Categoria: Sociedade

  • Jornada Mundial da Juventude em Algés: uma (alegada) birra entre Costa e Moedas custou-nos 2,5 milhões de euros

    Jornada Mundial da Juventude em Algés: uma (alegada) birra entre Costa e Moedas custou-nos 2,5 milhões de euros

    A decisão de não encerrar em Lisboa a festa da Jornada Mundial da Juventude, acabou por dar em festim. Alegadamente por desentendimentos entre o Governo e a autarquia de Lisboa, anunciado e não desmentido pelo Expresso, a escolha do Passeio Marítimo de Algés para um breve encontro do Papa Francisco com 30 mil voluntários foi suportado por encargos que, por agora, já superam os 2,5 milhões de euros. Isaltino Morais fez 14 contratos, a que se junta mais outro de uma empresa municipal, todos por ajuste directo. Apenas dois foram “reduzidos a escrito”, ou seja, tiveram um contrato com cláusulas e caderno de encargos. O contrato mais avultado (cerca de 840 mil euros, com IVA), que beneficiou a empresa de espectáculos Everything is New, e não teve contrato escrito.


    Foi anunciado pelo jornal Expresso em Setembro do ano passado. O último evento de ontem do Papa Francisco em Portugal, no âmbito da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) – um breve encontro de uma hora com cerca de 30 mil voluntários –, realizar-se-ia no Passeio Marítimo de Algés, em vez de ser na capital, em um dos dois locais usados durante a semana: Parque Eduardo VII ou Parque Tejo-Trancão.

    A razão, apontava o jornal do Grupo Impresa, seria uma birra entre o primeiro-ministro, o socialista António Costa, e o presidente da autarquia de Lisboa, o social-democrata Carlos Moedas. O Expresso revelava que “esse encontro [o de encerramento da JMJ] estava pensado para Lisboa, como todos os outros eventos da semana de celebrações católicas”, mas perante “dificuldades de chegar a um entendimento final com a Câmara de Lisboa, o Governo começou a olhar para outros concelhos, como Ana Catarina Mendes, ministra que tem a pasta da JMJ, já tinha sinalizado”.

    Papa Francisco tem feito apelos a uma “nova economia”. Por cá responde-se com ajustes directos sem sequer serem redigidos a escrito.

    O jornal adiantava ainda que o Governo “encontrou em Isaltino Morais o parceiro que faltava”, e que “sem perda de tempo e custos adicionais, toda a infraestrutura estará preparada para 6 de agosto, desde as câmaras de videovigilância às torres multimédia ou casas de banho, equipamentos que, aliás, estiveram no centro da divergência entre Governo e Carlos Moedas.”

    De facto, o evento de encerramento – um breve encontro de menos de uma hora entre o Papa Francisco e os voluntários da JMJ – realizou-se mesmo no Passeio Marítimo de Algés, mas quanto à parte do “sem custos adicionais” não foi bem assim. Muito pelo contrário.

    Embora o Passeio Marítimo de Algés venha a ser aproveitado para um evento extra – o Encontro Vocacional do Caminho Neocatecumenal, que bem se poderia realizar no Parque Tejo-Trancão, onde se concentraram investimentos de vários milhões –, uma hora de presença papal no Passeio Marítimo de Oeiras levou Isaltino Morais a ser bastante folgado na abertura da bolsa dos contribuintes. Ainda mais porque houve uma suposta justificação: uma alegada urgência.

    Encontro do Papa Francisco com voluntários da Jornada Mundial da Juventude deixa factura de 2,5 milhões de euros. Para já…

    Por isso, todos os contratos da autarquia de Oeiras foram por ajuste directo. E tudo à última hora. E praticamente todos sem sequer contrato redigido a escrito, mesmo quando os montantes foram elevados. Ou seja, não ficará memória do que foi contratado nem se houve algum incumprimento. Tudo no segredo dos corredores onde serpenteia Isaltino Morais e a sua equipa.

    O PÁGINA UM fez uma visita minuciosa aos, por agora, 14 contratos disponibilizados no Portal Base, que totalizam 1.449.062, sem IVA. Com o imposto, sairá dos cofres da autarquia de Oeiras 1.782.347. Se se acrescentar a “empreitada de requalificação do estacionamento e zona envolvente” ao Passeio Marítimo de Algés – mais um ajuste directo, embora com contrato escrito (o que quase causa admiração), no valor de 649.509,50 para a Unikonstrói –, a factura da “birra” entre Costa e Moedas, que levou o último evento da JMJ para Oeiras, custou-nos 2.581.243 euros. Mas as contas ainda não se fecharam.

    O caso mais escandaloso – por ser de montante bastante elevado – passa-se com o contrato de “aquisição de serviços de produção, gestão do recinto, apoio à montagem e desmontagem de equipamentos” dos eventos, pelos quais a conhecida empresa de produção de espectáculos Everything is New, de Álvaro Covões, amealhou 684.500 euros. O contrato foi “assinado” apenas no passado dia 21 de Julho, e escreve-se assinado entre aspas porque, na verdade, não há papéis de contrato, porque, justificando-se com um artigo muito polémico do Código dos Contratos Públicos (artigo 95º), nem sequer foi redigido a escrito.

    Governo decidiu não manter todos os eventos em Lisboa. A decisão de deixar Isaltino Morais participar na festa deu em festim.

     

    Também de montante elevado foi o pagamento da “locação de equipamento de apoio para Host Broadcasting (televisão, rádio e jornais)” durante o encontro do Santo Padre com os voluntários da JMJ. A Câmara de Oeiras, mais uma vez sem contrato redigido a escrito, estabeleceu um contrato, apenas estabelecido na quarta-feira passada – e publicado no mesmo dia no Portal Base – de 162.600 euros com a empresa Eduardo Cunha Unipessoal.

    Com um montante também acima dos 100 mil euros encontra-se ainda mais um contrato por ajuste directo – mas neste caso, houve surpresa: há um contrato escrito e assinado, embora sem caderno de encargos no Portal Base. A beneficiada foi a empresa unipessoal de Ana Patrícia Rodrigues Miranda, com um capital social de 500 euros. O contrato, assinado em 28 de Julho e com um prazo de execução de apenas cinco dias, serviu para a “execução de arranjos exteriores nos passeios do terrapleno de Algés”, por um preço de 103.685,5 euros.

    Por valor um pouco inferior (95.417 euros) ficou estabelecido, no dia anterior, um contrato para a limpeza de grafites em Algés, Linda-a-Velha e Cruz Quebrada, justificando-se a urgência e o ajuste directo também por causa da Jornada Mundial da Juventude. E, claro, nem sequer foi reduzido a escrito. O beneficiário foi outra empresa unipessoal, a SLU – Sociedade de Limpeza Urbano Unipessoal, criada em Junho do ano passado por João Manuel de Castro Margalho, mas que apesar da tenra idade (o da empresa) já ultrapassa os 200 mil euros de facturação com entidades públicas, quase todas autarquias de Oeiras, Cascais e Sintra.

    Pórtico custou 25 mil euros. Papa entrou de carro por outra zona.

    Ainda abaixo de 100 mil euros, o PÁGINA UM detectou ainda mais 10 contratos, dos quais se destacam três com o mesmo valor: 75.000 euros. O primeiro serviu para a aquisição de merchandising relacionado com a JMJ, “em regime de fornecimento contínuo”, e foi um contrato oferecido no dia 26 de Julho à     Printshow. E diz-se oferecido porque foi por ajuste directo, sem contrato regido a escrito e também por ser este o primeiro contrato público de sempre obtido por esta empresa, apesar de existir pelo menos desde 2006.

    O segundo contrato deste montante (75.000 euros) foi também para show off: “aquisição de materiais de comunicação para decoração urbana, entregues a mais uma empresa unipessoal, a Plateia Efusiva. Criada em Agosto de 2020 por Pedro Manuel Santos Neves Rodrigues, esta empresa não se tem dado nada mal com a autarquia de Isaltino Morais: desde Janeiro de 2021 já sacou, por ajuste directo ou consulta prévia, cinco contratos no valor total de 19 mil euros. Curiosamente, a Plateia Efusiva só tem mais um outro cliente público até agora: a Câmara Municipal de Setúbal, que já lhe entregou, de “mão beijada” (leia-se, ajuste directo) ou por consulta pública, também cinco contratos, no valor total de quase 130 mil euros.

    Com um objectivo similar, neste caso a “aquisição de serviços de produção e implementação de materiais de comunicação”, o terceiro contrato de 75.000 euros foi entregue a uma sociedade anónima, a L2 Spirit. Estabelecido em 27 de Julho, o contrato foi, mais uma vez,  “ecológico”, não se gastando nem papel nem tinta: nada foi redigido a escrito. Sabe-se apenas que tem um prazo de execução de 12 dias, mas não se sabe bem de quê. Ou nada se sabe, na verdade.

    Autarquia de Oeiras aproveitou o Passeio de Algés para acolher hoje o Encontro do Caminho Neocatecumental. O Parque Tejo-Trancão esteve hoje vazio depois da colossal enchente de domingo de manhã.

    A Microsegur – que já conseguira um contrato por ajuste directo com a autarquia de Lisboa por seis dias no valor de quase 205 mil euros –, conseguiu ir buscar mais 63.980 euros por três dias a fazer o mesmo para a autarquia de Oeiras no Passeio Marítimo de Algés. Na verdade, não se sabe se foi o mesmo, porque também este contrato de “locação de equipamentos para deteção de materiais metálicos para a Jornada Mundial da Juventude” no Passeio Marítimo de Algés não foi redigido a escrito. Isaltino Morais foi ministro do Ambiente, mas parece um exagero esta busca de poupança no papel. O contrato da autarquia de Carlos Moedas, através da Polícia Municipal, sempre se fez em papel, embora com poucos detalhes porque se ignora o caderno de encargos.

    Mais um aluguer de material, neste caso de cinco ecrãs led, se fez com um ajuste directo no valor de 27.500 euros, e desta vez o beneficiado foi Fun Addict, escolhida em 21 de Julho. Sem contrato redigido a escrito, claro.

    Quanto ao “pórtico de entrada para Sua Santidade O Papa”, conforme consta na descrição do Portal Base, a autarquia de Isaltino Morais contratou a Bigbrand, por um preço de 25.000 euros. Um tapete de Arraiolos era capaz de ficar mais barato, e sempre se podia guardar. Onde está o contrato desta “obra de arte”? Nenhures! Mais uma vez, sem contrato redigido a escrito.

    Da esquerda para a direita: Carlos Moedas, Isaltino Morais, Marcelo Rebelo de Sousa, Francisco Rocha Gonçalves (vice-presidente da autarquia de Oeiras) e Jorge Barreto Xavier (director da Cultura da autarquia de Oeiras)

    Mais um contrato também não redigido a escrito usou a autarquia de Oeiras para transferir dinheiros públicos – mais precisamente 19.740 euros – com o intuito de concretizar o “aluguer de baias e barreiras de seguranças”. Mais uma empresa unipessoal beneficiada: a Duarte Teives Unipessoal. Barato ou caro? Não ficará memória em papel do serviço.

    Pela aquisição de “serviços de apoio ao controlo e vigilância, necessário e obrigatórios para a execução do plano de segurança e emergência, do recinto da jornada Mundial da Juventude” (sic), o município de Oeiras gastou mais 17.520 euros. A feliz contemplada foi a empresa Protecção Total. Para fazer o quê? Não se sabe porque não houve contrato redigido a escrito e, portanto, muito menos caderno de encargos. A descrição no Portal Base diz, porém, que o contrato tem uma duração de 20 dias, o que não bate certo com a duração da JMJ no concelho de Oeiras. Pormenores.

    Descendo na lista dos contratos feitos à última hora pela autarquia de Oeiras, destaca-se também a “aquisição de 24 rádios portáteis para ligação à rede rádio de comunicações VHF digital do município de Oeiras no âmbito da Jornada Mundial da Juventude 2023”, pelo custo total de 16.344 euros. Coube à Advanced Resources amealhar o contrato, vendendo cada aparelho pela módica quantia de 681 euros sem IVA. Seria bom saber-se, através do Portal Base – que é uma plataforma de contratação pública em prol da transparência – se foi um bom negócio para o erário público, mas não dá: este foi mais um contrato sem ser redigido a escrito.

    Altar-palco no Parque Tejo-Trancão: VIP perto; povo longe.

    Por fim, para prestar “serviços técnicos de elaboração, implementação e acompanhamento do Plano de Segurança da Jornada Mundial da Juventude”, o município também contratou por 7.800 euros a Wise Safety, que por sua vez tinha sido contratada também para o mesmo fim pela autarquia de Lisboa. No entanto, se no município da capital houve contrato, em Oeiras prescindiu-se dessa burocracia.

    Portanto, contabilizando tudo o que aconteceu em Oeiras, por causa de uma hora de festa – o encontro do Papa Francisco com os voluntários –, assistimos a um festim: 2,5 milhões de euros entregues através de 15 contratos (14 da autarquia e um de uma empresa municipal) por ajuste directo, dos quais apenas dois tiveram honras de ser escritos. Para o ano, em Portugal, comemora-se o meio centenário de uma democracia, já cortada ao meio…


    N.D. O PÁGINA UM decidiu não contactar a Câmara Municipal de Oeiras, porque toda a informação factual consta no Portal Base, a plataforma por excelência da transparência na contratação pública. Considera-se que o Portal Base, gerido pelo Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção (IMPIC), deveria dar integral cumprimento à legislação, designadamente a inclusão de todas as peças do procedimento, como os cadernos de encargos. Por outro lado, a opção da autarquia de Oeiras por não redigir contratos públicos é, por si só, uma declaração de gestão da res publica, e portanto não carece de pedido de justificação por parte de um jornalista – vale por si mesma.

  • Este país não é para burocratas: apenas seis dos 175 contratos da Jornada Mundial da Juventude foram a concurso público

    Este país não é para burocratas: apenas seis dos 175 contratos da Jornada Mundial da Juventude foram a concurso público

    Só desde Julho foram realizados 106 contratos públicos urgentes para a realização da Jornada Mundial da Juventude. Praticamente tudo por ajuste directo, muitos sem redução a escrito. Neste forrobodó sem controlo – em cada 10 contratos, há nove sem concorrência ou esta é muito limitada – encontra-se de tudo um pouco. A conta conhecida, através do Portal Base, em contratos que fazem referência ao evento da Igreja Católica já superou os 35 milhões, mas deve subir nas próximas semanas. O PÁGINA UM faz o raio-X, por agora possível, do apoio público de um Estado laico à Igreja Católica, e onde se vislumbram muitos pecados e pecadilhos. Se Deus não dorme e será porventura o único que sabe como foram congeminados muitos destes contratos , veremos nos próximos tempos se o Tribunal de Contas anda ou não a dormir.


    Uma chuva de contratos sobretudo a partir de Julho, e quase todos por ajuste directo, estão a fazer elevar a factura pública da Jornada Mundial da Juventude. A conta já vai em 35.497.562 euros, mas continuam a chegar nas últimas semanas dezenas de contratos de última hora, sobretudo para pequenas (mas por vezes bastante onerosas) obras, gastos logísticos e acções de promoção.

    De acordo com um exaustivo levantamento do PÁGINA UM aos contratos públicos – ou seja, sem contabilizar os gastos da Igreja Católica –, até agora as facturas destas despesas públicas – pagas, na verdade, pelos contribuintes – foram canalizadas, para efeitos de pagamento, para o município de Lisboa – quase 17,2 milhões de euros, que inclui também as despesas da sociedade de reabilitação Lisboa Ocidental e a EGEAC –, para o Governo e instituições da Administração Pública – 10,4 milhões de euros, sobretudo por despesas arcadas pelo orçamento da Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros –, para o município de Loures (quase 5,2 milhões de euros) e para o município de Oeiras (2,1 milhões de euros).

    Muito mais atrás, mas com valores ainda relevantes, encontram-se os municípios de Almada (252 mil euros) e de Cascais (210 mil euros). Contabilizando todos os contratos declaradamente associados à Jornada, encontram-se 19 entidades, incluindo alguns municípios geograficamente afastados da Grande Lisboa (ou de Fátima), mas que quiseram dar apoio aos peregrinos, como foram os casos das autarquias de Vila do Conde, Felgueiras e Resende.

    Embora ainda estejam a faltar, por certo, muitos contratos de última hora, o PÁGINA UM já conseguiu identificar, desde 2021, um total de 175 adjudicações relacionadas com os eventos que trouxeram o Papa Francisco e uma multidão de jovens a Portugal durante esta semana. E se até ao final do ano passado grande parte das despesas se referiam a empreitadas de obras públicas – que já totalizam 16,9 milhões de euros –, nos últimos meses os contratos para aquisição ou locação de bens móveis e de prestação de serviços começaram a prevalecer, e são agora largamente maioritários, quer em número, quer em valor.

    Apesar da decisão de se realizar a Jornada Mundial da Juventude em Lisboa ter sido tomada pela Igreja Católica em 27 de Janeiro de 2019 – e que se deveria realizar inicialmente em 2022, mas foi adiada por causa da pandemia –, só uma pequena parte dos gastos até agora apurados se realizaram antes do presente ano.

    Montante despendido por entidade pública adjudicante no âmbito da Jornada Mundial da Juventude (em euros). Fonte: Portal Base

    De acordo com os dados do Portal Base, das 175 adjudicações, apenas duas foram estabelecidas ainda em 2021 e mais 14 ao longo de 2022. Mesmo as 159 adjudicações realizadas este ano concentraram-se sobretudo a partir de Maio: 18 nesse mês, mais 19 em Junho e 101 em Julho. Até em Agosto foram assumidos contratos, quando já decorria a Jornada. Contam-se já cinco.

    As adjudicações mais antigas, e mais caras, estão sobretudo relacionadas com obras públicas, mas nem todas as de maior dimensão são anteriores ao presente ano. De entre os sete contratos com valor superior a um milhão, cinco foram assinados este ano. Os restantes dois foram assinados em Abril e em Dezembro de 2022: o primeiro para a reabilitação do aterro sanitário de Beirolas no Parque Tejo-Trancão, com um valor de quase 7 milhões de euros, entregue à empresa Oliveiras S.A. por concurso limitado por prévia qualificação; o segundo para a empreitada de execução da cobertura do altar-palco, com um custo de 1,06 milhões de euros, entregue à mesma empresa mas já por ajuste directo. Ambas eram da responsabilidade da empresa municipal Lisboa Ocidental.         

    Se isto se deveu a falta de planeamento, uma coisa é certa: facilitou a vida aos gestores públicos, porque a norma passou a ser, pela urgência, o ajuste directo a empresas que, enfim, ninguém sabe bem como e quais os critérios das escolhas.

    Os portugueses “voluntariam-se” também a pagar gastos no evento da Igreja Católica através de contratos que só Deus sabe bem como foram feitos.

    Um dos contratos mais polémicos foi o da construção do altar-palco no Parque Tejo-Trancão, entregue inicialmente por ajuste directo à Mota Engil em Janeiro deste ano por 4,24 milhões de euros. O preço seria reajustado para os 2,98 milhões, mas independentemente disso ainda houve três contratos de valor superior, um dos quais também por ajuste directo.

    De facto, além da recuperação dos terrenos do antigo aterro de Beirolas – que, na verdade, era uma lixeira, encerrada nos anos 90 por causa da Expo 98 –, no pódio das adjudicações mais caras encontra-se o fornecimento, montagem e operacionalização de sistemas de áudio e vídeo, iluminação ambiente, e respetivo abastecimento de energia, um contrato no valor de 5,96 milhões de euros à Pixel Light pela Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros por contrato público; e os trabalhos de preparação dos terrenos na zona ribeirinha da Bobadela à Alves Ribeiro, por um ajuste directo da autarquia de Loures no valor de quase 4,29 milhões de euros. Estes contratos foram assinados em Fevereiro e Março deste ano, respectivamente.

    Se nos 12 contratos com valores acima de meio milhão de euros, os ajustes directos já são a maioria – oito contra três concursos públicos e um concurso limitado por prévia qualificação –, o desequilíbrio aumenta ainda mais em contratos de menor valor. Desequilibrado é uma força de expressão: por exemplo, dos 25 contratos que envolveram um custo para os contribuintes entre 100 mil e 500 mil euros, todos – repita-se, todos – foram por ajuste directo.

    27 de Janeiro de 2019: Marcelo Rebelo de Sousa cantando vitória pela decisão da Igreja Católica em realizar a Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, inicialmente prevista para 2022. Faltou-lhe avisar sobre a conta e o regabofe de ajuste directos.

    Encontrar um concurso público – ou seja, em que a concorrência é livre – nos contratos associados à Jornada Mundial da Juventude é quase como procurar agulha em palheiro: só há seis. Dos restantes 169, encontram-se 11 que tiveram consulta prévia – ou seja, são endereçados convites a empresas, geralmente três para que apresentem propostas –, uma por concurso limitado por prévia qualificação e, contas feitas, 157 por ajuste directo. Em suma, mais de 97% dos contratos não tiveram ou tiveram uma concorrência limitada. Numa parte substancial dos casos, muitos dos contratos por ajuste directo (que totalizam 90% das adjudicações) nem sequer foram reduzidos a escrito.

    Em todo o caso, como alguns dos contratos de maior dimensão foram lançados por concurso público, o peso relativo dos contratos por ajuste ditecto em termos de montante desce para os 55,3% (cerca de 19,6 milhões de euros), ficando bem acima dos montantes despendidos para adjudicações por concurso público (23,7 milhões de euros, ou seja, 23,7% do total), por concurso limitado por prévia qualificação (7,0 milhões, ou seja, 19,7%) e por consulta prévia (448 mil euros, ou seja, 1,3%).

    De entre as entidades com volumes de negócios mais apreciáveis no âmbito da Jornada Mundial da Juventude, há duas que se destacam por não quererem saber de burocracias para nada na hora de entregar dinheiros públicos: as autarquias de Almada e de Oeiras.

    A primeira, presidida pela socialista Inês Medeiros, fez nove contratos por ajuste directo no valor total de quase 252 mil euros. A segunda autarquia, liderada por Isaltino Morais, ainda usou mais vezes e com maiores encargos públicos este expediente: foram 14 contratos por ajuste directo que totalizam, para já, cerca de 1,45 milhões de euros. E diz-se “para já”, porque é provável que existam mais a serem publicados nos próximos dias no Portal Base, um vez que todos os contratos são muito recentes – o último é do dia 2 deste mês – e as entidades públicas têm, por regra, 20 dias para os publicitar. Se incluir o contrato da empresa municipal Parque Tejo, no valor de 650 mil euros, então contabilizam-se 15 contratos por ajuste directo que atingem 2,1 milhões de euros.

    Outras entidades não conseguem o pleno em ajustes directos por muito pouco. É o caso do município de Loures: dos 21 contratos no âmbito da Jornada Mundial da Juventude, apenas houve dois que não foram por ajuste directo, que envolveram contratos da ordem dos 145 mil euros. Os outros 19 contratos totalizaram, por ajuste directo, cerca de 5 milhões de euros. Ou seja, mais de 97% do montante gasto foi em contratos por ajuste directo.

    O município de Lisboa, liderado por Carlos Moedas, também adora ajustes directos. Directamente dos cofres municipais – exceptuando-se assim os gastos da Lisboa Ocidental e da EGEAC –, a autarquia da capital fez 23 contratos, e só um não foi por ajuste directo.

    Município de Oeiras conseguiu o pleno: todos os contratos associados à Jornada Mundial da Juventude foram sempre por ajuste directo.

    A excepção, merecedora de referência, foi o contrato com a empresa Estúdio Nave, assinado em Dezembro passado no montante de 29.450 euros para “aquisição da prestação de serviços para elaboração de projeto de desenvolvimento gráfico e maquetização, comunicação e city dressing para comunicação da Jornada”. Em todo o caso, a Estúdio Nave teve concorrência limitada: conseguiu a adjudicação por consulta prévia. Assim, globalmente, 97,6% dos gastos da autarquia da capital foram por ajuste directo.

    No meio disto, a entidade com melhor comportamento, mas apenas na aparência, acabou por ser a Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, responsável por 32 contratos no âmbito da Jornada Mundial da Juventude. Se olharmos para o volume de negócios, verifica-se que dos 10,3 milhões de euros gastos, apenas 1,9 milhões (18%) foram por ajuste directo, sendo que os restantes 8,9 milhões de euros foram em adjudicações por concurso público.

    Mas este segundo montante refere-se apenas três contratos de maior montante – o já referido da Pixel Light (quase 6 milhões de euros) e dois relacionados com saneamento e higiene, envolvendo o Grupo Vendap (quase 1,29 milhões de euros) e a Avistacidade (1,15 milhões de euros). De resto, todos os de valor inferior foram por ajuste directo, mesmo cinco com montantes entre 100 mil e 500 mil euros, onde se destaca uma obra feita pela empresa Oliveiras.

    Custo com o altar-palco foi a única polémica: inicialmente estava para custar 4,24 milhões de euros; acabou por ficar em 2,8 milhões, apenas cerca de 8% dos custos já apurados.

    Aliás, esta empresa da Batalha foi, na análise feita pelo PÁGINA UM, que elencamos, a mais beneficiada pela Jornada Mundial da Juventude: os quatro contratos – três por ajuste directo e um por concurso limitado por prévia qualificação – concederam-lhe uma facturação de quase 8.589.654 euros.

    O pódio é ainda ocupado pela Pixel Light, com 5.962.300 euros, e pela empresa de construção Alves Ribeiro, com 4.379.844 euros. Com contratos a superarem um milhão de euros encontram-se ainda a Mota Engil (2,98 milhões de euros), o Grupo Vendap (quase 1,4 milhões de euros) e a Avistacidade.

    Acima dos 500 mil euros encontram-se mais cinco empresas: Everything is New (684.500 euros), Unikonstrói (649.510 euros), Engexpor (627.200 euros), Irmarfer (596.000 euros) e Sinalcabo (542.272 euros). Por sinal, todas conseguiram o respectivo contrato sem concorrência: tudo por ajuste directo.

    Com montantes acima dos 100 mil euros encontram-se mais 25 empresas, todas com contratos por ajuste directo. Entre os 50 mil e os 100 mil euros estão 22 empresas e um indivíduo, Gonçalo Sanches Salgueiro, um militante do CDS. Abaixo dos 50 mil euros encontram-se mais 84 empresas e indivíduos para a prestação e aquisição dos mais variados bens e serviços. Praticamente tudo por ajuste directo, incluindo até a aquisição de 106 cabos de madeira para esfregonas à Afonso Rodrigues Unipessoal por 121,9 euros pela autarquia de Almada. Remetendo expressamente para o âmbito da Jornada Mundial da Juventude, este foi um dos dois únicos contratos que constam no Portal Base com um montante inferior a 3.000 euros. Estes dois, enfim, justificadamente por ajuste directo.

    Governo e Presidência da República estiveram na primeira fila para permitir gastos sem controlo, grande parte dos quais no último mês.

    Praticamente todos os contratos abaixo dos 50 mil euros foram por ajuste ditecto, entregue a pessoas conhecidas dos gestores públicos e autarcas. Na verdade, por concurso público, de entre os seis que se encontram, apenas três estão abaixo de um milhão de euros, e esses três foram todos ajudicados pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, talvez para salvar a “honra do convento”.

    Mas isso deveria colocar uma questão: se a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa decidiu abrir concurso público para adjudicações de pequeno montante – um de apenas 386 euros, outro de 3.500 euros e outro ainda de 7.345 euros –, com os contratos a serem assinados em 13 de Julho deste ano, então qual foi a necessidade de a esmagadora maioria das entidades públicas terem decidido quase invariavelmente por ajustes directos, ainda mais quando estavam em causa montantes muitíssimo superiores.


    Para consultar a lista ordenada por montante dos beneficiados por contratos públicos, no âmbito da Jornada Mundial da Juventude publicados no Portal Base até 6 de Agosto de 2023, descarregue AQUI.

  • Azinheiras e sobreiros: de sagradas a mal-amadas

    Azinheiras e sobreiros: de sagradas a mal-amadas

    Nos últimos cinco anos e meio, já foram autorizados abates de 13.163 sobreiros e de 72.433 azinheiras. Tudo serve como justificação, bastando que se invoque uma “imprescindível utilidade pública” em projectos sempre bem acolhidos pelo Governo. Entre centrais de energia renovável e ferrovias e rodovias, passando por pedreiras, um levantamento do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas para o PÁGINA UM contabilizou 44 projectos onde o machado brande forte. Em todos os cortes ficam previstas medidas de compensação, com o plantio de jovens árvores em outras zonas. Tudo boas intenções, como aquelas que, por vezes, se encontram amiúde no inferno.


    Já foram consideradas árvores quase sagradas em território português, ainda no tempo da I República, e depois ao longo do Estado Novo. Mesmo nas primeiras décadas da democracias, só com a “queda do Carmo e da Trindade”, em ocasiões muito especiais, era autorizados cortes, mesmo se, à primeira oportunidade, havia quem corresse o risco de apanhar multas se os proveitos compensassem, sobretudo se estivessem em causa interesses urbanísticos.

    Mas no século XXI, mais moderno, quis-se inovar. Primeiro, foi-se concedendo com maior facilidade a possibilidade de cortes de sobreiros e azinheiras no caso de “empreendimentos de imprescindível utilidade pública”, algo sempre de definição ambígua ou dúbia, mas que sempre acabava numa decisão ministerial polémica, mas choruda. Agora, o facilitismo é tanto que, com a recente simplificação dos licenciamentos ambientais (leia-se, maior facilidade de contornar restrições ambientais), os cortes destas árvores podem vir a ser acção corriqueira.

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    Não há machado que corte a raiz ao pensamento, assim canta o poema de Carlos Oliveira. Mas em Portugal há cada vez mais machados, ou moto-serras, a deceparem quercíneas. Muitos sobreiros (Quercus suber), mas ainda muitas mais azinheiras (Quercus ilex ou Quercus rotundifolia), uma sua “prima” menos rentável, por não ter cortiça. Em muitos casos, paradoxalmente, dizem-nos, o abate surge por razões ambientais, nos últimos tempos para projectos de painéis fotovoltaicos.

    De acordo com um levantamento detalhado do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, a pedido do PÁGINA UM, desde 2017 foram emitidas 44 declarações de imprescindível utilidade pública (DIUP) que originaram o abate de 13.163 sobreiros e de 72.433 azinheiras, envolvendo 27 concelhos de 15 distritos. A área de corte – ou seja, a área total ocupada por aquelas árvores, geralmente em povoamentos muito mais dispersos do que os que ocorrem em pinhais e eucaliptais – foi de quase 367 hectares.

    Ao contrário do que seria de imaginar – por ser aí que se concentram a maior extensão de montados de sobro –, o distrito com mais abates de sobreiros não se situa no Alentejo, mas sim na região Centro, mais propriamente em Aveiro. Nesse distrito houve já sete autorizações para o abate total de 2.786 sobreiros, dos quais 2.243 árvores desta espécie se concentram no lugar de São João, na freguesia de São João de Ver, no concelho de Santa Maria da Feira. Para lá está prevista uma central fotovoltaica de uma empresa de capitais estrangeiros (FFNEV Portugal I), com o corte de 471 sobreiros adultos e 1.772 sobreiros jovens em cerca de 20 hectares.

    A autorização de abate, sem necessidade de avaliação de impacte ambiental, foi tomada em Fevereiro do ano passado pelo então ministro do Ambiente Matos Fernandes, e o abate foi solicitado por uma empresa unipessoal (Bosque) pertencente a João Carlos Gama Amaral, um engenheiro florestal que integra o Conselho Coordenador dos Colégios da Ordem dos Engenheiros.

    Este abate no distrito de Aveiro supera assim o recente abate de 1.821 sobreiros autorizado por Duarte Cordeiro, no início deste mês, para a instalação de um parque eólico da EDP em cerca de 32 hectares dos concelhos de Santiago do Cacém e Sines, incluindo mesmo a freguesia de Porto Covo. No entanto, este projecto não consta ainda do levantamento feito pelo ICNF para o PÁGINA UM.

    Excluindo o parque eólico da EDP, o segundo projecto com maior abate de sobreiros localiza-se no distrito de Évora, região onde desde 2017 se contabilizam oito autorizações de abate, envolvendo no total 2.552 árvores daquela espécie e ainda 6.166 azinheiras. O projecto em causa insere-se na ligação ferroviária projectada para ligar Évora e Elvas/Caia, sendo indicado pelo ICNF o corte de 1.596 sobreiros e 4.164 azinheiras.

    Com mais de mil sobreiros abatidos destacam-se ainda um projecto de produção e transporte de energia nos concelhos nortenhos de Cabeceiras de Basto, Ribeira de Pena e Vila Pouca de Aguiar (1.145 árvores) e uma central fotovoltaica numa área de quase 15 hectares do concelho de Gavião (1.079 sobreiros, a que acrescem quatro azinheiras), esta última com autorização em Fevereiro do ano passado.

    No caso das azinheiras, o maior desbaste é no distrito e concelho de Santarém, mais precisamente na freguesia de Alcanede. Uma pedreira da empresa Solancis, para extracção de calcário numa área de 5,6 hectares, levou a uma autorização de abate, em Julho de 2020, de um total de 34.608 azinheiras jovens.

    No distrito da Guarda, uma das regiões ciclicamente mais afectadas pelos incêndios, três projectos rodoviários e ferroviários “limpam” também quase 30 mil árvores. De entre estes destaca-se a requalificação da linha ferroviária da Beira Alta, no subtroço Cerdeira-Vilar Formoso, tendo, por despacho de Maio do ano passado, sido autorizado o corte de 584 azinheiras adultas e 19.775 azinheiras jovens, além de 13 sobreiros adultos e 17 sobreiros jovens, em quase 18 hectares de povoamentos ao longo do percurso da obra, nos concelhos do Sabugal e de Almeida.

    Neste último concelho já fora autorizado, em finais de 2019, um outro abate significativo (3.174 azinheiras adultas e 2.897 azinheiras jovens) para a construção do IP5 junto a Vilar Formoso.

    No lote de zonas com mais abates de azinheiras surge também Évora, onde diversos projectos sobretudo rodoviários e ferroviários, deitaram por terra 6.166 azinheiras, para além dos 2.552 sobreiros.

    acorn, holm, oak

    Por normas, as entidades públicas e as empresas privadas que obtêm essas autorizações de corte prometem, e ficam definidas, compensações, nomeadamente a plantação de novas árvores em outras áreas, mas não existe um controlo muito apertado desses compromissos. De acordo com o levantamento enviado ao PÁGINA UM pelo ICNF, a área de compensação é, por agora, largamente superior à da área total cortada (480,73 hectares contra 366,76), mas ainda falta serem definidos alguns deste projectos.

    Fonte do ICNF sublinha que “alguns dos projetos de compensação estão previstos serem implementados em áreas públicas, nomeadamente: nos perímetros florestais do Barroso e de Cabreira, das Serras do Soajo e Peneda, de Conceição de Tavira; na Mata Nacional da Covilhã, no interior do Parque Natural da Serra da Estrela; na Reserva Natural da Serra da Malcata, na Área Florestal de Sines; e na Tapada Nacional de Mafra, abrangendo um total de cerca de 173 hectares, com uma plantação estimada de 80 000 árvores.” Veremos.

  • Bordalo II poderia ter criado tapete de mais de 100 metros com notas de 500. E das verdadeiras

    Bordalo II poderia ter criado tapete de mais de 100 metros com notas de 500. E das verdadeiras

    O artista indignado com os custos envolvidos na Jornada Mundial da Juventude não se pode queixar da generosidade das entidades públicas. Só em ajustes directos, Bordalo II angariou já 27 contratos públicos, incluindo de 15 municípios, diversas empresas públicas, a Presidência do Conselho de Ministros e até universidades. Só na zona do Parque das Nações, onde ontem desenrolou um tapete de notas falsas, recebeu já duas encomendas públicas por ajuste directo em valores acima de 100 mil euros. Mas isto é uma gota de água. Bordalo II tem facturado freneticamente. Nos últimos três anos, a sua Mundofrenético encaixou mais de 3,4 milhões de euros. O PÁGINA UM foi ver em quanto isso dava em tapete de notas verdadeiras.


    É o protesto do momento: Bordalo II – nome artístico de Artur Bordalo –, disfarçou-se de operário e desenrolou ontem nas escadarias do altar, que será pisado na próxima semana pelo Papa Francisco na Jornada Mundial da Juventude, um longo tapete de falsas notas gigantescas de 500 euros.

    “Shame on you”, assim denominou o seu protesto, o artista aproveitou para lançar uma crítica aos milhões gastos para apoiar um encontro que aglomerará previsivelmente mais de um milhão de peregrinos: “Num estado laico, num momento em que muitas pessoas lutam para manter as suas casas, o seu trabalho e a sua dignidade, decide investir-se milhões do dinheiro público para patrocinar a tour da multinacional italiana” E concluía, corrosivo: “Habemus Pasta”.

    Mas milhões é, aliás, coisa que nem é, na verdade, nada estranho a Bordalo II. A sua empresa, a Mundofrenético, tem apresentado um nível de crescimento impressionante de facturação com tão tenra idade, confirmando ser ele um dos artistas mais cotados e solicitados, em grande parte por entidades públicas. Que o contratam sobretudo por ajustes directos, diga-se.

    Criada em 9 de Janeiro de 2018 com um capital social de 1.000 euros, a Mundofrenético começou com um vasto conjunto de objectos possíveis, onde se destacava a “fabricação, criação, comercialização a retalho e via Internet e importação e exportação de obras de arte e de cópias ou impressões das mesmas, incluindo filmes ou outros suportes materiais ou digitais de carácter artístico ou promocional”, além também da “organização e execução de espectáculos, encontros profissionais, seminários, congressos ou outros eventos de natureza artística, publicitária e de formação e demonstração de técnicas artísticas”, e ainda a ”comercialização de matérias-primas e ferramentas e equipamentos utilizados na elaboração de obras de arte” e até “construção e obras públicas, incluindo a incorporação de arte em móveis e equipamentos sociais”.

    O ano de estreia não lhe correu nada mal: descontando o seu próprio salário como gerente, Bordalo II teve logo um encaixe acima dos 456 mil euros e acabou o exercício com um lucro de 306 mil euros. Em 2019, a empresa passou a ser uma sociedade por quotas de 1.500 euros – primeiro com a sua mulher, Mariana Cavaco Duarte Silva, de quem entretanto se divorciou, tendo a quota desta (1/3) passado para Helena Maria Silva Correia – e os negócios continuaram a prosperar.

    A pandemia não afectou em nada o seu desempenho artístico. E muito menos financeiro. Entre 2020 e 2022, os lucros da empresa foram sempre subindo. No primeiro ano deste triénio, a facturação situou-se nos 716.509 euros com lucros de mais de 270 mil euros. Em 2021, Bordalo II ficou a saber, pela primeira vez, o que era um milhão; facturou 1.082.449 euros, e apresentou um resultado líquido de um pouco mais de 455 mil euros.

    Por fim, no ano passado, as facturas contabilizaram 1.605.244 euros, terminando o dia 31 de Dezembro com um lucro acima de 663 mil euros. A empresa respira saúde com lucros acumulados de 981 mil euros, que serviram sobretudo para reforçar os activos.

    Assim, considerando que uma nota real de 500 euros – e não a dezena de notas falsas desenroladas ontem – tem uma dimensão de 160 por 82 milímetros, Bordalo II teria capacidade de compor um lustroso tapete gigantesco se usasse 6.808 notas verdadeiras de 500 euros correspondentes sensivelmente à sua facturação de 3,4 milhões de euros dos últimos três anos. Bastaria dispor lotes de 10 notas de 500 euros, lado a lado, para ter uma largura de 82 centímetros, e depois replicar longitudinalmente. Ficaria com um tapete de quase 110 metros.

    A Freguesia do Parque das Nações pagou 68 mil euros a Bordalo II num ajuste directo para a “aquisição de serviços para a criação artística – Festival de Arte Urbana de Lisboa “MURO LX_2021””. Este é o segundo maior ajuste directo registado no Portal Base feito com o artista.

    Mas se Bordalo II preferisse usar notas de 10 euros – com uma dimensão de 127 por 67 milímetros –, então aí um tapete de cerca de 80 centímetros de largura (formado por 12 notas) estender-se-ia por mais de 3.600 metros.

    Embora muitas obras (e receitas) de Bordalo II – que se tem destacado no uso de materiais recicláveis – constituam encomendas integradas em projectos de maior dimensão, em que ele será subcontratado, ou obtidas através de colectivos de artistas, todos os contratos da Mundofrenético listados no Portal Base foram por ajuste directo.

    Ou seja, o empresário Artur Bordalo, gerente da Mundofrenético, obteve contratos públicos de prestação de serviços por parte do artista Bordalo II sem qualquer concorrência, sem qualquer definição de preço justo. Portanto, o artista foi contratado apenas pela sua (inegável) arte. Ou pela cor dos olhos…

    Segundo dados disponíveis no Portal Base, entre 2018 e Julho deste ano, o escultor ganhou 708,8 mil euros em ajustes directos com entidades públicas, incluindo 15 municípios, a empresas municipais, universidades e outros.

    O município de Estarreja pagou 16.580 euros a Bordalo II numa encomenda feita por ajuste directo em Outubro de 2022.

    Este ano, Bordalo II angariou já quatro contratos por ajuste directo num valor global de 132.860 euros. O contrato mais lucrativo deste ano, no montante de 57.500 euros foi adjudicado pelo Instituto Superior Técnico, a 20 de Fevereiro, para a “produção de uma obra de arte – escultura em pedra”.

    O Município de Vila Nova de Famalicão entregou 38.500 euros a Bordalo II para a “produção de instalação exterior”.

    A Associação de Municípios para a Gestão Sustentável de Resíduos do Grande Porto – LIPOR pagou 36.860 euros ao artista, pela aquisição de esculturas, através de dois contractos por ajuste directo. Aliás, esta não foi a primeira vez que a LIPOR fez ajustes directos a Bordalo II. A entidade entregou ao artista 72.000 euros em 2019 num outro ajuste directo – o contrato com o valor mais alto registado com o escultor no Portal Base.

    No ano passado, o artista facturou 87.180 euros através da adjudicação de três contratos por ajuste directo.

    O conhecido Lince Ibérico, de Bordalo II, instalado no Parque das Nações em 2019. A obra custou 35 mil euros ao Instituto Português do Desporto e Juventude que fez a encomenda ao artista por ajuste directo para a “aquisição de serviços de produção de obra de arte urbana no âmbito da Conferência Mundial de Ministros responsáveis pela Juventude 2019 e Fórum da Juventude Lisboa+21”.

    Mas foi em 2021, em plena crise provocada pelas medidas do Governo impostas na pandemia, que saiu a sorte a Bordalo II, ao ter conseguido a proeza de ter nove contratos por ajuste directo com entidades públicas, que gerou uma facturação de 200.600 euros ao artista.  

    Isto depois de em 2020, primeiro ano da pandemia, Bordalo II ter facturado 110.207 euros em quatro contratos por ajuste directo.

    Em 2019, o artista angariou 149 mil euros em ajustes directos com entidades públicas. Foi nesse ano que Bordalo II conseguiu arrecadar 35 mil euros por ajuste directo para a instalação do seu Lince Ibérico no Parque das Nações, em Lisboa.

    Em 2018, primeiro ano em que surgem contratos adjudicados a Bordalo II no Portal Base, o artista facturou 28.981 euros através de dois ajustes directos. De resto, o primeiro contrato de Bordalo II registado no Portal Base foi adjudicado pela Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros, que rendeu ao escultor 12.000 euros de uma assentada.

    Olhando para os contratos, se a LIPOR entregou o ajuste directo com o valor mais alto, o segundo, no valor de 68.000 euros, foi adjudicado em Junho de 2021, curiosamente, pela Freguesia do Parque das Nações, onde se realiza a Jornada Mundial da Juventude.


    N.D. Foi retirada às 14:07 de 29 de Julho a referência à participação de Bordalo II na Mistaker Maker, que na verdade é uma plataforma de intervenção, e não um colectivo de artistas. A última colaboração entre Bordalo II e a Mistaker Maker data de 2018, ou seja anterior à criação da Mundofrenético.

  • 21 meses depois, Conselho Superior da Magistratura ainda “veste de negro”

    21 meses depois, Conselho Superior da Magistratura ainda “veste de negro”

    Depois de uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa e de um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, o Conselho Superior da Magistratura acabou por permitir a consulta do célebre inquérito à distribuição da Operação Marquês. Mas 638 dias depois do pedido, o CSM insiste agora em não cumprir uma sentença que lhe causará engulho, e expurgou, para já em cópias disponibilizadas ao PÁGINA UM, partes do relatório do inquérito, algo que a sentença não lhe permite. Além disso, o CSM impede agora o PÁGINA UM de fotografar as páginas do processo. A alternativa é pagar mais de 500 euros ao CSM pela fotocópia de cerca de mil páginas do processo, mas sem garantias de virem imaculadas.


    Esta foi a primeira intervenção do FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM, e ainda não acabou. Tem sido um longo calvário de 638 dias, exactos 21 meses, hoje com resultados positivos, embora ainda parciais, para a transparência democrática e uma prova da eficácia de um jornalismo independente e persistente: o PÁGINA UM tem, desde hoje, cópia do inquérito final do Conselho Superior da Magistratura (CSM) à distribuição da denominada Operação Marquês, o mega-processo, que ainda aguarda julgamento, que envolve o ex-primeiro-ministro José Sócrates.

    Tudo começou em 2 de Novembro de 2021. Perante a sistemática recusa do CSM em divulgar o inquérito de distribuição da Operação Marquês junto da comunicação social, o PÁGINA UM, então ainda em preparativos para a sua abertura, apresentou um requerimento para, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA) para acesso e “eventual obtenção de cópia (analógica ou digital), aos documentos administrativos elaborados e/ou apresentados pelo Sr. Inspetor Judicial Coordenador Juiz Desembargador Dr. Paulo Fernandes da Silva no Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 4 de Maio p.p., bem como a sua proposta formulada no relatório relativo à denominada Operação Marquês.”

    Sede do Conselho Superior da Magistratura, esta tarde, quando o director do PÁGINA UM se deslocou para consultar um processo pedido há 21 meses, após um parecer da CADA, uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa e um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul. Mesmo assim, o CSM não quer cumprir a sentença na íntegra, colocando obstáculos ao acesso integral e transparente.

    Iniciava-se, naquele preciso momento, um calvário de 638 dias em busca da transparência.

    Numa primeira fase, o CSM recusou essa pretensão ao PÁGINA UM – como até já fizera inicialmente com Sócrates. Em 21 de Dezembro de 2021, a juíza Ana Sofia Wengorovius – adjunta do CSM – emitiu um parecer alegando que o acesso por um jornalista àqueles documentos violaria ou afectaria “os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”, salientando que, para alguém poder consultar o inquérito, teria obrigatoriamente de invocar um “interesse atendível ou legítimo”.

    O PÁGINA UM apresentou então uma queixa à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), que em Fevereiro do ano passado concedeu um parecer favorável ao acesso. Mas o CSM reiterou a recusa, recordando que os pareceres daquela entidade “não são vinculativos”, e desafiava “o requerente [director do PÁGINA UM] querendo, intentar respetiva acção especial de acesso a documento administrativo”.

    Primeira página do relatório final do inspector Paulo Fernandes da Silva sobre a legalidade da distribuição do processo da Operação Marquês em 2014. Até o nome desse juiz foi expurgado das cópias disponibilizadas pelo CSM, e em algumas das páginas a mutilação é quase total.

    O PÁGINA UM aceitou o “convite”, depois de exarar o seu público protesto num artigo, publicado em 23 de Março passado, intitulado “Da justiça do Burkina Faso e do Conselho Superior da Magistratura de Portugal“.

    Com o apoio dos seus leitores, através do FUNDO JURÍDICO – este seria o primeiro processo de intimação, conduzido pelo advogado Rui Amores –, a intimação do PÁGINA UM foi bem-sucedida. Em 30 de Junho do ano passado, o juiz Pedro de Almeida Moreira, do Tribunal Administrativo de Lisboa, fez uma sentença a intimar o CSM, “no prazo de 10 dias, facultar-lhe [ao director do PÁGINA UM] o acesso aos documentos por aquele solicitados”.

    Isto sucedeu depois deste juiz ter exigido que o CSM enviasse o relatório da inspecção em envelope selado para averiguar se os seus argumentos relacionados com uma alegada existência de dados nominativos tinham razão de ser.

    Contudo, o juiz Almeida Moreira, após consultar o relatório do inquérito, concluiu que “compulsada a informação remetida pelo Requerido [CSM] em envelope selado, considera este Tribunal, à semelhança do que entendeu o[a] CADA, no douto parecer elaborado, que em causa estão unicamente dados atinentes ‘aos intervenientes no procedimento de distribuição processual, atuando no exercício das funções públicas que lhes estão por lei cometidas, não abrangendo qualquer informação relativa à dimensão da vida privada’ (…), não se identificando, como tal, motivos para cercear a regra geral do livre acesso a documentos administrativos”.

    E acrescentou ainda o juiz que, “e ainda que assim não se entendesse – id est, que os documentos que o Requerente [director do PÁGINA UM] aqui procura obter consubstanciassem documentos nominativos em sentido próprio, porquanto continentes de dados pessoais, nos termos e para os efeitos do RGPD [Regulamento Geral de Protecção de Dados] –, considera este Tribunal, em face da concreta informação ali vertida, que sempre deveria prevalecer o direito de acesso do Requerente aos referidos documentos face à protecção de tais dados, no âmbito de um juízo ponderativo de proporcionalidade.” Ou seja, o direito à informação e o direito de um jornalista informar era mais relevante.

    Porém, nem assim o CSM desistiu e recorreu para o Tribunal Central Administrativo Sul. Mais uma vez – pela terceira vez –, não lhe deram razão.

    No passado dia 29 de Junho, num acórdão demolidor, aprovado por unanimidade por três desembargadores e com o apoio do Ministério Público, deliberaram que a sentença do juiz Almeida Moreira tinha de ser mantida em toda a linha, concluindo que não houve qualquer “erro de julgamento da não pronúncia sobre a não indicação da finalidade do acesso solicitado, nem sobre a natureza pré-disciplinar da informação”, além de não ter havido qualquer “erro de julgamento de falta de fundamentação do juízo de proporcionalidade efectuado”.

    Volumes dos inquéritos ao processo de averiguação, fotografados antes da ordem de não ser permitido continuar a fotografar.

    O acórdão mostrou-se particularmente importante por também clarificar a questão da suposta protecção de dados nominativos, que tem estado a ser levado ao extremo, através da recusa de acesso ou à eliminação até do nome de funcionários públicos em documentos administrativos, como se tem observado no Portal Base com os contratos públicos.

    Nessa linha, os desembargadores salientam que essa presunção devia ter sido efectuada, nos termos da lei [o referido nº 9 do artigo 6º da LADA], pelo CSM, “enquanto entidade administrativa que recebeu o pedido (…) e conhece o teor dos documentos em referência, sabendo ou podendo verificar que não respeitam a origem étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a filiação sindical, dados genéticos, biométricos ou relativos à saúde, ou dados relativos à intimidade da vida privada, à vida sexual ou à orientação sexual de uma pessoa, titular/es dos dados pessoais neles constantes”. E, nessa linha, defenderam os desembargadores, o CSM tinha a obrigação de permitir desde logo o acesso.

    Porém, “não o fez”, como escrevem os desembargadores, “recusando o acesso requerido com fundamento de que os documentos eram nominativos e, sustentando no recurso, que têm de ser cumpridos os princípios plasmados no RGPD (Regulamento Geral da Protecção de Dados], como sejam a demonstração e concretização da finalidade do acesso aos dados pessoais contidos em tais documentos e do interesse pessoal e directo no mesmo.”

    Páginas 20 e 21 do relatório final concluído em 3 de Dezembro de 2018 sobre a distribuição do processo da Operação Marquês ao juiz Carlos Alexandre.

    Os desembargadores concluem que o CSM não poderia ter decido assim, uma vez que o PÁGINA UM, “ao abrigo do direito de acesso a informação não procedimental, pretend[ia] saber o que consta dos documentos e não apenas os dados pessoais, não tendo aquele que observar o que consta do RGPD, mas sim na LADA, até em decorrência do disposto no artigo 26º da Lei da Protecção de Dados Pessoais.”

    Mas nem assim o CSM parece ter aprendido. Esta tarde, tendo o director do PÁGINA UM se deslocado à sede do CSM para consultar o processo de averiguação à distribuição da Operação Marquês – constituídos por três volumes com um total de 1.024 páginas – foi confrontado com alguns impedimentos ilegais e com a recusa de cumprimento das determinações da sentença.

    Com efeito, além de o director do PÁGINA UM ter sido impedido, a partir de uma determinada fase da consulta, de obter a reprodução por fotografia das páginas do processo de averiguação – uma prática legal, que tem sido sistematicamente corroborada pela CADA em já, pelo menos, quatro deliberações –, as cópias disponibilizadas do relatório final estão mutiladas a tinta negra, apagando tanto os nomes dos intervenientes como também a discriminação de eventos, como seja número de processos, data de distribuição, o tipo de distribuição ao juiz e o escrivão que interveio em cada processo.

    Antes de ser impedido de continuar a fotografar o processo, o director do PÁGINA UM conseguiu obter o testemunho integral do juiz Carlos Alexandre neste processo.

    Em alguns casos, as rasuras a negro ocupam partes substanciais ou mesmo quase a totalidade das páginas, e nunca estão em causa mais do que nomes ou referências a processos judiciais, Não há, aliás como bem salientava o Tribunal Administrativo de Lisboa, qualquer dado nominativo.

    Por exemplo, no interrogatório que o instrutor do processo de averiguação ao juiz Carlos Alexandre não consta qualquer dado nominativo, e até o endereço indicado foi o profissional, que não é considerado dado nominativo para efeitos de protecção de dados.

    Apesar de essa informação ser acessível no processo original em papel, mas cuja reprodução fotográfica foi impedida, a obtenção dessa informação por meios manuais seria particularmente penosa. Além disso, a obtenção de fotocópias – além de o CSM poder, se não cumprir a sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, mutilar as partes que não quer mostrar – teria um custo exorbitante.

    Com efeito, e como o CSM teve o cuidado de avisar o PÁGINA UM com antecedência, de acordo com o Regulamento de Emolumentos, a reprodução por fotocópia simples de cada folha, com anverso e reverso (ou seja, duas páginas), tem o custo de 1/50 unidades de taxação (UT), sendo que cada UT corresponde a um décimo (1/10) do indexante dos apoios sociais (IAS), que este ano está fixado em 480,43 euros.

    Mesmo considerando que as 1.024 páginas de todo o processo de averiguações – que inclui, por exemplo, os depoimentos do juiz Carlos Alexandre – coubessem em 512 páginas, o custo total que o PÁGINA UM teria de suportar ascenderia aos 492 euros.

    Na verdade, deverá superar os 500 euros, uma vez que haverá páginas que, no processo, não têm reverso.

    Foi apresentado de imediato um requerimento à juiz secretária do CSM, que alegadamente deu ordens para que não fosse permitido ao director do PÁGINA UM continuar a fotografar o processo de averiguações que resultou no inquérito à distribuição da Operação Marquês.

    O requerimento do PÁGINA UM foi manuscrito com o que havia à mão: umas simples folhas brancas A5. Legalmente, é válido, e aguarda-se agora a resposta, até para saber se se mostra necessária nova intervenção do Tribunal Administrativo de Lisboa.


    N.D. Os processos de intimação do PÁGINA UM só são possíveis com o apoio dos leitores. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de 18 processos em curso, o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.

  • Pandemia foi um maná para contas da Cruz Vermelha Portuguesa fugirem do vermelho

    Pandemia foi um maná para contas da Cruz Vermelha Portuguesa fugirem do vermelho

    O SARS-CoV-2 foi uma “bênção” para a Cruz Vermelha Portuguesa (CVP). Um apoio europeu de 12,6 milhões de euros para vender testes à covid-19 ao preço de mercado e as contínuas “injecções” de subsídios públicos, permitiram à associação humanitária acumular lucros de 26,6 milhões de euros em 2021 e 2022, depois de dois anos de prejuízos no meio de suspeitas e investigações policiais. Para salvar a CVP, o Estado, e sobretudo com transferências dos Ministérios, a CVP encaixou 80 milhões de euros em subsídios e doações apenas entre 2020 e 2022, valor que contrasta com menos de 27 milhões no triénio anterior. Agora, António Saraiva, recém nomeado presidente da CVP, tem um duplo desafio: manter os resultados da instituição à tona de água e esclarecer as muitas dúvidas que se mantêm numa organização cada vez mais dependente dos contribuintes portugueses.


    Os alarmes financeiros soaram em 2020, primeiro ano da pandemia. E eram bem vermelhos. Apesar de um reforço de quase 11,2 milhões de euros de subsídios públicos face ao ano anterior, a Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) – uma organização não-governamental de utilidade pública mas financiada fortemente pelo Estado –, acabou o segundo exercício fiscal com resultados negativos.

    A solução foi quase draconiana, como se a instituição tivesse seguido para uma “unidade financeira de cuidados intensivos”: em 2021 e 2022, o Governo injectou ainda mais dinheiro e permitiu-se que a CVP maximizasse – ou seja, comercializasse com bom lucro – um subsídio de 12,6 milhões de euros da União Europeia para a compra de testes para a covid-19. E o “milagre” aconteceu: a CVP passou de dois anos de resultados negativos (2019 e 2020) de quase 1,7 milhões de euros para lucros estonteantes de 18,9 milhões em 2021 e de 7,7 milhões de euros no ano passado.

    O “milagre”, convenhamos, foi alcançado em grande medida à custa dos contribuintes. Com efeito, antes da pandemia, os rendimentos da CVP provinham sobretudo de vendas e serviços prestados – que têm sempre associados custos (mercadorias, serviços externos e gastos administrativos e com pessoal) –, e só muito marginalmente de subsídios, doações e até mesmo heranças. Por exemplo, no quinquénio 2014-2018, os subsídios e similares atingiram uma média anual de 6,6 milhões de euros, representando um pouco menos de 10% dos rendimentos totais.

    Em 2019, já com sinais preocupantes nas contas, a CVP, então gerida por Francisco George, ex-director-geral da Saúde, recebeu um reforço de subsídios públicos, embora insuficiente para colocar os resultados líquidos em terreno positivo. Nesse ano de 2019, só os diversos Ministérios, sobretudo o da Segurança Social, transferiram mais de 4,7 milhões de euros para as contas da CVP, o que confronta com pouco mais de 3 milhões em 2018.

    Mas os subsídios de todas as entidade públicas ainda foram bem superiores: 8,4 milhões de euros no total. Sem esse apoio extraordinário (quase mais 2 milhões de euros do que em 2018), o ano de 2019 teria sido catastrófico, bem pior do que os prejuízos de 931.497 euros então apresentados.

    Com a pandemia, o peso do Estado fez-se sentir ainda mais nas finanças da CVP. Em três anos, entre 2020 e 2022, os subsídios de entidades públicas totalizaram quase 63,2 milhões de euros, ou seja, uma média de 21 milhões por ano. Só o Governo, propriamente dito, através dos Ministérios, canalizou quase 49 milhões nesses três anos. Por exemplo, no ano passado foram transferidos 20 milhões.

    Mas um dos maiores “balões de oxigénio” da CVP acabou por ser, em 2021, também um subsídio da Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e Crescente Vermelho no valor de 12,6 milhões. Este subsídio surgiu no âmbito da candidatura da CVP, “em Julho de 2020, a um projeto financiado pela União Europeia com a Direção Geral para a Saúde e Segurança Alimentar (DG Santé)”, e tinha como objectivo concreto “aumentar a capacidade de testagem à covid-19 nos Estados Membros da União Europeia”.

    Deste modo, a CVP pôde montar uma estrutura comercial, fortemente concorrencial, de venda de testes, que, na verdade, não lhe custaram nada. E assim, se em 2020 a CVP apenas realizou cerca de 107 mil testes à covid-19, no ano seguinte, após receber os 12,6 milhões de euros, conseguiu vender 849 mil testes. Esta capacidade de vender com alto lucro teve reflexos imediatos no valor das vendas desse ano: quase 82,6 milhões de euros, que contrasta com os 58,5 milhões no ano anterior. E isso, mais o reforço dos subsídios públicos, explica um desempenho elevado, com lucros de 18,9 milhões de euros.

    Evolução dos subsídios doações e legados à exploração e das vendas e serviços prestados (em euros) pela Cruz Vermelha Portuguesa entre 2014 e 2022. Fonte: CVP (Relatórios e Contas)

    O desempenho do ano passado não foi tão bom – descendo os lucros para 7,7 milhões de euros, apesar do aumento em mais 4 milhões nos subsídios públicos –, deveu-se em parte à redução no número de testes à covid-19. Em 2022, a CVP realizou pouco mais de 100 mil, grande parte dos quais concentrados no primeiro trimestre.

    Com o esvaziar da pandemia, o novo presidente, António Saraiva, que acaba de tomar posse, tem pela frente a “normalidade”, ou seja, um conjunto de problemas estruturais por resolver, cuja identificação tem merecido alertas do Conselho Fiscal e o Revisor de Contas, a que se juntam as investigações, noticiadas em 2018, que lançaram uma sombra nesta organização, nomeadamente uma auditoria do Ministério da Defesa sobre as subvenções, as buscas da Polícia Judiciária por suspeitas de peculato e abuso de poder e um relatório comprometedor da Inspecção-Geral das Finanças.

    O histórico líder da CIP-Confederação Empresarial de Portugal, a que presidiu entre 2010 e Março deste ano, foi nomeado em Junho, mas tomou posse apenas em meados do mês passado, sucedendo a Ana Jorge, antiga ministra da Saúde de dois Governos socialistas, que ocupou a liderança da CVP a partir de Novembro de 2021. António Saraiva é também presidente do Taguspark e administrador da Global Media, empresa de media dona do Diário de Notícias, Jornal de Notícias e TSF, entre outros órgãos de comunicação social.

    A antiga governante acabou assim por apanhar dois anos muito favoráveis – depois do prejuízo de 2020, onde estão reflectidas perdas pela venda de uma participação na Sociedade Gestora do Hospital da Cruz Vermelha –, mas a descida dos lucros entre 2021 e 2022 dão sinais de que o “balão de oxigénio” trazido pelas receitas da pandemia pode ter-se esvaziado por completo.

    A própria CVP reconhece no seu mais recente Relatório e Contas que “no decorrer do ano de 2022 a atividade (…) teve um decréscimo, apresentando em algumas atividades valores aproximados a pré-pandemia covid-19”.

    Com efeito, analisando as demonstrações de resultados, o lucro bruto (antes de descontados juros, impostos e amortizações), diminuiu 11 milhões de euros em 2021 para 14 milhões de euros em 2022. As receitas totais desceram 18% para 101 milhões de euros. Note-se que em 2021, as receitas tinham aumentado 41% para 123,5 milhões de euros com o aumento de actividade devido à pandemia.

    Evolução dos resultados líquidos (em euros) da Cruz Vermelha Portuguesa entre 2014 e 2022. Fonte: CVP (Relatórios e Contas)

    Segundo a CVP, em 2022, as prestações de serviços desceram 22,7% para 63,3 milhões de euros “face ao ano anterior por via da diminuição de atividade essencialmente na área da saúde”. Por outro lado, os subsídios, doações e legados à exploração recuaram 25% para 25,4 milhões de euros devido a “protocolos específicos atribuídos em 2021 e atenuado pelo registo dos subsídios da Segurança Social nesta rubrica”.

    Na área de “Emergência”, a CVP registou no ano passado um decréscimo superior a 25% na actividade, “justificado pela saída gradual de um contexto pandémico, período em que houve a necessidade de reforçar a capacidade de resposta nos serviços de emergência médica, nomeadamente por via da realização de testes covid e de transportes urgentes”.

    Mas não é só o recuo das receitas e do lucro que provoca apreensão quanto ao futuro. O passivo aumentou 14,5% para 73,4 milhões de euros, o que gerou um alerta do Conselho Fiscal da instituição, indicando que a evolução do passivo deve merecer “uma atenção cuidada”.

    Além disso, há desconforto com a incapacidade de a sociedade revisora de contas auditar as contas que, além da sede, englobam toda a rede de 159 delegações e estruturas locais da CVP.

    António Saraiva com Ana Mendes Godinho, titular do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, que tem sido um dos principais financiadores da CVP.

    O facto de as diferentes estruturas e delegações não terem uma contabilidade integrada num aplicativo contabilístico comum “condiciona a abrangência dos procedimentos de auditoria, bem como a validação das práticas de controlo contabilístico ao nível de cada uma das estruturas”, alerta uma nota do Conselho Fiscal no Relatório e Contas da CVP.

    A sociedade revisora de contas, por sua vez, alertou que “o aplicativo contabilístico existente (SAGE ERP X3), abrange até ao momento apenas cerca de 55% do total de unidades que compõem o universo da entidade, sendo a contabilidade das restantes estruturas efetuada com utilização de outros aplicativos, na maioria dos casos com recurso a gabinetes externos de contabilidade, impedindo a integração automática da informação contabilística, a qual apenas é efetuada com referência ao final do ano”.

    Indicou que esta situação “foi ainda agravada no exercício em análise, em que não foi assegurada a integração da totalidade das estruturas locais através do SAGE ERP X3, tendo-se optado, por razões relacionadas com a necessidade de apresentação de demonstrações financeiras dentro dos prazos legais estabelecidos, por proceder à integração da informação relativa a algumas estruturas fora daquele aplicativo informático”.

    O primeiro-ministro, António Costa, com Ana Jorge, anterior presidente da CVP, numa visita.

    O Conselho Fiscal também questionou, por outro lado, a opção de manter em caixa mais de 50 milhões de euros, os quais podiam ser usados para abater dívida ou para beneficiar do aumento das taxas de juro nos bancos.

    Ao PÁGINA UM, a CVP evitou responder às questões mais prementes, preferindo destacar que “pela primeira vez”, a instituição “fechou atempadamente o relatório e contas”, acrescentando que “esta melhoria ao nível da contabilidade deve-se à aposta em reforçar a sua profissionalização, com vista a tornar a instituição mais sólida e eficaz, mas também valorizando o seu capital humano”.

    E diz ainda que “foi precisamente nesse sentido que se assistiu, pela primeira vez na história da CVP, a um ajustamento salarial dos seus colaboradores”, o que, segundo a administração, “procurou equiparar os salários dos colaboradores da instituição aos da Administração Pública, uma vez que eram significativamente inferiores”. Saliente-se, no entanto, mais uma vez, que a CVP é uma instituição humanitária não-governamental, de utilidade pública administrativa, sem fins lucrativos, com autonomia face ao Estado (embora estatutariamente com a obrigação de ser por si apoiada) em obediência aos princípios e recomendações do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho.

    Em todo o caso, a “ingerência” governamental é evidente, tanto assim que não se mostra possível a eleição do seu presidente, através de um Conselho Supremo, sem a concordância do Governo, que é quem formalmente nomeia o eleito, através de um despacho.

    Ao PÁGINA UM, a CVP recusou detalhar quantos trabalhadores viram os seus salários serem aumentados ou qual o montante envolvido. Também não quis esclarecer se foram melhorados salários de trabalhadores com cargos de direcção ou gestão. Em todo o caso, os gastos com pessoal aumentaram globalmente quase 9% entre 2021 e 2022, passando de quase 43,4 milhões para 47,2 milhões de euros. Antes da pandemia, em 2019, os gastos com pessoal totalizaram 38 milhões de euros.

    Sobre os alertas apontados pelos auditores, a CVP diz que se devem ao facto de as várias delegações da CVP utilizarem diferentes programas informáticos de contabilidade” e que “a CVP está a uniformizar o sistema informático, que, em breve, será comum a todas as estruturas”.

    Já em relação ao elevado montante disponível em caixa, a CVP justificou ao PÁGINA UM que “as verbas que ficam em caixa destinam-se a programas específicos de apoio, não podendo ser alocadas a outros fins”.

  • Associação Sara Carreira: conheça a fábrica de donativos que faz pouco e queria mostrar menos

    Associação Sara Carreira: conheça a fábrica de donativos que faz pouco e queria mostrar menos

    Em tons cor-de-rosa, envolvendo desde políticos até desportistas e entertainers e remetendo para o trágico desfecho de uma jovem vida e para o apoio a estudantes carenciados, a Associação Sara Carreira é sobretudo uma bem oleada máquina de donativos. Em apenas 20 meses angariou quase 1,7 milhões de euros, sendo que as vendas apenas chegaram aos 100 mil euros. A associação, que recebeu um meteórico estatuto de utilidade pública, não aprecia, contudo, falar daquilo que faz e do que vai fazer, e detesta mostrar contas. Só divulgou os resultados da sua actividade de 2021 e 2022 na semana passada, depois de muita pressão. No final do ano passado, tinha no banco 1.266.986 euros. Partiu do zero. O PÁGINA UM analisa agora tudo.


    Mesmo sem o “mínimo necessário exigível no âmbito de valores e princípios basilares que norteiam o jornalismo em Portugal”, que é como a Associação Sara Carreira nos cataloga, o PÁGINA UM conclui, ao fim de algumas semanas de investigação – mas ainda não no seu término – que há mesmo um verdadeiro e grande tabu, ou vários, rodeando as actividades desta nova entidade com estatuto de utilidade pública fundada em Março de 2021, em memória da filha do cantor Tony Carreira: o dinheiro.

    Sem prejuízo das circunstâncias traumáticas que levaram à criação desta associação – uma tragédia que, infelizmente, não atingiu apenas a família Carreira, não sendo esse um motivo válido para “censurar” uma investigação jornalística –, existe uma evidente falta de transparência, o que não abona o seu objecto social, a sua projecção mediática e, sobretudo, dura lex sed lex, contraria as exigências legais por força de um meteórico reconhecimento de utilidade pública.

    Não apenas meteórico, mas, diga-se, também estranho. O processo de reconhecimento já foi pedido pelo PÁGINA UM à Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos – e que, aliás, se não respondido, terá a mesma solução de outras recusas similares: uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Tony Carreira e os dois filhos (Mickael e David) durante o espectáculo da 2ª edição da Gala dos Sonhos, que constitui uma fonte de receitas volumosa.

    Muita água – embora talvez menos do que a habitual, por se estarmos em seca – já terá passado por debaixo das pontes desde que, em 19 de Junho, o PÁGINA UM entrou formalmente em contacto com a Associação Sara Carreira para, enfim, a questionar, legitimamente, sobre os requisitos prévios para o reconhecimento de utilidade pública.

    Recorde-se que a Lei-Quadro determina que as entidades de utilidade pública “tenham uma página pública na Internet, acessível de forma irrestrita, onde sejam disponibilizados os relatórios de atividades e de contas dos últimos cinco anos, a lista atualizada dos titulares dos órgãos sociais e os textos atualizados dos estatutos e dos regulamentos internos”.

    E, por isso, pediram-se explicações para a falta desses documentos no site e apelou-se para o envio dos relatórios e contas de 2021 e de 2022. Além disso, pretendeu-se também saber, em detalhe quais são os montantes efectivamente disponibilizados por mês, no conjunto, dos bolseiros auxiliados pela associação – que tem sido, publicamente, a principal actividade de beneficência conhecida –, ou em alternativa o valor médio de apoio e o número actual de bolseiros. Nada de anormal: os regulamentos da generalidade das bolsas para estudantes divulga os valores, sem quaisquer problemas (vd. AQUI).

    Carlos Moedas ao lado de Tony Carreira, durante a 2ª edição da Gala dos Sonhos em Dezembro passado.

    Last but not the least, o PÁGINA UM quis saber também o número de associados e quais as condições em concreto para se ser sócio, uma vez que os estatutos de constituição e alteração são susceptíveis de “blindar” a entrada a novos sócios. Esse não é um pormenor: segundo a lei, uma entidade como a Associação Sara Carreira necessita, no mínimo, de 16 sócios efectivos para obter o estatuto de utilidade pública. Mas já lá iremos…

    Desde 19 de Junho, como disse, muita água passou pelas pontes, debaixo. E também muita actividade pelo site da Associação Sara Carreira. Embora, na aparência, não se vislumbrem novidades há muito – a última entrada na secção das Notícias, e a única deste ano, é de 3 de Maio (conforme gravação de hoje) –, houve um grande corrupio, nem sempre perceptível, desde que o PÁGINA UM começou a fazer perguntas à Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros e publicou a primeira notícia sobre este assunto.

    No passado dia 27, um dia depois de o PÁGINA UM revelar que a Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros colocava a hipótese de retirar-lhe o estatuto de utilidade pública por não ter contas divulgadas, a Associação Sara Carreira colocou no site aquelas referentes ao ano de 2021. Mas onde? Em local inopinado: na secção dos Termos e Condições do site, e bem lá no fundo para (quase) ninguém achar. Achou o PÁGINA UM, que gravou.

    E voltou a gravar para confirmar que esta primeira fase da transparência foi muito fugaz, porque três dias depois, no dia 30, já o relatório e contas de 2021 dali tinha desaparecido. Também se gravou. Só no dia 4 deste mês, talvez pelas insistências do PÁGINA UM, a Associação Sara Carreira decidiu que, afinal, tinha mesmo, a contragosto, de divulgar o relatório de actividades e de contas tanto de 2021 como de 2022. A legalidade quando nasce é para todos, mesmo quando se tem o Presidente da República a atender telefonemas para recolher donativos. Ou talvez, também, até por isso.

    Marcelo Rebelo de Sousa tem sido um fervoroso apoiante da família Carreira.

    A leitura dos dois relatórios de actividades e de contas suscitam várias conclusões. E suscitaram ao PÁGINA UM muitas mais perguntas, nenhuma respondida pela Associação Sara Carreira, que, por e-mail no passado dia 4 (o terceiro, depois deste e deste), ainda acusou “a linha que [o PÁGINA UM] tem adotado no contacto com esta Associação], que “é demonstrativa de que, verdadeiramente, não pretende informação, mas sim, apenas e só, polémica e sensacionalismo, certamente, para que através disso venha a ser lido, visitado ou citado á custa do nosso bom nome, altruísmo e benevolismo [sic] públicos reconhecidos”.

    E, continuando sem responder a qualquer pergunta, a assessoria de imprensa da Associação Sara Carreira acrescentou ainda que “assim sendo, a partir deste momento não iremos mais responder ao que quer que seja provindo dessa página da internet [sic], que desconhecíamos, ou por V. Exa. assinado, pois não lhe reconhecemos o mínimo necessário exigível no âmbito de valores e princípios basilares que norteiam o jornalismo em Portugal.”

    Por fim, termina a Associação Sara Carreira com uma ameaça velada: “Estaremos vigilantes aos textos que publique no sentido de vir a agir contra tudo o que, por falsidade, populismo e injustiça, vier a colocar em causa a seriedade e o bom nome desta Associação, dos seus Mecenas, dos seus Bolseiros, dos seus Colaboradores e todos aqueles que nos têm vindo a ajudar, incentivar e também a felicitar.”

    Portanto, deixemos a falsidade, populismo e injustiça daqui arredados, e vamos a factos, que estes por definição não são falsos, nem apelam ao populismo, e sendo factos abduzo estão da injustiça. Pelo contrário, não escrever sobre factos é que se mostraria injusto, e omitir factos para “proteger” a imaculada imagem de um cantor popular é que seria populismo.

    Donativos da denominada Gala dos Sonhos, transmitida pela SIC, têm um peso significativo nas receitas mas não explicam como em menos de dois anos a Associação Sara Carreira se tornou milionária.

    Sejamos, portanto, objectivos. A Associação Sara Carreira tem sido, efectivamente, uma eficaz máquina de receitas – ou melhor dizendo, de donativos. E tanto assim é que, ao nível de rendimentos, já rivaliza com as duas empresas detidas pela família Carreira, a Regibusiness e a Regi-Concerto, sendo que esta é detida quase em exclusivo pela primeira.

    No seu primeiro ano de existência, e abrangendo apenas oito meses – foi apresentada em 2 de Maio de 2021 –, e de acordo com o relatório de contas, finalmente disponibilizado, a Associação Sara Carreira conseguiu encaixar 676.908 euros de donativos, que constituíram a sua única receita. Quase 45% (303.465 euros) deste montante foi arrecadado durante a realização da denominada Gala dos Sonhos, no dia 1 de Dezembro daquele ano.

    Esta foi a única actividade onde a associação anunciou activamente os valores de donativos relevantes que recebeu desde a sua existência. De resto, exceptuando a oferta de um carro pela Benecar e o anúncio do próprio Grupo Decisões e Soluções – uma empresa de consultadoria imobiliária –, já este ano, de ter doado 100 mil euros, nada se sabe dos montantes doados pelos outros mecenas conhecidos (Missão Continente, Altice, Fundação Santander e SIC).

    Mas se o ano de arranque foi promissor, o ano de 2022 mostrou-se fantástico. No caso das vendas, sobretudo de merchandising relacionados com Sara Carreira, representaram quase 100 mil euros (99.098 euros), mas os donativos ainda dispararam mais, cifrando-se nos 983.921 euros. Somados estes itens, a Associação Sara Carreira amealhou 1.083.019 euros em 2022.

    Na sua página do Facebook da Associação Sara Carreira anunciou ter reunido na semana passada com os mecenas.

    A título de exemplo, a empresa gestora da carreira de Tony Carreira, a Regi-Concerto, facturou 1.325.682 euros em 2021 (as contas de 2022 ainda não estão disponíveis), embora com uma margem de lucro incomensuravelmente menor. Não se encontrou o valor dos donativos da segunda edição da Gala dos Sonhos, apesar de a Associação Sara Carreira garantir que divulgou um comunicado na Rádio Renascença.

    Incompreensivelmente, nada é referido no relatório de actividade de 2022, e não se diga que foi por ter pouco relevo. Pelo contrário. O dito relatório revela vários indicadores de sucesso: cerca de 5,5 milhões de impressões dos posts, mais de 700 mil pessoas alcançadas e mais de dois milhões de interacções. E ainda se contabilizou “mais de 62 mil cliques e mais 500 mil seguidores”. Euros recebidos da campanha: nicles.

    Se os rendimentos globais e os donativos recebidos pela Associação Sara Carreira acabam, finalmente, por se saber pela leitura dos relatórios e contas de 2021 e de 2022 – e particularmente pela demonstração de resultados e pelos fluxos de caixa –, já o mesmo não se verifica quanto à tipologia dos gastos e despesas. Saber quanto se gastou, isso sabe-se – e acredita-se nos montantes, tanto mais que as contas foram auditadas pela Pricewaterhouse Coopers & Associados –, mas não em quê nem como nem para para quê.

    Depois de muita pressão, e situações rocambolescas, a Associação Sara Carreira fez aquilo que qualquer associação de utilidade pública só pode fazer: divulgar as contas e relatório de actividades de 2021 e de 2022. Sem, dramas nem acusações. Só assim, com transparência, se “paga” os benefícios fiscais que se recebe da sociedade.

    Nem nos regulamentos nem nas muitas entrevistas concedidas sobretudo nos programas de entretenimento da SIC, nem no relatório de actividades existe a mínima menção aos valores concretos das bolsas de estudo que constituem, sempre, o leitmotiv da Associação Sara Carreira. Ajudar jovens desfavorecidos, embora seja tarefa desenvolvida por muitas outras associações e fundações (e de forma transparente), é mesmo um tema tabu.

    Das diversas pesquisas, e perguntas do PÁGINA UM, a Associação Sara Carreira não responde. Nega-se até a explicar o motivo – que certamente haverá um, ou dois, ou 21, tantos quantos os bolseiros que estão integrados na primeira edição.

    A segunda edição está numa fase de análise das candidaturas. Note-se que no relatório e contas, a Associação Sara Carreira diz que “temos connosco” actualmente 45 bolseiros, o que contradiz o que surge hoje no site. No entanto, diversas fotos no mural do Facebook, incluindo uma com bolseiros numa viagem turística aos Açores, em Abril deste ano, observam-se 34 jovens. No relatório de actividades de 2022 constam 36, com os respectivos nomes das “madrinhas” e dos “padrinhos”.

    Como o relatório de actividades não explicita – nem a direcção da Associação Sara Carreira – os valores unitários e globais das bolsas, somente pela interpretação da demonstração do fluxo de caixa de 2022 será possível atribuir montantes prováveis.

    Bolseiros da Associação Sara Carreira numa viagem aos Açores em Abril deste ano.

    O dinheiro transferido para os bolseiros ou para as instituições de ensino estará, afinal, integrada no fluxo de pagamento a fornecedores (que, em 2022, atingiram 284.229 euros), não constituindo um pagamento ao pessoal (56.5454 euros, nesse ano). O valor que surge nas actividades operacionais como “Recebimentos de clientes e utentes” (que está com valor negativo), num total de 99.098 euros, será relativo às vendas de merchandising.

    Independentemente das questões contabilísticas nem sempre serem cristalinas, certo é que o grosso das despesas da Associação Sara Carreira serviram, assim se assume, para obter os donativos. Ou para custear algumas das actividades pontuais que foi desenvolvendo, incluindo um luxuoso Jantar de Amigos no Salão Preto e Prata no Casino do Estoril em 17 de Setembro do ano passado. Mas falar destas despesas também foi tabu. Ninguém da associação quis esclarecer o PÁGINA UM.

    Do total de mais de 325 mil euros já gastos em 2021 e 2022 para pagamentos a fornecedores e serviços externos, a fatia de leão é da rubrica “Trabalhos especializados”, com 174.901 euros. Que tipo de trabalhos especializados são esses, a Associação Sara Carreira não diz. E muito menos responde se alguma das empresas do universo da família Carreira é beneficiária por serviços realizados.

    Demonstração de resultados de 2021 e 2002 da Associação Sara Carreira, divulgada apenas na semana passada, após cinco e-mails do PÁGINA UM e depois da Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros ter colocado a hipótese de retirar o estatuto de utilidade pública.

    Pode-se admitir que seja todas os custos dos trabalhos especializados (49.273 euros em 2021 e 125.628 euros em 2022) respeitem às bolsas. Assim, se forem mesmo 45 os bolseiros apoiados, obtém-se um apoio médio de um pouco menos de 3.900 euros por ano. Isto não inclui os apoios que algumas empresas têm concedido, acredita-se que graciosamente.

    Uma outra rubrica relevante refere-se a “rendas e alugueres”, que se cifraram nos 12.153 euros em 2021 e nos 54.719 euros em 2022. A Associação Sara Carreira também não revela a quem se destinaram estes valores, ignorando-se assim se uma parte se refere à renda da actual sede, compartilhada com a Regi-Concerto, a empresa de gestão da carreira de Tony Carreira.

    Em todo o caso, no relatório de 2022 surge a referência de estar “em curso” uma “Parceria Pública para construção de Sede da Associação Sara Carreira”. Nada mais é adiantado que tipo de parceria e com que entidade e qual o custo e comparticipação estatal. Mais um dos muitos tabus.

    Outras duas rubricas relevantes dos pagamentos a fornecedores e serviços externos em 2021 e 2022 são os honorários (não identificados, mas que não são de pessoal) no valor de cerca de 23 mil euros e as deslocações e estadas no valor de mais de 31 mil euros. O “material de escritório”, que não inclui artigos para oferta nem livros e documentação técnica, foram de quase 6.500 euros, dos quais 5.452 euros apenas no ano passado.

    No relatório de actividades de 2022 constam diversas actividades pontuais da Associação Sara Carreira, como seja uma visita ao Zoo com alunos autistas de Lisboa, a ida de alguns bolseiros ao MEO SW, contributo (alimentação) a associações de apoio a animais, a oferta de roupa desportiva a crianças a Pampilhosa da Serra e o apoio a uma família ucraniana.

    Todas estas despesas, apesar de elevadas, não terão afectado demasiado o desempenho financeiro da Associação Sara Carreira, que, em menos de dois anos de existência, acumulou lucros de 1.228.765 euros, registando, no final de 2022. Esse valor até é ligeiramente superior em termos de saldo bancário (caixa e depósitos): 1.266.986 euros.

    Qual o destino a dar a estas verbas no futuro – reforçar as acções de beneficência ou constituir activos para rentabilizar, de modo a encontrar receitas para além dos donativos – é também outro dos tabus da Associação Sara Carreira.

    Se vai evoluir para uma fundação – que exige uma dotação dos fundadores de 200 mil euros, o que já se ultrapassou, o que traria ainda mais benefícios e garantias de controlo familiar –, com uma eventual transferência de património da família Carreira – ou mesmo integração das suas empresas – também é questão não respondida.

    Aliás, quando o PÁGINA UM insistiu em saber eventuais relações comerciais entre a Associação Sara Carreira e as empresas detidas pela família Carreira (Regibusiness e Regi-Concerto), a assessoria de imprensa respondeu que “se [o PÁGINA UM] entender por útil, deve contatar instituições ou pessoas coletivas que vem referindo para obter a informação que entender, atendendo que esta Associação não se pronuncia, muito menos daria qualquer informação sobre entidades à qual é completamente alheia.”

    Menu do Jantar de Amigos no Salão Preto e Prata em Setembro do ano passado, no Casinho de Estoril.

    Refira-se, porém, que a Regibusiness – que detém praticamente a totalidade (98%) da Regi-Concerto –  tem três administradores: Tony Carreira (António Manuel Mateus Antunes), que preside, a sua ex-mulher Fernanda Antunes (Maria Fernanda da Silva Araújo Antunes) e o filho Mickael Carreira (Mickael Araújo Antunes). Ora, a direcção da Associação Sara Carreira tem cinco dirigentes, os três que são administradores – sendo que Fernanda Antunes é presidente, Tony Carreira é tesoureiro e Mickael Carreira é vogal). O quarto membro da direcção da Associação Sara Carreira é o também do clã Carreira, David Carreira.

    O único dirigente “estranho” da Associação Sara Carreira à família de Tony Carreira é a vogal Odile Pereira, mulher de Armando Pereira, um dos co-fundadores da Altice, que aliás é um dos principais mecenas.

    Na verdade, nem sequer se sabe se Odile Pereira é sócia da Associação Sara Carreira, porque os estatutos, até para evitar entrada de sócios não controláveis – até pelos montantes já angariados –, estão completamente blindados. O artigo 4º dos Estatutos, sobre os quais não foi colocado nenhum entrave aquando do reconhecimento do estatuto de utilidade pública, diz apenas que “podem ser Associados todas as pessoas singulares e pessoas coletivas públicas ou privadas que, através de donativos, deem uma contribuição especialmente relevante para a realização dos fins da associação.” E prevê-se que os corpos sociais podem ser ocupados por “pessoas estranhas à associação” propostas por sócios.

    Tony Carreira é simultaneamente administrador da Regibusiness, a sociedade anónima familiar, e tesoureiro da Associação Sara Carreira. Tanto as empresas como a associação são controladas em exclusivo pela família Carreira. Porém, a assessoria de imprensa da associação tenta passar a ideia de não haver ligação entre uma e outra.

    O relatório de actividades de 2022 não refere o número de sócios – nem a Associação Sara Carreira quis esclarecer também esta questão –, mas o de 2021, aprovado quando já estava em curso a análise do estatuto de utilidade pública, lista os quatro então existentes: os elementos da família Carreira.

    Isso coloca também um problema legal: a lei-quadro do estatuto de utilidade pública exige, como requisito prévio, que as associações ou cooperativas “devem reunir, respectivamente, um número de associados ou de cooperantes que exceda o dobro do número de membros que exerçam cargos nos órgãos sociais, para que lhes possa ser atribuído o estatuto de utilidade pública.”

    Como além dos cinco membros da Direcção, a Associação Sara Carreira conta com três membros da Assembleia Geral (José Fortunato, presidente da Missão Continente; Miguel Osório, actual administrador da Media Capital e ex-quadro da Sonae; e o advogado André Matias de Almeida), significa que, para lhe ser atribuído o estatuto, teria de ter 16 ou mais sócios efectivos, todos com os mesmos direitos de voto e, potencialmente, de gestão dos donativos. Ora, o relatório de actividades de 2021, aprovado em 29 de Abril de 2022, não coloca dúvidas: só havia quatro sócios. E provavelmente será um número a manter-se, tendo em conta tamanha obstinação em recusar informações.

    Apoio institucional e político à Associação Sara Carreira tem sido ao mais alto nível, permitindo um meteórico mas muito duvidoso reconhecimento de utilidade pública.

    Saliente-se que com o estatuto de utilidade pública a Associação Sara Carreira passou a usufruir de um vasto conjunto de isenções, não pagando imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) e imposto municipal sobre imóveis (IMI), impostos sobre o rendimento de pessoas colectivas (IRC) e até isenção de taxas associadas a espectáculos e eventos públicos. E também obter os proveitos da consignação de 0,5% do IRS.

    Além disso, com esse estatuto de utilidade pública os mecenas passam a usufruir de deduções significativas para efeitos de determinação do lucro tributável. Um mecenas, que pode mesmo ser uma das empresas de Tony Carreira, passa a poder considerar como custos em valor correspondente a 130% do respectivo total.

    Por exemplo, se considerarmos um lucro hipotético de 100 euros (por facilitismo), uma empresa pagaria 21 euros de IRC, mas se fizer um donativo desses 100 euros, deixa obviamente de pagar os 21 euros, e ainda fica com um “crédito” de 6,3 euros por conta dos 30 euros de despesas justificadas (em caso de ter mais lucros). Claro que um mecenas normal, que concede um donativo, vê sair dinheiro da sua esfera de controlo, contabilisticamente falando, dinheiro, porque mesmo sem impostos o saldo é negativo. Porém, se o donativo for destinado a uma associação de utilidade pública que seja controlado pelo doador, uma transferência de lucros (e até de património) pode ser um excelente negócio. Mesmo sabendo-se que uma associação não pode distribuir lucros, pode ter lucros (e bastantes), e haver dissipação de fundos através de despesas decididas e controladas pelos sócios.


    N.D. Fez-se uma correcção da notícias pelas 12:40 horas do dia 11 de Julho, por se constatar que o valor dos Recebimentos de clientes utentes se referia às vendas de merchandising. O lapso advém também de um lapso na apresentação do fluxo de caixa das actividades operacionais. Deste modo, o pagamento das bolsas estará na parte dos fornecedores, mais propriamente na rubrica dos trabalhos especializados.

  • Acórdão demolidor do Tribunal Central Administrativo dá (terceira) vitória do PÁGINA UM contra o Conselho Superior da Magistratura

    Acórdão demolidor do Tribunal Central Administrativo dá (terceira) vitória do PÁGINA UM contra o Conselho Superior da Magistratura

    Em causa está o acesso ao inquérito sobre a distribuição da Operação Marquês, e o PÁGINA UM foi o único órgão de comunicação de Portugal que não aceitou um NÃO do todo-poderoso Conselho Superior da Magistratura. E foi à luta pelos direitos de acesso à informação. Primeiro, na Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos. Venceu, mas o CSM recusou. Segundo, no Tribunal Administrativo de Lisboa. Venceu, mas o CSM recorreu. E o PÁGINA UM viu agora três desembargadores darem-lhe razão. Terceira vitória. Haverá novo despique, agora no Supremo Tribunal Administrativo, para um provável 4-0, ou o CSM vai aceitar que se vive numa democracia?


    A sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, anunciada em Junho do ano passado era já claríssima: “Em face do que antecede, julgo a presente acção intentada por Pedro Almeida Vieira [director do PÁGINA UM] procedente e, em consequência, intimo o Conselho Superior da Magistratura [CSM] a, no prazo de 10 dias, facultar-lhe o acesso aos documentos por aquele solicitados através do seu requerimento de 2 de Dezembro de 2021”.

    Este deveria ter sido o corolário de sete meses de legítima pressão do PÁGINA UM – consubstanciada na Lei de Acesso aos Documentos Administrativos e da Lei da Imprensa – sobre o CSM para a obtenção do célebre inquérito à distribuição do processo da Operação Marquês em 2014 – então entregue sem sorteio ao juiz Carlos Alexandre, e que culminaria então com a detenção do ex-primeiro-ministro, José Sócrates.

    Conselho Superior da Magistratura quis sempre manter secretismo sobre os meandros da Operação Marquês.

    Mas não foi, Na verdade, foi preciso mais um ano, muito mais papel, mais um parecer do Ministério Público, e um acórdão de três juízes desembargadores de 23 páginas para fazer cumprir um direito óbvio de acesso a documentos administrativos e ao exercício da liberdade de imprensa.

    O “caso” foi espoletado pelo PÁGINA UM em finais de 2021, mas era uma história antiga. Sistematicamente, o CSM recusava a divulgação do famoso inquérito à entrega ao juiz Carlos Alexandre do mais famoso processo judicial em tempos de democracia, a Operação Marquês. Este inquérito tinha feito já correr muita tinta, incluindo um processo judicial de José Sócrates contra o Carlos Alexandre, que acabou arquivado pelo Tribunal da Relação em Maio do ano passado.

    Porém, nunca este inquérito viu a “luz do dia”, como se fosse um segredo de Estado, e não um episódio fundamental para percebermos os bastidores da Justiça em Portugal.

    O PÁGINA UM não aceitou e foi dar luta ao CSM onde se deve fazer num Estado de Direito: nos palcos da lei e a ordem, enfrentando uma das cúpulas da Justiça – ou seja, exercendo a nobre função do Jornalismo

    Primeira página do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul concedendo o direito de acesso ao PÁGINA UM.

    Primeiro, pedindo formalmente os documentos, corria o mês de Dezembro de 2021. Em 21 desses mês, a juíza Ana Sofia Wengorovius, adjunta do CSM, recusou liminarmente, emitindo um parecer alegando que o acesso por um jornalista àqueles documentos violaria ou afectaria “os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”, salientando que, para alguém poder consultar o inquérito, teria obrigatoriamente de invocar um “interesse atendível ou legítimo”.

    O PÁGINA UM recorreu então à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), presidida pelo juiz conselheiro Alberto Oliveira, que viria a dar razão ao PÁGINA UM em 17 de Fevereiro de 2022.

    Mas nem assim o CSM se disponibilizou a ceder os documentos do inquérito, advogando que o parecer da CADA não era vinculativo, acabando mesmo por “convidar” o PÁGINA UM a recorrer para o Tribunal Administrativo de Lisboa.

    O órgão superior de gestão e disciplina dos juízes dos tribunais judiciais portugueses considerou então, através da também juíza Ana Cristina Chambel Matias que “o Requerente [director do PÁGINA UM] não invocou, nem demonstrou que o acesso aos documentos constantes do processo de averiguações em causa são necessários para a tutela de um qualquer seu direito ou interesse legalmente protegido para que lhe seja conferido o direito a esse acesso”, acrescentando que “apesar de notificado por mais de uma vez pelo CSM, não concretizou cabalmente os elementos pretendidos dentro das condicionantes próprias do procedimento e não esclareceu qual a finalidade do acesso e da recolha de tais documentos”.

    Na verdade, o PÁGINA UM sempre alegou que o estatuto de jornalista era suficiente, tendo sim recusado justificar se a consulta se consubstanciaria em notícia ou não.

    O PÁGINA UM decidiu então seguir para a verdadeira luta judicial: o Tribunal Administrativo, naquele que viria a ser o primeiro processo de intimação financiado pelos seus leitores, através do FUNDO JURÍDICO,

    Em sede de contestação, o CSM insistiu na tese da existência de “dados nominativos” nos documentos do inquérito. Porém, em vez de acreditar piamente no CSM, o juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa, Pedro Almeida Moreira, exigiu que lhe fosse enviado “em envelope selado, cópia dos documentos a que o Requerente [director do PÁGINA UM] pretende aceder, de molde a permitir a este Tribunal aquilatar se os mesmos contêm ou não ‘múltiplos dados pessoais’ e, ‘se a isso se chegar, tecer um juízo de proporcionalidade concernente aos interesses que aqui se encontram concretamente em jogo’”.

    person holding brown eyeglasses with green trees background

    A sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, em 30 de Junho do ano passado, foi o primeiro revés para o CSM, uma vez que o juiz Pedro Almeida Moreira considerou, consultando o inquérito à distribuição da Operação Marquês, que este “não configura um documento nominativo, em sentido próprio”, uma vez que “em causa estão unicamente dados atinentes aos intervenientes no procedimento de distribuição processual, atuando no exercício das funções públicas que lhes estão por lei cometidas, não abrangendo qualquer informação relativa à dimensão da vida privada”.

    O juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa tecia mesmo duras críticas às alegações do CSM, considerando que “a vingar a interpretação que aqui é propugnada pelo Requerido [CSM], isso significaria que o mero nome de um funcionário público que tenha intervindo num qualquer procedimento administrativo apenas poderia ser tornado acessível aos interessados após a ponderação dos interesses em jogo no âmbito de um juízo de proporcionalidade, o que não se mostra aceitável em face das exigências de transparência que impendem sobre a Administração, nos termos constitucional e infraconstitucionalmente consagrados.”

    Mas o CSM não se deu por vencido com a opinião da CADA e do Tribunal Administrativo de Lisboa, recorrendo – e obrigando o PÁGINA Um a suportar mais encargos judiciais – para o Tribunal Central Administrativo Sul. E o acórdão demorou, mas saiu no final da passada semana. E é um acórdão demolidor.

    Más notícias, portanto, para os conselheiros do CSM.

    Mas óptimas notícias para a transparência pública e para a liberdade de imprensa num sistema democrático.

    Sentença do juiz Pedro Almeida Moreira foi “validada” por três desembargadores do Tribunal Central Administrativo Sul, que lançam críticas à atitude do Conselho Superior da Magistratura.

    O acórdão, votado por unanimidade pelos desembargadores Lina Costa (que foi a relatora), Catarina Vasconcelos e Rui Pereira em 29 de Junho passado, arrasa em toda a linha a argumentação que o CSM usou para evitar o acesso ao inquérito.

    E até aborda em detalhe o argumento do CSM de que o director do PÁGINA UM não tinha justificado – porque se recusou a justificar, por ser óbvio aquilo que um jornalista faz – a finalidade dos documentos requeridos.

    Para os desembargadores, a sentença inicial do juiz Pedro Almeida Moreira é para manter em toda a linha, concluindo que não houve qualquer “erro de julgamento da não pronúncia sobre a não indicação da finalidade do acesso solicitado, nem sobre a natureza pré-disciplinar da informação, além de não ter havido qualquer “erro de julgamento de falta de fundamentação do juízo de proporcionalidade efectuado”.

    O acórdão mostra-se, aliás, particularmente importante por clarificar a questão da suposta protecção de dados nominativos, que tem estado a ser levado ao extremo, através da recusa de acesso ou à eliminação até do nome de funcionários públicos em documentos administrativos, como se tem observado no Portal Base com os contratos públicos.

    Nessa linha, os desembargadores salientam que “essa presunção devia ter sido efectuada, nos termos da lei [o referido nº 9 do artigo 6º da LADA], pelo Recorrente, “enquanto entidade administrativa que recebeu o pedido (…) e conhece o teor dos documentos em referência, sabendo ou podendo verificar que não respeitam a origem étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a filiação sindical, dados genéticos, biométricos ou relativos à saúde, ou dados relativos à intimidade da vida privada, à vida sexual ou à orientação sexual de uma pessoa, titular/es dos dados pessoais neles constantes”, o CSM deveria ter permitido logo o acesso.

    Porém, “não o fez”, como escrevem os desembargadores, “recusando o acesso requerido com fundamento de que os documentos eram nominativos e, sustentando no recurso, que têm de ser cumpridos os princípios plasmados no RGPD (Regulamento Geral da Protecção de Dados], como sejam a demonstração e concretização da finalidade do acesso aos dados pessoais contidos em tais documentos e do interesse pessoal e directo no mesmo.”

    Os desembargadores concluem que o CSM não poderia ter decido assim, uma vez que o PÁGINA UM, “ao abrigo do direito de acesso a informação não procedimental, pretend[ia] saber o que consta dos documentos e não apenas os dados pessoais, não tendo aquele que observar o que consta do RGPD, mas sim na LADA [Lei do Acesso aos Documentos Administrativos], até em decorrência do disposto no artigo 26º da Lei da Protecção de Dados Pessoais.”

    O CSM foi ainda condenado a pagar as custas do processo, mas pode ainda recorrer para a última instância para o Supremo Tribunal Administrativo. Essa opção implicaria novo atraso num processo que é considerado urgente – mas que já vem de 2021 – e mais custos para o PÁGINA UM.

    Mas, se tal suceder, o CSM arrisca também perder uma quarta vez, depois de uma deliberação da CADA, de uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa e deste recente acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul.


    N.D. Os processos de intimação do PÁGINA UM só são possíveis com o apoio dos leitores. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de 18 processos em curso, o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.

  • Governo ameaça retirar utilidade pública à Associação Sara Carreira

    Governo ameaça retirar utilidade pública à Associação Sara Carreira

    A Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros confirma que a Associação Sara Carreira não tem as contas e relatórios de actividades no seu site, mas garante que analisou os documentos de 2021 (que, a ser verdade, terão então entretanto desaparecido) e coloca agora como hipótese a revogação do estatuto de utilidade pública, que lhe foi atribuído, em tempo recorde, em Dezembro do ano passado. Benefícios fiscais obtidos podem ser avultados e abrem portas a transferências de património e activos da esfera da família de Tony Carreira, uma vez que a associação tem estatutos blindados e a manutenção do secretismo nas contas eliminará questões éticas publicamente delicadas.


    A Presidência do Conselho de Ministros ameaça retirar o estatuto de utilidade pública à Associação Sara Carreira, criada em Março de 2021 pela família do cantor Tony Carreira, por esta não revelar publicamente as contas e os relatórios de actividades no seu site.

    A hipótese foi esta tarde confirmada ao PÁGINA UM pelo gabinete do Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, André Moz Caldas, que em Dezembro do ano passado concedeu o estatuto de utilidade pública, em tempo recorde, à associação fundada em memória da malograda filha de um dos mais populares cantores portugueses. Apesar da lei-quadro determinar ser necessário uma actividade efectiva de três anos para requerer aquele estatuto, Moz Caldas aceitou dispensar esse prazo mínimo por a Associação Sara Carreira “desenvolver actividades de âmbito nacional, e evidenciar, face às razões da sua existência e aos fins que visa prosseguir, manifesta relevância social”.

    Moz Caldas, secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, coloca hipótese de revogar estatuto de utilidade pública à Associação Sara Carreira.

    Mas, além desse requisito, havia outros – e ainda mais relevantes, até para evitar aproveitamentos ilegítimos face às enormes vantagens fiscais de que beneficiam as associações de utilidade, nomeadamente isenções de IRC, IMI e IMT, de pagamento de taxas para espectáculos e possibilidade de receberem donativos através da consignação de 0,5% do IRS.

    Com efeito, a lei é bastante clara sobre a exigência de transparência, salientando que as associações que solicitem o estatuto devem ter “uma página pública na Internet, acessível de forma irrestrita, onde sejam disponibilizados os relatórios de atividades e de contas dos últimos cinco anos, a lista atualizada dos titulares dos órgãos sociais e os textos atualizados dos estatutos e dos regulamentos internos”.

    Na verdade, quando foi analisado o processo da Associação Sara Carreira, ao longo de 2022, visto que obteve o estatuto em Dezembro passado, apenas existiria um ano de exercício (2021), e mesmo assim incompleto (10 meses) – e não os cinco anos explicitados pela lei-quadro.

    Tony Carreira fundou com a família a associação para homenagear a memória da sua malograda filha. Conseguiu estatuto de utilidade pública que exige transparência, que não existe.

    O gabinete de Moz Caldas garante, sem divulgar ao PÁGINA UM os documentos do processo que o atestam, que a Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros (SGPCM) “analisou as contas da Associação e concluiu que a mesma tinha contabilidade organizada e parecia ‘dispor de pessoal, infraestruturas, instalações e equipamentos, necessários para assegurar a prossecução dos seus fins e para as atividades que se propõe realizar, como revela a análise dos elementos instrutórios’.”

    Certo é que o gabinete de Moz Caldas acaba por admitir aquilo que o PÁGINA UM revelou na passada semana: as contas de 2021 (e agora também de 2022) e os respectivos relatórios de actividades não estão no site da Associação Sara Carreira. E nem foram enviados ao PÁGINA UM, conforme pedido por duas vezes à direcção da Associação Sara Carreira – que integra, além da mãe da malograda cantora, o próprio Tony Carreira e os filhos Mickael e David Carreira.

    Aliás, a ser verdade aquilo que garante agora o Governo – em tempos, o relatório de contas e de actividades do ano de 2021 esteve no site –, mais se adensa a falta de transparência de uma associação com estatuto de utilidade pública, pois assim significa que esses documentos teriam sido retirados.

    Associação Sara Carreira já começou, este ano, a capitalizar o estatuto de utilidade pública, através da possibilidade de se consignar 0,5% do IRS como donativo. Ignora-se outros benefícios já obtidos por as contas serem escondidas.

    O gabinete do secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros diz, sobre esta matéria, que, “atenta a situação reportada, de falta de publicitação, atualmente, dos elementos de atividades e contas no sítio na Internet da Associação, bem como as dúvidas relativas à autonomia financeira da Associação”, a SGPCM está a analisar a situação “para aferir se são necessárias diligências adicionais”.

    E colocam-se duas hipóteses: “em última instância, o incumprimento de deveres legais pode fundamentar a revogação do estatuto de utilidade pública (…) ou a sua não renovação”, salienta o gabinete de Moz Caldas.

    Saliente-se que, conforme o PÁGINA UM já revelou, existem ligações demasiado íntimas entre a Associação Sara Carreira e a empresa Regibusiness, a sociedade anónima da família de Tony Carreira, e que, perante as benesses de um estatuto de utilidade pública para a associação, abrem a hipótese a esquemas fiscais menos ortodoxos.

    Tony Carreira e os seus filhos David e Mickael durante um concerto de homenagem a Sara Carreira.

    Apesar da Associação Sara Carreira ter mantido silêncio às perguntas do PÁGINA UM sobre eventuais transferências de verbas ou património da Regibusiness para a Associação Sara Carreira, mostra-se evidente que os benefícios fiscais são tentadores.

    A Regibusiness – que tem uma saúde financeira robusta (com mais de 9 milhões de lucros acumulados) e opta por fazer empréstimos aos seus associados (família de Tony Carreira), em vez de fazer distribuição de dividendos (que pagaria taxa liberatória de 28%) – poderá sempre fazer doações ou donativos milionários para a associação de utilidade pública, obtendo até majorações em despesas, diminuindo assim a tributação de lucros.

    Como a família de Tony Carreira controla de forma absoluta a associação, por causa de estatutos blindados, poderia assim despender livremente desses donativos e doações, sobretudo se conseguir manter as contas e relatórios de actividades afastados de olhares indiscretos.

    right human hand

    No limite, a Associação Sara Carreira que pode evoluir facilmente para fundação, sobretudo se passar a deter património relevante, através de passagem de activos da Regibusiness, o que tornaria tudo ainda mais apetecível fiscalmente. Aquisições ou vendas de património beneficiariam de isenções, e os lucros não seriam taxados. O único óbice seria a impossibilidade de distribuir os lucros pelos sócios, mas nada impede que a associação suporte despesas dos seus dirigentes e/ ou lhe pague salários e outros benefícios.

    Obviamente, se as contas forem públicas – como exige a lei-quadro do estatuto de utilidade pública –, uma parte considerável desses expedientes (legais, mas eticamente questionáveis) seriam facilmente detectados. Esse, aliás, é o motivo principal por a legislação determinar a máxima transparência nas associações de utilidade pública. Algo que, por agora, a Associação Sara Carreira não cultiva, uma vez que nem sequer se aprestou a responder às questões e pedidos do PÁGINA UM, a que acresce a falta quase generalizada de informação financeira sobre as suas actividades. Por exemplo, ignora-se até quais os montantes das bolsas que a associações tem estado a atribuir a jovens carenciados.

  • Associação Sara Carreira não diz se empresa (bem) lucrativa de Tony Carreira é mecenas e se transferiu património para benefícios fiscais

    Associação Sara Carreira não diz se empresa (bem) lucrativa de Tony Carreira é mecenas e se transferiu património para benefícios fiscais

    Para evitar promiscuidades e uso indevido de associações para fuga a impostos, a Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública exige que haja a máxima transparência, independentemente das causas nobres que defendam. Mas para a Associação Sara Carreira, criada em memória da malograda filha de Tony Carreira, o Governo não exigiu sequer o tempo mínimo de actividade previsto na lei (três anos) nem a divulgação de contas. Assim, fica-se sem saber se a empresa familiar Regibusiness, presidida pelo próprio Tony Carreira, e que registava em finais de 2021 lucros acumulados em capital próprio de mais de 9 milhões de euros, fez alguma transferência patrimonial para a Associação Sara Carreira, de modo a beneficiar de isenções fiscais por via do estatuto de utilidade pública. Até porque, na verdade, está tudo em família: os três administradores da Regibusiness (Tony Carreira, a sua ex-mulher Fernanda Antunes, e o filho Mickael Carreira) controlam também a Associação Sara Carreira.


    A sociedade anónima controlada e presidida por Tony Carreira, a Regibusiness – Investimentos Imobiliários, obteve um lucro líquido superior a 2,2 milhões de euros entre 2019 e 2021, mas a Associação Sara Carreira recusa-se divulgar se já alguma vez recebeu qualquer donativo ou procedeu a qualquer transferência patrimonial proveniente dessa empresa.

    A Regibusiness foi criada em 2006 por Tony Carreira e a então sua mulher, Fernanda Antunes, e é formalmente uma sociedade anónima, embora detida pela família deste popular cantor. E embora tenha como objecto a gestão imobiliária, controla também a empresa de espectáculos de Tony Carreira, a Regi-Concerto, detendo 98% do capital social. A posse dos restantes 2% é de Fernanda Antunes.

    A gestão da Regibusiness e a Associação Sara Carreira é comum. Os administradores da Regibusiness são, actualmente, Tony Carreira, que preside, a sua ex-mulher, Fernanda Antunes, como administradora-delegada, e o seu filho e também cantor Mickael Carreira. Todos os três são fundadores e dirigentes da Associação Sara Carreira, integrando a sua direcção. O também cantor David Carreira é um outro dos dirigentes da Associação Sara Carreira, embora não participe na gestão da Regibusiness.

    Por via da obtenção do estatuto de utilidade pública em Dezembro do ano passado, em tempo recorde, e sem sequer necessitar de divulgar contas e relatório de actividades – algo que impediria, só por si, a possibilidade de requerer aquele estatuto –, a Associação Sara Carreira passou a usufruir de um vasto conjunto de isenções, não pagando imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) e imposto municipal sobre imóveis (IMI), impostos sobre o rendimento de pessoas colectivas (IRC) e até isenção de taxas associadas a espectáculos e eventos públicos. E também obter os proveitos da consignação de 0,5% do IRS.

    A recusa da Associação Sara Carreira em esclarecer se existem relações patrimoniais entre si e a empresa Regibusiness (ou a Regi-Concerto) não é legalmente aceitável, nem pugna pela transparência exigível para uma entidade que desenvolve causas nobres, e ademais sabendo-se estar intimamente ligada a um evento trágico.

    Tony Carreira e os dois filhos, David e Mickael Carreira. Os três são, com Fernanda Antunes, dirigentes da Associação Sara Carreira. E, com excepção de David são também administradores da lucrativa empresa familiar Regibusiness.

    Com efeito, sendo agora uma associação com o estatuto de utilidade pública, tal implicaria obrigações de transparência, nomeadamente a divulgação de contas, algo que nunca sucedeu – e tendo em consideração as vantagens que a Associação Sara Carreira detém neste momento, eventuais transferências patrimoniais a partir da Regibusiness ou da Regi-Concerto podem ser extremamente apetecíveis para obtenção de benefícios fiscais.  

    Certo é que, pela consulta dos registos oficiais, a sede da Associação Sara Carreira coincide com a da Regi-Concerto, o número 5-A da Rua Hernâni Cidade, na Charneca da Caparica. Saber se se trata de mera cedência da Regi-Concerto à associação, ou se houve transferência de propriedade não é apenas uma curiosidade jornalística.

    Se houve ou houver transferência patrimonial da esfera da Regibusiness para a da Associação Sara Carreira agora com um estatuto de utilidade pública mas estatutos blindados – um acto pacífico por ambas serem completamente controladas pela família de Tony Carreira –, as vantagens fiscais seriam avultadas. Em hipótese, passando activos da empresa para uma associação de utilidade pública, os rendimentos decorrentes desses activos passariam a estar isentos de impostos e taxas. Por exemplo, os edifícios detidos ou comprados deixavam de pagar IMI e IMT, e não haveria lugar a pagamento de IRC. Aumentando o património, o passo seguinte seria a criação de uma fundação, com ainda maiores vantagens fiscais.

    stage light front of audience

    Saliente-se que, mesmo tendo a pandemia afectado a actividade de Tony Carreira, a sua empresa familiar regista uma excelente saúde financeira, com lucros de quase 1,3 milhões de euros em 2019, de 383 mil euros em 2020 e de 600 mil euros em 2021. Ainda não estão disponíveis as contas de 2022, mas será expectável que se aproximem dos valores pré-pandemia.

    Consultando as demonstrações financeiras de 2021, a Regibusiness detinha então um capital próprio de 9,64 milhões de euros, dos quais 1,6 milhões de reservas e 5,8 milhões de resultados transitados. Ou seja, lucros acumulados que os sócios – Tony Carreira e sua família – decidiram não distribuir.

    Isto não significa que os sócios tenham prescindido de obter outro tipo de dividendos perante os bons ventos financeiros da Regibusiness. Segundo se observa pelo balanço e demonstração de resultados, usaram um esquema que, sendo legal, só se mostra exequível em sociedades onde existe confiança absoluta entre os sócios ou accionistas.

    Com efeito, estão contabilizados 1,12 milhões de euros que a Regibusiness emprestou aos seus associados, ou seja, aos membros da família de Tony Carreira. em condições e prazos que apenas dizem respeito à gestão da empresa. Em todo o caso, verifica-se que os empréstimos foram realizados sem aplicação de juros. Este expediente evita, de imediato, qualquer tipo de tributação em sede de IRS, o que sucederia se Tony Carreira e seus familiares optassem pela distribuição de dividendos.

    Além disto, a Regibusiness terminou o ano de 2021 com depósitos bancários de quase 760 mil euros, não havendo também indicação de que tenha havido qualquer transferência em dinheiro para a Associação Sara Carreira.

    Aliás, como ontem o PÁGINA UM divulgou, as contas da Associação Sara Carreira são desconhecidas, e há uma quase completa ausência de referências sobre os montantes das suas campanhas de beneficência assim como dos recebimentos dos mecenas e apoiantes. No caso das bolsas atribuídas pela associação a jovens carenciados – numa parceria com a SIC –, ignora-se qual o montante de apoio efectivo. Quanto aos mecenas, apenas se conhece o valor do donativo (100 mil euros) concedido em Fevereiro deste ano pelo Grupo DS.

    Além desta empresa, mas com montantes desconhecidos, são considerados mecenas a Missão Continente, a Altice, a Fundação Santander e a SIC, sendo também elencadas outras 12 empresas como apoiantes e seis como parceiras. A Associação Sara Carreira tem também, na realização de uma gala anual transmitida pela SIC, e num tour solidário do próprio Tony Carreira, em parceria com a Missão Continente, outras fontes relevantes de receitas.

    Quanto tudo isto envolve? Não se sabe, mesmo se a lei diz que teria de se saber, uma vez que a Associação Sara Carreira quis ter o estatuto de utilidade pública, para benefício próprio.