finanças

    A empresa terá a seu cargo “o recrutamento da equipa de facilitadores, materiais de desgaste e todas as deslocações necessárias à implementação semanal do projeto nos 9 agrupamentos de escolas do município”.

    O contrato exige que sejam alocados dois formadores com o mínimo de dois anos de experiência para o desempenho do serviço: um formador qualificado na área de intervenção social, com formação em finanças pessoais e desenvolvimento pessoal; um formador qualificado em administração e gestão de
    empresas, com formação em finanças pessoais a particulares e
    empresas.

    Também o município de Espinho contratou a Doutor Finanças por ajuste directo, através de um contrato assinado no passado dia 1 de Setembro, no montante de 19.999 euros, para a “aquisição de livros e curso online” no âmbito de um projeto literacia financeira. Recorde-se que a legislação permite a realização de ajuste directo se o valor do contrato for inferior a 20.000 euros.

    money, euro, 20 euro, banknote, cash, bear, teddy bear, teddy, gift, give a gift, coupon, date of birth, christmas, map, greeting card, birthday card, toy, stuffed animal, cuddly toy, money, money, euro, euro, euro, 20 euro, 20 euro, 20 euro, 20 euro, 20 euro, cash, teddy bear, teddy bear, gift, coupon, coupon, birthday card, birthday card, birthday card, stuffed animal, stuffed animal
    Foto: D.R.

    Este contrato visa conferir literacia financeira a alunos e respectivas famílias, sobretudo as mais vulneráveis, e tem um prazo de execução de 45 dias.

    O montante pago inclui a aquisição de exemplares do livro Doutor Finanças e a Bata Mágica, “que introduz os mais novos ao mundo das finanças de forma lúdica e acessível”. Inclui ainda “a aquisição do curso online “Orçamento Pessoal e Familiar” com a duração de oito horas. Este curso “oferece aos adultos formação prática e concreta para a gestão do orçamento familiar” e, por ser online, “as famílias poderão fazer o mesmo, ao ritmo que desejarem e sem interferir no seu quotidiano”.

    Assim, em apenas oito dias, a empresa Doutor Finanças facturou 94.249 euros, valor a que acresce IVA, para fornecer serviços de “literacia financeira” em escolas. Em Outubro do ano passado, a empresa já tinha obtido um primeiro contrato, com a autarquia de Ovar, no valor de 11.644,40 euros, sem IVA, no âmbito de um “ciclo sobre literacia financeira”.

    Folheto do Plano Nacional de Formação Financeira e do portal ‘Todos Contam’ que fornece informação e formação gratuita sobre literacia financeira. / Foto: Imagem de um folheto da iniciativa ‘Todos Contam’

    Esta empresa, criada em 2014, presta aconselhamento financeiro e de investimentos e actua ainda como intermediário de crédito à habitação, entre outros serviços.

    Além de se questionável as autarquias estarem a promover uma marca privada de serviços financeiros a alunos, pais e professores de escolas públicas, a principal dúvida é por que motivo estes municípios não solicitaram acções de formação da iniciativa ‘Todos Contam’, a qual é gratuita.

    A iniciativa insere-se no Plano Nacional de Formação Financeira criado em em 2011 pelos três reguladores financeiros: Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM); Banco de Portugal; e ASF-Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões. O seu objectivo é melhorar os conhecimentos financeiros da população e contribuir para que tenham comportamentos financeiros adequados. O Plano trabalha com uma rede de parceiros públicos e privados.

    A iniciativa dos reguladores disponibiliza acções de formação, manuais de literacia financeira e uma área de e-learning, entre outros recursos educativos. Todos os serviços prestados são grátis.

    girl wearing black sweatshirt playing toy car
    Foto: D.R.

    As autarquias podem contactar a iniciativa ‘Todos Contam’ para pedir acções de formação gratuita em literacia financeira. Também podem descarregar a imprimir os manuais e outros recursos pedagógicos disponibilizados no site. E várias autarquias têm-no feito.

    No caso dos manuais de literacia financeira para os mais novos, a iniciativa ‘Todos Contam’ disponibiliza a série Cadernos de Educação Financeira que conta com um Guião para a Educação Financeira na Educação Pré-escolar, três volumes para os três ciclos do ensino básico, os Cadernos de Educação Financeira 1, 2 e 3, respetivamente, e um para o ensino secundário, o Caderno de Educação Financeira 4. Estes cadernos estão disponíveis para serem descarregados no portal ‘Todos Contam’ e no site da Direção-Geral da Educação.

    Além dos cadernos e outros guias e recursos técnico-pedagógicos disponíveis gratuitamente, a iniciativa também dá formação a professores. A mais recente noticiada na plataforma decorreu em Lagos, no passado mês de Abril.

    Dois dos cadernos de educação financeira disponíveis para descarregar no portal ‘Todos Contam’ e também no site da Direcção-Geral da Educação.

    De resto, o portal oferece guias, informação e simuladores dirigidos a particulares, mas também a empresas.

    O PÁGINA UM questionou os dois municípios sobre a contratação da empresa Doutor Finanças. Em resposta por escrito enviadas ao PÁGINA UM, o município de Santa Maria da Feira justificou a adjudicação do contrato por ajuste directo, no âmbito de um procedimento de “contratação excluída”, com o facto de “o objeto específico do contrato corresponde à realização de sessões de formação”.

    Justificou também que “o preço base foi obtido através de consulta preliminar informal ao mercado, conforme previsto no Código dos Contratos Públicos”.

    Segundo a autarquia, não foi solicitada formação gratuita no âmbito da iniciativa ‘Todos Contam’ porque “a entidade convidada [Doutor Finanças] apresentou um plano específico dirigido aos alunos do 8.º ano, com sessões em formato presencial”. Segundo o município, “esta abordagem representa uma mais-valia pedagógica, uma vez que favorece a transferência efetiva de competências para os alunos”.

    pink pig coin bank on brown wooden table
    Foto: D.R.

    Adiantou que, “apesar do seu inegável interesse, esta iniciativa [Todos Contam] não contempla sessões presenciais para os alunos do 8.º ano”. Contudo, a iniciativa ‘Todos Contam’ dá formação a professores e educadores para que estes possam também transmitir informação sobre literacia financeira aos mais novos. A iniciativa tem respondido positivamente a solicitações de autarquias sobre formação em literacia financeira e os municípios podem pedir acções de formação grátis quando quiserem.

    Quanto ao município de Espinho, até à publicação deste artigo ainda não respondeu às questões enviadas ontem de manhã pelo PÁGINA UM.

    Mas a Doutor Finanças não é a única entidade que tem lucrado com os programas de literacia financeira. Nos contratos disponíveis no Portal Base analisados pelo PÁGINA UM a Fundação António Cupertino de Miranda destaca-se como campeã nos contratos públicos para prestação de serviços relacionados com literacia financeira.

    Esta Fundação facturou nos últimos 10 anos um total de 2.286.494 euros em 56 contratos públicos relacionados com literacia financeiras, grande parte dos quais nos anos mais recentes. Só desde 2023, a fundação criada pelo banqueiro Artur Cupertino de Miranda, falecido em 1988, e com sede em Vila Nova de Famalicão, assegurou a adjudicação de 30 contratos desta natureza com autarquias e comunidades intermunicipais, que somam quase 1,5 milhões de euros.

    clock, money, growth, grow, time, time management, financial management, concept, idea, finance, business, success, financial, cash, currency, investment, banking, wealth, coins, economy, loan, profit, salary, credit, payment, savings, save, deposit, stack, symbol, income, accounting, clock, clock, clock, clock, money, money, money, money, time, time, time, time, time, time management
    Foto: D.R.

    Entre os municípios, destacam-se os acordos estabelecidos com Gondomar, que totalizam 203.475 euros em diferentes contratos, bem como o Porto, com 174.400 euros. Também Santa Maria da Feira firmou contratos no valor de 102.000 euros, enquanto Valongo se comprometeu com 109.660 euros. Outros municípios a surgirem com contratos relevantes são Guimarães (67.400 euros), Paredes (93.000 euros) e a Trofa (72.000 euros), valores que confirmam uma rede de cooperação financeira alargada entre a fundação e as autarquias do Norte do país.

    No plano das comunidades intermunicipais, o peso financeiro é igualmente notável. Só a Comunidade Intermunicipal do Tâmega e Sousa contratualizou 135.000 euros, seguido da do Cávado, que celebrou dois contratos no valor conjunto de 92.325 euros. A Comunidade Intermunicipal da Beira Baixa figura também como um parceiro assíduo, com três contratos que somam 153.000 euros, ao passo que a Comunidade do Ave aparece com um total de 52.175 euros.

  • Estado laico mas pouco: Autarquias gastam mais de 11 milhões de euros em igrejas católicas desde 2020

    Estado laico mas pouco: Autarquias gastam mais de 11 milhões de euros em igrejas católicas desde 2020


    Portugal orgulha-se, na sua Constituição, de ser um Estado laico e de garantir a separação entre as diferentes religiões e o Estado, mas quando se mergulha nos contratos públicos das autarquias, descobre-se que os municípios e freguesias continuam a ser dos maiores mecenas da Igreja Católica, sem qualquer polémica visível, mesmo quando os montantes são elevados.

    De acordo com um levantamento exaustivo realizado pelo PÁGINA UM sobre contratos inseridos no Portal Base desde 2020 foram identificados, em obras superiores a 100 mil euros, um total de 63 contratos públicos, celebrados por 45 autarquias (Câmaras Municipais e Juntas de Freguesia) e entidades intermunicipais, para reabilitação, conservação, restauro ou valorização de igrejas e conventos, atingindo um valor global superior a 11 milhões de euros.

    Obras na igreja de São Francisco em Tomar foram pagas pela autarquia local. Foto: CMT.

    Este número é ainda mais expressivo quando se considera que não se incluíram inúmeras intervenções exclusivamente em espaços exteriores (como adros) ou arranjos urbanísticos em redor de lugares de culto, nem as obras promovidas por irmandades, fábricas paroquiais ou misericórdias, nem as empreitadas conduzidas pelas Direcções Regionais de Cultura ou outras entidades do Estado central, que tenham também uma componente patrimonial e turísticas.

    Também não se entrou em conta as intervenções em igrejas desafectadas ao culto e convertidas em salas de espectáculo ou museus, como sucedeu recentemente em Coimbra com a Igreja de São Francisco. Ou seja, o levantamento diz apenas respeito a obras de património religioso activo, onde se celebram missas e rituais, pagas directamente com verbas dos contribuintes.

    O maior contrato identificado foi celebrado em Lisboa, a 24 de Janeiro de 2023, quando a empresa municipal Lisboa Ocidental adjudicou à Tecnorém uma empreitada no valor de 3,5 milhões de euros para construir de raiz a nova Igreja do Bairro da Boavista, embora neste caso esteja também incluído um centro social e paroquial, bem como a praça central do bairro. É um caso singular porque não se trata apenas de reabilitar o que existe, mas de edificar do nada uma nova igreja e um centro paroquial.

    Maquete da igreja de São José no Bairro da Boavista, construída por uma empresa municipal de Lisboa.

    Seguem-se, no ranking, a requalificação integral da Igreja de São João Baptista, em Tomar, contratada à Signinum em 15 de Janeiro de 2021 por 1,5 milhões de euros, e duas empreitadas sucessivas em Melgaço — em 2022 e em Agosto de 2025 — para a reabilitação do Convento de São Salvador de Paderna, que somam mais de 1,85 milhões de euros. Amares figura logo a seguir, com 946.707 euros para restaurar a Igreja de Bouro e revitalizar a casa paroquial para instalação de um núcleo interpretativo do mosteiro.

    Mais abaixo na tabela, mas ainda com valores significativos, surgem Loulé (890.146 euros para a Igreja Matriz), Santarém (849.934 euros para estabilização da Igreja de Santa Iria da Ribeira de Santarém), Moura (duas obras que totalizam 1,16 milhões de euros), Baião (570.338 euros para a terceira fase de restauro do Mosteiro de Santo André de Ancede), Sardoal (657.325 euros para a sua igreja paroquial) e Cabeceiras de Basto (559.348 euros para a reabilitação do mosteiro de São Miguel de Refojos).

    O levantamento do PÁGINA UM permitiu ainda perceber a evolução temporal destes investimentos: 2020 e 2021 foram os anos particularmente intensos, com 3,15 milhões e 4,12 milhões de euros em adjudicações respectivamente, coincidindo com o período da pandemia em que muitas autarquias aproveitaram fundos comunitários e planos de recuperação para lançar empreitadas.

    Igreja de Paderne, em Melgaço. Foto: D.R,

    Em 2022 registaram-se 3,02 milhões de euros em adjudicações associadas a reabilitações de igrejas, enquanto 2023, impulsionado pelo contrato da Boavista, foi o ano mais dispendioso, com 4,14 milhões de euros. O ano de 2024 apresenta uma quebra (1,69 milhões), mas 2025 volta a evidenciar crescimento, com 2,23 milhões contratados até Setembro.

    Se os grandes municípios têm um papel de relevo, também as pequenas autarquias não ficam atrás. Em Tavira, a Câmara investiu 259.949 euros na Igreja Matriz de Santa Maria do Castelo. Em Tabuço, uma única empreitada de 263.900 euros permitiu restaurar simultaneamente três igrejas paroquiais (Granja do Tedo, Longa e Sendim). Em Pedrógão Grande, a intervenção na Igreja Matriz custou 385.797 euros. E até pequenas juntas de freguesias, como Tancos, investiram mais de 160 mil euros na valorização da sua igreja matriz.

    No extremo oposto da escala, o contrato de menor valor encontrado foi em Sátão, onde a autarquia pagou 117.617 euros para conservar e restaurar a Igreja de Santa Maria, seguido da intervenção de 118.995 euros na Igreja das Carvalhiças (União de Freguesias de Vila e Roussas, no município de Melgaço). Estes números mostram que mesmo obras modestas — reparação de telhados, retábulos, pavimentos — têm custos significativos e absorvem recursos municipais.

    Igreja matriz de Loulé, Foto: CML.

    Além da dimensão financeira, este levantamento revela uma lista recorrente de empresas especializadas que dominam este mercado, como a Signinum, a Lusocol e a Monumenta, com contratos repetidos em vários pontos do país. Para estas empresas, o património religioso é uma fonte estável de encomendas, sustentada por financiamento público.

    No final, a grande questão é política e não técnica: até que ponto é legítimo que autarquias, em nome da preservação patrimonial, financiem afinal a manutenção de templos de culto, beneficiando de forma desproporcionada a Igreja Católica face a outras confissões ou usos comunitários. Se o Estado – e por extensão as autarquias – é laico, olhando para as suas obras não aparenta.

  • Carris vs. STCP: manutenção pela MNTC é uma ‘balda’ em Lisboa mas rigorosíssima no Porto

    Carris vs. STCP: manutenção pela MNTC é uma ‘balda’ em Lisboa mas rigorosíssima no Porto


    O contraste não podia ser mais brutal. Em Novembro de 2022, a Sociedade de Transportes Colectivos do Porto (STCP) adjudicou à MNTC — a mesma empresa que desde 2019 assegura para a Carris a manutenção dos ascensores da Bica, Lavra e Glória e do Elevador de Santa Justa — um contrato de quase 1,9 milhões de euros para garantir, durante 1826 dias (exactamente cinco anos), a manutenção de oito eléctricos históricos.

    O contrato termina no final de Novembro de 2027, e a exigência imposta no caderno de encargos da STCP ao nível da manutenção e da segurança é de uma minúcia que faria inveja a qualquer operador ferroviário europeu. Bem diferente do que a Carris exigia à mesma MNTC: vistorias a “olhómetro”, lubrificação e pouco mais, com indicação de tarefas a desempenhar estranhamente ambíguas e tecnicamente vagas.

    Eléctrico do Porto…

    O plano de manutenção preventiva da STCP, analisado pelo PÁGINA UM, é um verdadeiro manual de engenharia: 136 itens, treze secções abrangendo carroçaria, chassis, bogies, rodados, motores de tracção, sistemas de suspensão, travagem, circuitos pneumáticos, comandos, circuitos eléctricos, areeiros e ensaios finais.

    Neste último caso, estão previstos, quinzenalmente e após reparações de maior monta, ensaios completos ao carro: colocam-se pontos no controller e utiliza-se o freio de parque para confirmar, em condições reais, que o eléctrico acelera, trava e se imobiliza de forma segura, garantindo que os sistemas de tracção e de travagem funcionam correctamente antes de regressar ao serviço.

    Está igualmente prevista, em base anual, a realização do ensaio de freio estático para medir os parâmetros dos cilindros de freio, do depósito e das válvulas do sistema, assegurando que a travagem cumpre as normas da UIC – União Internacional dos Caminhos-de-Ferro, entidade que estabelece padrões técnicos internacionais para garantir segurança e interoperabilidade no transporte ferroviário.

    Yellow tram ascends a steep cobblestone street.
    … e ascensores de Lisboa: mesma empresa de manutenção; exigências avassaladoramente distintas.

    As tarefas de manutenção dos eléctricos da STCP estão distribuídas por sete periodicidades — diária, quinzenal, mensal, semestral, anual, intermédia (cinco anos) e geral (dez anos) — e são descritas com rigor quase cirúrgico: lubrificação de cavilhas e rodas de troley, verificação de estores, ensaios de magnetoscopia e ultrassons nos eixos, medições de esquadria de bogies segundo normas UIC, reapertos com torque controlado, equilibragem dinâmica de motores de tracção de acordo com a norma ISO 1940 G 2.5, ensaios estáticos e dinâmicos de travagem com registo de valores, purgas programadas do sistema pneumático, desmontagem e montagem de rodados, pintura com especificações RAL predefinidas, etc, etc.. Tudo tem de ser registado em fichas normalizadas, permitindo rastreabilidade, identificação de tendências de desgaste e planeamento de substituições antes da falha.

    Agora desçamos para Lisboa — e, ironicamente, desçamos mesmo pela Calçada da Glória. Desde 2019 — e não desde 2022, como erradamente se escreveu inicialmente — , a MNTC ficou também responsável pela manutenção dos ascensores lisboetas. Mas aqui, por opção da Carris, o cenário é radicalmente diferente. O caderno de encargos imposto pela empresa municipal de Lisboa — que vigorou até 31 de Agosto e foi prorrogado por ajuste directo por mais cinco meses — parece mais uma lista de verificação do que um plano de engenharia.

    Aquilo que exige — se se pode dizer que se trata de exigências — é, na generelidade dos casos, genérico e vago: verificar pantógrafos, baterias, cabos de tracção, purgar compressores, lubrificar roldanas. Não há referências nem explícitas, nem implícitas a ensaios não destrutivos, a medições calibradas ou a periodicidades diferenciadas de controlo que permitam detectar falhas latentes. Nada que garanta testes de segurança e de travagem.

    Páginas 1 e 4 das cinco páginas do caderno de encargos da STCP que detalha as manutenções a executar pela MNTC nos eléctricos do Porto.

    O caso do Elevador da Glória é paradigmático — e trágico. Os serviços de manutenção e segurança do funicular mais icónico de Lisboa, classificado como Monumento Nacional, não previam a realização de quaisquer ensaios mecânicos ou ensaios não destrutivos ao cabo de tracção que cedeu na passada semana, provocando o descarrilamento da cabina que descia a Calçada da Glória, causando a morte de 16 pessoas e ferimentos em mais de duas dezenas.

    Era tudo feito visualmente — ou, para usar a ironia que a tragédia quase não consente, com recurso à avançadíssima tecnologia do “olhómetro”. Apesar de a lei exigir ensaios após alterações de sistemas de segurança e comunicação ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), como o PÁGINA UM já salientou com base na lei, aparentemente nada disto alguma vez foi feito.

    Pior ainda: aparentemente nunca ninguém se apercebeu de que os sistemas de freio dos ascensores eram incapazes de travar caso houvesse, como houve, colapso do encaixe do cabo no trambolho.

    Especificações do caderno de encargos da Carris são omissas sobre as normas técnicas das verificações em função da periodicidade. Podiam ser todas visuais, como a manutenção diária estava a ser feita?

    De acordo com a consulta efectuada pelo PÁGINA UM ao caderno de encargos da Carris, apenas para a Bica e para o Elevador de Santa Justa existia referência expressa à contagem de arames partidos como critério de substituição de cabos. No caso da Glória e do Lavra, a exigência era apenas uma vaga “verificação”, sem norma técnica, sem especificação de método, sem obrigatoriedade de desmontagem ou uso de instrumentos de medição. Se a inspecção diária, semanal e mensal era apenas visual — como confirmam os registos da própria Carris — nada obrigava a que as inspecções semestrais fossem diferentes.

    O PÁGINA UM ouviu especialistas que foram claros: existem hoje métodos de detecção precoce de falhas que são standard internacional em sistemas de transporte por cabo — ensaios de magneto-indução, capazes de detectar fios partidos no interior do cabo; correntes de Foucault e ultrassons localizados, particularmente importantes na verificação da integridade da zona de ancoragem no trambolho, onde precisamente se deu a ruptura; medições de extensão sob carga para avaliar a elasticidade residual e identificar alongamentos anómalos, procedimento previsto em normas como a EN 12927-6, usada em países como a Suíça ou a Áustria.

    Nada disto estava previsto no caderno de encargos, que, como parte integrante do contrato, foi aprovado pelo Conselho de Administração da Carris, presidido por Pedro Bogas. O contrato deixava ao critério da MNTC a decisão de realizar ou não ensaios complementares. Resultado: se a empresa não os fazia por iniciativa própria, nada a obrigava.

    Manutenção em Lisboa: uma autêntica e trágica ‘balda’.

    Esta omissão poderá ser determinante na atribuição de responsabilidades civis e criminais: o município de Lisboa, através da Carris, optou por um modelo contratual minimalista para um sistema que transporta milhares de pessoas por dia num declive acentuado, expondo os passageiros a um risco inconcebível.

    Perante isto, o contraste entre Carris e STCP é avassalador e demonstra que o problema é de gestão e de exigência. No Porto, os eléctricos históricos têm direito a centenas de operações programadas, medições rigorosas, registos de torque, ensaios não destrutivos e análises de tendências de desgaste; em Lisboa, os ascensores tinham direito apenas a um olhar de relance e a um visto de conformidade. A mesma empresa, dois contratos, dois mundos.

  • Lei exigia que a substituição do cabo do elevador da Glória tivesse autorização e concordância do Instituto da Mobilidade e dos Transportes

    Lei exigia que a substituição do cabo do elevador da Glória tivesse autorização e concordância do Instituto da Mobilidade e dos Transportes


    Mesmo tratando-se de verdadeiras relíquias do património urbano, como o Elevador da Glória, a lei nunca desresponsabilizou a Carris nem a dispensou de submeter ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) um vasto conjunto de elementos sempre que realiza intervenções estruturais. Ao contrário daquilo que o IMT tentou fazer passar numa primeira fase do acidente, antes de se saber da ruptura do cabo, uma leitura atenta do diploma legal que regula o regime especial para instalações de interesse histórico, cultural ou patrimonial é, na verdade, apenas uma flexibilização documental, e não uma dispensa de obrigações de segurança ou de fiscalização.

    O cabo é o coração do sistema dos ascensores históricos: sem ele, os elevadores não sobem nem descem — e se falham, como falhou na semana passada, a viagem transforma-se em tragédia. Por isso, a lei trata-o como componente de segurança crítica, exigindo homologação, ensaios e autorização antes de transportar passageiros.

    Com efeito, o regulamento em vigor desde 2020, e que revogou um decreto-lei de 2002, estabelece que as chamadas “instalações por cabo classificadas como instalações de interesse histórico, cultural ou patrimonial” — como os elevadores da Glória, Bica e Lavra — apenas beneficiam de dispensa da marcação CE ou da apresentação de declarações europeias de conformidade para componentes especialmente concebidos para elas.

    Porém, a regra de fundo mantém-se: qualquer alteração significativa que inclua “os subsistemas e componentes de segurança das instalações” carece de autorização prévia do IMT, e só pode ser executada após a apresentação de projecto, plano de ensaios e uma análise de segurança por organismo independente, escolhido pelo dono da obra (no caso, a Carris) mas aceite pela entidade reguladora.

    Isto significa que a substituição do cabo tractor, efectuada no ano passado no Elevador da Glória pela MNTC – e que a Carris ainda não quis disponibilizar ao PÁGINA UM –, não poderia ter sido tratada como uma mera operação de manutenção rotineira. Por lei, mesmo para elevadores históricos, a Carris deveria ter instruído um processo administrativo prévio junto do IMT, contendo “análise de segurança para a fase de entrada em serviço e relatório de segurança” e posteriormente uma declaração que a alteração fora terminada acompanhada de “documentos que demonstrem a conformidade da instalação com os requisitos essenciais do regulamento”. Nessa linha, teria de ser enviado um “dossier técnico contendo o relatório final dos ensaios e verificações realizadas”.

    A yellow tram travels uphill on its tracks.

    Se este procedimento não foi cumprido na íntegra, o elevador poderá ter estado a operar de forma irregular, sem cobertura legal para transportar passageiros. E esta não é uma mera formalidade: trata-se do coração do sistema de segurança pública, destinado a prevenir acidentes graves e a responsabilizar as entidades exploradoras por todas as etapas do ciclo de vida do equipamento.

    Mas as obrigações da Carris não se esgotam nesta fase em que houve uma alteração de uma componente do funcionamento e da segurança do elevador da Glória. E nem o IMT pode lavar as mãos por se tratar de infraestruturas de transporte histórico. Com efeito, em nenhum aspecto da legislação se isenta a empresa transportadora da obrigatoriedade de manter um sistema de manutenção documentado e um sistema de gestão da segurança capaz de lidar com situações normais e excepcionais.

    Além disso, a lei impõe ainda que, de três em três anos, o IMT realize uma inspecção completa e emita autorização de continuação em serviço, após análise de um relatório intercalar de segurança que a Carris tem de enviar, acompanhado da prova de que dispõe de quadro técnico adequado, contratos de subcontratação aceites pelo IMT e seguro de responsabilidade civil válido.

    Mesmo em regime patrimonial, a lei é clara: cópias do relatório de segurança, declarações de conformidade, documentação técnica dos componentes e registos de restrições de utilização teriam de estar disponíveis nas próprias instalações para que a fiscalização pudesse, a qualquer momento, auditar o histórico da infraestrutura. Caso se verificasse falhas graves, o IMT tem competência para determinar a suspensão da exploração, com um prazo máximo de seis meses para reposição das condições de segurança, sob pena de revogação da autorização.

    E mais: mesmo em elevadores históricos seria inadmissível que fossem colocados cabos que não estivessem homologados. A legislação refere que caso o IMT verificasse que “um componente de segurança provido de marcação CE de conformidade” pudesse colocar “em risco a segurança e a saúde de pessoas ou a segurança de bens” tinha a competência para determinar “a proibição da sua utilização ou a restrição ao seu campo de aplicação”. Ora, a Carris nem sequer quis informar ainda o PÁGINA UM quem foi o fornecedor do cabo e qual foi o custo.

    Em suma, o discurso de que o estatuto patrimonial dos elevadores justificaria uma espécie de auto-regulação artesanal é, assim, insustentável. A responsabilidade continua a ser da Carris, que responde perante os utentes, trabalhadores e terceiros pelos riscos de exploração e pelos contratos de fornecimento de produtos e serviços. A subcontratação de técnicos ou de empresas para realizar inspecções e manutenções não transfere essa responsabilidade: apenas é admitida se os contratos forem previamente aceites pelo IMT e se for assegurado que os trabalhadores cumprem os requisitos de qualificação e que permanecem sob a direcção funcional da entidade exploradora.

    Conselho de Administração da Carris.

    A pergunta que agora se impõe, perante o desastre do Elevador da Glória, é simples: cumpriu a Carris todos estes passos? Foram submetidos ao IMT o projecto de substituição do cabo, a análise de segurança e o plano de ensaios? Existe relatório final de ensaios assinado por entidade independente? Foi emitida autorização de entrada em serviço antes de o elevador retomar a operação?

    Questões para as quais não há resposta da Carris, até porque a empresa municipal, em relação às questões anteriores do PÁGINA UM, respondeu ontem a dizer que “está a receber inúmeras solicitações de entidades e de órgãos de comunicação social”, prometendo apenas que será “dada resposta com prioridade e a maior brevidade possível”. Foram endereçadas mais questões, que serão incluídas quando e se houver resposta.