Limites da sátira, impacto económico do humor – mesmo que mau –, crises de acne, triatlo para combater a depressão e até lapsos de memória de um gerente. De tudo isto se falou na sessão de hoje do julgamento que coloca no banco dos réus a humorista Joana Marques, processada pela dupla musical Anjos, que reclama uma indemnização de 1.118.500 euros por alegados danos patrimoniais e não patrimoniais. Entre os prejuízos invocados contam-se o cancelamento de espectáculos e contratos de patrocínio, bem como danos à imagem e reputação dos irmãos Rosado.
A polémica remonta ao dia 24 de Abril de 2022, quando os Anjos interpretaram o Hino Nacional antes da prova de MotoGP no Autódromo Internacional do Algarve. A actuação – marcada por problemas técnicos – gerou uma onda de críticas nas redes sociais, amplificada por Joana Marques, que publicou no Instagram uma montagem vídeo da performance dos Anjos intercalada com reacções negativas de jurados do programa televisivo Ídolos. Na legenda, acrescentou a provocatória frase: “Será que foi para isto que se fez o 25 de Abril?”
Apesar de, na sessão de hoje, o pai dos irmãos Rosado – gerente da Angel Minds – ter manifestado lapsos de memória quanto à evolução dos rendimentos da empresa que gere a carreira dos músicos, o Página Um analisou as contas anuais da Angel Minds entre 2019 e 2023, último ano disponível. E, na verdade, se os Anjos têm motivo de queixa, será unicamente da pandemia, porque não se vislumbra qualquer impacto económico adverso derivado do vídeo de Joana Marques.
Com efeito, apesar de a maior parte dos contratos de espectáculos ser formalizada através da empresa Senhores do Ar II –, detida pelo agente dos irmãos Rosado, é na Angel Minds que os artistas recebem os seus cachets líquidos.
Ora, segundo as contas dessa sociedade, o melhor ano do quinquénio foi precisamente 2022, o ano da controvérsia com Joana Marques, registando vendas e prestações de serviços no valor de 448.571 euros – valor que representa uma recuperação significativa face aos dois anos pandémicos.
Em 2019, último ano pré-covid, a Angel Minds tinha facturado cerca de 402 mil euros, mas esse valor caiu para menos de 90 mil euros em 2020 e apenas 105 mil euros em 2021, reflectindo os constrangimentos generalizados no sector cultural. Já em 2023, apesar de uma descida para 270 mil euros, não há qualquer indício que relacione esta quebra com o episódio humorístico.
A actuação dos Anjos a cantar o hino em 25 de Abril de 2022 foi alvo da sátira de Joana Marques.
Essa tese desfaz-se também ao analisar os contratos públicos de actuação dos Anjos, quase sempre celebrados com municípios. Entre 2019 e 2025, a dupla somou 63 espectáculos adjudicados por câmaras municipais ou empresas municipais, mantendo uma presença regular no circuito institucional.
Em 2019, em plena normalidade, realizaram 19 espectáculos em municípios como Albufeira (com dois contratos distintos), Oeiras, Portel, Vieira do Minho, Beja, Penela, Aljezur, Lamego, Guarda, Batalha, Ourique, Calheta de São Jorge, Mealhada, Marco de Canaveses, Seixal, Ferreira do Zêzere, São Brás de Alportel e também com a empresa municipal Prazilândia, da Castanheira de Pêra. Este ano serve de referência para o nível de actividade pré-pandemia.
Em 2020 e 2021, a pandemia reduziu drasticamente a actividade artística. Em 2020, realizaram apenas três espectáculos (Pinhel, Lagoa e Vila Franca de Xira); e em 2021 também três (Alandroal e duas vezes no Seixal).
Chegado o ano de 2022, considerado de retoma, os Anjos celebraram 12 contratos públicos. E importa destacar que apenas um – com o município da Azambuja – foi assinado antes da publicação do vídeo de Joana Marques, a 25 de Abril. Todos os outros 11 contratos foram posteriores, incluindo actuações em Santarém (com um contrato de 60 mil euros), Moura, Fornos de Algodres, Corroios, Pombal, Paredes, São João da Pesqueira, Sabrosa, Estarreja, Miranda do Corvo e novamente Azambuja.
Joana Marques
Os valores por actuação em 2022 rondaram, por norma, os 17 mil euros, valor até ligeiramente superior ao verificado antes da pandemia. Além disso, os “fornecimentos e serviços externos” da Angel Minds – que reflectem sobretudo os cachets pagos aos artistas – atingiram em 2022 o valor recorde de quase 410 mil euros, face aos cerca de 285 mil euros em 2019, 82 mil euros em 2020 e 120 mil euros em 2021. Mesmo admitindo que alguns contratos pudessem ter sido cancelados, seria necessário um corte de mais de 50 espectáculos para justificar o valor de indemnização pedido pelos Anjos.
Em 2023, embora tenha havido uma ligeira redução do número de contratos, os Anjos actuaram em 11 eventos públicos, com presença em Reguengos de Monsaraz, Lisboa, Borba, Ferreira do Alentejo, Moita, Vila Flor, Ílhavo, Águeda, Redondo, Tábua e Coruche. A actividade regular prosseguiu em 2024, com concertos em Braga, Moura, Vieira do Minho, Seixal, Portimão, Oeiras e Aljustrel, com cachets que, em regra, rondaram os 20 mil euros.
Em 2025, os concertos já adjudicados incluem actuações em Chamusca, Vizela, Trofa, Estremoz, Póvoa de Varzim, Sesimbra e Amarante – neste último caso, a actuação realizou-se a 7 de Junho, com um cachet de 34.200 euros. Mas ainda não estão registados outros concertos já agendados. Só para este mês, segundo a sua página no Facebook, os Anjos têm agendados sete concertos, quatro dos quais em apenas uma semana.
Sérgio e Nelson Rosado: os Anjos foram criados em 1999.
Ou seja, apesar de uma ligeira redução no número de concertos, os valores contratados aumentaram, o que invalida qualquer narrativa de prejuízo reputacional ou boicote decorrente do vídeo humorístico.
Acrescente-se ainda que, segundo as contas da Angel Minds, apesar de funcionar essencialmente como canal de recepção dos cachets dos irmãos Rosado, apresenta uma situação financeira sólida, com resultados transitados (lucros acumulados) na ordem dos 270 mil euros e saldos em depósitos bancários superiores a 300 mil euros.
A Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) recusa divulgar quanto custaram os convites a jornalistas e a “figuras públicas” — entre as quais a apresentadora Cristina Ferreira — para participarem na cobertura do Dia de Portugal na Expo 2025, que decorre na cidade japonesa de Osaka. Questionada pelo PÁGINA UM, a agência estatal liderada por Ricardo Arroja escusou-se ainda a responder, escudando-se num silêncio institucional pouco compatível com o dever de transparência na gestão de dinheiros públicos.
Até ao momento, apenas dois órgão de comunicação social — o Expresso e Lusa— assumiu publicamente que a cobertura noticiosa do pavilhão português no passado dia 10 de Junho foi patrocinada por verbas públicas. Na peça assinada por Christiana Martins, com fotografia de Ana Baião, lê-se de forma explícita: “O Expresso viajou a convite da AICEP”. A jornalista do Expresso ainda aproveitou para entrevistar a comissária do pavilhão português, Joana Gomes Cardoso, nomeada pela AICEP, a entidade que pagou a viagem.
A comissária teve, numa entrevista ao Expresso sob patrocínio da AICEP, com perguntas ‘fofas’, a oportunidade de relativizar a notícia do PÁGINA UM sobre a subserviência da língua portuguesa em parte da exposição, dizendo ter dificuldade de “responder ao absurdo”. E também pôde lamentar-se das exigências da contratação pública, apesar do Orçamento do Estado já ter permitido um regime de excepção à AICEP que, por exemplo, possibilitou a contratação por ajuste directo no valor de 220 mil euros de uma agência de comunicação sueca que tem, como um dos objectivos, conseguir que Joana Gomes Cardoso seja entrevistada por um jornal nipónico.
No caso da Agência Lusa, detida pelo Estado, e que divulga os seus trabalhos para outros órgãos de comunicação social, também se diz que “os jornalistas viajaram a convite da AICEP“. Porém, os restantes órgãos, em número desconhecido, preferiram o manto do eufemismo ou a mais absoluta omissão.
A RTP, por exemplo, apresentou os seus repórteres como “enviados especiais”, sem qualquer menção a custos ou convites. Na TVI, onde a jornalista Andreia Vale demonstrou evidente cumplicidade com a comissária do pavilhão, Joana Gomes Cardoso, chega-se ao ponto de lhe entregar o microfone para, em desafino colectivo, se cantar o hino nacional num coro improvisado. Tudo isto sem uma única referência sobre quem suportou os encargos da deslocação da equipa da estação de Queluz de Baixo ao Japão.
O recurso a convites pagos para cobertura jornalística tornou-se prática rotineira — embora eticamente questionável — no relacionamento com empresas privadas. Mas começa agora a ser adoptado também por organismos públicos, o que representa uma preocupante erosão da independência editorial e do princípio de isenção informativa que deve nortear o jornalismo.
Quando jornalistas aceitam viagens, estadias ou outros benefícios não por sua iniciativa, mas a convite de entidades públicas, estabelece-se uma relação de conivência susceptível de enviesar a cobertura, transformando o repórter num promotor institucional. Esta prática, já de si censurável no sector privado por poder configurar publicidade disfarçada de reportagem, torna-se ainda mais grave quando envolve recursos públicos. Cria-se um potencial conflito entre o dever de escrutínio do poder e a comodidade de uma cobertura favorecida. O desvio ético daí resultante afecta não só a qualidade da informação prestada, como também mina a confiança dos cidadãos nos órgãos de comunicação social, ao tornar mais difusa a linha que separa o interesse público do interesse promovido.
Por outro lado, considerando a especial responsabilidade de isenção e de tratamento equitativo que se exige a instituições públicas, importa escrutinar os critérios de selecção dos media e das personalidades convidadas, bem como as contrapartidas esperadas. Saliente-se que não existe, actualmente, qualquer obrigação legal que imponha aos jornalistas ou órgãos de comunicação social a declaração dos montantes envolvidos, mesmo quando se tratam de viagens a destinos distantes como o Japão, cujo custo por participante poderá ascender a vários milhares de euros.
Ricardo Arroja, presidente da AICEP: se a imprensa não vai à montanha, então pague-se à imprensa para ir à montanha… com dinheiros públicos.
Situação paralela verifica-se com o pagamento a “figuras públicas” por parte de organismos do Estado — uma prática já vulgarizada no sector privado, onde se insere na lógica do marketing. Mas em instituições públicas, a promoção de marca suscita questões adicionais: faz sentido que entidades financiadas por dinheiros públicos invistam em notoriedade pessoal ou institucional, quando a sua missão não é competir no mercado, mas servir o interesse colectivo com transparência, rigor e parcimónia?
A utilização de celebridades para reforçar a imagem de entidades públicas pode facilmente descambar para o culto da personalidade, a personalização de políticas ou a simples tentativa de conquistar simpatias populares sem substância efectiva. Acresce ainda o problema da selecção dessas figuras: com base em que critérios são escolhidas? Qual o impacto real da sua presença? E, sobretudo, quem retira verdadeiro benefício dessa associação — o cidadão ou a própria figura contratada, promovida à custa do erário público? Mais do que uma questão de comunicação, trata-se, pois, de um dilema ético e político: onde termina a informação institucional e começa a propaganda financiada pelos contribuintes?
Entretanto, na chamada “imprensa cor-de-rosa”, multiplicam-se referências à presença de Cristina Ferreira na cerimónia do Dia de Portugal, apontando que terá sido convidada pelo Turismo de Portugal. A apresentadora da TVI, de resto, confirma esse convite na sua página no Instagram, prolongou a sua estadia em solo nipónico para férias — um luxo, ao que tudo indica, pelo menos parcialmente patrocinado com dinheiros públicos.
Cristina Ferreira foi convidada especial para Osaka…e aproveitou a boleia para fazer férias no Japão.
O PÁGINA UM questionou formalmente o Turismo de Portugal sobre quem convidou, quanto custou e se houve cachets envolvidos. Aguarda-se resposta. No Portal Base, contudo, não constam quaisquer contratos celebrados com agências de viagens ou despesas associadas a este tipo de deslocações. O mesmo se verifica relativamente à AICEP.
Enquanto isso, a cobertura dos media portugueses tem omitido factos alarmantes sobre a própria Expo 2025 Osaka. Desde a semana passada, os níveis bacterianos de Legionella — bactéria que pode causar uma forma grave de pneumonia — situam-se 53 vezes acima do limite de segurança. Desde 28 de Maio, zonas como o Forest of Tranquility e a Water Plaza — palco de espectáculos aquáticos — foram encerradas para desinfecção, após confirmação da contaminação. A exposição, inaugurada a 13 de Abril, já enfrentara outros incidentes, incluindo ameaças de bomba, sobrevoos por drones não autorizados, falhas no metropolitano e mesmo receios de explosões de metano, dado situar-se sobre um antigo aterro sanitário.
Segundo o Mainichi Broadcasting System, os primeiros testes positivos à presença de Legionella ocorreram em Maio, mas as autoridades só vieram a público semanas depois. A desinfecção inicial revelou-se ineficaz, e novos testes realizados a 7 de Junho voltaram a detectar concentrações 53 vezes acima do limite legal. Apesar do risco elevado para a saúde pública, nem a AICEP nem qualquer órgão de comunicação social português fizeram menção ao problema.
É o reverso da medalha do aumento da esperança média de vida — e também um sinal atroz de derrota civilizacional e das políticas sociais. Nos últimos cinco anos, o número de pessoas com mais de 65 anos a viver em risco de pobreza ou exclusão social em Portugal aumentou de forma alarmante.
De acordo com cálculos efectuados pelo PÁGINA UM, com base nas percentagens divulgadas pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) e cruzando esses valores com as estimativas oficiais da população residente, verifica-se que entre 2019 e 2024 houve um acréscimo de mais de 100 mil idosos nesta condição de fragilidade socioeconómica. Em números absolutos, passaram de cerca de 560 mil para mais de 600 mil.
Este dado é tanto mais preocupante porque continua ausente das apresentações formais do INE, que se limita a publicar apenas as proporções percentuais. Além disso, fica ‘escondida’ de uma melhoria registada na população vista globalmente: pela primeira vez desde 2018, segundo os dados divulgados no final de Maio relativos ao ano de 2024, a percentagem da população residente em risco de pobreza ou exclusão ficou abaixo da fasquia dos 20% (19,7%), sendo que na faixa dos 18 aos 64 anos — que grosso modo corresponde à população em idade activa — essa percentagem é ainda mais baixa (17,8%).
No entanto, aquilo que se os números relativos não mostram é que a população idosa tem vindo a crescer continuamente, e daí o número de vulneráveis acima dos 65 anos estar em contínuo crescimento desde 2018. Esta omissão de dados absolutos mascara o verdadeiro impacto social da evolução.
Com efeito, os valores do INE, compilados no âmbito da meta europeia Europa 2030, indicam que 23,8% dos idosos se encontravam em 2024 em risco de pobreza ou exclusão social. Esta percentagem parece apenas ligeiramente superior aos 20,4% de 2019 — e até mais baixa do que em 2021, em plena pandemia —, mas em termos absolutos o aumento é muito relevante.
De facto, como a população com 65 ou mais anos aumentou em cerca de 210 mil pessoas no último quinquénio, passando de 2.327.150 em 2019 para 2.537.740 em 2023 (ano usado como referência populacional, uma vez que o INE ainda não divulgou, estranhamente, as estimativas de 2024), o aumento percentual da exclusão e pobreza é ainda mais agravado pelo aumento populacional no grupo dos idosos.
Ou seja, mesmo que a taxa se mantivesse constante, o número absoluto de pessoas afectadas teria subido. Como a taxa aumentou, o número de idosos pobres disparou para valores inéditos, estimando-se em 603.982 idosos em 2024, face a 560.843 em 2020 e 534.322 em 2021. A tendência é persistente e preocupante, sem sinais de reversão.
A situação torna-se ainda mais grave quando analisada sob o prisma do sexo. Entre os homens com mais de 65 anos, o risco de pobreza em 2024 afectava 20,8%, valor já de si significativo. Mas entre as mulheres com a mesma idade, a percentagem ascende a 26,1%, o que equivale, segundo os cálculos do PÁGINA UM, a mais de 376 mil mulheres idosas em risco de pobreza ou exclusão social — um número que supera em muito os 227 mil homens idosos na mesma condição. A disparidade é estrutural: existe não apenas uma diferença de rendimentos ou protecção social, mas também uma assimetria demográfica.
Evolução no último quinquénio da população idosa (homens e mulheres) em função do risco de pobreza e exclusão. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM. Nota: Uma vez que as estimativas de população de 2024 ainda não foram divulgadas pelo INE, os valores absolutos foram calculados em função do risco para o ano N e da população do ano -1. Isto significa que os valores até pecam por um ligeiro defeito.
Em Portugal, como em quase todo o mundo, a esperança média de vida é mais elevada entre as mulheres, o que resulta numa sobre-representação feminina nas faixas etárias mais avançadas. Em 2023, por exemplo, havia cerca de 1,44 milhões de mulheres com mais de 65 anos, face a 1,09 milhões de homens — ou seja, cerca de 350 mil mulheres a mais.
Este desequilíbrio demográfico agrava o impacto social do fenómeno da pobreza na velhice. Além disso, os números tornam claro que não estamos perante uma anomalia estatística, mas sim diante de uma tendência que compromete o tecido social e o próprio contrato intergeracional. Com o aumento progressivo da esperança de vida, aliado a carreiras contributivas interrompidas ou precárias — sobretudo no caso de muitas mulheres que trabalharam sem descontos ou em tarefas não remuneradas —, o sistema de pensões revela-se incapaz de garantir condições de vida dignas a uma parte substancial da população mais velha.
Recentemente foi relevada uma análise da CGTP, com base em dados do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, em que se destacava que mais de metade dos pensionistas por velhice da Segurança Social (986.200 pessoas) recebia menos de 500 euros mensais — um valor inferior ao limiar de pobreza fixado nesse ano em 542 euros (em cálculo por rendimento anual dividido por 14).
Destes, cerca de 68 por cento são mulheres, o que reforça a constatação de que a pobreza na velhice afecta desproporcionalmente o sexo feminino. Somando os pensionistas que auferem até 750 euros mensais, o universo atinge quase 1,5 milhões de pessoas, representando 77% dos pensionistas da Segurança Social.
Apesar de a média das pensões de velhice situar-se nos 666 euros mensais, o valor continua a rondar o limiar da pobreza. As pensões do regime geral atingem ligeiramente mais (524 euros), mas mesmo nesse contexto, as mulheres continuam a receber apenas cerca de 62% do valor dos homens. Esta realidade, como sublinha a CGTP, resulta de carreiras contributivas mais curtas e salários historicamente mais baixos, sendo o reflexo acumulado de desigualdades estruturais. O panorama traçado revela, pois, uma crise silenciosa que se adensa nos lares mais envelhecidos do país — e que permanece à margem das prioridades políticas.
Vidros partidos, fechaduras arrombadas, portas estragadas. O cenário repete-se de noite para noite, Nas últimas semanas, somam-se os assaltos a estabelecimentos situados no popular Bairro Alto, em Lisboa. Na Rua do Norte, numa só noite foram assaltados dois restaurantes, o Limoncello e a Adega Machado. Outros estabelecimentos não foram assaltados, mas os proprietários encontraram fechaduras e portas estragadas pela manhã. Foi o caso do restaurante Stasha, na Rua das Gáveas.
Os proprietários de restaurantes e bares daquele conhecido bairro lisboeta de diversão nocturna fazem contas aos prejuízos causados pelos roubos e sentem-se sozinhos. Falam na existência de um certo desinteresse pelo tema por parte das autoridades, designadamente a Junta de Freguesia da Misericórdia. Sobretudo, nesta altura, pedem mais vigilância e patrulhamento policial na zona, durante a noite.
Os assaltos a estabelecimentos no Bairro Alto têm acontecido pela madrugada. / Foto: D.R.
“Quase todos os dias há um assalto ou uma tentativa de assalto a estabelecimentos aqui no Bairro. Sentimo-nos impotentes para parar isto”, disse um dos empresários da zona ouvidos pelo PÁGINA UM.
“O problema aqui no Bairro não é a falta de segurança nas ruas, das pessoas, dos clientes, mas dos espaços e estabelecimentos. Tem havido uma onda imparável de assaltos. Era preciso haver mais vigilância e um reforço da presença da polícia durante a noite”, disse.
Ainda não foi possível obter respostas da Polícia de Segurança Pública (PSP) e os empresários afectados desconhecem se já foram identificados ou detidos os assaltantes. Testemunhas têm apontado o dedo a dois estrangeiros, de nacionalidade argelina, como sendo os alegados autores de alguns dos assaltos.
Policiamento no Bairro Alto, até há, mas da Polícia Municipal, e os empresários lamentam que seja, sobretudo, para visar os estabelecimentos e encontrar eventuais ‘falhas’, e não para afastar e travar o aumento dos assaltos.
Um dos recentes assaltos no Bairro Alto. / Foto: D.R.
Para Ricardo Tavares, presidente da Associação Portuguesa de Restaurantes, Bares e Animação Noturna, é incompreensível que não se consiga travar os assaltantes, noite após noite. “No Bairro Alto não há insegurança para as pessoas. Tem é havido assaltos a vários espaços”, disse. O empresário apontou que existe uma falta de solidariedade por parte da Junta de Freguesia da Misericórdia em relação à situação que insegurança que afecta os estabelecimentos daquele bairro histórico. E aponta o dedo a interesses que existem para acabar com o negócio da restauração na zona para instalar hotéis de luxo no bairro.
O PÁGINA UM colocou hoje algumas questões sobre a onda de assaltos no Bairro Alto à Junta de Freguesia da Misericórdia e também à Câmara Municipal de Lisboa, e ainda não foi possível obter respostas.
Contudo, não é só no Bairro Alto que os roubos a restaurantes e bares se avolumam. Nas zonas da Graça, Arroios, Anjos e Intendente, os empresários falam na existência de um clima de insegurança. Nunca sabem como vão encontrar o seu estabelecimento pela manhã. Alguns estabelecimentos foram assaltos várias vezes seguidas.
Nas zonas da Graça, Arroios, Anjos e Intendente, dezenas de donos de estabelecimentos criaram um abaixo-assinado depois de terem sofrido assaltos e arrombamentos. Na imagem, é visível a fachada em vidro partida de um bar situado na Rua Damasceno Monteiro que foi assaltado no início deste ano. / Foto: D.R.
Foi mesmo criada uma petição, reunindo assinaturas de dezenas de proprietários de estabelecimentos destas zonas, a pedir um reforço de segurança e policiamento. “Abrimos as nossas portas todas as manhãs, sem saber se seremos as próximas vítimas”, lê-se no texto da petição. “Esta onda implacável de crimes não só coloca em risco a nossa segurança e a de nossos colaboradores, mas também abala a confiança e a tranquilidade dos nossos clientes”, adianta.
Os assaltantes, além de provocarem danos em portas e janelas, levam o que podem, desde dinheiro, tabaco, garrafas de bebidas alcoólicas, máquinas registadoras e pequenos electrodomésticos.
Nenhum estabelecimento está imune a ser assaltado. Os roubos têm deixado um rasto de prejuízos que afecta desde o pequeno restaurante familiar até ao café ‘gourmet’ e ao bar popular, que atrai turistas em busca de esplanada e diversão.
Estes empresários fizeram um apelo, “com urgência, que as autoridades responsáveis, como a Câmara Municipal de Lisboa, a Polícia de Segurança Pública e as Juntas de Freguesia de Arroios e Penha de França, tomem medidas imediatas e eficazes para combater a criminalidade na nossa área”.
Vista de Lisboa a partir de um dos miradouros na Graça. Na zona, as receitas ganhas com turistas e clientes habituais não chegam, por vezes, para alguns estabelecimentos cobrirem os prejuízos deixados por assaltos sucessivos. / Foto: D.R.
Tal como está a acontecer no Bairro Alto, os assaltos decorrem sobretudo de noite e nas primeiras horas da manhã, por isso, os proprietários de bares e restantes pediram um reforço do patrulhamento policial nesse período. Também pediram a instalação de câmaras de vigilância “em locais estratégicos para deter a atividade criminosa” e “apoio institucional e logístico para os proprietários de negócios que desejam reforçar a segurança dos seus estabelecimentos, como ‘gratificado’ ou ajuda financeira para poder contratar empresas de segurança para vigilância”.
De resto, no caso da Graça, não há estabelecimento que não se queixe de roubos e assaltos, tanto aos estabelecimentos como a funcionários. Nem as farmácias escapam. De há uns meses para cá, a mais frequentada farmácia do Largo da Graça conta com um segurança presente logo à entrada. Um sinal dos tempos que se vivem nestes bairros turísticos de Lisboa.
No caso do Bairro Alto, sem respostas das autoridades, aos donos dos estabelecimentos, resta-lhes, para já, enfrentar os prejuízos enquanto colocam mais trancas nas portas, sem saber quando vai chegar o próximo assalto.
Hoje, a escritora e conselheira de Estado Lídia Jorge, na sua intervenção oficial do Dia de Portugal na cidade algarvia de Lagos, lançou uma reflexão que bem poderia ter sido moldada em granito: “O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada dia, a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a terra é disputada. E os cidadãos são apenas público que assiste a espectáculos em ecrãs de bolso. Por alguma razão, os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores e os seus ídolos são fantasmas.”
A frase talvez pretendesse tocar a consciência cívica, mas involuntariamente poderia também ter sido inspirada pela realidade lacobrigense — gentílico erudito de Lagos, que remonta à antiga Lacobriga romana —, onde o cidadão paga e assiste. E onde o ídolo, invariavelmente, é de pedra, ferro ou bronze.
Hugo Pereira, presidente socialista da autarquia de Lagos: 500 mil euros em Arte de Rotunda em nove dias. Tudo por três ajustes directo, em dois casos a ‘artistas da casa’. Foto: CML.
De facto, Lagos, a cidade algarvia onde as rotundas florescem em bronze, ferro ou pedra e o orçamento municipal se curva com frequência ao apelo da (es)cultura popular, resolveu, em apenas nove dias do final de Abril passado, ‘investir’ mais meio milhão de euros em arte pública — ou, mais rigorosamente, em Arte de Rotunda.
A decisão foi tomada através de três contratos sucessivos por ajuste directo, sem consulta pública e com escassa informação disponível. Sabe-se apenas que dois dos felizes contemplados têm ligações a Lagos, ou por aí terem nascido ou por aí residirem.
A autarquia, liderada pelo socialista Hugo Pereira, ainda não prestou esclarecimentos ao PÁGINA UM sobre os critérios das encomendas nem sobre as razões das escolhas a dedo nem sobre o conteúdo das obras. Mas há criatividade garantida e também ironia — pelo menos na denominação de duas das empresas beneficiadas.
A icónica e polémica estátua de José Cutileiro em Lagos, que necessita de legenda para se saber quem evoca. Foto: DR.
Um dos contratos, no valor de 209.100 euros (IVA incluído), foi assinado com a empresa Poeiras Ajuizadas, criada apenas em Março deste ano, sendo este o seu primeiro contrato público. Logo por ajuste directo. Com um capital social de 500 euros, a sócia única desta novel empresa é Rita Mendes Pereira, aparentando que o seu melhor atributo para a escolha seja ser natural de Lagos, para além de possuir um mestrado em Artes Plásticas pela Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha. A peça será instalada na rotunda junto ao Centro de Saúde, na entrada poente da cidade.
O segundo contrato, ainda mais generoso, fixou-se nos 246.000 euros (com IVA) e foi adjudicado à empresa Palavra Mental, nascida em Agosto de 2024, em Chilreira, no concelho de Sintra, também com 500 euros de capital social. A firma pertence ao escultor Rui Matos, que conta com um extenso percurso artístico, tendo iniciado carreira nos anos 80. O seu currículo expositivo é denso e variado, com obras em ardósia, gesso, bronze, pedra e ferro.
Nas últimas semanas, o trânsito na conhecido Rotunda de São Gonçalo esteve congestionado para ser colocado o suporte para a peça escultória de Rui Matos, tendo as obras previsivelmente terminado no final da semana passada, conforme informação da autarquia, que não revelou aos munícipes o custo da obra. Não se conseguiu ainda apurar quando a escultura será colocada, mas da cabeça e mãos do dono da Palavra Mental sabe-se o que essa mente já concebeu antes.
Rotunda de São Gonçalo vai receber escultura que custou 246 mil euros.
Por exemplo, numa das suas exposições recentes, a obra de Rui Matos é descrita como a de um escultor que, “tal como um músico, gera no processo da linguagem uma estrutura compositiva aberta entre o resultado sonoro/visual e a performance compositiva. Nestas narrativas, desenvolvem-se tensões a serem resolvidas estruturalmente em torno da busca da abstracção na essência da natureza.” E mais: “Operando numa semelhante abstracção intrínseca à natureza, cuja ‘gramática’ se revela particularmente universal, o escultor interliga dois sistemas, o do geométrico-matemático com o da linguagem primordial.”
Enfim, um discurso estético de múltiplas literacias visuais — e, aparentemente, agora com uma generosa fonte de financiamento público. São raríssimas as obras de escultura acima dos 200 mil euros adjudicadas por autarquias.
O terceiro contrato, de menor valor mas não menos digno de menção, foi celebrado com António Pedro Serrano de Sousa Correia, artista plástico nascido em Angola em 1961, que usa o nome artístico A. Pedro Correia. Residente em Lagos, dedica-se à escultura, à criação de objectos tridimensionais e à instalação multidisciplinar.
O contrato, no valor de 44 mil euros — sem IVA, por ser artista em nome individual — visa a criação de uma escultura a instalar na entrada norte da cidade, no entroncamento da EN120 com a Avenida de Alcácer Quibir. Na sua página do Facebook, datada do início de Maio, já é possível ver fotografias da obra em fase avançada de execução numa zona lateral à rotunda defronte à esquadra da PSP. Um espaço onde, aliás, caberiam mais algumas esculturas — e talvez umas centenas de milhares de euros adicionais em futuros ajustes directos.
Importa lembrar que Lagos é uma cidade que, segundo o seu próprio site institucional, conta já com 27 monumentos e esculturas espalhados pelo espaço público. Incluem-se homenagens ao Infante D. Henrique, a Salgueiro Maia, a São Gonçalo, a Júlio Dantas e, naturalmente, ao rei D. Sebastião, cuja escultura emblemática de José Cutileiro, instalada nos anos 70, continua a despertar perplexidade entre os visitantes menos informados: o monarca surge com expressão adolescente e ‘capacete de motorizada’, exigindo leitura prévia para identificação.
Com este novo impulso escultórico, Lagos confirma o seu estatuto de capital nacional da estátua por rotunda, caminhando para um rácio de uma peça escultória em espaço público por cada mil habitantes. Se um dia se decidir celebrar o próprio conceito de homenagem urbana, já haverá espaço — e verba — para mais uma figura de bronze, talvez com Lídia Jorge em pedestal, e a inscrição lapidar: “os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores.”
Não há fome que não dê em fartura – e essa fartura pode vir a dar, a prazo, outros tantos problemas tão ou mais complexos do que a fome original. Depois de anos de estagnação do licenciamento de habitação – no decurso da crise do subprime em 2007 –, Portugal está agora a assistir a um súbito festim de projectos aprovados — mas, como em toda a fartura precipitada, o risco de indigestão urbanística é real e iminente.
Os dados dos licenciamentos urbanísticos de Abril de 2025, hoje divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), revelam que o sector do licenciamento de novos fogos entrou numa fase de completa euforia, mas olhando para o detalhe identificam-se excessos passados e velhos erros.
Com efeito, entre Janeiro e Abril do presente ano foram licenciados 13.467 novos fogos, o que, considerando os ritmos de licenciamento ao longo dos meses, permite estimar que 2025 chegará a um total próximo dos 46 mil fogos. Tem de se recuar a 2008 para encontrar valor similar.
O crescimento relativo dos primeiros quatro meses de 2025 face ao quinquénio anterior (2020-2024), que registou uma média anual de 10.217 fogos, é extraordinariamente elevado: 31,8%, o que representa uma mudança brusca no comportamento do mercado e, acima de tudo, das entidades licenciadoras. Contudo, esta dinâmica, à primeira vista positiva numa conjuntura de crise habitacional, esconde desequilíbrios preocupantes: tanto na distribuição regional dos licenciamentos como na própria morfologia dos fogos projectados.
Evolução dos licenciamentos de fogos novos em cada ano desde 2007. O ano de 2025 é uma estimativa em função dos números reais até Abril e considerando o ritmo de licenciamento mensal ocorrido em 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.
A análise regional dos dados expõe uma realidade bastante dual. Regiões como as de Coimbra, Lezíria do Tejo, Grande Lisboa, Alto Minho e Tâmega e Sousa apresentam crescimentos superiores a 60% face à média do quinquénio anterior — sendo que Coimbra, com 643 fogos licenciados, mais do que duplicou o valor médio dos cinco anos anteriores.
A região da Grande Lisboa, com 2.534 novos fogos, regista um aumento de 81,6%, mostrando ser agora o principal motor da retoma na habitação urbana, ultrapassando mesmo a Área Metropolitana do Porto, que mostra estagnação (apenas +20,5%, com 2.813 fogos este ano).
A euforia é, porém, desigual. Quatro em cada 10 novos fogos licenciados este ano estarão localizados apenas em duas regiões (Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto), ou seja, 39,7% dos novos fogos serão construídos em menos de 6% do território nacional, sendo que estas são já as mais saturadas do ponto de vista urbanístico.
Evolução dos licenciamentos de fogos novos nos primeiros quatro meses (Janeiro a Abril) de cada ano desde 2007. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.
Por outro lado, territórios como o Baixo Alentejo (-33,6%), Terras de Trás-os-Montes (-30,8%), Alentejo Central (-28,5%), a Península de Setúbal (-25,1%) e até mesmo o Algarve (-21,8%) e Ave (-5%) apresentam quedas acentuadas. Ou seja, algumas zonas suburbanas, turísticas e do interior, com fraca atractividade económica, continuam a afastar o investimento em habitação, mesmo num contexto de incentivo à construção. Este crescimento reproduz a ‘velha geografia’ da litoralização e da urbanização concentrada, sem qualquer correcção política ou de planeamento estratégico.
Mas, para além do número bruto de fogos licenciados, a análise do PÁGINA UM aos dados por tipologia revela uma mutação ainda mais significativa e estrutural: a redução progressiva das habitações de maior dimensão e o crescimento acentuado de fogos pequenos, em particular os T0 e T1.
Nos quatro primeiros meses de 2025, as tipologias T0 e T1 (agregadas nos dados do INE) representam 18,2% do total de fogos licenciados, com 2.448 unidades — uma subida clara face à média de 1.301 unidades por ano no quinquénio anterior. Antes de 2017, raramente esta tipologia ultrapassava os 10% do total. Em termos relativos, trata-se de um aumento de 88,1%, mais do dobro do crescimento geral dos licenciamentos. Este indicador reflecte uma mudança na estratégia dos promotores imobiliários, que apostam agora num mercado da habitação mais compacta — dirigida sobretudo a arrendamento urbano, a residências para estudantes e, em alguns casos, à hotelaria encapotada.
Licenciamento de fogos novos nos primeiros quatro meses em 2025 e na média do quinquénio 2020-2024, e variação percentual. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.
A opção por fogos de pequena dimensão responde, parcialmente, às exigências económicas de um mercado onde o preço por metro quadrado atingiu níveis proibitivos. No entanto, esta tendência pode vir a gerar problemas de saturação urbana, congestionamento de serviços públicos e pressão sobre infra-estruturas já deficitárias. Por outro lado, constitui um reflexo da precarização dos modelos de vida — cada vez mais orientados para a mobilidade, o individualismo e a instabilidade. Ou seja, a construção de casas familiares está em forte queda.
Com efeito, a tipologia T4 ou superior — ou seja, de habitação familiar com espaço e estabilidade — recuou significativamente. Nos primeiros quatro meses deste ano, apenas 1.716 fogos desta categoria foram licenciados em todo o país, o que representa apenas 12,7% do total, quando em 2007 representavam 16,7% (com 3.723 unidades). Em todo o caso, em termos absolutos, o número de fogos com tipologia T4 ou superior é o maior desde 2010.
Numa perspectiva urbanística global, este boom de licenciamento exige leitura crítica. Não basta celebrar o número: é preciso questionar onde se constrói, o que se constrói e para quem se constrói — algo que os números do INE não mostram, mas que indiciam. A predominância de tipologias mínimas em zonas mais valorizadas, conjugada com a queda de licenciamentos nas regiões menos atractivas, poderá vir a reforçar assimetrias e criar bolhas de sub-habitação urbana — apartamentos demasiado pequenos para necessidades familiares, com preços desajustados face ao rendimento médio, servidos por infra-estruturas que não acompanham o ritmo de expansão.
Evolução do licenciamento de fogos novos nos primeiros quatro meses do ano (Janeiro a Abril desde 2007) por tipologia. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM,
Não menos importante é o impacto deste crescimento sobre os equipamentos urbanos. A construção intensiva, sobretudo nos centros urbanos já saturados, pode comprometer o acesso a transportes, escolas, unidades de saúde, zonas verdes e abastecimento energético — áreas frequentemente ignoradas no frenesim licenciatório. E existe, assim, com esta vontade de licenciar para resolver a ‘crise da habitação’ apenas com mais construção, o risco de se repetir o erro clássico do urbanismo português: permitir que a pressão imobiliária dite a forma da cidade, em vez de se planear a cidade para responder à sua função social.
Certo é que este processo de nova bolha imobiliária sucede sem que o Estado, central ou local, assuma um papel de verdadeiro regulador estratégico. As autarquias, muitas vezes dependentes de receitas do licenciamento e pressionadas pelos interesses de promotores, não têm dado provas de capacidade para travar ou orientar os surtos construtivos.
Em muitos casos, a aprovação de projectos acontece sem qualquer avaliação prévia de impacto sobre os equipamentos públicos, licenciando-se porque surgem investidores, porque há pressa — e há pressa porque há investimento, e o investimento, como se sabe, não gosta de esperar nem de ser contrariado.
Em suma, se o crescimento de 31,8% no licenciamento de fogos em 2025 é também um sinal de recuperação económica, também revela miopia estrutural. O país que passou anos a lamentar a crise da habitação parece agora enredado numa resposta quantitativa, quando os problemas são sobretudo de qualidade — do território, da oferta, do acesso e do planeamento.
Assim, se a ‘fome’ de habitação é real, a fartura súbita poderá ser indigesta. A história urbanística portuguesa ensina que os excessos se pagam — não com juros financeiros, mas com décadas de má qualidade de vida, desorganização do espaço e oportunidades perdidas.
A indústria farmacêutica reforçou a sua presença no Ministério da Saúde com a nomeação de Francisco Gonçalves para a Secretaria de Estado da Gestão da Saúde. O novo governante salta directamente da Sanofi, onde ocupava desde 2021 o cargo pomposamente denominado Head of Market Access & Public Affairs. Nessas funções, Francisco Gonçalves foi responsável pela definição de estratégias para a obtenção de preços e reembolsos junto das autoridades de saúde, bem como pela articulação com decisores políticos e instituições públicas, assegurando o enquadramento regulatório e institucional favorável à empresa.
Foi ele que, por exemplo, negociou com o Ministério da Saúde, então liderado por Ana Paula Martins, a introdução do fármaco Beyfortus – marca comercial do nirsevimab, um anticorpo monoclonal para a prevenção do vírus sincicial respiratório –, que é hoje uma das coqueluches da farmacêutica francesa (confirma). Nas contas de 2024, a Sanofi reportou receitas com este fármaco de quase 1,7 mil milhões de dólares, com um crescimento de 208% face ao ano anterior, ocupando já a segunda posição entre as suas marcas, apenas atrás do Dupixent, também um anticorpo monoclonal destinado ao tratamento da asma e da dermatite atópica, e que é um autêntico campeão de vendas devido ao seu elevado preço.
Apesar de se tratar de uma doença genericamente benigna e de não haver registo em Portugal de mortes em bebés, a Sanofi – apoiada numa intensiva campanha mediática que incluiu parcerias promíscuas com a imprensa mainstream – conseguiu que, em 2024, o Ministério da Saúde adquirisse doses suficientes para inocular cerca de 62 mil bebés nascidos entre 1 de Agosto do ano passado e 31 de Março de 2025.
De acordo com o Portal Base, a Sanofi conseguiu vender até hoje cerca de 14,6 milhões de euros (IVA incluído) de Beyfortus, mas a factura deverá ainda aumentar substancialmente. Grande parte deste valor deveu-se á administração de doses em cerca de 62 mil crianças”, justificada por um alegado estudo do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), com base em dados de 2023, que apontavam para o internamento hospitalar de 145 crianças até aos dois anos de idade, entre 2 de Outubro e 10 de Dezembro.
No passado mês de Abril, o Ministério da Saúde, através da Direcção-Geral da Saúde (DGS), decidiu expandir a estratégia de imunização na próxima campanha de vacinação, alargando a sua abrangência a todos os bebés nascidos entre 1 de Junho de 2025 e 31 de Março de 2026. A data ainda não está definida, mas a campanha de administração do anticorpo monoclonal – que não é tecnicamente uma vacina – deverá arrancar a 1 de Outubro e prolongar-se até 31 de Março de 2026.
O marketing para promover mediaticamente o tema do vírus sincicial respiratório começou no final de 2021 com um evento pago pela AstraZeneca ao Público. A partir do ano passado, os eventos, também em outros media (como o Expresso) começaram a ser promovidos pela Sanofi, que tem a área comercial de um novo fármaco (com a AstraZeneca e a Sobi) aprovado na Europa. As notícias sobre o VSR e o novo fármaco aumentaram substancialmente a partir do ano passado na generalidade da imprensa.
Apesar de diversos estudos indicarem que o Beyfortus reduz significativamente a hospitalização de bebés com infecções respiratórias por VSR, não são conhecidos estudos públicos sobre o verdadeiro impacto nos hospitais portugueses, sendo certo que, em termos de óbitos, não havia nada a melhorar, por não haver registos de desfechos fatais. Até porque, antes do Beyfortus, já existia um outro anticorpo monoclonal administrado apenas a prematuros e recém-nascidos com comorbilidades graves.
Apesar disso, os dados da Agência Europeia do Medicamento – actualmente presidida por Rui Santos Ivo, presidente do INFARMED, e que ficará agora sob tutela do ex-Sanofi Francisco Gonçalves – começam a indicar suspeitas de efeitos adversos graves associados à toma de nirsevimab. Ainda que estes dados careçam de confirmação, a sua inclusão no sistema EudraVigilance constitui já um alerta regulatório.
Desde 2023 até à data, foram reportadas 628 reacções adversas graves, incluindo 21 mortes. Destas, 13 foram reportadas em 2024 e sete já este ano. O mais recente registo de morte associada à nirsevimab é de 29 de Março e ocorreu por morte súbita de um recém-nascido com menos de um mês no próprio dia da toma, de acordo com o registo da EudraVigilance.
Os efeitos adversos do Beyfortus têm sido detectados sobretudo em França, onde a administração do fármaco é mais intensiva. Actualmente, para além de Portugal e França, o Beyfortus tem sido administrado em Espanha, Alemanha, Itália, Finlândia e Bélgica – embora nem todos os países tenham optado por abranger todas as crianças. O custo por dose ascende a mais de 200 euros, valor considerado exorbitante, o que tem contribuído para o expressivo crescimento das receitas da Sanofi.
Com a nomeação de Francisco Gonçalves, são agora dois os governantes do Ministério da Saúde com fortes ligações à indústria farmacêutica. Ana Paula Martins esteve durante vários anos ligada à Gilead, uma das farmacêuticas que conseguiu importantes negócios durante a pandemia, sobretudo com o remdesivir, um fármaco que fora um investimento ruinoso contra o vírus do Ébola, mas que miraculosamente foi considerado eficaz contra o SARS-CoV-2.
Apesar de a covid-19 ser actualmente uma doença praticamente inofensiva, a Gilead conseguiu já vender este ano em Portugal mais 744 mil euros de remdesivir a diversos hospitais, tendo no ano anterior obtido ainda 3,7 milhões de euros. Desde finais de 2020, cerca de 40 milhões de euros deste antiviral foram adquiridos pelo Estado português à antiga empregadora da actual ministra da Saúde.
A indústria farmacêutica vive, na Europa, um período de expansão acentuada dos seus negócios, com cada vez menor vigilância regulatória, fruto das chamadas “portas giratórias” entre o sector e a política. Além disso, ao nível dos media, tem-se vindo a registar aquilo que se poderá denominar – com rigor a definir – “abraços de urso” publicitários, em que parcerias comerciais envolvendo jornalistas alimentam uma cobertura enviesada: os órgãos de comunicação social funcionam agora como novos delegados de propaganda médica.
Em Portugal, por exemplo, o Expresso, o Público, a CNN, o Observador, o Diário de Notícias, entre outros, têm mantido generosas parcerias com farmacêuticas, o que se traduz numa visível redução de notícias desfavoráveis e num aumento de conteúdos entusiásticos, mesmo relativamente a medicamentos ainda sem provas consolidadas de eficácia ou de segurança.
Mesmo depois de ser constituído arguido e com rumores da sua ‘expulsão’ de mentor do The Voice, programa de talentos da RTP, a carreira do cantor Nininho Vaz Maia, vai de vento em popa. As buscas de foi alvo, no passado dia 6 de Abril, relacionadas com tráfico de droga e lavagem de dinheiro, não esmoreceram a vontade de autarcas em contratarem o popular cantor, que afirma estar inocente. No espaço de um mês, após as buscas, Nininho ‘assinou’ mais quatro contratos com autarquias num valor global de 205 mil euros para dar concertos ‘grátis’ à população. E há mais a caminho.
Os quatro municípios que adjudicaram contratos ao cantor, sempre por ajuste directo, foram: Castelo de Paiva, Sertã, Reguengos de Monsaraz e Arouca. Três dos contratos foram efectuados através da Gigs on Mars, que representa o artista, e um foi feito através da empresa unipessoal Iconikourage, segundo a consulta que o PÁGINA UM fez à plataforma de registo dos contratos públicos, o Portal Base.
A polémica em torno do artista não beliscou o apetite de autarcas em contratar o popular cantor nascido numa família cigana, que se tornou numa das coqueluches do panorama musical nacional e esgotou duas noites no MEO Arena. A tendência confirma que Nininho Vaz Maia se tornou um fenómeno musical, sendo até imune a polémicas, como o PÁGINA UM antecipou. Além da popularidade, a polémica em torno do cantor surgiu num contexto em que a cena política ‘lucra’ com posições a favor ou contra minorias.
O município da Sertã — liderado pelo socialista Carlos Miranda — adjudicou, no dia 21 de Maio, um contrato referente à contratação de um espectáculo do cantor no valor de 43.665 euros. O cantor tem assim presença confirmada no dia 19 de Julho no ‘Festival de Gastronomia do Maranho‘ de 2025, que decorre de 17 a 20 de Julho.
Seguiu-se um contrato adjudicado à Iconikourage, Unipessoal, no dia 23 de Maio, pelo município de Castelo de Paiva — presidido pelo social-democrata José Rocha —no montante de 74.722,5 euros referente à aquisição de um “espectáculo, produção e gestão da produção do espetáculo musical de Nininho Vaz Maia – Festas de S. João”. O cantor será o cabeça-de-cartaz das festividades e irá actuar na noite de S. João, a 23 de Junho.
Na passada terça-feira, dia 3 de Junho, o cantor ganhou mais dois contratos por ajuste directo, assinados pela Gigs on Mars com os municípios de Reguengos de Monsaraz e Arouca.
Nininho Vaz Maia é o cabeça-de-cartaz das Festas de Santo António em Reguengos de Monsaraz. / Foto: D.R.
O quarto contrato foi adjudicado pelo município de Arouca, por um valor de 41.364,9 euros. O cantor vai actuar na ‘Feira das Colheitas, Edição 2025’ marcada para entre 25 e 28 de Setembro. O músico vai actuar no dia 26 de Setembro, depois de ter sido “o mais votado no âmbito do inquérito online que a Câmara Municipal lançou para recolha de sugestões de artistas para a 81.ª edição da Feira das Colheitas”, segundo um anúncio da autarquia nas redes sociais, cujo prazo de resposta terminou a 15 de Abril, antes das buscas.
Curiosamente, este contrato foi adjudicado por uma autarca, a socialista Margarida Belém, que foi condenada em 2023 pelo crime de falsificação de documentos, tendo-lhe sido aplicada uma pena de 1 ano e 3 meses de prisão, suspensa por igual período. Em 2024, o Tribunal da Relação do Porto negou provimento ao recurso da autarca e confirmou a sentença aplicada na primeira instância.
Mas a lista de contratos públicos adjudicados a Nininho Vaz Maia não deverá ficar por aqui. É que o artista terá 17 concertos agendados até ao final do ano de Norte a Sul do país, segundo alguns sites com agendas de eventos. Assim, ainda haverá contratos por assinar com autarquias para concertos que serão ‘grátis’ para a população, sendo pagos pelos contribuintes. Por exemplo, Nininho Vaz Maia vai actuar na ‘Festa do Emigrante 2025’, em Agosto, em Vila Real, que celebra este ano o seu centenário.
Nos últimos dias, surgiram rumores de que Nininho Vaz Maia não irá continuar como ‘Mentor’ no programa de talentos ‘The Voice Portugal’, da RTP, mas não há nenhuma informação oficial sobre o tema. O artista integrou a lista de ‘Mentores’ da última edição do programa, ao lado de de Sónia Tavares, Sara Correia e Fernando Daniel. / Foto: D.R.| RTP
Ainda hoje foi publicado no Portal Base um contrato no valor de 21.525 euros referente à “aquisição de serviços para o aluguer de som, luz, vídeo, efeitos especiais e material de DJ para o espetáculo do artista Nininho Vaz Maia, inserido na Festa do Emigrante 2025”. De resto, note-se que a despesa com concertos ‘grátis’ contratados pela autarquia de Vila Real em 2025 já iam, no final de Março, perto do meio milhão de euros, segundo um levantamento feito pelo PÁGINA UM. Um custo que ‘sobra’ para os contribuintes e que, em ano de eleições autárquicas, cai que nem ‘mel na sopa’ dos autarcas de todo o país, de ‘olho’ em novo mandato. Nininho é apenas mais um dos artistas com concertos ‘grátis’ que ‘animam’ a festa.
A agenda recheada do cantor, vem mostrar que a condição de arguido não o afasta dos palcos. Pelo contrário. Recorde-se que, tal como o PÁGINA UM noticiou, no próprio dia em que foi alvo de buscas, o cantor ganhou novo contrato público, com o munícipio de Anadia.
Actualizando os valores, com os quatro contratos agora ganhos, eleva-se para 697.828 euros a facturação do cantor em 14 contratos com entidades públicas só em 2025. Este valor compara com os 20 contratos ganhos em todo o ano de 2024 e os 12 obtidos em 2023, num valor global 798.940 euros e 326.811 euros, respectivamente.
Nininho Vaz Maia vai actuar na ‘Festa do Emigrante 2025’ em Vila Real, integrando assim o número de artistas que este ano darão concertos ‘grátis’ à população no âmbito das celebrações do centenário da elevação a cidade. / Foto: D.R.
No total, desde Janeiro de 2023, quando ganhou o seu primeiro contrato público, o cantor já facturou mais de 1,8 milhões de euros com entidades públicas, incluindo 41 autarquias.
O cantor tem feito também um percurso fora do circuito dos contratos públicos, sendo exemplo disso a Queima das Fitas e, sobretudo, espectáculos comerciais, com entradas pagas. Por exemplo, há menos de três meses, esgotou duas noites no MEO Arena, em Lisboa.
Ontem, na entrevista à TVI e CNN Portugal, Gouveia e Melo garantiu ser “muito imune” a cunhas, quando questionado pela jornalista Sandra Felgueiras sobre a eventualidade de se repetir um ‘caso das gémeas’ durante uma sua Presidência da República. “O que eu fiz na pandemia, quando tomei conta da pandemia, dos casos e casinhos, responde por mim” — disse o ex-coordenador da task force da vacinação contra a covid-19 entre Fevereiro e Novembro de 2021. E acrescentou: “Eu sou o que sempre fui. E podem contar comigo com essa segurança. […] Eu sou muito imune. As pessoas que me conhecem e que andam comigo há muito tempo sabem disso” — concluindo que “[n]a minha forma de agir e de estar, eu não dou abrigo a esse tipo de procedimento; procedimentos de excepção e de favoritismo. Algum procedimento de excepção é por motivos humanitários ou outro qualquer; agora, não porque conheço o A ou conheço o B, ou porque [sou] amigo do A ou amigo do B, ou porque alguém se cruzou comigo no passado — isso nunca acontecerá.”
Essa postura de Gouveia e Melo entra em contradição com factos já revelados pelo PÁGINA UM, e que constam mesmo de documentação de um procedimento da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) que, apesar da gravidade da situação, menorizou os procedimentos do então coordenador da task force e também do então bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, actual deputado do PSD.
Com efeito, durante o processo de vacinação de médicos não-prioritários — cerca de quatro mil que não estavam em funções operacionais, não cumprindo assim os critérios de prioridade da DGS, numa altura ainda de escassez de doses — Miguel Guimarães escreveu um e-mail, a 17 de Março de 2021, para o endereço electrónico de Gouveia e Melo, reiterando aquilo que lhe transmitira “telefonicamente”.
O bastonário salientava o processo da primeira fase de vacinação, em que se tinham administrado as doses de desperdício, mas que uma dose tinha sido “administrada em Lisboa a uma personalidade política, por uma questão de necessidade e oportunidade”.
A missiva com esta confissão consta na página 19 destes documentos que se encontram no processo aberto pela IGAS. Miguel Guimarães nunca quis esclarecer o PÁGINA UM sobre quem foi o político beneficiado, nem a IGAS atendeu a esta confissão, que é de enorme gravidade, porque se tratou de uma ‘cunha’, além de infracções éticas, legais e até penais.
Extracto do e-mail de 17 de Março de 2021 enviado por Miguel Guimarães a Gouveia, admitindo a administração de uma dose “em Lisboa a uma personalidade política, por uma questão de necessidade e oportunidade”.
De acordo com o Código Penal, quem, no exercício de funções públicas — neste caso, Gouveia e Melo enquanto coordenador da task force de vacinação — teve conhecimento de uma infracção penal (como, por exemplo, o abuso de poder ou prevaricação de titular de cargo político por parte de um político que recebeu indevidamente a vacina, em desrespeito às normas definidas para a campanha de vacinação) e não comunicou tal facto ao Ministério Público ou a uma autoridade competente, poderá estar abrangido pelo crime de prevaricação ou abuso de poder.
Mas o próprio processo de vacinação destes médicos esteve, logo na génese, ferido de irregularidades e de favorecimentos, com Gouveia e Melo a sair beneficiado por ter feito um favor a Miguel Guimarães na sua ascensão política.
No início de 2021, com a insatisfação da Ordem dos Médicos por não estarem incluídos na totalidade os clínicos na Fase 1 da vacinação, Miguel Guimarães negociou directamente com Gouveia e Melo uma alternativa, que passaria por desviar doses do sistema normal para serem administradas aos cerca de quatro mil médicos não-prioritários nas instalações do Hospital das Forças Armadas, a troco de uma contrapartida de 27 mil euros. Gouveia e Melo acumulava, na altura, funções de adjunto para o Planeamento e Coordenação do Estado -Maior-General das Forças Armadas.
No processo instaurado pela IGAS, e concluído em Maio do ano passado, Miguel Guimarães referiu que, desde Janeiro de 2021, remetera à então ministra da Saúde, Marta Temido, uma reclamação por causa da existência de médicos não integrados no grupo prioritário, que, na verdade, seria um parecer do Conselho Nacional da Política do Medicamento da Ordem dos Médicos. O conteúdo deste parecer não foi sequer enviado à IGAS, nem a IGAS o solicitou posteriormente, pelo que a sua existência é duvidosa.
Nos documentos enviados por Miguel Guimarães à IGAS constam ainda missivas do primeiro coordenador da task force, Francisco Ramos, em papel timbrado da Secretaria de Estado da Saúde, onde informa que, na “sequência de reuniões realizadas”, solicitava à Ordem dos Médicos uma lista de médicos que “exerçam a sua actividade de prestação directa de cuidados, de forma não integrada em hospitais públicos, privados ou sociais ou em outras entidades prestadoras de saúde já mobilizadas para a execução do plano de vacinação”. Mas essa lista nunca se viu, nem Miguel Guimarães a enviou à IGAS; e nem a IGAS a quis ver.
Com a chegada de Gouveia e Melo à task force em Fevereiro de 2021, de acordo com a documentação a que o PÁGINA UM teve acesso, a informalidade espraiou-se. Já não há papel timbrado nem ofícios. Fez-se tudo por correio electrónico, embora com uma inusitada reverência. Miguel Guimarães tratava Gouveia e Melo por “Distinto Senhor Coordenador da Task-Force Mui Ilustre Vice-Almirante”.
Gouveia e Melo foi coordenador da task force.
Em 19 de Fevereiro de 2021, poucas semanas depois de Gouveia e Melo ter tomado posse como coordenador da task force, Miguel Guimarães envia-lhe por e-mail “uma base de dados com médicos que querem ser vacinados, e cumprem os critérios definidos pela DGS”. Essa lista não é conhecida, não foi fornecida pela task force nem pela Ordem dos Médicos à IGAS. E a IGAS não a quis sequer ver, sendo que essa era a questão óbvia num decente e idóneo processo de esclarecimento.
Mas, de acordo com esse e-mail de Miguel Guimarães, nessa altura a lista nem estava ainda concluída, dizendo ele que “continuamos a receber mais inscrições de médicos que ainda não foram vacinados e continuam no activo”, prometendo enviar mais tarde “uma nova base de dados de forma a evitar sobreposições”. Embora estranhamente não haja qualquer resposta de Gouveia e Melo às missivas de Miguel Guimarães, tudo evoluiu rapidamente para a vacinação de cerca de quatro mil alegados médicos — e reitera-se “alegados médicos” porque nunca se conheceu a lista final de nomes, nem a IGAS a quis conhecer —, cujas vacinas foram administradas em unidades militares. Pelos e-mails de Miguel Guimarães sabe-se o número daqueles que tinham menos de 65 anos, porque receberam a vacina da AstraZeneca, e daqueles que tinham mais de 65 anos, pois receberam a da Pfizer.
Em finais de Fevereiro de 2021, além das pessoas indicadas pela Ordem dos Médicos a viverem no Continente, Miguel Guimarães ainda indicaria 27 médicos da Madeira e 42 dos Açores para serem vacinados, mas no processo fica-se sem saber também quem eram e se houve mesmo inoculação das doses. A IGAS não teve curiosidade em saber.
Ana Paula Martins, actual ministra da Saúde, ao lado de Miguel Guimarães. Geriram em conjunto uma conta solidária, titulada por eles juntamente com Eurico Castro Alves, de onde saiu o dinheiro para pagar cerca de 27 mil euros ao Hospital das Forças Armadas como contrapartida da vacinação de médicos não-prioritários.
Mas essa informação até existirá, eventualmente, num “relatório final da primeira fase” desta operação de vacinação que Miguel Guimarães prometeu, em mensagem de correio electrónico de 17 de Março de 2021, enviar “brevemente” a Gouveia e Melo. Também a IGAS não quis saber deste relatório nem quis saber se houve outros relatórios.
A forma como o procedimento da IGAS foi conduzido mostra ou negligência ou intencionalidade em isentar de culpas Gouveia e Melo e Miguel Guimarães. O relatório final do processo de esclarecimento, da autoria da inspectora Aida Sequeira, retira conclusões que nem sequer se encontram plasmadas em qualquer documento.
Por exemplo, o relatório destaca que “a ponderação e preparação do processo de vacinação foi do conhecimento da DGS e do responsável máximo pela tutela da saúde, a então Ministra da Saúde”, mas, na verdade, não existe no processo consultado pelo PÁGINA UM qualquer documento que comprove esse conhecimento por parte da DGS, que é a Autoridade de Saúde Nacional e a única entidade responsável pela norma eventualmente violada.
Acresce também que a IGAS omite na sua análise a impossibilidade legal da então task force dirigida por Gouveia e Melo negociar procedimentos com a Ordem dos Médicos ou outra qualquer entidade. Somente em Abril de 2021, Gouveia e Melo obteve poderes reforçados através de um despacho governamental.
Mas o relatório final da IGAS fez ainda pior, numa tentativa de ‘legalizar’ os médicos não-prioritários. Com efeito, a inspectora Aida Sequeira diz que a norma 002/2021 tinha tido uma “actualização a 17 de Fevereiro de 2021”, que passava a incluir na Fase 1 os “profissionais envolvidos na resiliência do sistema de saúde e de resposta à pandemia e do Estado”, bem como “outros profissionais e cidadãos, definidos pelo órgão do governo, sobre [sic] proposta da Task-Force”.
Porém, isso é completamente falso.
Na verdade, houve uma actualização da norma em 17 de Fevereiro, mas não em 2021 (ano dos factos), mas sim em 2022, no ano seguinte, conforme se pode constatar no texto. E, de facto, esse alargamento até se verificou inicialmente em 31 de Agosto de 2021, numa fase de maior oferta de vacinas pelas farmacêuticas. Ou seja, a introdução de uma referência completamente falsa por parte da inspectora da IGAS sobre uma alteração da norma da DGS no dia 17 de Fevereiro de 2021 não aparenta nada ser um mero lapso.
Não existe também no processo qualquer documento que comprove a afirmação da inspectora Aida Sequeira de que “em Janeiro de 2021, o Secretário de Estado da Saúde, com conhecimento da DGS, oficiou a Ordem dos Médicos no sentido de que fosse disponibilizada ‘(…) uma base de dados de contactos de médicos com actividade de prestação de cuidados, de forma não integrada em hospitais públicos, privados ou sociais ou em outras entidades prestadoras de cuidados de saúde já mobilizadas”. A inspectora da IGAS diz que essa informação proveio de “diligências adicionais promovidas por esta Inspecção-Geral”, embora não haja qualquer nota sobre a fonte nem sequer o documento que confirme o necessário conhecimento, verificação e aprovação da lista enviada pela Ordem dos Médicos.
Carlos Carapeto: A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde também viu a ‘cunha’, mas preferiu fechar os olhos. A alteração da data de uma norma, introduzida pela inspectora responsável pelo processo, permitiu ilibar Gouveia e Melo e Miguel Guimarães de procedimentos irregulares na vacinação dos médicos não-prioritários.
Assim, e apesar de se ficar sem saber quem, afinal, eram as cerca de quatro milhares de pessoas vacinadas sob a batuta de Miguel Guimarães — e se eram todos médicos, e se todos cumpriam os critérios da norma da DGS, porque a IGAS nada pediu —, a inspectora concluiu “pela conformidade legal da inoculação da vacina contra a covid-19 aos profissionais de saúde, circunscrita a Fevereiro de 2021”, determinando o arquivamento. Ficou assim também ‘apagado’ o pecadilho da “personalidade política” vacinada à margem da lei por uma “questão de necessidade e oportunidade”, bem como o exorbitamento de funções por parte de Gouveia e Melo.
Em todo o caso, sobre as suspeitas de irregularidades na contabilidade financeira da Ordem dos Médicos no processo de ‘contratação’ do Hospital das Forças Armadas, a IGAS decidiu enviar o processo para o Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) de Lisboa, mas até à data não existem quaisquer informações sobre o avanço deste processo.
Os resultados do primeiro trimestre deste ano, divulgados na semana passada pela Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação (APCT), voltam a comprovar aquilo que os ‘barões da imprensa’ persistem em negar com a habitual táctica da avestruz: escondem a cabeça nos slogans sobre “transformações digitais”, “modelos sustentáveis” e “novas formas de chegar ao leitor”, enquanto o corpo editorial se afunda no pântano da irrelevância.
A verdade, nua e crua, é esta – e é tão clara quanto dramática: a imprensa escrita generalista portuguesa colapsou. Os números não mentem. São mais de duas décadas de declínio contínuo, mascarado por anúncios piedosos e relatórios internos que já ninguém leva a sério.
Foto: PÁGINA UM
Em 2025, nem os comunicados eufemísticos do trust da comunicação social, nem os generosos orçamentos de publicidade institucional, nem sequer o ‘balão de oxigénio’ do Governo – travestido de distribuição gratuita de assinaturas digitais para os jovens – conseguem disfarçar o desastre. A erosão é estrutural e terminal.
A evolução das vendas em banca – com quebras brutais em todos os títulos – e das assinaturas digitais – com valores unitários largamente inferiores aos do papel e sem escala de massa crítica – espelham o fim de um modelo baseado na fuga para a frente: redacções inexperientes, pouco cultas, reféns de agendas e compromissos, divorciadas dos leitores e cada vez mais promíscuas nas relações com o poder político e económico.
Mais do que um fim de ciclo, talvez este seja mesmo o fim de linha para alguns dos títulos – o que, convenhamos, não seria necessariamente mau. A extinção natural poderá limpar o terreno dos vícios acumulados, permitir um reequilíbrio do ecossistema mediático e abrir espaço a novas formas de jornalismo, menos dependentes da subsidiação crónica e da formatação ideológica. A imprensa escrita colapsou, mas o jornalismo ainda pode sobreviver – desde que se liberte das amarras que o arrastaram até aqui.
Foto: PÁGINA UM
O PÁGINA UM analisou a evolução das vendas dos últimos 30 anos de cinco jornais generalistas portugueses: quatro nascidos como diários – Correio da Manhã, Diário de Notícias, Jornal de Notícias e Público – e um de origem semanal – o Expresso. A linha temporal inicia-se em 1996, quando ainda não existia o conceito de assinaturas digitais e os portugueses, então leitores assíduos, consumiam jornais em papel como parte integrante do café da manhã.
Foi apenas em 2009 que esse “novo e maravilhoso mundo” digital começou a dar os primeiros sinais de vida, ainda timidamente. Ao longo da década seguinte, foi ganhando terreno, até se tornar, nos últimos anos, o eixo dominante das estratégias editoriais. Hoje, as edições impressas são cada vez mais residuais, enquanto a produção de conteúdos se rege pela lógica do imediato – e pelos inúmeros erros que daí decorrem.
A própria natureza do jornalismo transformou-se: os diários deixaram de ser apenas diários para se tornarem plataformas de informação em torrente contínua, ao passo que o Expresso, tradicionalmente semanal, passou a comportar-se como um diário digital, pressionado pelo mesmo ritmo.
Mais ainda: a transição é já estrutural em dois casos. O Público e o Expresso são, desde 2020 e 2023 respectivamente, jornais maioritariamente digitais, com as assinaturas electrónicas a superarem as vendas em banca. Esta inversão de paradigma, longe de ser sinónimo de sustentabilidade, levanta sérias questões sobre a viabilidade económica, a qualidade editorial e o impacto social do jornalismo tal como está a ser praticado.
Mas vejamos, com rigor e em detalhe, os números de cada jornal, tomando como referência os dados relativos ao primeiro trimestre de cada ano, de forma a permitir comparações homogéneas ao longo do tempo.
Comece-se pelo Público, o diário fundado pelo Grupo Sonae. No primeiro trimestre de 1996, vendia diariamente, em banca, cerca de 58 mil exemplares. Este ano, pela primeira vez, caiu abaixo dos 10 mil. Uma queda de mais de 84%, que nem o empolamento das assinaturas digitais – muitas de acesso gratuito ou incluídas em pacotes promocionais – consegue mascarar. A versão digital, é certo, regista agora cerca de 54 mil assinaturas pagas, quintuplicando os valores registados há uma década, mas à custa de uma política de produção intensiva de conteúdos e de receitas unitárias substancialmente mais baixas que o papel. E a matemática é simples: mais trabalho, menos rendimento. E menos impacto.
O simbolismo do papel, mesmo no efémero diário, é superior – nesse aspecto, o diário da Sonae é hoje um fantasma: o ano de 2005 foi o último acima dos 50 mil exemplares vendidos por dia; 2015 foi o último com vendas diárias em banca acima dos 20 mil, e agora já está abaixo de 10 mil. Sinal de que o digital não é sustentável mostra-se nas contas. O Público, que sempre foi um jornal deficitário, apresentou em 2023 – os resultados de 2024 ainda não são conhecidos – um prejuízo recorde de quase 4,5 milhões de euros.
Passemos ao Diário de Notícias, ou àquilo que resta do diário nascido no século XIX e que só existe por um ‘milagre’ não explicado pelas ciências económicas. No primeiro semestre do ano 2000 vendia mais de 70 mil exemplares diários, mesmo mais do que em 1996. Mas várias promiscuidades entre o jornalismo e o mundo político e empresarial foram aniquilando o jornal depois da saída de Mário Bettencourt Resendes em 2004, e da passagem de nove directores (sem contar com os interinos).
Entre 2003 e 2013, as vendas no primeiro trimestre passaram de cerca de 52 mil exemplares por dia para menos de 24 mil. Mas isso foi apenas o princípio do descalabro.
Em 2018, as vendas já estavam abaixo dos 10 mil, e dois anos depois mal ultrapassavam os quatro mil. No primeiro trimestre deste ano, o DN nem chega a mil exemplares por dia. Não, não leu mal: são 966 exemplares em banca, em média, no primeiro trimestre de 2025. Trata-se de um nível de circulação impraticável para qualquer modelo de imprensa de massas – e apenas sustentável graças a expedientes editoriais de sobrevivência. A edição digital, por sua vez, ronda os 700 acessos pagos, uma ninharia irrelevante do ponto de vista económico e social.
Já o Jornal de Notícias, outrora o orgulho da imprensa nortenha. E chegou a ser um jornal centenário por duas razões: por ter mais de cem anos (foi fundado em 1888) e por ter ultrapassado os 100 mil exemplares por dia no final dos anos 90.
No período em análise, o pico surgiu em 2004 com cerca de 127 mil exemplares diários. Embora até 2009 se tenha mantido em redor dos 100 mil exemplares, a partir desse ano iniciou uma rota descendente. Em 2014 já estava abaixo dos 60 mil exemplares, ou seja, uma queda de 40% em apenas cinco anos. Mas ainda se afundou mais.
No primeiro trimestre de 2020 já surge abaixo dos 40 mil, e os últimos anos têm sido penosos, mesmo com a sua suposta saída do universo da Global Media. O primeiro trimestre deste ano mostra vendas de 16.613 exemplares, que representam apenas 13% das vendas do pico de 2004.
Ainda por cima, a digitalização, longe de salvar o navio, apenas está a apressar o naufrágio: 3.300 assinaturas digitais pagas em 2025. Com uma assinatura anual a custar 24,95 euros, não é por aqui que o JN se salvará.
O Correio da Manhã, tradicionalmente o mais resiliente entre os generalistas, e que se anuncia como o jornal diário mais lido em papel, está agora reduzido a um rei de um só olho em terra de cegos. Há dias, o jornal da Medialivre regozijava-se por vender “mais de 1 milhão de exemplares por mês” em banca, o que corresponde a “um número superior a 34 mil exemplares por dia”. No actual contexto, em que entra em competição o Diário de Notícias com menos de mil, parecem valores extraordinários – mas não.
Desde 2011 não há ano em que o Correio da Manhã tenha conseguido inverter a tendência de queda. No auge de 2011, vendeu 125.354 exemplares diários – ou seja, mais de 3,75 milhões por mês; cinco anos depois já estava abaixo da fasquia dos 100 mil por dia, mesmo assim cerca de três vezes mais do que os valores do primeiro trimestre de 2025. Ou seja, em 14 anos, entre 2011 e 2025, o Correio da Manhã teve uma quebra de vendas de 73%, que nem sequer é mitigada pelas assinaturas digitais, que começaram em 2012 e apenas rondam agora os 2.700.
Mesmo sem o descalabro dos outros diários, a imprensa popular também sofre, tanto mais que a transição digital não casa com o público tradicional do Correio da Manhã.
Finalmente, o caso do Expresso, sendo diferente por ter nascido como semanário, também merece destaque pelo contraste entre o passado de prestígio e o presente de perda. Jornal que, nos anos 90, começou paulatinamente a vender em redor dos 130 mil a 140 mil exemplares por edição – também fruto do célebre saco de plástico que garantia o seu fácil manuseamento –, o Expresso deu-se mal com os ares fora de Lisboa, depois de ter saído da sua célebre redacção na Rua Duque de Palmela. Em 2002, atingiu o seu máximo de vendas por edição no primeiro trimestre, com mais de 143 mil exemplares, mas foi depois paulatinamente decaindo. Em 2012 contabilizou pela primeira vez valores de vendas abaixo de 100 mil exemplares, numa altura em que o digital ainda dava os primeiros passos.
Nos anos seguintes, o Expresso deixou de ser um semanário com uma edição online para se tornar num diário digital com uma edição semanal em papel. Esta nova versão teve duas consequências: quebras brutais em banca, sobretudo a partir de 2021, que fazem com que por edição se tenham vendido apenas 33.603 exemplares durante o mais recente trimestre; e um aumento nas assinaturas pagas, rondando agora as 50 mil. Dir-se-ia que, somando ambas as categorias, se teria mais de 80 mil leitores, mas esse número fica aquém dos valores da edição semanal da primeira década do presente século.
Além disso, mesmo considerando que os lucros são teoricamente maiores nas assinaturas digitais – por não implicarem os custos de produção e distribuição da edição em papel –, os custos redaccionais aumentam (porque há mais conteúdos), e o impacto real diminui. O Expresso de hoje, com 33.603 exemplares vendidos em banca, mesmo com 49.987 assinaturas digitais, não tem o mesmo estatuto do Expresso de 2002, com 143.222 exemplares vendidos em banca.
E se isto se passa com os cinco maiores e mais relevantes jornais generalistas de Portugal, estamos perante um cenário de terra queimada. Nenhum jornal conseguiu fazer a transição para o digital com equilíbrio económico. As receitas digitais, em média, representam uma fracção das impressas – mesmo com maior volume. Os custos redaccionais mantêm-se elevados, pela sofreguidão noticiosa de repetir primeiro tudo aquilo que os outros dão, mas com salários baixos e uma enxurrada de comentadores a opinar, de sorte que há jornais que mais parecem opinativos.
Em suma, o papel está em agonia, o digital não sustenta. A imprensa escrita generalista portuguesa está, literalmente, em coma induzido por financiamento público e contratos opacos. Mais grave ainda: esta agonia arrasta consigo a função essencial de contrapoder e de vigilância do jornalismo. Num país onde os jornais vivem de publicidade institucional e do favor dos grandes grupos económicos, a queda das vendas significa também a queda da publicidade sem compromisso, da independência. A maioria dos jornais já não vive dos leitores, mas do poder político, da publicidade camuflada e das agendas de grupo. O resultado é uma imprensa cada vez mais alienada do interesse público, cada vez mais dependente da narrativa oficial.
Os números do primeiro trimestre de 2025 não deixam margem para dúvidas. A crise deixou de ser conjuntural e tornou-se estrutural e terminal. Nenhuma newsletter ou podcast salvará o que já está morto. Nenhuma “estratégia digital” ressuscitará o que foi enterrado há uma década. A imprensa escrita portuguesa, tal como a conhecemos, está nos últimos estertores – até porque quem vende menos, cada vez mais recorre a esquemas que matam o jornalismo.