Categoria: Sociedade

  • Bolívia: Lítio, a força motriz do século XXI

    Bolívia: Lítio, a força motriz do século XXI

    O PÁGINA UM apresenta, em pré-publicação, o livro da autoria de Boštjan Videmšek, jornalista esloveno (que entrevistámos em Novembro passado), editado pela Perspectiva, pertencente à jornalista Patrícia Fonseca, também directora do jornal Médio Tejo. A obra é constituída por um conjunto de 10 reportagens da Noruega à Bolívia e da Escócia à China, com fotografias de Matjaž Krivic e prefácio de Filipe Duarte Santos, presidente do Conselho Nacional de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. A editora oferece um desconto especial de 20% e portes CTT aos leitores do PÁGINA UM, de forma directa e sem qualquer contrapartida para o jornal. Basta enviar um e-mail para perspectiva.livros@gmail.com com referência ao PÁGINA UM e a indicação da morada de entrega.


    Ao final da manhã, as cores ficam mais bonitas, mais intensas. Até onde a vista alcança, o branco luminoso das maiores salinas do mundo mistura-se com o azul suave dos céus límpidos sobre o deserto alpino dos Andes bolivianos. O silêncio hipnótico, bom para aliviar o peso dos pensamentos, é quebrado a espaços pelo assobio de uma brisa suave, embora decididamente fria. Os picos em redor, alguns deles com quase cinco mil metros, refletem-se nitidamente na fina camada de água da chuva que caiu pela manhã e ainda não evaporou.

    Num dia límpido, e visto de longe, o Salar de Uyuni parece uma miragem. De perto, é a constatação de um milagre. Mas poderá não permanecer assim por muito mais tempo.

    Boštjan Videmšek, na Estufa Fria, em Lisboa, durante a entrevista ao PÁGINA UM em Novembro do ano passado. (Foto: Paulo Alexandrino)

    Ao longo da margem sul do lago salgado, máquinas industriais rugem em intensa atividade. Centenas de camiões andam num vai-vem sobre a crosta salgada, chiando como animais de carga exaustos, alguns deles com trinta ou quarenta anos nas rodas. A fumaça do diesel infesta o ar fresco da montanha. No seu rasto, os camiões deixam marcadas linhas castanhas na brancura virgem do solo, fazendo com que as dezenas de quilómetros quadrados do lago pareçam uma tigela gigante de café com leite.

    Os trabalhadores perfuram o sal com equipamentos gigantes, procurando a salmoura por baixo. Alojados sob quantidades colossais de magnésio e potássio, está seu objetivo: o lítio, a fonte de energia essencial para todos os gadgets do mundo; o componente chave para sustentar todo o século XXI.

    Visualmente, a violação desta paisagem inocente e delicada tem um impacto brutal.

    Os trabalhadores, vestindo as roupas vermelhas da empresa de mineração estatal Comibol, carregam os camiões com escavadoras. A salmoura é transportada para piscinas próximas, esculpidas no meio do lago. Algumas dessas piscinas têm mais de um quilómetro de diâmetro. Vista de cima, parecem campos de arroz alienígenas, ou obras de arte pintadas por cubistas depois de uma noite de absinto.

    Para facilitar os complexos processos químicos necessários, a massa mineral é deixada ao sol durante pelo menos três meses. Quando está pronta, é processada na fábrica de lítio Planta Llipi, no que ainda é um projeto-piloto.

    No seu primeiro ano de operação, em 2016, produziu cerca de vinte toneladas de carbonato de lítio. A quantidade produzida em 2017 foi três vezes maior.

    Embora estas quantidades possam parecer insignificantes num panorama mais amplo, acredita-se que as profundezas das maiores salinas do mundo contenham as maiores reservas de lítio do mundo. Segundo algumas estimativas, os Andes bolivianos contêm 70% do lítio do planeta, e vários estudos têm sido feitos para corroborar essas alegações. De acordo com o mais otimista, 140 milhões de toneladas de lítio podem estar disponíveis no Salar de Uyuni, enquanto o mais pessimista – do Serviço Geológico dos EUA – considera existirem “apenas” nove milhões de toneladas.

    Vastas quantidades de lítio também foram detectadas no fundo dos oceanos do mundo. Por isso o setor da mineração, uma das indústrias mais destrutivas do planeta, já anda a olhar para os mares à procura de novas oportunidades de investimento. Mas os planos de conquista marítima ainda estão longe de poderem concretizar-se.

    Uma impressão semelhante – a de um longo caminho ainda a ser percorrido – pode ser sentida na fábrica piloto de lítio de Llipi. A central está localizada nas margens do Rio Grande, de cor castanho-avermelhada. A sua pedra inaugural foi colocada pelo ex-presidente da Bolívia, Evo Morales, derrubado num golpe de Estado com ligação aos negócios do lítio, em 2019.

    O incendiário socialista lançou a obra com muita pompa e retórica visionária. Em 2010, Morales fez previsões de grande esperança para a Bolívia e o “petróleo do século XXI” inspira a sua visão, considerando haver na exploração do lítio uma oportunidade única para corrigir uma série de erros históricos.

    Logo após a sua ascensão ao poder, Morales nacionalizou todos os recursos naturais – desde o petróleo, passando pelo gás natural, até todos os tipos de minerais existentes. Os recursos naturais, por tanto tempo classificados como uma maldição para o povo boliviano, iram ser finalmente uma grande vantagem, o motor da economia nacional e de todos os programas sociais que Morales prometia implementar.

    No entanto, até agora essa visão idealista não se concretizou. Para começar, porque a Bolívia não tem pessoal suficientemente qualificado para explorar de forma optimizada as suas riquezas naturais. Por outro, a economia mundial tornou-se tão agressivamente globalizada que é impossível prosperar fora do sistema, pelo menos no que diz respeito aos mercados de metais, minerais e combustíveis fósseis.

    “A Bolívia vê o lítio como um dos seus grandes projetos estratégicos. Estamos bem cientes do que uma expansão significativa do mercado nos pode trazer”, diz Miguel Parra, diretor de produção da fábrica de Llipi.

    Parra recebe-nos no seu escritório, nas margens das grandes salinas, informando-nos que o projeto-piloto está prestes a terminar. Em abril de 2018 foi concluída uma nova fábrica de lítio, construída no próprio lago, e o colossal projeto governamental de extração de lítio entrou na sua segunda fase.

    Era óbvio que os gestores da empresa estatal estavam com pressa. O mercado de carbonato de lítio está em crescimento acelerado e as previsões indicavam que poderia facilmente triplicar nos cinco anos seguintes. Compreensivelmente, o preço também continua a aumentar: o lítio ainda é o componente para baterias mais eficiente de todos, de longe. Não só alimenta os nossos telemóveis e laptops, mas também painéis solares, robôs e, claro, veículos elétricos. Especula-se, aliás, que o destino de toda a empreitada boliviana de exploração do lítio depende do sucesso dos carros elétricos.

    Mas voltaremos a este ponto mais tarde.

    “Este é um projeto do Estado”, explica Miguel Parra. “Tudo é dirigido a partir de La Paz. Concordo que estamos a progredir devagar. Mas não há outra forma. Já foi muito trabalho concluído, e ainda há muito mais a fazer. Todo o desenvolvimento da tecnologia mundial pesa sobre os nossos ombros. O processo de extração no Salar de Uyuni é muito mais complicado do que na vizinha Argentina ou Chile. Nesses países, os lagos salgados estão localizados em altitudes mais baixas, com um clima mais seco. E o lítio lá está ‘preso’ sob consideravelmente menos magnésio e potássio do que o nosso aqui”, explica.

    Um observador crítico poderia notar que o processo de produção na central piloto estava a decorrer num ritmo bastante descontraído. Nem um único quilómetro das estradas à volta do Salar de Uyuni está sequer pavimentada. Durante a nossa visita, três jovens soldados e dois cães vadios constituíam a equipa de segurança que guardava o maior projeto estratégico da história daquele país. Com um pouco de coragem, seria possível dirigir um veículo todo-o-terreno pelas salinas e entrar pelas piscinas artificiais e as plataformas de teste. É verdade que seria um pouco mais difícil chegar à recém-construída central 2.0 – mas apenas por causa de toda a água que a circunda.

    A central nova e melhorada é facilmente visível ao longe, em desarmonia com a beleza magnífica do lago. A área de produção pode ser alcançada através de uma longa estrada deserta, sem postos de controle, que se estende pelas pastagens das omnipresentes vicunhas, mamíferos típicos dos Andes. Juntamente com o grão de quinoa, rico em proteínas, estes ruminantes vivazes e sempre inquietos constituem ainda a base da subsistência da população local.

    A fábrica de Llipi empregava 250 pessoas em 2017, a maioria trabalhadores manuais. Há poucos especialistas em processamento de lítio na central – quase não existem no país.

    No entanto, o sentimento de sonho e irrealidade que envolve este projeto não significa que a Bolívia está adormecida. Pelo contrário: o parlamento boliviano criou a Empresa Pública Nacional Estratégica de Recursos Evaporíticos, com a missão especial de gerir a produção de lítio. O seu diretor está autorizado a assinar contratos com empresas privadas, nacionais ou estrangeiras.

    O mercado boliviano de lítio está claramente a abrir-se ao mundo. Os chineses não são os únicos a manifestar interesse; japoneses, alemães, suecos, franceses, suíços, coreanos e canadianos foram rápidos a pôr-se em campo. Segundo as nossas fontes, a gigante elétrica americana Tesla também quer participar no projeto boliviano. A bateria do Model S da Tesla requer cerca de 54 quilos de carbonato de lítio, semelhante ao que é necessário para alimentar cerca de 10.000 baterias de telemóvel.

    No seu relatório de 2017, o fundo de investimentos Goldman Sachs designou o carbonato de lítio como “a nova gasolina”. Também previu que, até 2025, o mercado de lítio irá triplicar, com uma procura anual na ordem das 470.000 toneladas.

    O relatório alerta corajosamente que o simples aumento de 1% na produção de veículos elétricos poderia aumentar a procura de lítio para mais de 40% do que existe disponível com a produção atual. A Bolívia pode entrar no mercado no momento ideal?

    “A FMC, meus antigos empregadores, tentou explorar o Salar de Uyuni no final dos anos 80 e início dos anos 90”, lembra Joe Lowry, diretor da empresa Global Lithium e um dos maiores especialistas mundiais em lítio (apelidado pelos seus seguidores no Twitter como “Mr. Lithium”).

    “O caos governamental e a infraestrutura precária apresentavam demasiados problemas e a empresa optou por criar explorações na Argentina. Trinta anos depois, a Bolívia ainda carece de infraestruturas básicas, bem como do tipo de governo com o qual os investidores possam sentir-se confortáveis.”

    Embora cético em relação à possibilidade de a Bolívia ser uma história de sucesso na exploração do lítio, Lowry não duvida que os mercados de carbonato de lítio e baterias de lítio estão prestes a explodir. O aumento no consumo de baterias está fortemente ligado a um boom nos transportes elétricos, do qual os automóveis são apenas os precursores. “Grande parte da população mundial viaja diariamente em autocarros”, lembra Lowry, e os “bens de compras online também serão cada vez mais entregues por veículos elétricos automatizados”.

    Joe Lowry prevê que o aumento da procura nos mercados de lítio terá sérias consequências geoestratégicas. Os conflitos armados não estão fora de questão. “Argentina e Chile continuarão a ser os dois principais players, com a Bolívia certamente a ter o seu crescimento também, mas o frenesim da produção de lítio vai-se espalhar por África.”

    Até agora, os chineses foram os únicos que os bolivianos deixaram entrar no seu grande projeto nacional. A Bolívia e a China mantêm relações amigáveis há muito tempo e o presidente socialista da Bolívia vê a abertura de uma porta para Pequim como um movimento anti-imperialista.

    salar de uyuni in Bolivia

    Nos últimos quinze anos, a China tem vindo a acumular concessões para a exploração de riquezas naturais por todo o terceiro mundo. A agilidade ideológica da China casou com a ganância descarada de muitos líderes latino-americanos e africanos. O impacto no meio ambiente desta investida chinesa não foi menos ruinoso do que o das corporações americanas e europeias.

    Em setembro de 2016, a China foi destinatária da primeira entrega de exportação de lítio da Bolívia. Uma remessa simbólica, de 15 toneladas de carbonato de lítio que, segundo as nossas fontes, foi vendida por 9.200 dólares por tonelada.

    Miguel Parra, diretor de produção da central de Llipi, diz-nos que cerca de 90% da produção de lítio é vendida para a China. Uma pequena quantidade é enviada para a Suécia, e o restante é entregue numa fábrica chinesa de baterias de lítio, em Potosi. Miguel Parra não prevê que a proporção da distribuição mude muito nos próximos anos.

    A parte central da Alemanha Oriental foi o centro mineiro da antiga República Democrática Alemã. A par do impacto da indústria química, séculos de mineração devastaram o meio ambiente e degradaram centenas de quilómetros quadrados de solo, que deixaram de poder ser utilizados para a produção de alimentos.

    Um bom quarto de século após a reunificação da Alemanha, a área em redor de Sondershausen, onde costumava operar a maior mina de sal do mundo, está quase deserta. Nas cidades e vilarejos da região vivem sobretudo idosos, muitos deles mineiros aposentados. As gerações mais jovens partiram para as grandes cidades ou para a Alemanha Ocidental. As aldeias desta zona, com as suas excursões organizadas às minas fechadas, emanam um bafo de nostalgia comunista.

    O local e o ambiente não poderia ser mais diferente dos Andes bolivianos. No entanto, os dois lugares têm algo em comum: à medida que as pessoas foram embora, a indústria das energias renováveis tomou conta deles, em grande estilo.

    black and white car door

    Intermináveis quilómetros quadrados de prados e lotes de fábricas abandonadas estão agora repletos de painéis solares. As turbinas eólicas tornaram-se um elemento omnipresente na paisagem.

    “Esta região está a viver uma revolução tecnológica, embora isso possa não ser óbvio a olho nu”, explica Heiner Marx na sede da empresa K-UTEC, em Sondershausen. Marx é diretor administrativo e proprietário maioritário da empresa que se considera herdeira do que, antes da queda do Muro de Berlim, era um dos maiores conglomerados de mineração e indústria química da Alemanha Oriental.

    Nesses tempos, empregavam 24.000 pessoas. Hoje – após a sua privatização em 1992, e a sua transformação em empresa pública em 2008 – a empresa tem apenas 100 trabalhadores, a maioria engenheiros e cientistas altamente qualificados. Em comum com o ex-gigante da mineração só mesmo a sua localização, e a tarefa de fechar aquela que chegou a ser a maior mina de potássio do mundo (o processo envolve o enchimento das gigantescas câmaras escavadas e que se estendem por quilómetros intermináveis, num submundo totalmente degradado).

    Atualmente, a K-UTEC é uma empresa que investiu em engenharia e no desenvolvimento de tecnologia de mineração e química, consolidando a sua presença no comércio global de carbonato de lítio.

    É a única empresa europeia a ter participado ativamente na pesquisa para a escavação e extração de carbonato de lítio dos Andes bolivianos. “Em 2012, as autoridades bolivianas iniciaram uma licitação pública para um parceiro de engenharia na área da pesquisa e produção de lítio. Decidimos candidatar-nos e acabámos por vencer”, explica Heiner Marx.

    Cinco anos depois, com o comércio global de lítio a aquecer, os projetos bolivianos estavam ainda muito atrasados. Apesar de todas as projeções otimistas e do crescimento do mercado global, quase não avançaram.

    “Os bolivianos pediram-nos ajuda e demos-lhes alguns conselhos. Em novembro de 2015, apresentámos ao presidente Evo Morales o plano de formação do pessoal-chave de engenharia. A Bolívia tem uma escassez crónica de quadros e, com a nossa proposta, o governo alemão arcaria com todas as despesas de educação. No entanto, até agora não recebemos resposta de La Paz. Acho isso muito difícil de explicar. Enquanto esperamos por uma palavra da Bolívia, estamos a tentar otimizar o processo de evaporação utilizado no Salar de Uyuni”, revela o empresário e cientista alemão.

    Depois de várias visitas aos Andes bolivianos, Heiner Marx acredita que a Bolívia precisaria de pelo menos cinco anos de preparação antes de poder transformar-se num grande player nos mercados globais de lítio.

    “É como se os bolivianos estivessem a tentar chegar à Lua ainda antes de construirem um foguetão”, ironiza o alemão, abanando a cabeça. “Para fazer qualquer coisa, vão precisar de pelo menos 700 a 1.000 pessoas altamente qualificadas no Salar de Uyuni. Concordo que é uma oportunidade maravilhosa para eles e por isso mesmo não deveriam desperdiçá-la! Aquela área não é apenas rica em lítio, não esqueçamos o magnésio e o potássio… O potencial é realmente incrível.”

    Quanto a preocupações ambientais com os avanços da extração de lítio no Salar de Uyuni, considera-as infundadas, no nível em que a Bolívia consegue atualmente trabalhar. “A produção está limitada à parte menor e ao sul do lago salgado e não exigirá grandes quantidades de água de outras indústrias. Pelo menos por enquanto.”

    A K-UTEC pretende continuar a desenvolver a tecnologia para a produção de carbonato de lítio, independentemente do que aconteça na Bolívia. A empresa já está presente em sessenta países diferentes, participando em praticamente todos os grandes projetos de lítio no mundo: incluindo na Austrália, atualmente o maior produtor no planeta, Estados Unidos, China, além da Argentina e Chile – ambos rivais diretos da Bolívia.

    O mundo avançou na direção da mobilidade elétrica e já não há volta atrás. Neste contexto, não pode haver progresso sem lítio. “É claro que também estão a ser desenvolvidas soluções alternativas. Mas vão ser precisos muitos anos até que o lítio venha, porventura, a ser destronado”, garante Marx.

    “O planeta tem lítio de sobra para responder às necessidades, principalmente se for levada em conta a possibilidade de reciclagem. O mais difícil é tirar os projetos do papel. Depois disso, fica tudo muito mais fácil. O processo de extração de carbonato de lítio precisa de ser otimizado e o custo tem de ser reduzido. Existe uma correlação direta com os preços dos carros elétricos, que ainda são proibitivamente altos. A infraestrutura necessária também é um problema – sobretudo no que diz respeito ao carregamento de baterias, que permanecem relativamente pesadas e não são assim tão eficientes. E depois temos também a questão da vontade política… A guerra pela sobrevivência dos ainda lucrativos projetos de combustíveis fósseis está sempre presente. Mas as fontes renováveis de energia vão acabar por prevalecer: na Europa, na China, nos Estados Unidos. Todos vamos ser forçados a aceitá-lo”, prevê o empresário alemão.

    Boštjan Videmšek com o fotógrafo Matjaž Krivic.

    Até porque a economia verde vai ser também um domínio dos gigantes globais da energia que até hoje lucraram com a produção de combustíveis fósseis. Há novos atores no mercado, mas o negócio vai continuar a ser controlado pelos “antigos senhores”. Tal como na indústria automobilística, mesmo em parceria com alguns fabricantes chineses e coreanos, serão as maiores empresas de hoje a dominar o mercado de carros elétricos amanhã.

    A maioria dos habitantes dos pueblos nas vizinhanças do Salar de Uyuni não conhece o projeto nacional que ali está em andamento. Isolados do resto do mundo, vivem num vácuo informativo quase perfeito. Da melhor forma que podem, cuidam das suas vidas humildes e despretensiosas. Cultivam quinoa e levam lamas a pastar, sendo a desumanidade das suas condições de vida apenas aliviada com grande resiliência e espírito positivo.

    “Vivemos a algumas centenas de metros do lago e a poucos quilómetros do local onde o lítio é produzido”, constata Luisa Flores de Laso, uma mulher tradicionalmente vestida, na sua pequena cozinha desarrumada. “Mas ninguém veio alguma vez dizer-nos o que estava a acontecer, nem o que a produção de lítio pode significar para nós. Definitivamente, não estamos ansiosos pelo sucesso da produção. Temos a certeza de que, como sempre, a população local não vai sair realmente beneficiada.”

    Esta alegre e robusta mulher de cinquenta anos costumava administrar um hotel na pobre Villa Candelaria. Agora, com o marido Eustácio, sobrevive com biscates na construção civil. Ambos temem o impacto da nova fábrica na população local, cuja sobrevivência depende quase inteiramente da agricultura.

    “Não vemos chuva há dois anos!”, dizem-me vários aldeões. “Isso custou-nos a safra de quinoa deste ano, cujo preço já está abaixo do que era há quatro anos. Os lamas também sofreram muito. A agricultura é tudo o que temos… Os jovens foram embora. O que será de nós se a produção de lítio poluir os nossos terrenos?”

    Os filhos de Luísa e Eustácio trabalharam algum tempo para a Comibol, no projeto de lítio. Para sermos mais precisos, foram contratados por uma das muitas empresas privadas subcontratadas pela empresa estatal. O mais velho dos irmãos ainda ganha a vida a preparar refeições para os funcionários da fábrica-piloto. O mais novo, soldador das sondas de perfuração, atirou a toalha ao chão há dois anos, desanimado com um ordenado inferior a 400 euros por mais de 12 horas de trabalho diário.

    “Os chineses pagam mais – 1.200 euros por mês”, explica Luisa Flores de Laso. “Mas não têm trabalho para os meus filhos, para mim ou para o meu marido. Só estão interessados em ‘especialistas’.”

    Eustácio, de 51 anos, explica que no início não se opunha à produção de lítio e defendia que os moradores deveriam ser envolvidos no projeto e ter ali trabalho na construção e na manutenção da fábrica.

    “Percebo bem a necessidade de especialistas!”, diz agora, com veemência. “Mas poucos podem ser encontrados neste lugar triste e abandonado por Deus. Há muito trabalho manual para ser feito, e os locais deviam ser os únicos a fazê-lo. Também acho que os representantes da empresa deveriam vir aqui e explicar-nos os riscos ambientais da produção de lítio.”

    Eustácio Laso conta que pessoal da Comibol já esteve em Villa Candelaria – mas com o único objetivo de levar a sua água. “Vieram aqui há seis meses e disseram-nos que precisavam de água para a fábrica. Fizeram alguns testes e informaram-nos que estavam prontos para começar a bombeá-la. Bem dissemos que mal temos água suficiente para nós… Mas não quiseram saber. Responderam que a água não era nossa, mas do Estado.”

    Eustácio cerra os punhos com indignação. “Se perdemos a água, perdemos tudo! Podemos ser forçados a deixar as nossas casas. Não podemos permitir que isso aconteça!”

    A charmosa vila de Colcha-K é a capital da província de Nor Lipez, no sul do Salar de Uyuni. É também a sede local da produção de carbonato de lítio.

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    Se tudo correr como planeado, em poucos anos o dormente pueblo de hoje irá transformar-se numa espécie de Dubai ou Doha, numa versão mais pequena e menos ostensiva. Passeando pelas suas ruas de pedra, cumprimentando estudantes e velhos pacatos, é difícil imaginá-lo. No entanto, “o combustível do futuro” vai deixar marcas indeléveis no desenvolvimento de toda a região.

    Atualmente, destacam-se três lugares na pitoresca vila, localizada perto de uma importante base militar: a igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, o campo de futebol com relvado artificial e a sede do governo regional – o maior e mais brilhante edifício num raio de 100 quilómetros. O gigantesco prédio do governo é encimado pela estátua de um flamingo, celebrando o pássaro místico de pescoço comprido que tradicionalmente passa vários meses por ano no Salar de Uyuni. Mas desde que começaram as grandes obras no lago, a presença das emblemáticas aves cor-de-rosa na região sofreu uma queda alarmante.

    “Até os pássaros perderam a sensação de paz!”, desabafa um dos moradores, revoltado. Mas este é apenas um prenúncio do que está por vir.

    “Olhamos para o lago e ficamos com medo”, diz Grover Baptista Ali, secretário-geral da província de Nor Lipez. “Vemos todas as escavações e perfurações, camiões por todo o lado… e a beleza de Salar a perder-se, a ficar irreconhecível.”

    Como membro do partido da oposição, o escritório de Baptista Ali – diferente de quase todos os outros onde entrei na Bolívia – está totalmente despido da parafernália de Evo Morales. É tão raro que salta à vista. Através de todas as espécies possíveis de bustos, retratos, posters, grafittis e outros subgéneros da arte de rua, o impetuoso presidente socialista está omnipresente em todo o lado. Afinal, é este o homem que vaticinou um novo amanhecer para toda a América Latina. No entanto, doze anos depois, os primeiros raios de sol só alcançaram ainda alguns (poucos) afortunados.

    O partido de oposição de Baptista Ali detém o poder na região de Nor Lipez. “Nem me passa pela cabeça contestar que o lítio representa uma grande oportunidade para toda a economia boliviana. É uma oportunidade que não podemos perder. Mas não devemos deixar que o governo de La Paz roube todos os lucros. As receitas do lítio devem ser distribuídas igualmente, como as receitas geradas pela produção de chumbo e zinco nas proximidades de San Cristobal. De acordo com a lei, a comunidade local tem direito a uma percentagem de quinze por cento. O resto vai para o governo regional de Potosí e, claro, para as autoridades centrais, e dez por cento devem ser reservados para limpeza ambiental. Em 2016, a Bolívia faturou cerca de 1,2 milhão de euros com as vendas de lítio. E nós aqui não vimos nem um único centavo! Nem um centavo!”

    Baptista Ali expressa de forma veemente a sua opinião: em suma, que o projeto de produção de lítio tem sido, até agora, apenas um dreno para a região.

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    É difícil ignorar a sensação de que o jovem político fala de forma muito menos entusiasta sobre as consequências ambientais da exploração de lítio do que sobre todas as receitas ainda não direcionadas para a comunidade de Colcha-K. Mas isso não é imperdoável – a região permanece escandalosamente subdesenvolvida e como poderia, certamente, utilizar essas verbas para construir escolas, hospitais, estradas e outras infraestruturas básicas.

    “Assim não temos motivos para nos entusiasmarmos com o lítio… Estas novas empresas têm pouca necessidade do nosso pessoal, estão interessadas quase exclusivamente em especialistas. Então porque que não investir num instituto especial, onde a população pudesse ser formada para trabalhar nas fábricas de carbonato de lítio? Por que não abrir uma ‘zona industrial’ diferente? Precisamos de dar um passo à frente! Somos totalmente dependentes da agricultura e do turismo. A nossa agricultura precisa de água, e há cada vez menos, a cada ano que passa. A região está a secar rapidamente por causa das alterações climáticas. Produzimos cada vez menos quinoa, e outros fatores também fizeram com que o seu preço caísse. O mesmo vale para os lamas”, explica o secretário-geral.

    Como praticamente todos com quem conversei, Baptista Ali é peremptório: a água é absolutamente chave em tudo.

    “Já deveria ter soado algum tipo de alarme”, diz. “A fábrica de Llipi está a entrar no Rio Grande, que praticamente já secou. A água que resta está completamente poluída. Mal ouso imaginar o que pode acontecer quando o projeto for ampliado.”

    A cada três meses, as autoridades locais recebem um relatório da empresa estatal de produção de lítio. “Informam-nos sobre o que estão a fazer e como isso está a impactar o meio ambiente. Mas é mais ou menos uma formalidade burocrática, desprovida de qualquer significado real. Eu espero que, no final, toda a Bolívia possa lucrar com isto – mas tenho muito medo que a história se repita novamente. Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para evitar que isso aconteça. Em breve, os 45 representantes do governo local da região do Salar de Uyuni vão reunir-se. Depois de nos organizarmos, vamos direto para La Paz!”

    Nem todos se sentem deixados para trás pelo governo central. A pouco menos de dez quilómetros da fábrica de Llipi fica a pequena cidade de Rio Grande, que vive um verdadeiro florescimento – se é que esse termo pode ser aplicado ao local frio e basicamente acimentado que serve de posto avançado para camionistas.

    Rio Grande tem aproximadamente 650 moradores e 500 camiões. Muitas das famílias locais possuem dois camiões, que é o limite legal. Praticamente todos os homens adultos da aldeia conduzem pesados. Unidos sob a bandeira da cooperativa local DELTA Rio Grande, estão a colaborar com a Comibol.

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    Tudo nesta cidade estranhamente monótona e estéril – na verdade, pouco mais que um enorme estacionamento para camiões – é adaptado às necessidades da produção de lítio. O único estabelecimento que oferece hospedagem aos visitantes chama-se “The Lithium Hostel”.

    Juan Carlos Ali, 44 anos, é um dos 250 camionistas que passaram os últimos cinco anos a transportar “ouro branco” para o governo. Até 2015, o seu trabalho consistia basicamente no transporte de material de construção e terra. Depois a Comibol começou a cavar piscinas de evaporação… e o futuro começou a parecer ainda mais brilhante para os condutores.

    “Estou a dar-me bem, muito bem”, diz o robusto e atarracado Juan Carlos, ao lado da sua camioneta azulada e ferrugenta. “Estou a ganhar mais dinheiro do que em qualquer outro lugar. Há muito trabalho para os camionistas aqui. E os turnos são distribuídos de forma justa entre nós. A cooperativa está a cuidar bem das nossas necessidades. Se fosse com uma empresa privada, as coisas seriam diferentes.”

    Perguntei ao homem bem-disposto e falador se percebia o quão importante o lítio poderia tornar-se para a sua terra natal. Mas Juan Carlos apenas balançou a cabeça, sem vontade de responder. “Eu não sei nada sobre isso. Só sei que a fábrica de Rio Grande é uma verdadeira benção. Enquanto os trabalhos continuarem a dar de comer a quem aqui vive, por mim está tudo bem. Só espero que as coisas venham a ser assim nas outras cidades e vilas por todo o Salar.”

    O sol flamejante põe-se lentamente sobre as maiores salinas do mundo. Vastas e negras sombras, de aparência ameaçadora, descem sobre o chão branco resplandecente. Um vento gelado começa a ganhar força, cortando até ao osso.

    “A nossa derrota esteve sempre implícita na vitória dos outros; a nossa riqueza sempre gerou a nossa pobreza ao nutrir a prosperidade de outros impérios. Na alquimia colonial e neocolonial, o ouro transforma-se em sucata e a comida em veneno.”

    As palavras do grande escritor uruguaio Eduardo Galeano, descrevem o que tem acontecido ao seu continente, no livro América Latina: Cinco Séculos de Pilhagem”.

    Como será o Salar de Uyuni daqui a cinco anos? O que irá o “ouro branco” fazer da Bolívia?

  • Indiferente a polémicas, “Sound of Freedom” já facturou mais de 100 milhões de dólares

    Indiferente a polémicas, “Sound of Freedom” já facturou mais de 100 milhões de dólares

    Ainda sem data para estrear em Portugal, nos cinemas nos Estados Unidos o filme independente “Sound of Freedom” ultrapassou, em apenas três semanas, os 100 milhões de dólares de receita nas bilheteiras. Inspirado em acontecimentos reais, sobre o resgate de crianças vítimas de redes de tráfico sexual de menores, o filme foi bem recebido pela crítica e em vendas de bilhetes tem estado sempre no Top 3 dos mais vistos nos cinemas norte-americanos em Julho, rivalizando com filmes como a última sequela de “Indiana Jones”. O sucesso do filme contrasta com notícias negativas publicadas por alguma imprensa mainstream que, ainda assim, não travam este verdadeiro blockbuster de Verão. Sérgio Saruga, da distribuidora Pris Audiovisuais, diz que “há filmes mais polémicos na Netflix” e não exclui que pode vir a conseguir ter o filme em exibição em Portugal. Paulo Trancoso, presidente da Academia Portuguesa de Cinema, apela a que o filme seja visto como um filme, “despido” de polémicas.


    É um caso de sucesso de bilheteira nos Estados Unidos e rapidamente se tornou no filme sensação do Verão no país. Em apenas três semanas, “Sound of Freedom” , um filme baseado em eventos reais e protagonizado pelo actor Jim Caviezel, alcançou os 100 milhões de dólares de receita nas bilheteiras.

    Concluído em 2018, o filme foi colocado na prateleira pela Walt Disney Studios e acabou por ser comprado pela Angel Studios, uma distribuidora de filmes independente e plataforma de streaming que é orientada para conteúdos baseados na fé. Viu a luz do dia no dia 4 de Julho, data em que estreou no grande ecrã nos Estados Unidos.

    Apesar do seu orçamento de 14,5 milhões de dólares, o filme tem estado sempre no Top 3 dos filmes mais vistos nas salas de cinema do país rivalizando com filmes como a mais recente sequela de “Indiana Jones“, dos estúdios Disney.

    Uma cena do filme “Sound of Freedom”, com o actor Jim Caviezel como principal protagonista.

    O filme chegou a 3.285 salas de cinema, menos do que as 4.600 em que é exibido “Indiana Jones e o marcador do destino”. Mas, ao contrário do novo filme da saga “Indiana Jones”, o filme “Sound of Freedom” ainda não pode ser visto no grande ecrã em Portugal.

    A distribuidora Angel Studios adquiriu os direitos mundiais do filme e é provável que vá disponibilizar “Sound of Freedom” na sua plataforma de streaming.

    Em Portugal, a NOS indicou ao PÁGINA UM que não vai ter o filme em exibição nas suas salas. Segundo uma porta-voz da NOS, o filme não consta na sua lista de estreias, “para já até ao final do ano”.  Também a UCI não tem agendada a exibição do filme nas salas em Portugal.

    Cartaz a anunciar o filme que estreou no dia 4 de Julho nos cinemas nos Estados Unidos.

    Mas ainda há esperança para os cinéfilos portugueses que desejam assistir ao filme no grande ecrã. Um dos distribuidores de filmes em Portugal, a Pris Audiovisuais, não desistiu de trazer “Sound of Freedom” para ser exibido no país.

    Segundo Sérgio Saruga, da Pris Audiovisuais, as negociações para trazer o filme para Portugal ainda podem chegar a bom porto. Saruga indicou ao PÁGINA UM que “o filme ainda não tem distribuidor em Portugal mas os seus resultados nos Estados Unidos são bastante bons”, admitindo a possibilidade de vir a distribuir a película no país.

    Realizado e co-escrito por Alejandro Monteverde, “Sound of Freedom” relata a história verídica do agente Tim Ballard, que fundou a organização de combate ao tráfico sexual Operation Underground Railroad.

    O filme pertencia à 20th Century Fox mas esta foi comprada pela Disney, que acabou por colocar o filme na prateleira.

    Monteverde afirmou em entrevista que o adiamento até foi uma benção. “Para mim, este é o timing perfeito”, disse à Bounding Into Comics. “Eu acredito que se este filme saísse mais cedo, eu não acho que o público estava pronto. Neste momento, infelizmente, há publicidade para este filme, mas do lado errado. Todos os dias há estas atrocidades a acontecer nos noticiários por todo o lado. Crianças traficadas. Abusaram sexualmente de crianças por todo o lado.”

    Paulo Trancoso, presidente da Academia Portuguesa de Cinema, realçou que o filme “criou alguma expectativa”. “O filme vem bem classificado pela crítica e no IMDb tem uma classificação de 80%, o que é muitíssima qualidade, thriller bem feito”.

    A actriz Mira Sorvino numa cena do filme.

    Apesar de ter muito boas críticas e do sucesso de bilheteira, “Sound of Freedom” tem sido alvo de notícias negativas em alguma imprensa mainstream, como o The Guardian, que têm tentado colar o filme à direita e aos conservadores norte-americanos e ao fenómeno conspirativo QAnon – ligado a seguidores do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump. Entre os argumentos lidos em notícias negativas estão declarações públicas controversas de Caviezel.

    As notícias negativas surgem num contexto crescente da grande divisão que se assiste nos Estados Unidos, a que a imprensa mainstream não escapa, em que a generalidade dos temas são “arrumados” em “esquerda-direita”, “democratas-conservadores”.

    Sérgio Saruga, da Pris Audiovisuais, que assistiu a “Sound of Freedom”, “em Cannes, num circuito paralelo” disse que “há filmes bem mais polémicos na Netflix”. “Vejo que o filme pode ser mais polémico em outros países do que em Portugal”, adiantou.

    Paulo Trancoso destacou que, nos Estados Unidos, “estamos a falar de um país e uma sociedade divididos ao meio, em termos políticos”. Neste caso, disse, essa divisão acaba por “ajudar à notoriedade do filme”. Mas Paulo Trancoso defendeu que “o filme deve ser despido para ser visto como um filme de entretenimento”. “Tem que ser visto como um filme”, frisou.

    Certo é que, o público tem recebido bem o filme e, apesar das notícias negativas de alguma imprensa mainstream, as receitas deste blockbuster de Verão não param de crescer.

    E, numa sociedade norte-americana profundamente dividida ideologicamente, este filme independente arrisca não só acumular mais ganhos financeiros, como também tornar-se um exemplo de quão profunda se tornou a divisão na sociedade norte-americana, quando até um filme anti-tráfico sexual de crianças é visto como apenas mais um alimento para reforçar essa divisão.

  • Promiscuidades com farmacêuticas: Filipe Froes está a um mês de beneficiar de prescrição

    Promiscuidades com farmacêuticas: Filipe Froes está a um mês de beneficiar de prescrição

    Falta apenas um mês para o pneumologista Filipe Froes se livrar de um castigo pelas suas ligações alegadamente à margem da lei com as farmacêuticas. Apesar de todas as evidências e proveitos mensais acima dos 4.000 euros, um dos “rostos da pandemia” está quase a ver o seu processo disciplinar arquivado por prescrição, sob a forma de “veto de gaveta”. A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) começou por investigar Froes em Setembro de 2021, e decidiu em Fevereiro do ano passado instaurar-lhe um procedimento disciplinar. Mas, aparentemente, tudo serviu afinal para colocar um manto de esquecimento e segredo. Ao fim de 17 meses, nem sequer se concluiu a fase de instrução, e a prescrição está a caminho. Sem castigo. O inspector-geral da IGAS não dá explicações, mas o PÁGINA UM continua a lutar nos tribunais para conhecer os meandros desta (muito) provável prescrição.


    A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) não concluiu ainda sequer a fase de instrução do procedimento disciplinar contra o pneumologista Filipe Froes, que se iniciou em 19 de Fevereiro do ano passado, e que, por isso, deverá manter-se secreto, incluindo o relatório de averiguações que o antecedeu. Esta é a decisão de uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa à intimação colocada pelo PÁGINA UM para a aceder, pelo menos, ao relatório de averiguações que decorreu entre Setembro de 2021 e Fevereiro de 2022.

    A consequência imediata será a prescrição no próximo dia 19 de Agosto deste processo, e o respectivo arquivamento sem qualquer penalização para um dos “rostos públicos” da luta contra a covid-19, mas também um dos médicos com maiores e mais promíscuas ligações comerciais com as farmacêuticas, muitas das quais com chorudos negócios associados à pandemia.

    Filipe Froes (ao centro) foi mandatário da candidatura de Carlos Cortes (quarto à esquerda), actual bastonário da Ordem dos Médicos.

    Na base da instauração de um processo disciplinar a Filipe Froes estiveram, e estão, as suas relações com a indústria farmacêutica, que mereceram em Setembro de 2021 um processo formal de averiguações por parte da IGAS, então revelado pelos semanários O Novo e Expresso, por fortes indícios de irregularidades e/ ou ilegalidades nas parcerias entre farmacêuticas e aquele pneumologista.

    Apesar de trabalhar em exclusividade no Serviço Nacional de Saúde (SNS), Filipe Froes é um dos médicos portugueses com maiores relações com as farmacêuticas, que aumentaram com a sua exposição pública no decurso da pandemia.

    Além de coordenar uma unidade de cuidados intensivos do Hospital Pulido Valente, este pneumologista também liderou o Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos para a Covid-19 e é ainda consultor da Direcção-Geral da Saúde (DGS), participado activamente na elaboração de normas técnicas relacionadas com a pandemia. Foi também mandatário da lista de Carlos Cortes, o actual bastonário da Ordem dos Médicos.

    Froes foi também um grande promotor do uso e da compra pelo Estado de antivirais e anticorpos monoclonais, como o molnupiravir, da Merck Sharp & Dohme, recentemente retirado do mercado por se ter confirmado que afinal era completamente ineficaz.

    Carlos Carapeto, inspector-geral das Actividades em Saúde, instarou um processo disciplinar depois de um relatório que detectou ilegalidades contra Filipe Froes. Mas aparentemente “engavetou” o processo, porque ao fim de 17 meses nem sequer se concluiu a fase de instrução. Tudo prescreve daqui a um mês.

    Este ano, também se soube que Filipe Froes recebeu 750 euros da farmacêutica da AstraZeneca apenas por ter participado na sessão de lançamento do Evusheld, um fármaco constituído por anticorpos monoclonais que até foram suspensos pela Food and Drug Administration (FDA).

    De acordo com o Portal da Transparência e Publicidade, Froes estabeleceu, desde 2013, mais de 270 contratos comerciais, em seu nome ou na sua empresa Terras & Froes, com 22 farmacêuticas. O montante global já ultrapassou largamente os 400 mil euros. Nos dois primeiros anos da pandemia (2020 e 2021), o pneumologista encaixou uma média mensal de 4.065 euros, valor superior ao que ganha como médico do SNS. No ano passado também ultrapassou a fasquia dos 4.000 euros por mês.

    Este ano, Froes continua a facturar. Em consulta ao Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed verifica-se que foram contabilizados 25.194 euros de apoios e honorários na sua conta bancária ou na da sua empresa (Terras & Froes) provenientes de quatro farmacêuticas, com destaque para a Merck Sharp & Dohme (12.341 euros) e a AstraZeneca (10.475 euros). Ou seja, uma média mensal também superior a 4.000 euros.

    Sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, deste mês, considera que processo disciplinar contra Filipe Froes, e o processo de averiguações, são documentos administrativos mas que se mantêm secretos até á conclusão ou arquivamento. Prescrição ocorre daqui a um mês.

    Convém salientar que o Infarmed não faz, por rotina, qualquer tipo de fiscalização destes registos, pelo que se mostra fácil receber dinheiro e outras ofertas de farmacêuticas sem declaração no Portal da Transparência, como aliás fez o antigo bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães.

    Sabendo-se que o processo de averiguações só avançaria para uma fase posterior se se tivesse apurado matéria suficiente para uma “condenação” em processo disciplinar, o PÁGINA UM requereu à IGAS a consulta de um vasto conjunto de processos disciplinares ainda em 2022, o que foi inicialmente recusado.

    Em finais de Outubro do ano passado, o PÁGINA UM chegou a obter uma sentença favorável do Tribunal Administrativo de Lisboa para aceder a várias dezenas de processos intentados nos últimos anos pelo IGAS, mas, ao contrário do expectável, não estava ainda incluído qualquer documento referente a Filipe Froes.

    Mais tarde, em finais de Novembro, a IGAS acabou por revelar ao PÁGINA UM que o processo de averiguações sobre Filipe Froes, que fora conhecido desde Setembro de 2021, tinha resultado num processo disciplinar em 19 de Fevereiro de 2022, por determinação do inspector-geral Carlos Carapeto.

    Quando se concluiu um ano desde a conclusão do processo de averiguações, o PÁGINA UM solicitou uma cópia, mas a IGAS informou que estaria integrado no processo disciplinar, dando-se assim uma aura de secretismo. Mas, a ser verdade, esse secretismo só se manteria, de acordo com a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, até à conclusão da fase de instrução.

    Na sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, conhecida este mês, o juiz Nuno Domingues considera que, embora “a informação em causa tem natureza administrativa, todavia, resulta dos autos que essa mesma informação ocorre em momento prévio à instauração do Proc. N.º 1/2022-INQ e afigura-se ao tribunal que está em conexão com a posterior instauração do procedimento disciplinar, na medida em que a informação reporta-se a processo de esclarecimento que tem clara repercussão e conexão na instauração do procedimento disciplinar”.

    Nessa medida, adianta o magistrado que “não podendo os dois procedimentos ser indissociáveis” e que “ainda não foi proferido despacho de acusação (ou de arquivamento)”, conclui que o PÁGINA UM não tem ainda direito de consulta.

    O juiz, porém, nem sequer estranhou que ao fim de quase 17 meses não houvesse sequer despacho de acusação ou de arquivamento – o que tornaria públicos os documentos –, sabendo-se que o Regime Disciplinar dos Trabalhadores em Funções Públicas determina a prescrição ao fim de 18 meses.

    Contudo, o juiz que analisou a intimação do PÁGINA UM nem sequer pediu um comprovativo da veracidade das declarações do Ministério da Saúde nem sequer determinou a obrigatoriedade de ser disponibilizada a totalidade da documentação relativa ao processo de Filipe Froes a partir de 19 de Agosto, data em que tudo prescreverá ou terá de estar concluído.

    Defesa da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, que mantém o processo disciplinar contra Filipe Froes até à prescrição, foi assumida pelo Ministério da Saúde.

    Por esse motivo, o PÁGINA UM recorreu hoje mesmo para o Tribunal Central Administrativo Sul para que considere nula a sentença do juiz Nuno Domingues. Independentemente da decisão do recurso, o PÁGINA UM não desistirá de conhecer os contornos de um processo disciplinar que, tudo indica, foi “engavetado” para manter sob segredo – e sem castigo algum – as relações comerciais entre farmacêuticas e Filipe Froes.

    O PÁGINA UM pediu, na semana passada, esclarecimentos a Carlos Carapeto, inspector-geral da IGAS, sobre a iminência da prescrição, e dos motivos para tamanha demora na conclusão da fase de instrução. Foi também perguntado “se houve qualquer pressão governamental, política, empresarial ou de outra natureza (mesmo que válida e legal) para evitar o desenrolar normal do referido procedimento disciplinar até que fosse, como certamente sucederá, arquivado por prescrição” o procedimento disciplinar a Filipe Froes. Não se obteve qualquer reacção.


    Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Saliente-se que o PÁGINA UM tem de garantir uma “provisão” para as situações em que possa ter sentenças desfavoráveis, o que acarretará o pagamentos de custas que podem ser elevadas por cada processo perdido.

  • Bolsas há muitas

    Bolsas há muitas

    De entre as diversas entidades que atribuem bolsas, algumas associadas ao Estado, outras a entidades privadas ou personalidades, o PÁGINA UM foi “visitar” algumas para perceber se a Associação Sara Carreira “inventou a roda” e, se não – ou seja, se há mais entidades a apoiarem o estudo a jovens carenciados –, saber se escondem também os valores do apoio aos bolseiros.


    A Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), associada ao Estado, é porventura a entidade que mais apoios concede, mas não tendo como critério a situação económica do candidato. Abre anualmente concursos para bolsas “de diversas tipologias”, e em todas as áreas científicas, abrange bolsas de investigação para doutoramento; de doutoramento no âmbito de protocolos e parcerias; e bolsas de curta duração.  

    Segundo consta no “Aviso de Abertura de Concurso” de Janeiro de 2023, “o número de bolsas a atribuir é de 1.450, das quais um máximo de 400 serão alocadas à linha de candidatura específica para planos de trabalho em entidades não académicas”. Estes números são, no entanto, indicativos, “podendo ser revistos de acordo com a disponibilidade orçamental ou em função do número de candidaturas admitidas em cada linha de financiamento”. Os bolseiros também têm direito a um “seguro de acidentes pessoais relativamente às atividades de investigação, suportado pela entidade financiadora”.

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    Tal como estipula o Regulamento de Bolsas de Investigação da FCT, I. P., de 16 de Dezembro de 2019, os valores mínimos mensais previstos para bolsas em Portugal vão desde os 412 euros, para bolsas de iniciação à investigação, a 1.600 euros para bolsas de investigação pós-doutoral. A estes valores acrescem ainda subsídios para actividades de formação complementar; apresentação de trabalhos em reuniões científicas; inscrição, matrícula ou propinas; e subsídio de viagem ou de instalação, quando aplicável.

    As candidaturas são abertas a “cidadãos nacionais, cidadãos de outros estados-membros da União Europeia, cidadãos de estados terceiros, apátridas ou cidadãos beneficiários do estatuto de refugiado político”. Entre as condições para a elegibilidade do candidato, constam a residência permanente e habitual em Portugal, não ter já obtido o grau de doutor, nem ter beneficiado já de uma bolsa da instituição.

    Já o Instituto Camões tem diferentes tipos de bolsas: Bolsas da Cooperação, Bolsas da Língua e Cultura Portuguesas, Bolsas de Governos/ Instituições estrangeiras e Bolsas PROCULTURA PALOP-TL. Destas últimas, são atribuídas “48 bolsas de estudos internacionais para licenciatura e mestrado e, em parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian, 60 bolsas para residências artísticas nas áreas da Música e das Artes Cénicas, entre 2019 e 2020, a cidadãos nacionais de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste e residentes nestes países”.

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    As Bolsas da Cooperação abrangem os graus de licenciatura, mestrado e doutoramento. Os valores são revelados, variando desde os 380 euros de subsídios de manutenção para licenciatura até aos 870 euros para doutoramento. Acresce um subsídio de instalação e outros pequenos apoios.

    Em Portugal, a Comissão Fullbright também disponibiliza bolsas que possibilitam aos estudantes e professores portugueses prosseguir os estudos, investigação, ou leccionar nos Estados Unidos, e aos estudantes e professores norte-americanos fazer o mesmo em Portugal. A oferta é vasta – algumas resultam de parcerias com outras instituições –, tanto para candidatos portugueses como estrangeiros. Para os portugueses, a Bolsa Fullbright para Mestrado, por exemplo, concede um financiamento máximo de 30 mil dólares para o primeiro ano de estudos, além de um Plano complementar de saúde e acidentes durante o período da bolsa.

    Por seu turno, os bolseiros da Bolsa Fullbright para Investigação, que tem a duração de 4 a 9 meses consecutivos, têm os seguintes benefícios: “Comparticipação financeira de $1.500 dólares americanos por mês de estadia, num total mínimo de $6.000 (4 meses) e máximo de $13.500 (9 meses); atribuição de um montante de €900 para apoio na aquisição de viagem de ida e volta entre Portugal e os EUA; plano complementar de saúde e acidentes durante o período da bolsa (ASPE).; emissão dos documentos necessários ao visto J-1, e isenção do pagamento do visto”.

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    Também com ares do outro lado do Atlântico, a Fundação Luso-Americana, em parceria com o Centro de Estudos Portugueses da Universidade da Califórnia, em Berkeley, “atribui uma bolsa para estudantes de doutoramento ou de mestrado que tenham sido aceites na Universidade da Califórnia, em Berkeley”, abrangendo todas as áreas científicas. Nesta edição de 2023, “a Bolsa será atribuída a um estudante de doutoramento”, com um financiamento de até 60 mil dólares, repartido ao longo dos cinco anos do doutoramento, “ou a um estudante de mestrado que vai receber até um total de 26 mil dólares durante os dois anos do seu programa de estudo”.

    Já a Bolsa para Junior Visiting Researcher @UC Berkeley 2023/2024 destina-se a “doutorandos portugueses ou residentes em Portugal que queiram fazer investigação para desenvolver a sua tese de doutoramento na UC Berkeley”, e o valor da bolsa totaliza 10 mil dólares, sem incluir seguro de saúde. Metade da bolsa será disponibilizada directamente pela FLAD ao bolseiro; e a outra metade é paga directamente ao Centro de Estudos Portugueses/ Instituto de Estudos Europeus da Universidade da Califórnia, Berkeley, para “cobrir os encargos com o processo inicial para a obtenção de visto, acesso à estrutura académica e serviços da Universidade”.

    A Fundação Oriente disponibiliza cinco tipos diferentes de bolsas – algumas de curta duração, outras para alunos provenientes do Oriente para aprender a língua e cultura portuguesas e vice-versa, e outras para doutoramento ou investigação. O objectivo dos programas é sempre “reforçar a relação entre Portugal e o Oriente”, apoiando directamente “a formação avançada de investigadores, artistas e estudantes nas mais diversas áreas”.

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    A Fundação estipula o pagamento de um valor mensal “e, nos casos em que se justifique, o pagamento de uma viagem de ida e volta do local de residência ao país de estudo”.

    A Embaixada da República Federal da Alemanha tem um programa de incentivo de alunos estrangeiros ao estudo de alemão, existente em 84 nações, e inclui uma “estadia de quatro semanas na República Federal da Alemanha aos melhores alunos de alemão selecionados com base num processo de seleção específico”. Em Portugal, através de um concurso, serão escolhidos dois jovens, entre os 15 e os 17 anos para beneficiar deste programa em 2023. Os premiados terão direito a aulas de alemão; excursões a diversas cidades alemãs, como Berlim ou Hamburgo; participação em eventos para jovens e eventos desportivos, e visitas a universidades, museus, teatros e outros estabelecimentos culturais.

    O Serviço Alemão de Intercâmbio Académico (DAAD) também tem um leque de programas que abrange diversas áreas académicas e científicas, e que inclui bolsas para mestrados, pós-graduações ou investigação em universidades alemãs. Dependendo do programa escolhido, as bolsas podem estender-se entre 10 a 24 meses de duração, e compreendem o pagamento de propinas mensais de 934 euros e de seguros de saúde e de viagem, existindo a possibilidade de o candidato obter benefícios adicionais, dependendo das circunstâncias específicas.

    A Fundação Calouste Gulbenkian, por sua vez, também disponibiliza uma oferta variada de bolsas, incluindo para formação em Artes no estrangeiro, para estudantes arménios noutros países, e bolsas de “mérito” ou de “novos talentos”.

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    As bolsas de mérito são atribuídas a candidatos pela primeira vez ao ensino superior, e com escassos recursos financeiros, que tenham tido uma nota de candidatura à universidade igual ou superior a 170 pontos. O financiamento é de 2.000 euros por ano lectivo, e “inclui um apoio adicional único para a realização de um período de mobilidade internacional, Erasmus ou outro programa similar oferecido por cada instituição de ensino”, também no valor de 2.000 euros.

    As bolsas de “novos talentos” destinam-se, por sua vez, a estudantes de universidades portuguesas com uma média igual ou superior a 17 valores. O valor anual da bolsa varia entre os mil e os 3 mil euros, consoante diversos factores.

    A Fundação Cidade de Lisboa não organizou, excepcionalmente, bolsas no último ano. No entanto, de acordo com o regulamento de 2019/2020, as bolsas são concedidas por concurso, com vista ao acesso garantido a uma universidade de Lisboa, pelo que os candidatos devem ter o 12º ano. A bolsa tem a duração de 12 meses, e o valor mensal é fixado anualmente pela Fundação.

    Também a Associação Duarte Tarré atribui bolsas sociais, individualmente, “a estudantes do Ensino Superior que apresentem dificuldade financeira para prosseguir o seu percurso de formação académica. Abrangendo todo o território nacional, este programa atribui, no minímo, 25 bolsas sociais anualmente. Ativo desde 2012, este apoio aos estudantes já beneficiou mais de 150 pessoas”.

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    De acordo com o regulamento, “o valor mínimo das bolsas a atribuir, a alunos de licenciatura, mestrado ou doutoramento, será de 1.200 euros”, e faz-se de forma faseada. A atribuição das bolsas “não é incompatível com a atribuição de outras bolsas ou prémios de mérito de outras instituições, mas terão de ser comunicadas à associação, sob pena de cancelamento.

    Também a ANA – Aeroportos de Portugal concedeu bolsas para o Ensino Superior, destinadas a alunos do 12º ano, com até 20 anos de idade, “que tenham tido bom aproveitamento (média igual ou superior a 14 valores) e que residam, e frequentem uma escola pública, num concelho limítrofe de um aeroporto” desta empresa. Além disso, o rendimento per capita do respetivo agregado familiar não deve ser superior ao salário mínimo nacional.

    O Programa Bolsas de Estudo ANA Solidária foi criado em 2012 para atribuir 12 bolsas, no valor de 3000 euros anuais, pagos em 10 prestações mensais.

    A Fundação da Caixa Agrícola do Vale do Távora e do Douro atribui Bolsas de Estudo, por mérito e por carência económica, aos estudantes universitários dos concelhos do seu âmbito de acção. Nas bolsas atribuídas por carência económica, o valor das propinas é integralmente coberto. Por sua vez, as bolsas de mérito – para os alunos com média igual ou superior a 15 valores –, compreendem um prémio habitualmente no valor de 600 euros.

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    Ainda de acordo com o seu regulamento, “compete ao Conselho de Administração da Fundação da Caixa Agrícola proceder à selecção dos candidatos a quem será atribuída a bolsa, de acordo com critérios objectivos e no respeito dos requisitos fixados”.

    A Fundação António Aleixo concede Bolsas de Estudo a alunos carenciados, que preencham os seguintes requisitos: “não ter idade superior a 25 anos à data da 1.ª candidatura para Licenciaturas, Mestrados e Mestrados Integrados; ser residente há mais de 5 anos no concelho de Loulé; ser natural do concelho de Loulé, ou filho de naturais do concelho de Loulé, residindo fora deste há menos de 3 anos”.

    O número e o valor das bolsas a atribuir é fixado anualmente pela Direcção da Associação Poeta Aleixo, e existem três modalidades, nomeadamente os escalões A, B e C, consoante variam os montantes.

    De acordo com o seu regulamento, a Fundação Millennium BCP atribui, anualmente, bolsas de estudos para mestrados, “a cidadãos provenientes de países africanos de expressão portuguesa e Timor, com os quais a Fundação e as entidades ligadas ao Grupo Banco Comercial Português (Millennium bcp) estabeleçam especiais relações de cooperação”.

    Os bolseiros têm direito ao reembolso de uma determinada quantia das propinas, mas o apoio financeiro definido nunca poderá “ser superior ao vencimento base de funcionário bancário de nível 1”.

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    A Fundação Eugénio de Almeida atribui bolsas em vários programas diferentes, incluindo de Alojamento, as bolsas “Eugénio Almeida”, e de Mérito. As Bolsas Eugénio Almeida custeiam “as propinas de alunos da Universidade de Évora (UE) de baixo rendimento económico e com aproveitamento escolar”. As Bolsas de Alojamento, por exemplo, têm como objectivo ajudar “a suportar o custo das despesas de alojamento de estudantes do Ensino Superior, nos diferentes ciclos, a estudar em qualquer instituição de ensino pública ou privada, em território nacional”, e os destinatários são os “estudantes do ensino superior, com residência oficial na região do Alentejo (Alentejo Central, Alto Alentejo, Baixo Alentejo e Alentejo Litoral)”

    A Fundação Rotária Portuguesa atribui bolsas de estudo sobretudo a jovens com dificuldades financeiras, privilegiando “estudantes do ensino secundário com bom aproveitamento escolar ou estudantes do ensino técnico-profissional se as aptidões o aconselharem”.

    As bolsas “resultam de donativos efectuados à Fundação por empresas, instituições ou pessoas singulares com essa finalidade”, e têm o valor de 500 euros para o ensino secundário, e 750 euros para o ensino superior.

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    A Fundação Caixa Agrícola do Noroeste atribuiu, em 2016, bolsas de estudo “no valor de 1000 euros, a alunos do distrito de Viana do Castelo e do concelho de Barcelos”. As bolsas foram entregues por mérito ou carência económica a alunos com uma média igual ou superior a 15 valores.

    Por fim, a Fundação José Neves tem em curso um ambicioso programa de bolsas de estudos “baseado no modelo Income Share Agreement”, ou seja, consiste sobretudo num sistema de empréstimo para estudar, incluindo o pagamento de propinas, sendo que o reembolso do valor investido apenas será reembolsado quando o rendimento do bolseiro ficar acima de um determinado patamar. É, por isso, um modelo ideal para estudantes carenciados.

  • Rabo de Peixe: à espera da “mudança de maré” para mais turistas e investidores  

    Rabo de Peixe: à espera da “mudança de maré” para mais turistas e investidores  

    Ainda é tudo muito recente, mas Rabo de Peixe (ou Turn of the tide, em inglês) fez disparar a notoriedade da vila situada na ilha de São Miguel, nos Açores. O sucesso da série da Netflix colocou a vila piscatória, mais conhecida pela sua pobreza, debaixo dos holofotes mediáticos tanto na imprensa nacional como internacional. A onda de publicidade em torno da região fez nascer perspectivas de atracção de mais turistas e investidores, nomeadamente para o mercado imobiliário. Por agora, os efeitos não são ainda visíveis. Mas as expectativas, agora que se anunciou a segunda temporada, são grandes, aproveitando o estrelato mediático da região. Talvez Rabo de Peixe se venha a tornar tão icónico como qualquer um dos 12 antigos cenários de filmes que o PÁGINA UM recorda.  


    Ainda não deu à costa, mas o mercado imobiliário na vila de Rabo de Peixe, nos Açores, agora famosa internacionalmente devido à série portuguesa que faz sensação na plataforma Netflix, espera uma mudança de maré, e que seja alta.

    Para já, à tona há muitas expectativas e a esperança de um aumento na procura turística e também na venda de imóveis nesta vila piscatória de São Miguel, uma das mais pobres do país. Em 2015 era a freguesia portuguesa com mais pessoas a receber Rendimento Social de Inserção (RSI).

    O sucesso da série “Rabo de Peixe” (Turn of the tide, em inglês) não é apenas nacional. A cobertura mediática também tem sido internacional, por via das boas classificações em sites da especialidade.

    Com os holofotes colocados na freguesia onde residem cerca de 8.800 habitantes, é natural que as expectativas de que a série possa atrair turistas e investidores para a ilha seja vista como natural.

    Para já, na procura turística por alojamento local, mantém-se a situação prévia à estreia da série. O Verão está lotado em praticamente todos os alojamentos contactados pelo PÁGINA UM na plataforma Airbnb, mas não é nada surpreendente: a esmagadora maioria das reservas já estavam asseguradas antes mesmo do lançamento da série. Para o Outono, ainda há muitos alojamentos disponíveis, mas os preços rondam os valores praticados em Lisboa.

    Em termos do mercado imobiliário, a situação é ainda de normalidade. “A procura [por casas] tem sido relativamente a mesma, não houve um pico acentuado”, diz João Lima, agente imobiliário da Remax naquela vila piscatória, que alberga o maior porto de pesca da ilha de São Miguel.

    Também uma porta-voz na imobiliária ERA apontou ao PÁGINA UM no mesmo sentido: “não temos dados, de momento, que sustentem uma maior procura de casas nos Açores que possamos atribuir à série da Netflix”.

    Mas há muitas expectativas.

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    “De momento, está tudo dentro da normalidade, mas ainda é muito recente, e acredito que nos próximos meses a série irá contribuir para uma maior procura, não só em Rabo de Peixe, mas na Ilha de São Miguel”, lançou João Lima.

    De facto, a procissão ainda vai no adro. A série estreou há cerca de um mês, 26 de Maio, tem sido a mais vista na Netflix em Portugal. A nível mundial, chegou ao Top 10 do ranking de visualizações da plataforma de streaming, atingindo a sétima posição das séries mais vistas em língua não-inglesa. Além disso, atingiu o Top 10 em 15 países de quatro continentes.

    A promoção internacional do nome da pequena vila enfrenta, porém, uma corrente que tem levado a um arrefecimento do mercado imobiliário a nível nacional.

    O mercado ainda continua “quente”, com os preços em níveis historicamente elevados, mas tem-se observado um abrandamento, tanto na subida dos preços, como no número de casas vendidas e créditos à habitação concedidos.

    Na avaliação que os bancos fazem das casas no âmbito da concessão de crédito à habitação, registou-se em Abril uma queda de 34,3% no número de avaliações efectuadas, comparando com o mesmo mês do ano passado, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE).

    O valor mediano de avaliação bancária na habitação subiu oito euros face a Março, para o valor mais alto desde pelo menos 2011: nos 1.491 euros por metro quadrado. O aumento em média mensal foi de 0,5% enquanto a subida homóloga foi de 10%, a mais baixa do último ano. Foi na região autónoma dos Açores que se registou a menor subida homóloga: 1,9%.  

    De facto, ainda segundo o INE, os preços das casas desaceleraram nos primeiros três meses deste ano, com o índice de preços na habitação a aumentar 8,7% em termos homólogos, 2,6 pontos percentuais abaixo do registado no trimestre anterior.

    A venda de casas sofreu uma queda trimestral de 16% e, em termos homólogos, a descida chegou aos 20,8%. Nos Açores, a queda na venda de casas foi de 23% no primeiro trimestre de 17% em comparação com igual período de 2022. Em todo o arquipélago, no primeiro trimestre, foram vendidas 599 casas num montante de 87 milhões de euros. Estes valores representam, respectivamente, 1,7% e 1,3% das vendas efectuadas em todo o país.

    Actualmente, na plataforma de promoção de imóveis Idealista, surgem à venda 44 casas em Rabo de Peixe. O preço médio em todo o concelho da Ribeira Grande ascende aos 1.031 euros por metro quadrado, o que representa um aumento de 13% face ao valor registado há um ano na mesma plataforma. Em Lisboa, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE) o valor médio das casas era de 3.872 euros por metro quadrado, no final de 2022.


    Série no topo   

    Criada pelo açoreano Augusto Fraga, Rabo de Peixe foi rodada em diversos locais, incluindo na freguesia que dá o nome à série.

    O enredo baseia-se num caso real que remonta a 2001, quando deram à costa daquela vila piscatória fardos de cocaína, na sequência de um naufrágio de uma embarcação que se dirigia para Espanha transportando meia tonelada daquele estupefaciente.  

    Produzida pela Ukbar Filmes, a série, além de ser líder em visualizações na Netflix em Portugal, Rabo de Peixe chegou a série mais vista em muitos outros países. A plataforma anunciou, entretanto, que vai haver segunda temporada.

    Também tem recebido excelentes classificações, nomeadamente no site IMDb, onde tem um rating de 7,7 em 10. No Rotten Tomatoes, a série portuguesa cativou uma classificação de 4.5 em 5. A crítica do PÁGINA UM pode ser lida aqui.

    Com tão boa recepção e impacto mediático, e com segunda temporada à vista, antecipam-se possíveis mudanças na região, tanto em termos turísticos como ao nível da atracção de investidores. E a bela vila, outrora conhecida como uma das zonas mais pobres da Europa, ganhou agora uma fama mais glamorosa. Como num conto de fadas, a “abóbora” transformou-se numa linda carruagem. A expectativa é que a maré traga mais visitantes (e dinheiro) à (naturalmente) bela região.

  • Quando os cenários sobrevivem aos filmes 

    Quando os cenários sobrevivem aos filmes 

    A série “Rabo de Peixe”, disponível na plataforma Netflix, trouxe a vila piscatória da Ilha de São Miguel, nos Açores, para o estrelato. Os diversos locais de filmagem da popular série portuguesa arriscam agora a tornar-se famosos. Não será caso único. Em todo o Mundo, vários locais de filmagem de filmes e séries saltaram para a fama e hoje constituem um ponto de atracção turística, mesmo passado décadas de os holofotes do set se terem apagado. O PÁGINA UM mostra-lhe 12 cenários construídos ou já existentes que se tornaram locais de peregrinação.  


    O cinema e a televisão são poderosos e influentes veículos de conteúdos. Prova disso é a capacidade que têm de suscitar nos espectadores uma curiosidade acerca de locais até então absolutamente desconhecidos ou pouco falados. A nova série portuguesa da Netflix, “Rabo de Peixe”, é agora mais uma evidência disso: com um retumbante sucesso que a colocou no topo do ranking daquela plafatorma de streaming, conseguiu pôr a pequena e pacata vila piscatória açoreana “debaixo dos holofotes”.

    No entanto, para além desta produção gravada na Ilha de São Miguel, muitos são os exemplos deste fenómeno em que localidades são subitamente catapultadas para o centro das atenções por servirem de cenário a filmes ou séries televisivas.

    Por vezes, algumas até se transformam em pontos turísticos “imperdíveis”, atraindo milhares de estrangeiros oriundos de todo o mundo. Alguns, que já tinham uma considerável afluência de turistas, viram a quantidade de visitantes aumentar ainda mais. Outros ainda, obrigaram à construção de sets que ainda hoje, passados anos do seu lançamento, recebem ‘enchentes’ de turistas. Aconteceu com O Popeye, A guerra das estrelas, Harry Potter, e até os Monty Phyton.

    O PÁGINA UM destaca 12 desses locais (agora ainda mais) turísticos.


    Matamata, Nova Zelândia

    A verdejante Nova Zelândia não precisaria de incentivos adicionais ao turismo, mas a popularidade que a trilogia O Senhor dos Anéis alcançou fez engrossar a percentagem de turistas que se deslocavam àquele ponto do globo. Em 2012 – mais de uma década após o fim da trilogia –, um responsável da Tourism New Zealand, uma empresa que promove o turismo naquele país, revelou à Forbes que se tinha registado um aumento de 50% de visitantes desde o lançamento do primeiro filme, em 2001. Com efeito, esta sequela foi pioneira no fenómeno da corrida aos locais e regiões que servem de palco para produções televisivas.

    Hobbiton constitui uma das principais atracções, e esta vila dos icónicos hobbits situa-se, na vida real, na cidade de Matamata.  É lá que se encontra o Hobbiton Movie Set, que serviu de palco para as gravações de ambas as trilogias cujo “pai” foi o escritor J. R. R. Tolkien: O Senhor dos Anéis e Hobbit. Ainda em Dezembro passado, em comemoração do décimo aniversário de Hobbit: Uma viagem inesperada, a plataforma Airbnb anunciou que os visitantes passariam a ter também a possibilidade de pernoitar nas pequenas casas que serviram de cenário às filmagens.


    Castelo de Alnwick, Inglaterra

    É impossível falar de sequelas de sucesso sem mencionar Harry Potter, e o impacto do seu sucesso colossal no número de visitantes que rumaram a Inglaterra ou à Escócia para conhecer os locais de filmagem também foi significativo. Entre castelos, estações de comboios e catedrais, são vários os ‘cenários’ que através do grande ecrã ficaram na memória dos fãs e espectadores em todo o mundo, e que todos os anos continuam a percorrer os principais locais onde se protagonizaram vários takes da saga.

    A aldeia fictícia de Hogsmeade – que na sequela, é a única exclusivamente habitada por feiticeiros – é um destes pontos, recriada nos estúdios de filmagem da Warner Bros, em Leavesden, 20 quilómetros a norte de Londres, onde se pode visitar a Studio Tour London – The Making of Harry Potter.

    Por seu turno, a plataforma 9¾ da estação de King’s Cross, em Londres, é uma paragem obrigatória para quem visita a cidade pela primeira vez. Na mítica plataforma, os turistas podem reproduzir as cenas onde os aprendizes de feiticeiros desapareciam ao atravessar as paredes do terminal com os seus carrinhos-de-mão. Também o viaduto de Glenfinnan, na Escócia, é outro conhecido cenário emblemático da famosa saga, que ainda faz as delícias de muitos turistas e fãs de Harry Potter.

    O castelo de Alnwick, em Inglaterra, também teve um “papel” importante na longa história de Harry Potter, tendo aparecido nos primeiros dois filmes da sequela. Foi lá que, em A pedra filosofal, os aspirantes a feiticeiros, “montados” nas suas vassouras mágicas, aprenderam a voar pela primeira vez. O castelo serviu também para as gravações da conhecida série britânica Downton Abbey.


    Baía de Wallilabou, São Vicente e Granadinas (Caraíbas)

    O filme Pirata das Caraíbas: A Maldição do Pérola Negra, que em 2003 eternizou a personagem do pirata Jack Sparrow, interpretado por Johnny Depp, também deu visibilidade a algumas localidades de areia branca e águas azuis cristalinas por onde o inigualável personagem se aventurou. Uma delas é a baía de Wallilabou, onde se construiu a cidade-cenário Port Royal, para as filmagens da famosa saga.

    Port Royal é uma cidade real situada na Jamaica, que constituiu historicamente um dos mais importantes pontos comerciais da Marinha Real Britânica, até um sismo em 1692 ter afundado grande parte do território. Conhecida até por ser, no século XVII, “a cidade mais malvada do mundo”, tornou-se, de facto, um efervescente centro de prostituição, piratas e “malfeitores”. No entanto, para efeitos das gravações de Piratas das Caraíbas, o país escolhido não foi a Jamaica, mas São Vicente e Granadinas.


    Aldeia do Popeye, Malta

    O carismático marinheiro Popeye – cujo centenário se celebrará em 2029 –, embora seja um cartoon ficcional que habita sobretudo o imaginário colectivo, teve uma versão em “carne e osso” através do musical homónimo, de 1980, em que o actor Robin Williams deu vida ao personagem.

    Malta foi o país escolhido para as gravações da produção cinematográfica, onde se criou, na baía Anchor, o cenário denominado Popeye Village: uma aldeia pitoresca repleta de casinhas de madeira. Ainda hoje uma pujante atracção turística, os visitantes que por lá passam podem usufruir de passeios de barco, espectáculos e ainda ‘conhecer’ as personagens do filme.


    Escadarias Bronx, Nova Iorque

    O Joker, lançado em 2019 e interpretado por Joaquin Phoenix – e pelo qual o actor viria a ganhar o Óscar de Melhor Actor em 2020 –, foi um sucesso de bilheteiras. Não será, por isso, surpreendente que uma singela escadaria, na confluência da West Street 167 com a Anderson Avenue, localizada no conhecido bairro do Bronx, em Nova Iorque, tenha registado um elevado acréscimo de curiosos a querer pisar os mesmos degraus que o temível vilão usou na célebre “dança” vitoriosa. O cenário que, aliás, também deu origem a muitos ‘memes’, é hoje um ponto de atracção para fotografias.


    Dubrovnik, Croácia

    A Guerra dos Tronos, transmitida na plataforma HBO, tem certamente um lugar de destaque na história das séries televisivas. E o seu estrondoso sucesso faz com que conste na lista de produções audiovisuais que mobilizaram os espectadores a conhecer os locais de filmagem com os seus próprios olhos.

    Desde 2011 até 2019, as suas temporadas foram gravadas em diferentes localidades e países, nomeadamente a Irlanda, Croácia, Malta, Islândia e Espanha. Muitos dos fãs da série rumaram a estas regiões, aumentando consideravelmente a sua afluência turística – por vezes, de forma “dramática”. Vários destinos se poderiam destacar, mas um dos que mais turistas atraiu foi Dubrovnik, a cidade mais visitada na Croácia, e que ainda hoje faz manchetes pela quantidade de turistas que recebe, e que se deslocam até à chamada “Pérola do Adriático” para ver por si mesmos o verdadeiro cenário de “King’s Landing”.


    Maya Bay, Tailândia

    Lançado no início de 2000, o filme A Praia, protagonizado por Leonardo DiCaprio, fez aumentar a procura pelas paradisíacas paisagens tailandesas. Em particular, por Maya Bay, a praia que serviu de palco às filmagens, e que se tornou desde então uma das atracções turísticas mais proeminentes na Tailândia. E, de facto, a projecção mundial que este destino adquiriu com o filme não esmoreceu com o passar dos anos.

    Na verdade, o número de turistas atingiu proporções tais – chegou a atingir os 5 mil por dia, a par com 200 barcos –, que o local teve que “fechar as portas” em 2018 devido aos danos ambientais causados pelo excesso de visitantes. Na altura, as autoridades tailandesas anunciaram que a Maya Bay, localizada na ilha Ko Phi Phi Leh, fecharia por tempo indeterminado para que pudesse recuperar do impacto cumulativo. Apenas em Janeiro do ano passado é que a famosa praia voltou a reabrir, mas, por um curto período, voltou a fechar novamente entre Julho e Setembro.


    Ilha de Skellig Michael, Irlanda

    A íngreme e rochosa ilha de Skellig Michael, na Irlanda, foi classificada pela UNESCO Património Mundial em 1996, mas a saga A Guerra das Estrelas elevou o seu protagonismo a um novo patamar ao escolhê-la como cenário para as gravações.

    Com um impressionante mosteiro que se acredita datar do século VI, a montanhosa ilha irlandesa, cujas condições de acesso e permanência são bastante inóspitas – só pode, inclusivamente, ser visitada durante os meses de Verão – serviu de cenário para a sétima e a oitava parte da sequela: O despertar da força e O último Jedi. Em A Guerra das Estrelas, o remoto lugar representou o planeta Ahch-To.


    Senoia, Georgia (Estados Unidos)

    Em The Walking Dead, a cidade ficcional Woodbury, existe na vida real, mas não foi, no entanto, na Woodbury “verdadeira” o local onde se filmaram muitos takes da famosa série, mas sim Senoia, uma pequena cidade que fica também no estado da Georgia – o que causou um aumento vertiginoso de turistas na zona.

    Esta localidade já serviu de cenário para outras produções audiovisuais, mas ganhou um enorme protagonismo com esta sequela sobre os assustadores zombies, e é graças a ela que recebe muitos turistas, que lá visitam os mais conhecidos sets de filmagem que viram no ecrã.


    Hotel Park Hyatt, Tóquio (Japão)

    Também a visibilidade de alguns edifícios e hotéis de luxo atingiu os píncaros, depois de lá se terem filmado êxitos cinematográficos. Foi esse o impacto que o filme O amor é um lugar estranho, (Lost in translation, no original), de 2003, teve no hotel Park Hyatt Tokyo, localizado na capital nipónica. A realizadora Sofia Coppola escolheu-o para cenário para as gravações, depois de ter ficado impressionada com a estrutura.

    A marcante cena em que os protagonistas, Bill Murray e Scarlett Johansson, se conhecem, foi filmada no “New York Bar”, que, com uma vista panorâmica e privilegiada sobre a cidade de Tóquio, fica no último piso do hotel. Uma das suas suítes também “apareceu” neste filme, que chegou até a receber o Óscar de Melhor Argumento Original.

    O hotel, que fica no cimo da “metálica” infraestrutura Shinjuku Park Tower, assumiu, de facto, uma importância comparável ao de uma personagem. Coppola descobriu o local em 1999, após uma deslocação que fez para promover o filme As Virgens suicidas.   


    Hotel Del Coronado, Califórnia (Estados Unidos)

    Outro hotel que ganhou destaque graças à Sétima Arte foi o Hotel Del Coronado, situado no Sul da Califórnia. Neste caso, a “culpa” foi da comédia Some Like It Hot, de 1959, com uma das loiras mais icónicas do Mundo, a actriz Marilyn Monroe. O filme obteve seis nomeações pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, mas ganhou apenas o Óscar de Melhor Guarda-Roupa. De qualquer maneira, certamente que as vestimentas dos personagens foram realçadas pelo “pano de fundo” representado por este hotel de San Diego.

    A acção desenrolava-se em 1929, e talvez por isso a estética de Del Coronado, e a sua “arquitectura victoriana”, tenha servido na perfeição para dar vida ao argumento. Contudo, apenas o frontispício do hotel apareceu nas filmagens, apesar de os cenários utilizados pela produção para os takes gravados em interior serem extremamente semelhantes ao Del Coronado. Segundo o site oficial do hotel, quem o visita, mostra-se incrédulo quando descobre que apenas a parte externa do charmoso hotel foi usada para o filme.


    Castelo de Doune, Escócia

    Os britânicos Monty Python têm muitos méritos, e o humor e boa disposição que trouxeram a muitos espectadores é com certeza um deles. No entanto, entre gargalhadas, o filme Monty Python e o Cálice Sagrado, de 1975, teve ainda um outro efeito: tornou o Castelo de Doune, situado no coração da Escócia, um alvo de atenção e curiosidade.

    Embora os castelos de Stalker e Kidwelly também apareçam no filme, que satiriza a lenda da busca do Rei Artur pelo Santo Graal, as gravações utilizaram sobretudo o Doune, aproveitando os seus diferentes ângulos.

    Anos mais tarde, Terry Jones, um dos actores principais, chegou a revelar que inicialmente a ideia era filmar também noutros castelos escoceses, mas a produção não conseguiu obter a autorização do Departamento do Ambiente do país. Para além de Monty Python, este castelo escocês que data do século XIV “participou” ainda nas filmagens de A Guerra dos Tronos e da série Outlander.

  • Paris, la ville poubelle

    Paris, la ville poubelle

    A decisão do Governo de Macron de aumentar a idade da reforma está na origem de intensas manifestações em diversas regiões da França, que incluem também a paralisação da recolha de lixos urbanos. Veja o aspecto da Cidade Luz no passado fim-de-semana nas fotografias de A. M. Pereirinha para o PÁGINA UM, em Paris, este sábado e domingo.














  • Instituto Superior Técnico admite que podem ser “fantasmas” os seus relatórios rápidos números 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50 e 51

    Instituto Superior Técnico admite que podem ser “fantasmas” os seus relatórios rápidos números 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50 e 51

    O Tribunal Administrativo de Lisboa, depois de uma longa “novela”, obrigou em finais de Janeiro o Instituto Superior Técnico a mostrar ao PÁGINA UM o relatório que quantificava as mortes supostamente causadas pelas festividades de Junho de 2022 e pelo levantamento das restrições. Mas a sentença em primeira instância esqueceu-se de responder ao pedido do PÁGINA UM para aceder aos anteriores relatórios, bem como aos ficheiros numéricos. O Instituto Superior Técnico vem agora alegar que não foi provado que existem mais relatórios para além do Relatório Rápido nº 52, apesar de o PÁGINA UM até ter tido acesso ao Relatório Rápido nº 51, e aí constarem várias referências a “relatórios anteriores”. Que ares pairam pela zona da Alameda, em Lisboa? E é isto a Ciência em Portugal?


    Foi uma parceria apresentada em 14 de Julho de 2021, com toda a pompa e circunstância, em conferência de imprensa pelo presidente do Instituto Superior Técnico (IST), Rogério Colaço, e pelo bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães. Em causa estava um indicador de avaliação do risco de pandemia, elaborado por matemáticos do IST e com a participação do Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos – então liderado pelo pneumologista Filipe Froes –, prometendo-se uma avaliação semanal.

    No site da Ordem dos Médicos garantia-se que “a ferramenta agora apresentada potencia a transparência e a flexibilidade pois democratiza o conhecimento e, com isso, ajuda não só na coerência das medidas de contenção aplicadas mas também na adesão a essas mesmas medidas.”

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes, na sede da Ordem dos Médicos, em 14 de Julho de 2021, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico diz que não houve um acordo escrito desta parceria, e que não está provada a existência de 52 relatórios, apesar de serem conhecidos dois relatórios: o Relatório Rápido nº 51 e o Relatório Rápido nº 52.

    E também no site no IST se seguia o mesmo diapasão, citando mesmo Miguel Guimarães que “explicou que este novo indicador é ‘democrático’ e poderá ser feito ‘em casa’ por qualquer cidadão”, acrescentando que seria necessário “só colocar os dados que a Direção-Geral de Saúde publica – o Rt, a incidência, os internamentos em enfermaria, os internamentos em cuidados intensivos e também os óbitos”.

    Mas, cerca de um ano depois, estalou a polémica. Em 28 de Julho do ano passado, a Agência Lusa divulgou um relatório do IST – “viralizado” pela imprensa mainstream – que responsabilizava directamente o levantamento das restrições e as festas populares e festivais musicais de Junho por mortes, quantificando-as até.

    De acordo com as notícias, que citaram um relatório então não tornado público, “houve cerca de 242 mil casos de covid-19 registados oficialmente devido às festividades dos santos populares e festivais como o Rock in Rio”. A notícia da Lusa salientava ainda, citando o relatório do IST, que “se juntarmos os casos não reportados oficialmente atinge-se o número de 340 mil”. E apontava ainda, expressamente, para as consequências: 790 óbitos devido ao levantamento das restrições e 330 óbitos associados apenas às festas populares de Junho.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico, tem procurado afincadamente não disponibilizar relatórios científicos sobre a pandemia realizados em coordenação com a Ordem dos Médicos. Agora, quer fazer crer ao Tribunal Central Administrativo Sul, que, apesar de ter sido obrigado a mostrar o Relatório Rápido nº 52, que não existem provas da existência de mais nenhum.

    Perante a recusa do IST em disponibilizar os dados e o relatório em causa, o PÁGINA UM decidiu requerer a totalidade dos relatórios elaborados desde Julho de 2021, ao abrigo do acordo com a Ordem dos Médicos, bem como os ficheiros numéricos e a metodologia.

    No processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa que se seguiu – onde se revelou que o IST assumia que o polémico relatório que quantificava as mortes causadas pelas festas populares e festivais musicais era afinal “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório” –, a juíza do processo acabou apenas por determinar, por sentença no final de Janeiro deste ano, a obrigatoriedade da entrega desse relatório – denominado Relatório Rápido nº 52 –, não fazendo qualquer referência aos outros 51 relatórios anteriores nem aos ficheiros numéricos. Isto apesar de serem expressamente pedidos e a obrigatoriedade da sentença de justificar uma eventual recusa no acesso.

    Como o requerimento formal do PÁGINA UM, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativo, era muito explícito sobre a totalidade dos relatórios do IST sobre esta matéria – e assumindo que o último tinha o número 52 –, foi apresentado já este mês um recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul. Esse expediente legal visava também evitar que o IST conseguisse “destruir” o original do Relatório Rápido nº 52 que enviara ao Tribunal Administrativo de Lisboa, o que, a concretizar-se, impediria qualquer confronto com a cópia que entretanto esta instituição enviara ao PÁGINA UM logo no dia seguinte à sentença, no passado dia 1 de Fevereiro.

    Investigadores do Instituto Superior Técnico responsabilizaram festividades de Junho pela morte de 330 pessoas e culparam o levantamento das restrições por 790 óbitos. Números constam do Relatório Rápido nº 52, feito no âmbito de uma parceria com a Ordem dos Médicos, dinamizada por Miguel Guimarães e Filipe Froes.

    Mas agora, em sede de contra-alegação, o IST defende que não deve existir qualquer alteração da sentença, porque terá ficado “apenas provada a existência do relatório intitulado Relatório Rápido n.º 52, não se provando a existência de outros elementos”, requerendo assim, em sede de recurso, que não haja lugar a entrega de quaisquer outros relatórios ou ficheiros. O IST também pretende, subsidiariamente, a alteração da sentença que faz equivaler relatórios científicos a documentos administrativos.

    A jurista do IST que assina a contra-alegação, Cláudia Figueira, numa tentativa clara de convencer os juízes desembargadores que irão decidir o recurso de que não existe mais qualquer documento, argumenta que “cabia ao recorrido [PÁGINA UM] fazer prova da existência dos restantes relatórios, assim como, dos alegados ficheiros informáticos com dados numéricos, usados para a elaboração dos supostos relatórios.” E que não terá provado.

    Deste modo, aquilo que o IST dá explicitamente a entender, em suma, é que não existe qualquer relatório elaborado pelos seus investigadores desde Julho de 2021 até ser criado o polémico Relatório Rápido nº 52, em 27 de Julho de 2022, intitulado “Resumo da sexta vaga de COVID-19 em Portugal”, e que o Tribunal Administrativo de Lisboa obrigou a mostrar.

    Trecho das contra-alegações do Instituto Superior Técnico.

    Ou seja, o IST quer fazer crer agora ao Tribunal Central Administrativo Sul que em cerca de um ano, afinal não houve relatórios periódicos; que não houve o Relatório Rápido nº 1, nº 2, nº 3, nº 4, nº 5, nº 6, nº7, nº 8, nº 9, nº 10, nº 11, nº 12, nº 13, nº 14, nº 15, nº 16, nº 17, nº 18, nº 19, nº 20, nº 21, nº 22, nº 23, nº 24, nº 25, nº 26, nº 27, nº 28, nº 29, nº 30, nº 31, nº 32, nº 33, nº 34, nº 35, nº 36, nº 37, nº 38, nº 39, nº 40, nº 41, nº 42, nº 43, nº 44, nº 45, nº 46, nº 47, nº 48, nº 49, nº 50 e nº 51.

    E ainda que, portanto, segundo esta alegação do IST, quando os seus investigadores decidiram fazer o primeiro relatório sobre esta matéria não viram qualquer falta de lógica em baptizarem-no de Relatório Rápido nº 52, e não de Relatório Rápido nº 1, mesmo se o Ministério da Educação anda há décadas a ensinar as crianças do primeiro ciclo que o número 1 é um número que antecede os números 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12,13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33,34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51 e 52 (e os seguintes, acrescente-se, até ao infinito).

    Mas o argumento do IST aparenta cair por terra quando se analisam os factos conhecidos e evidentes. Por um lado, é público também a existência de um outro relatório – o Relatório Rápido nº 51, que previa um aumento significativo de casos positivos decorrentes das festas populares e festivais de Junho de 2022, e que os próprios investigadores do IST disponibilizaram ao Blind Spot em meados de Julho do ano passado. A previsão do IST, constante no Relatório Rápido nº 51, de que seria previsível um aumento de 350 mil casos positivos de covid-19 foi também divulgado pela Lusa, em 8 de Junho de 2021.

    Capas do Relatório Rápido nº 51 e do Relatório Rápido nº 52, este apenas obtido após sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa. Nas contra-alegações do recurso apresentado pelo PÁGINA UM, o Instituto Superior Técnico alega que só se provou a existência do Relatórios Rápido nº 52, falando nos outros 51 como “supostos relatórios”.

    Na notícia do Blind Spot acrescenta-se também que, apesar das notícias da imprensa não colocarem o relatório em linha, “entrámos em contacto com o IST que nos disponibilizou o relatório”. O Blind Spot colocou o referido Relatório Rápido nº 51 – portanto, anterior ao Relatório Rápido nº 52 – em anexo descarregável.

    Aliás, o PÁGINA UM, quando em 17 de Fevereiro passado esmiuçou o Relatório Rápido nº 52, também analisou, e colocou no seu servidor, o Relatório Rápido nº 51.

    Mas, assumindo ser uma evidência que o Relatório Rápido nº 52 não é “filho único” – porque há o Relatório Rápido nº 51 enviado em Julho do ano passado pelo IST ao Blind Spot –, existem então provas cabais da existência do Relatório Rápido nº 1, nº 2, nº 3, nº 4, nº 5, nº 6, nº7, nº 8, nº 9, nº 10, nº 11, nº 12, nº 13, nº 14, nº 15, nº 16, nº 17, nº 18, nº 19, nº 20, nº 21, nº 22, nº 23, nº 24, nº 25, nº 26, nº 27, nº 28, nº 29, nº 30, nº 31, nº 32, nº 33, nº 34, nº 35, nº 36, nº 37, nº 38, nº 39, nº 40, nº 41, nº 42, nº 43, nº 44, nº 45, nº 46, nº 47, nº 48, nº 49 e nº 50?

    Então, e o PÁGINA UM tem provas cabais da existência da existência de 50 relatórios antes do Relatório Rápido nº 51 e do Relatório Rápido nº52?

    Cientificamente, com um grau de certeza de 100%, não. Não tem, efectivamente, não – não tem essas provas a 100%. Apenas pode apelar ao mais elementares níveis de leitura e entendimento como prova, propondo uma leitura, por exemplo, da primeira frase do Relatório Rápido nº 51, que tem o seguinte conteúdo: “O facto mais marcante a realçar neste relatório é que a mortalidade diária em média a sete dias subiu para 41.4, tal como previsto por nós em anteriores relatórios.”

    Trecho inicial do Relatório Rápido nº 51 da autoria dos investigadores do Instituto Superior Técnico.

    E, já agora, também para a leitura do Relatório Rápido nº 52 – aquele que o Tribunal Administrativo de Lisboa obrigou o IST a disponibilizar ao PÁGINA UM –, onde são feitas referências a relatórios anteriores. Como, por exemplo, a seguir ao gráfico da da página 6: “A incidência acumulada a 14 dias por 100.000 habitantes desceu entre relatórios de 3.352 para 636. Este é um mau indicador, como já referido nos relatórios anteriores.”

    Mas isto, visto está, agora, com os investigadores do IST – com estes investigadores do IST, que tiveram sempre a supervisão do seu presidente, Rogério Colaço, que sempre mostrou uma atitude obscurantista – pode afinal ser uma ilusão de óptica ou de memória, um lapso, uma banal gralha, até por supostamente estarmos perante “esboços embrionários, que consubstanciam meros ensaios para uns eventuais relatórios”.

    Portanto, colocam-se academicamente duas hipóteses: os investigadores do IST estavam convencidos que, quando escreveram aquela frase, tinham mesmo feito relatórios anteriores aos Relatórios Rápidos nº 51 e nº 52, mas estes afinal eram “fantasmas”.

    Trecho da página 6 do Relatório Rápido nº 52. O IST alega que não se provou a existência de mais relatórios para além do Relatório Rápido nº 52.

    Ou então estão a mentir ao tribunal.  

    Qualquer que seja a verdadeira hipótese, estes investigadores do IST estão a dar uma imagem pouco condizente com a de uma tão prestigiada instituição universitária pública de Portugal. E legitimamente deve levar à questão: é assim que se faz Ciência em Portugal? É esta a qualidade dos nossos cientistas que dão cartas além-fronteiras?  


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.

  • Pacote legislativo “esquece” perturbação da residência secundária, que já tem quota de 40% no Algarve

    Pacote legislativo “esquece” perturbação da residência secundária, que já tem quota de 40% no Algarve

    São mais de 1,1 milhões os alojamentos em Portugal que são utilizadas exclusivamente para férias ou residência secundária. No Algarve, quase 40% do total deste património imobiliário é deste segmento. O PÁGINA UM analisou os dados sobre habitação disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), onde se destaca que, no caso da região de Lisboa, apenas uma em cada 10 casas é de segunda habitação, e onde há assim menos disponibilidade imediata de alojamentos. Somando as habitações secundárias às casas que se encontram vagas, significa que um terço do parque habitacional em Portugal está, neste momento, indisponível para arrendamento ou venda. Ou seja, um total de 1,8 milhões de casas. Mas o Governo aparentemente ignora o impacte da residência secundária no mercado habitacional e sobre aqueles que apenas querem uma para viver condignamente.


    São casas usadas em exclusivo em curtos períodos, para passar as férias e fins-de-semana, e superam já os 1,1 milhões de alojamentos a nível nacional. No total, as casas usadas como habitação secundária correspondem agora a 18,5% do total do parque habitacional nacional, tendo crescido 180.462 em números absolutos em duas décadas, a um ritmo de mais de nove mil por ano. As regiões Norte e Centro são aquelas onde mais se concentram residências secundárias, agregando 61% do total, mas é o Algarve que apresenta um maior peso relativo: cerca de quatro em cada 10 alojamentos desta região são de residência não-permanente.

    Significa assim que, como estas casas não se encontram disponíveis no mercado, por usufruto contínuo embora intermitente dos seus proprietários, quase um quinto das habitações no país estão indisponíveis para venda ou arrendamento permanente. E o pacote legislativo, apresentado na passada quinta-feira pelo Governo, omite qualquer referência a este segmento, dando enfoque somente aos alojamentos não ocupados ou aos que estão a ser disponibilizados para alojamento local. Ou seja, quem tem casa considerada de segunda residência está livre, aparentemente, de sofrer imposições ou outras medidas coercivas do Governo para a colocar no mercado habitacional.

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    Quatro em cada 10 casas no Algarve não têm ocupação permanente.

    Em Portugal, o número de casas de segunda habitação – como são habitualmente designadas, mesmo quando os seus proprietários têm mais do que dois alojamentos – cresceu 20% nas últimas duas décadas, de acordo com dados censitários do Instituto Nacional de Estatística (INE) analisados pelo PÁGINA UM. Esta taxa foi ligeiramente superior ao crescimento do parque habitacional global, que foi de 19% entre 2001 e 2021.

    Se somarmos as segundas casas com as habitações que se encontram vagas (ou mesmo devolutas), correspondem a um total de mais de 1,8 milhões de alojamentos. Quer então dizer que um terço das casas em Portugal não permanentemente ocupadas estão, mesmo assim, fora do mercado de venda e arrendamento.

    Segundo uma análise do PÁGINA UM aos Censos, que abrangem a população e a habitação, em 2021 havia em termos líquidos, mais 180 mil casas como residência secundária do que em 2001, isto quando o património habitacional cresceu, nestas duas décadas, mais de 950 mil alojamentos.

    Número de alojamentos por segmento em Portugal e por regiões em 2021. Fonte: INE / Censos de 2021.

    No Algarve, o número de casas de férias disparou 42% entre 2001 e 2021, com 45 mil novas residências secundárias, mas em termos absolutos foi o Norte que mais aumentou, com 65.254 novos alojamentos neste segmento, embora com um crescimento relativo de 26%.

    Mas foi no Alentejo que o segmento da segunda habitação mais cresceu desde o início do século: comparando 2021 com 2001, registou-se um aumento de 51.898 novos alojamentos, mas apenas de 4.731 para residência habitual, sendo que a residência secundária contabilizou um aumento de 21.484 e os alojamentos vagos de 25.683 alojamentos.

    A região de Lisboa mostra ser aquela que registou uma evolução mais desequilibrada. Em 2001, agregava 27% do parque habitacional do país, mas apenas agregou 22% do crescimento global do país nas últimas duas décadas. Ou seja, o dinamismo na construção foi menor. O número de alojamentos vagos nesta região apenas aumentou em 10.449 alojamentos (que incluiu aqueles que estão devolutos, para venda, arrendamento ou demolição), e observa-se que o mercado imobiliário foi bastante dinâmico na habitação principal (mais 220.601 novos alojamentos), que foi mesmo “roubar” alojamentos secundários.

    Peso relativo dos alojamentos por segmento em Portugal e por região em 2001 e 2021. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Na verdade, a região de Lisboa foi a única que viu a residência secundária descer entre 2001 e 2021 (menos 16.039), em completo contraciclo com as outras regiões. Em Portugal, o crescimento do mercado da segunda habitação nas últimas duas décadas foi de 180.462 alojamentos.

    Os dados do INE sobre o património imobiliário por segmento mostram, aliás, que é redutor “culpabilizar” os proprietários de prédios devolutos (muitos já sem condições de habitabilidade) pela actual crise de escassez do mercado habitacional. Com efeito, do total de 5.970.677 alojamentos existentes em 2021, apenas sete em cada 10 (69,4%) têm ocupação habitual, sendo que quase duas em cada 10 são já usadas como residência secundária (18,5%) e as restantes estão vagas. Ou seja, há já muitas mais casas de segunda habitação do que casa potencialmente disponíveis para arrendamento ou venda.

    As diferenças regionais são, porém, enormes – e a nível municipal ainda serão maiores, e até deveriam ser analisadas em função do dinamismo demográfico e social de cada comunidade. Em todo o caso, a região de Lisboa é aquela onde, em 2021, afinal mais casas estavam ocupadas de forma habitual em 2021 (79,6% do total), e portanto onde seria mais difícil ir buscar mais alojamentos para o mercado. Para venda ou arrendamento, segundo o INE, nesta região apenas estão disponíveis 4,7% dos alojamentos existentes (cerca de 70 mil), havendo ainda 6% que se encontram vagos mas não disponíveis no mercado. O INE não explicita quantos destes últimos se encontram sem condições de habitabilidade. O mercado de segunda residência na região de Lisboa está em declíneo, por ser uma das regiões mais caras e de maior escassez no mercado habitacional.

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    A região de Lisboa tem carência habitacional a preços acessíveis, mas é a região do país com maior taxa de ocupação permanente de alojamentos.

    No lado oposto, o Algarve é a região mais rendida ao mercado da residência secundária, mas pela primeira vez os Censos mostram que o segmento da residência habitual (permanente) passou a minoritária: apenas 49,4% dos alojamentos estão agora ocupados todo o ano, sendo que a residência secundária representa já 38,6%, encontrando-se vagos 12%, dos quais 8% estão para venda ou arrendamento.

    O Alentejo e a região Centro são contudo as zonas de Portugal onde a percentagem de alojamentos vagos é ainda significativa, respectivamente 16,5% e 14,4%.

    No Norte, a fatia de casas destinadas a residência secundária face ao total de casas existentes, subiu um ponto percentual, para 16,9%. Também no Centro se observou uma subida, de 0,5 pontos percentuais, com 23,8% das casas a servirem como casas de férias.

    Ao anunciar um polémico pacote legislativo na passada semana, para dinamizar o mercado imobiliário, e permitir o acesso de famílias a casas a preços acessíveis, o Governo omitiu completamente a habitação secundária, que tem sido um dos factores mais desestabilizadores do mercado habitacional. De facto, a procura e compra de casas de segunda residência, em geral por famílias de maiores posses ou mesmo por estrangeiros, não apenas retira alojamentos do mercado habitacional como faz encarecer os preços em determinadas regiões.

    Marina Gonçalves, ministra da Habitação, António Costa, primeiro-ministro, e Fernando Medina, ministro das Finanças, na apresentação do pacote legislativo para a habitação na passada quinta-feira.

    O pacote de medidas “Mais Habitação” vai estar ainda em discussão pública durante aproximadamente um mês, e regressa ao Conselho de Ministros no dia 16 de Março para aprovação da proposta final, a qual será enviada à Assembleia da República.

    Entre as medidas, há algumas polémicas que se teme que possam até agravar a crise no acesso a rendas a preços acessíveis, já que torna mais valiosas as licenças de alojamento local, por exemplo, fazendo com que os proprietários não queiram passar os seus imóveis para o mercado de arrendamento.

    Estas medidas agora anunciadas surgem depois de anos de políticas de incentivo ao investimento no mercado imobiliário português, como os “Vistos Gold” e o alojamento local. Também foi promovida a atracção de residentes estrangeiros e dinamização do sector do turismo.

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    As políticas que foram implementadas ao longo dos últimos anos, a par da manutenção pelo Banco Central Europeu de taxas de juro artificialmente negativas, fez disparar os preços das casas em Portugal para níveis recorde, com grandes fundos de investimento a juntarem ao frenesim no sector.

    A procura externa fez disparar os preços das casas no país. Segundo dados divulgados pelo Confidencial Imobiliário, os preços de venda habitação em Portugal Continental subiram 18,7% no ano passado. Trata-se da “valorização anual mais elevada dos últimos 30 anos”. “É necessário recuar a 1991 para encontrar uma taxa de variação homóloga no final do ano superior à registada neste último mês de Dezembro”, segundo a mesma fonte.

    Segundo dados divulgados pelo INE, no espaço de um ano, os preços das casas em Portugal dispararam 13,5%, entre o final de Setembro de 2021 e o mesmo mês de 2022, com o preço mediano dos alojamentos familiares a fixar-se em 1.492 euros por metro quadrado.

    O forte aumento da procura e dos preços na habitação não foi compensado com políticas de disponibilização de habitação a preços acessíveis, nomeadamente com apoio do Estado ou das autarquias.

    A crise económica e o aumento do desemprego criados pelas medidas drásticas e sem precedentes impostas em Portugal pelo Governo durante a pandemia vieram penalizar ainda mais as famílias.

    Recentemente, com o aumento mais do que esperado da inflação, o Banco Central Europeu decidiu começar a subir as taxas de juro, a um ritmo que apanhou muitas famílias desprevenidas. Em 2022, a taxa de inflação média anual em Portugal fixou-se 7,8%, segundo o INE. Trata-se do valor mais alto desde 1992.

    As taxas Euribor estão actualmente em níveis máximos de 14 anos, nos prazos de 6 e 12 meses, os mais usados nos contratos de crédito à habitação em Portugal, tendo esta sexta-feira ficado fixadas, respetivamente, em 3,212% e 3,572%. Sobem para novos máximos há cinco sessões consecutivas.

  • PÁGINA UM esmiúça o infame “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”

    PÁGINA UM esmiúça o infame “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”

    O PÁGINA UM pediu e não foi dado. Recorreu ao tribunais, e mesmo assim teve de apresentar recurso ao Tribunal Central Administrativo Sul, porque o Instituto Superior Técnico (IST) não foi (ainda) obrigado a dar os ficheiros de dados nem todos os relatórios. Mas já temos, por imposição de sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, o famigerado Relatório Rápido nº 52, aquele que o IST chegou a classificar como “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”. Nesta análise do PÁGINA UM, os leitores compreenderão os motivos para o IST não querer mostrar o dito relatório de Julho do ano passado. É mau de mais. Ainda por cima feito por professores universitários. E explicamos em detalhe, com muito detalhe, o porquê.


    Ponto prévio

    No dia 8 de Junho do ano passado, órgãos de comunicações como RTP, Expresso, SIC, Público, Observador, CNN Portugal, Diário de Notícias, Jornal de Negócios, Jornal Económico, NiT, O Novo e Jornal de Notícias deram eco de um take da agência noticiosa Lusa de uma previsão feita por uma equipa de investigadores do Instituto Superior Técnico (IST) de que as festas populares nas semanas seguintes poderiam originar 350 mil casos positivos.

    Na base dessa notícia estava o Relatório Rápido nº 51, intitulado “Actualização do Indicador de Avaliação da Pandemia”, sob autoria de Pedro Amaral, José Rui Figueira, Henrique Oliveira e Ana Serro, sob coordenação de Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes na sede do Ordem dos Médicos, em Julho de 2021, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico recusou divulgar os estudos e os dados.

    Atentemos, textualmente, ao que é referido nesse relatório sobre aquela previsão:

    Estimamos que número de contágios produzidos sem máscara com os níveis actuais de susceptíveis [a serem infectados], em eventos como ‘Rock in Rio’ seja de 40.000 no total, sendo maior no caso dos santos populares em Lisboa e Porto, onde poderemos ter um mínimo de 60.000 contágios nos dias mais movimentados em Lisboa e 45.000 no Porto. Todas as festas populares no país poderão traduzir-se num total de contágios directos de, num mínimo, de 350.000 no país, podendo atingir valores mais elevados se novas variantes entrarem em Portugal.

    Mais adiante, acrescentava-se ainda o seguinte:

    A tendência ainda é de subida, prevendo-se o pico para depois do dia 15 de Junho e até final do mesmo mês. Esta previsão pode falhar, por defeito, se os contágios devido às festas populares forem descontrolados ou se surgirem novas variantes.

    Ora, para as três semanas que mediavam até ao final daquele mês de Junho, a equipa do IST assumia assim que, além das infecções que decorreriam (como habitualmente) na população em geral (sendo que o Rt era então de 0,97), haveria ainda um acréscimo de 350.000 casos apenas por causa das festas populares no país e dos festivais de música.

    Capas do Relatório Rápido nº 51 e do Relatório Rápido nº 52, apenas obtido após sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa. Corre um recurso para obrigar o Instituto Superior Técnico a fornecer também os ficheiros com dados e todos os outros 50 relatórios.

    Tendo em consideração que a média diária de casos positivos nos primeiros seis dias de Junho de 2022 foi de cerca de 20 mil, segundo dados da DGS, e que as estimativas do IST apontavam para um acréscimo médio entre 14 mil e 15 mil novas infecções diárias até ao fim desse mês por via das festas populares e festivais (350 mil a dividir por 24 dias), seria assim expectável um aumento muito significativo do total de casos positivos.

    Contudo, ao invés de se observar qualquer aumento do número de casos positivos ao longo de Junho – e em especial a partir da segunda semana desse mês –, verificou-se sim um forte decréscimo em plena época festiva sem qualquer uso de medidas não-farmacológicas, como seja as máscaras. Com efeito, entre 6 e 30 de Junho foram contabilizados 303.364 novos casos em todo o país e para todas as circunstâncias, ou seja, uma média diária de 12,6 mil casos.

    No entanto, nos últimos 10 dias de Junho, a média diária foi de 8,7 mil casos positivos. O decréscimo de casos positivos apresentou uma consistente tendência desde 19 de Maio, quando se registraram 27.481 casos, em média móvel de sete dias. Ao longo de Julho, a tendência decrescente manteve-se. No dia 10 desse mês, a média móvel de sete dias já estava abaixo dos 7.000 casos e no dia 31 estava em cerca de 3.000 casos.

    Evolução dos casos positivos em Portugal ao longo da pandemia. Fonte: Worldometers.

    Esta evolução confirmou que o SARS-CoV-2 teve um “comportamento” independente das medidas não-farmacológicas, uma vez que se observou uma redução da transmissão mesmo com o aumento de contactos sociais.

    A saga do Relatório Rápido nº 52 e o tribunal

    No dia 21 de Julho do ano passado, o jornal digital Blind Spot destacou que a previsão do IST fora um completo falhanço, mas que não merecera qualquer referência nos media mainstream.

    Uma semana depois, em 28 de Julho, a generalidade da imprensa veio sim divulgar, através da agência noticiosa Lusa, que afinal os peritos do IST até concluíram que as suas previsões não tinham, supostamente, falhado por muito. No take da Lusa destacava-se o seguinte:

    No último relatório, os peritos antecipavam que a realização destes eventos, sem máscaras nem testagem, resultasse em 350 mil contágios diretos no país. A realidade ficou ligeiramente abaixo, mas não muito distante.

    De acordo com as estimativas mais recentes, houve cerca de 242 mil casos de covid-19 registados oficialmente devido às festividades dos santos populares e festivais como o Rock in Rio. ‘Se juntarmos os casos não reportados oficialmente atinge-se o número de 340 mil’, refere o relatório, produzido por Henrique Oliveira, Pedro Amaral, José Rui Figueira e Ana Serro, que compõem o grupo de trabalho coordenado pelo presidente do Técnico, Rogério Colaço.

    Evolução dos óbitos atribuídos à covid-19 em Portugal ao longo da pandemia. Fonte: Worldometers.

    Comparando com um cenário em que se manteria a testagem e a obrigatoriedade do uso de máscara em grandes eventos, a incidência estimada durante o mês de junho seria inferior, referem os peritos, que sublinham que as medidas ‘não teriam impacto económico’”.

    E, segundo a Lusa, os peritos do IST até quantificavam mortes devido às festividades:

    Em relação aos óbitos, os peritos apontam a morte de 790 pessoas com covid-19 devido ao levantamento das restrições e às festividades, dos quais 330 associados às festas populares de junho”.

    Como se sabe, o PÁGINA UM requereu em finais de Julho do ano passado o acesso ao relatório que esteve na base da notícia da Lusa – disseminada pela generalidade da imprensa –, bem como a todos os restantes relatórios e os ficheiros com os dados numéricos, o que foi recusado pelo presidente do IST, Rogério Colaço.

    A intimação interposta pelo PÁGINA UM em Setembro do ano passado, resultou numa sentença no sentido de o IST fornecer o Relatório Rápido nº 52. Não foram expressamente dadas indicações pela juíza para a entrega, como solicitado, dos 51 anteriores relatórios nem dos ficheiros de dados. Como o IST se recusa a fornecer esses elementos, a análise seguinte considerará que quaisquer elementos e conclusões obtidas não apresentam prova científica.

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    Análise detalhada do Relatório

    Análise ao sumário

    O Relatório Rápido nº 52 começa por referir que “fazemos neste relatório a análise da sexta vaga de COVID-19 em Portugal”.

    Ora, embora a comunicação social e as autoridades sanitárias tenham, de forma unânime, definido a ocorrência de seis vagas da pandemia em Portugal, nunca existiu um critério científico que determinasse de forma inequívoca o que é uma vaga. Por outro lado, não existiu coincidência entre “vaga de casos” e “vaga de mortes”. Com efeito, o pico de mortalidade ocorreu em finais de Janeiro de 2021 (286 mortes, no dia 30, em média móvel de sete dias), enquanto o pico de casos positivos ocorreu quase um ano depois – já dominando então a muito menos letal variante Ómicron –, no dia 28 de Janeiro de 2022 com 58.660 (média móvel de sete dias).

    Por exemplo, se consideramos aquela que é definida pelos media e autoridades de saúde como a “primeira vaga”, entre Março e Maio de 2020, o máximo de casos positivos esteve sempre abaixo dos 800 e o pico de mortes foi de 34 (média móvel de sete dias). Ou seja, a denominada “primeira vaga” teve um pico nos casos positivos de menos de 2% do pico máximo da pandemia (28 de Janeiro de 2022) e um pico nas mortes de 12% do pico de mortalidade da pandemia (30 de Janeiro de 2021).

    Evolução do Indicador da Avaliação da Pandemia do Instituto Superior Técnico. A linha a vermelho indica a evolução se não houvesse vacinas. Os relatórios não permitem aferir como foi definido o modelo e quem o calibrou. Fonte: IST.

    Observando agora, à distância de quase três anos de pandemia, dir-se-á que, para os casos positivos, o surgimento da Ómicron marcou um período de grande transmissibilidade, mas baixa mortalidade, sendo que, neste contexto – e até tendo em conta as mudanças na estratégia de testagem – se mostra difícil classificar como ondas (ou vagas) as variações anteriores a 2022.

    No caso das mortes, verifica-se que em apenas quatro meses (Novembro de 2020 a Fevereiro de 2021) ocorreram quase 13.900 óbitos (cerca de 52% do total nos três anos da pandemia), o que dá uma média diária de quase 116 óbitos.

    Ora, retirando este período, observam-se outras três “flutuações” ao longo da pandemia: Primavera de 2020, Inverno de 2021-2022 e Maio-primeira metade de Junho de 2022. No primeiro período, a mortalidade máxima foi de 34 óbitos (média móvel de sete dias), no segundo de 51 óbitos e no terceiro de 42 óbitos. Falar-se de ondas nestes casos parece assim perfeitamente exagerado e sem base científica sustentável.

    Nessa linha, foi uma mera opção, completamente subjectiva dos investigadores, a escolha do dia 25 de Abril de 2022 como “data de arranque da sexta vaga em Portugal”. Existirem cientistas que usem a expressão “data de arranque” neste contexto, já deixa muito a desejar.

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    Na verdade, após se registar um pico máximo no dia 28 de Janeiro (58.660 casos positivos, em média móvel de sete dias), registou-se uma redução bastante rápida até início de Março, mas os valores estiveram sempre estáveis até finais de Abril. Note-se que o Governo determinou o fim da situação de calamidade em 17 de Fevereiro de 2022.

    Se considerarmos os casos activos, existe efectivamente uma inversão por volta do dia 25 de Abril de 2022 (então com cerca de 250 mil casos activos, ou seja, com pessoas “infectadas”), mas a “onda” que depois se formou, com pico na terceira semana de Maio, apenas confirma que as flutuações antes de 2022 não são, pela sua dimensão e amplitude, ondas.  

    Atente-se agora a esta frase do sumário do Relatório Rápido nº 52:

    A análise dos dados oficiais da pandemia de COVID-19 em Portugal indica o declínio da sexta vaga confirmando-se a redução dos números da incidência, previstos por nós em Junho, estamos neste momento em cauda alongada com sentido descendente.

    Portanto, a mais falsa das falsidades.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico. Um relatório científico foi apenas divulgado por imposição de um tribunal.

    Retomemos também, sem mais comentários, a seguinte frase do Relatório Rápido nº 51, o tal de Junho de 2022, antes das festas populares:

    A tendência ainda é de subida, prevendo-se o pico para depois do dia 15 de Junho e até final do mesmo mês. Esta previsão pode falhar, por defeito, se os contágios devido às festas populares forem descontrolados ou se surgirem novas variantes.

    A imensa falta de pudor e de ética em todo o esplendor. Errar é humano; ludibriar também é humano, mas acresce a isso a falta de ética, o que, em meio científico, é um pecado capital.

    Adiante.

    Passando, por agora, sobre o indicador da pandemia propriamente dito, referido no sumário, foquemo-nos na seguinte frase deste Relatório Rápido nº 52:

    O número de casos até este momento atribuíveis ao levantamento das medidas de mitigação (libertação do uso da máscara e testagem deixar de ser gratuita) somado às festas de Junho é de 646.000, com erro de 10% e confiança a 99%.”

    Sem dados numéricos disponíveis e sem conhecer os pressupostos que determinam a eficácia do uso de máscaras e da influência da gratuitidade da testagem, mostra-se impossível contestar o valor de 646.000 casos, mesmo se, para impressionar, os peritos do IST acrescentam uma pitada de suposto rigor estatístico: “erro de 10% e confiança a 99%”. Com Ciência deste calibre, até poderiam dizer que o erro era de 99% e confiança a 10%. Na verdade, a confiança, assim como são apresentados estes números, é nula. Zero.

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    Em todo o caso, sempre se pode dizer que causa espanto que as medidas não-farmacológicas pudessem a partir de finais de Abril reduzir em cerca de metade os casos positivos (houve cerca de 1,2 milhões de casos entre 25 de Abril e finais de Junho de 2022, ou seja, cerca de 18 mil casos por dia), quando não mostraram aparentemente qualquer eficácia para evitar as elevadas transmissões em Janeiro de 2022. De facto, nesse mês, apesar das fortes restrições, que chegaram a segregar os não-vacinados, registaram-se cerca de 1,4 milhões de casos, isto é, quase 45 mil casos por dia.

    Sempre se pode argumentar que teria sido pior sem nada se fazer, mas eis aqui o grande problema das previsões e da alegada eficácia de muitas das medidas não-farmacológicas: sustentaram-se sempre em cenários alternativos não verificáveis, ou seja, na contrafactualidade.

    Sigamos agora para a parte mais atabalhoada do sumário do Relatório Rápido nº 52:

    No último relatório previmos que o número de contágios produzidos sem máscara em eventos como “Rock in Rio”, festivais e todas as festas populares no país poderiam traduzir-se num total de contágios directos de 350.000. Os números registados (oficiais) de casos a mais, produzidos por esses contágios estimados por nós são de cerca de 242.000. Se juntarmos os casos não reportados oficialmente (assintomáticos, pauci-sintomáticos e ligeiros não testados oficialmente) atinge-se o número de 340.000, ficando ligeiramente abaixo dos valores previstos por nós. O erro é de 10% com confiança a 99%.

    Um relatório anterior do IST concluía que as festas populares e os festivais de música em Junho de 2022 tinham sido responsáveis por 330 mortes. Análise do relatório mostra que número foi atirado sem nexo.

    Ora, repita-se: os 350 mil casos previstos no Relatório Rápido de Junho eram apenas relativos às festividades e festivais de música, pelo que se deveriam acrescentar os casos expectáveis em situação normal. Não se entende, por isso, onde os “peritos” do IST desencantaram os 242 mil casos supostamente a mais – registaram-se cerca de 423 mil casos positivos em Junho, que contrasta com os 721 mil em Maio –, porque aquilo que houve, sim, foi uma clara descida.

    Porém, note-se no truque: os peritos do IST aconselham que se juntem “os casos não reportados oficialmente” para assim se perfazer os 340 mil casos, de sorte a ficar-se “ligeiramente abaixo dos valores previstos por nós”. Voilà!

    Assim se fez um acréscimo de 40%, qual coelho tirado da cartola, para “acertar” quase na mouche na previsão de Junho.

    Mas, pergunta-se, no meio deste emaranhado de números atirados ao ar: e então quando em Junho previram os tais 340 mil casos positivos, estes peritos do IST não consideraram os assintomáticos, pauci-sintomáticos e ligeiros não testados oficialmente porquê? Se assim fosse, então teriam de dizer, logo no Relatório Rápido nº 51, que os tais 340 mil casos das festividades e festivais seriam apenas os números reportados; e que se se quisesse saber os números reais se teria de acrescentar mais 40%. Ou seja, em vez de 340 mil seriam 475 mil.

    Evolução das variáveis usadas pelo IST na elaboração do Indicador de Avaliação da Pandemia. Além de não se conhecer o modelo em detalhe, as incongruências são inúmeras. O indicador serviu apenas para fomentar alarmismo.

    Enfim, não podem é os peritos do IST assumir uma subnotificação posterior para validar uma previsão feita sem assumir a existência dessa subnotificação.

    E mesmo que, depois, e mais uma vez, os peritos do IST temperem tudo com a costumeira ladainha de suposta credibilização estatística: “o erro é de 10% com confiança de 99%”. Chavões!

    As duas frases seguintes do Relatório Rápido nº 52 são de uma atroz irresponsabilidade:

    O número de óbitos, até este momento, atribuíveis ao levantamento das medidas de mitigação (libertação do uso da máscara e testagem deixar de ser gratuita) e, ainda, festas de Junho sem essas medidas é de 790, com erro de 10% e confiança a 99%. O número de óbitos atribuíveis até hoje aos contágios das festas populares de Junho é de 330, com erro de 10% e confiança a 99%.

    Descontando também já o blá blá do “erro de 10% e confiança a 99%”, não se vislumbra qualquer base científica na atribuição de um qualquer valor de mortalidade por um suposto impacte negativo da “libertação do uso da máscara e [da] testagem deixar de ser gratuita”. Até porque se se discute a questão das medidas não-farmacológicas, então deve entrar na equação a eficácia das medidas farmacológicas – isto é, as vacinas. Ora, seria sensato atribuir vacinas as responsabilidades por mortes atribuídas ao SARS-CoV-2 por aquelas não serem 100% eficazes? Fica a pergunta, mas tudo me parece absurdo.

    Relatório do IST está inundado de especulações e de “certezas” com base em contrafactualidade, ou seja, de eventos que teriam ocorrido se não ocorresse antes outro. Neste caso, a evolução da incidência entre finais de Abril de 2022 e Julho de 2022 observada e com as medidas não-farmacológicas (que deixaram de ser impostas). Fonte: IST.

    Por outro lado, quanto às mortes atribuídas às festas populares e aos festivais de música, mostra-se evidente que os peritos do IST não podem comprovar nenhum dos números que apontam. Aliás, o relatório não explicita como chegaram àquele valor.

    Deduz-se apenas que terão aplicado uma taxa de letalidade a rondar os 0,1%, mas nem isso dizem. Mas mesmo aplicando uma taxa de letalidade de 0,1% – que é aquela que a Ómicron apresenta –, essa é uma percentagem global, que não tem em conta a juventude da assistência aos festivais e festas populares. Por exemplo, a letalidade da covid-19, antes da vacina, para os menores de 18 anos é de 0,0003%.

    Ora, para estimar com o mínimo de rigor algo tão sensível – a atribuição de mortes a festas populares e a festivais – seria mais sensato pelo menos aplicar um inquérito a uma amostra correctamente estratificada para a partir daí se estimar a percentagem de casos positivos – e subsequente cadeia de transmissão – com suspeita de infecção nas festividades e festivas, e daí estimar-se a letalidade e a mortalidade.

    Convenhamos que fazer um estudo desta natureza representaria um investimento de recursos significativo, mas se isso não era opção exequível, então os peritos do IST deviam, por prudência, descartar estapafúrdias e irresponsáveis especulações. Bem sabemos que atirar números para o ar é bem mais fácil, mas um cientista não pode nem deve escolher o facilitismo; de contrário, deixa de ser cientista.

    Instituto Superior Técnico: uma instituição universitária que (agora) produz Ciência que não quer revelar.

    Em todo o caso, uma alternativa, bem mais barata, passaria por uma análise detalhada (regional e etária) dos casos e mortes ao longo de Junho e Julho do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE) – uma das bases de dados, cuja recusa de acesso ao PÁGINA UM por parte da DGS se encontra ainda em análise pelos tribunais administrativos –, para se perceber se existiram, durante Junho de 2022, alterações quantitativas no padrões regionais e etários. Contudo, não se denota, nem explícita nem implicitamente, que os peritos do IST tenham sequer olhado com detalhe para o SINAVE. Atiraram números, seguidos do jargão “erro de 10% e confiança a 99%”. E está feito.

    Sobre o famigerado Rt, usado até às décimas no sumário (era de 0,97 em Junho, no Relatório Rápido nº 51, e passou para 0,90 no seguinte), recordemos sempre um artigo da Nature de 3 de Julho de 2020, sugestivamente intitulado “A guide to R – the pandemic’s misunderstood metric”, onde surgia um especialista em doenças infecciosas da Universidade de Edimburgo, Mark Woolhouse, a salientar que “os epidemiologistas esta(vam) bastante empenhados em minimizar o R [por estar a ser usado para os fins para os quais nunca foi planeado], mas que os políticos parec[iam] tê-lo abraçado com entusiamo”. E concluía: “Estamos preocupados por termos criado um monstro. O R não nos diz o que precisamos de saber para gerir a pandemia”.

    Mark Woolhouse não imaginaria que, afinal, o Rt seria tão apadrinhado por peritos do quilate dos do IST.

    De facto, a obsessão pelo índice de transmissibilidade nos últimos anos, mesmo em fases avançadas da pandemia, pareceu sempre pouco compreensível. As flutuações neste indicador terão dependido mais de factores sazonais – e outros ignorados – do que pela implementação de medidas não-farmacológicas. O R nunca foi a variável dependente da equação; ou seja, mudava muito pouco em função dos comportamentos humanos.

    person in white jacket wearing blue goggles

    Por fim, o sumário do Relatório Rápido nº 52 do IST termina com a seguinte frase:

    Nesta sexta vaga o custo devido a baixas e isolamentos já pode ser confirmado e atinge, neste momento, entre de 29.900.000 e 32.000.000 de horas de trabalho (confiança a 95%), devendo ficar ligeiramente acima do valor de 30 milhões previsto anteriormente.

    Mais uma frase caída do céu, não sustentada quer no sumário quer no corpo do relatório. Ignora-se, para esta estimativa, quais as variáveis consideradas, se se abrangeu apenas a população activa, quantos dias em média de baixa, etc. Em todo o caso, 30 milhões de horas de trabalho perdidas por baixas e isolamento representam 3,75 milhões de dias de trabalho (de oito horas). Se considerássemos um período de isolamento médio de 7 dias – então em vigor para os assintomáticos e doentes com sintomas leves – estaríamos a falar de quase 536 mil pessoas em idade activa, o que dá cerca de 10% da força de trabalho em Portugal.

    Seria necessário também validar este número, nem que fosse por simples consulta do SINAVE por uma questão de credibilidade. Os peritos do IST não o fizeram, ou não indicaram que fizeram. Acrescente-se que as cerca de 536 mil pessoas representariam quase 45% do total dos infectados pelo SARS-CoV-2 entre finais de Abril e final de Junho.

    Por outro lado, convém referir ser abusivo considerar que todas as pessoas que estiveram em isolamento representaram horas de trabalho perdidas.

    Análise ao capítulo da situação actual

    Nos dois relatórios do IST conhecidos (51 e 52) refere-se que o indicador de avaliação da pandemia (IAP) – para o qual apresentam valores – combina a incidência, transmissibilidade, letalidade, hospitalização em enfermaria e em unidades de cuidados intensivo, apresentando-se os ponderadores. Não sendo claro, aparentemente trata-se de um modelo de regressão, mas não se diz quem o estimou, quem o calibrou e se os seus resultados se mostraram fiáveis à medida que a pandemia evoluiu e surgiram novas variáveis. Em especial com a Ómicron, houve uma maior transmissibilidade, logo uma maior incidência, mas com uma menor letalidade, logo uma menor hospitalização em enfermaria e em cuidados intensivos.

    man in brown coat wearing white face mask

    Se for esse o modelo, então apresenta variáveis aparentemente redundantes: a incidência estará, em princípio, fortemente correlacionada com a transmissibilidade; a letalidade com as hospitalizações, sendo que as hospitalizações em cuidados intensivos estão fortemente correlacionadas com as hospitalizações em enfermaria. Isto costuma dar porcaria num modelo desta natureza.

    A análise do gráfico dos contributos individualizados das variáveis para o IAP – para os quais se desconhecem os dados, pelo que pode estar-se aqui perante um mero exercício de design gráfico, e não de Ciência – mostra bem que a incidência só cria ruído no modelo. Com efeito, ao longo da pandemia, a incidência contribuiu exageradamente para elevar o IPA em diversos períodos de baixa letalidade, como se observa sobretudo a partir de Junho de 2021. O mesmo se verifica com a transmissibilidade.

    Aliás, o modelo parece também não funcionar bem com variáveis como a letalidade, até porque nem sequer é claro como esta variável foi calculada pelos peritos do IST. Em todo o caso, como aparentemente existe um desfasamento temporal entre a letalidade e a incidência, a letalidade não terá sido calculada considerando o desfasamento entre a infecção e a morte. Nessa linha, os valores da letalidade pecam por excesso quando a incidência já está em decréscimo. A confirmar-se esse facto o modelo fica, desde logo, “inquinado”.

    brown and white long coated small dog wearing eyeglasses on black laptop computer

    Também se nota, pela observação do mesmo gráfico, a própria inutilidade do IAP – que, recorde-se, apenas começou a ser aplicado como modelo a partir de Junho de 2021 e nunca foi sequer considerado pela DGS. Com efeito, a subida repentina deste indicador em Junho de 2021 – quando o IST começou a elaborar os seus relatórios em parceria com a Ordem dos Médicos – não teve qualquer contributo relevante das variáveis mais importantes em termos de Saúde Pública: letalidade e hospitalizações.

    Outro exemplo: em Fevereiro de 2022 – que por ser mês de Inverno está associado a maior incidência e hospitalizações de doenças do foro respiratório – o IAP deu valores mais baixos do que os registados no Verão de 2021. Mistério ou evidência de que este indicador apenas “vomitava” um número sem qualquer relevância epidemiológica, e até enganador, para não dizer alarmista.  

    E serviu, ademais, especialmente, para sustentar, como argumento de autoridade, frases sem uma mínima validade científica.

    Por exemplo, o Relatório Rápido nº 52 refere o seguinte:

    O alívio de medidas [não-farmacológicas] provocou um pico maior e uma descida mais lenta após este ter sido atingido, como veremos mais à frente”.

    group of people attending concert

    Não existe qualquer facto, suportado no modelo nem em outra informação científica, para esta afirmação. E até se mostra um contrassenso: se as medidas não-farmacológicas são eficazes e foram sendo levantadas a partir de Fevereiro de 2022 e se aliviaram ainda mais a partir de Abril, então por que razão os casos positivos em Janeiro foram tão elevados, quando então estavam em vigor fortes restrições? Dir-se-á que foram as vacinas: mas se assim é, porque não entraram como variável no modelo? E se são as vacinas assim tão relevantes para controlar a pandemia, por que motivo se insistiu tanto em medidas não-farmacológicas ao longo de 2021 e até meados de 2022?

    Aliás, não tendo a vacinação entrado como variável mostra-se extraordinário como o Relatório Rápido nº 52 apresenta gráficos, completamente caídos do céu, com linhas contrafactuais (a vermelho) para vários parâmetros. Os peritos do IST continuam, aliás, a negar que a diminuição da letalidade se deveu, em grande medida, ao surgimento da Ómicron e também à imunidade natural, sobretudo a partir dos surtos de Janeiro e Fevereiro de 2022 que implicaram a infecção e a obtenção de imunidade natural em mais de metade da população portuguesa.

    Relatório do IST apresenta a variação da mortalidade por covid-19 entre finais de Abril e Julho de 2022, com os dados oficiais (a preto) e com valores que ocorreriam se as medidas não-farmacológicas se tivessem mantido (a vermelho). Não são fornecidas explicações sobre estas estimativas. Fonte: IST.

    O Relatório Rápido nº 52 tem também frases completamente falsas, porque manipuladas. Peguemos neste exemplo:

    Os óbitos diários em média móvel a sete dias passaram de 30,3 para 41,4 desde dia 22 de Maio. Como dito no último relatório, haveria uma “subida deste indicador nos próximos 30 dias”, confirmou-se. Estamos em cerca de 56 casos por milhão de habitantes acumulados em 14 dias, muito acima, 2,75 vezes acima, do número considerado aceitável pelo ECDC para redução de medidas de mitigação. Note-se que, neste momento, não existem medidas de mitigação de contágios em caso de contactos directos, como o uso de máscaras de elevada qualidade.

    Note-se como é escrito: “Os óbitos diários em média móvel a sete dias passaram de 30,3 para 41,4 desde dia 22 de Maio.” Desde 22 de Maio até quando? Se for até 22 de Junho – considerando que os peritos do IST dizem que previam e alegadamente acertaram “a subida deste indicador nos próximos 30 dias –, então estamos perante uma rotunda mentira. Efectivamente, a mortalidade diária subiu, por força do desfasamento entre os valores da incidência e a mortalidade, mas apenas até 7 de Junho (43 óbitos, em média móvel de sete dias), mas depois desceu fortemente. No dia 22 de Junho – portanto, um mês depois da previsão de subida –, o número de óbitos estava em 31, ou seja, estava igual ao do mês anterior, mas com forte tendência decrescente. No final de Junho estava nos 19 óbitos. Como o relatório do IST refere que foram recolhidos dados em 26 de Julho, nesse dia o número de óbitos estava nos 10 (média móvel de sete dias).

    person covering the eyes of woman on dark room

    Curiosa também, no mínimo, é a seguinte afirmação no Relatório Rápido nº 52:

    A letalidade teve uma subida em meados de Maio, altura em que as doses de reforço ainda não faziam efeito nas camadas mais vulneráveis, tendo depois estabilizado em valores ligeiramente abaixo de 0.2%, estando agora em 0.17%. Varia muito de acordo com o escalão etário afectado, nota-se também uma possível correlação com vagas de calor, facto que deve ser aprofundado em estudos mais longos.

    No início de Maio de 2022, de acordo com o Relatório da Situação nº 745 da DGS, relativo a 18 de Abril de 2022, a vacinação de reforço já atingia os 95% nos maiores de 80 anos, os 97% no grupo dos 65 aos 78 anos e de 83% no grupo dos 50 aos 64 anos.

    Pasme-se, portanto: como se pode afirmar num suposto relatório científico que a “letalidade teve uma subida em meados de Maio, altura em que as doses de reforço ainda não faziam efeito nas camadas mais vulneráveis”? No limite, os peritos do IST deveriam, sim, suspeitar da eficácia das vacinas; e não de as doses de reforço não terem tido ainda tempo fazer efeito nas camadas mais vulneráveis …

    E depois, o que dizer sobre a referência às vagas de calor em Maio? Qual o pretexto? É uma mera opinião? Foi um bitaite? Diga-se que um aumento da temperatura em Maio até diminuiria a mortalidade, porque uma onda de calor na Primavera (superior a 5 graus face à média em cinco ou mais dias consecutivos) está longe de ser mortífera (ao contrário do que sucede no Verão), uma vez que temperaturas anormalmente altas em Maio será previsivelmente mais baixas do que um mês normal de Verão.

    person holding white plastic bottle

    Mais absurdas ainda são as declarações de fé do Relatório Rápido nº 52, algo triste num documento supostamente científico. Como, por exemplo, nesta parte:

    A tendência [de mortalidade] será, ainda de descida. Desde 13 de Junho de 2021 que não há nenhum dia sem óbitos COVID-19 em Portugal. Sem novas variantes poderemos aspirar a esse desígnio durante o mês de Agosto.

    Enfim, por um lado, ao longo da pandemia sempre foram surgindo variantes – é uma falácia julgar-se que só tivemos a Alfa, a Delta, a Ómicron e poucas mais – e sempre se mostrou um erro o objectivo mortes-zero. Uma situação endémica nunca significa ausência de mortes. Termos como “poderemos aspirar” não são próprios da Ciência. Aliás, quase nem valeria a pena referir que a mortalidade diária por covid-19 (média de sete dias) em Agosto de 2022 variou entre os 5 e os 11 óbitos, valores que estão dentro de uma situação considerada endémica. Por exemplo, as pneumonias na fase anterior à covid-19 representavam cerca de 10 óbitos por dia no Verão.

    Análise às conclusões

    As conclusões do Relatório Rápido nº 52 merecem destaque, parágrafo a parágrafo, frase a frase.

    Vejamos:

    1 – “A sexta vaga confirmou-se de forma clara e está agora em franco declínio.

    Como já referido, é abusivo considerar-se que houve sexta vaga, porque nem sequer existe critério científico para definir “vaga”, nem se determinou se essa denominação se aplica ao número de casos ou ao número de óbitos ou a uma variação da letalidade e/ ou internamentos. O “franco declínio” não se estava a verificar no “agora” (finais de Julho de 2022, quando foi escrito o relatório), mas desde Maio de 2022.

    two black and white dogs walking at pathway

    2 – “A situação é de grande redução do perigo pandémico face ao anterior relatório.

    Desde Março de 2021 deixou de haver risco pandémico. O surgimento da Ómicron, a partir de Novembro de 2021, apesar de ter causado um aumento da transmissibilidade, foi acompanhada por uma redução muito significativa da letalidade, que está longe de ser explicada apenas pela vacina.

    3 – “A nova linhagem BA.5 da variante Ómicron teve um impacto significativo em Portugal que se atenua agora por saturação dos contágios e redução de susceptíveis. Continuamos a afirmar que uma monitorização de qualidade é adequada.

    O impacto significativo da Ómicron acabou por ser paradoxalmente benéfico para o controlo da pandemia, além de se ter comprovado (se tal fosse necessário), com os surtos no início de 2022, a fraca capacidade das vacinas em evitar transmissão e infecção, mesmo com o auxílio de medidas não-farmacológicas. Saliente-se que entre Novembro de 2021 e Junho de 2022 (oito meses) houve cerca de 4 milhões de casos positivos, atingindo uma população activa quase integralmente vacinada. A taxa de letalidade a partir de Dezembro de 2021 baixou bastante em comparação com o período anterior já com vacina contra a covid-19, o que parece demonstrar que a letalidade do SARS-CoV-2 intrinsecamente reduziu-se com a nova variante.

    fox

    4 – “O termómetro da pandemia, i.e., o IAP, está em 63.7 pontos com dados oficiais, o que segundo a Ordem dos Médicos (Gabinete de crise) e o Técnico (grupo de trabalho autor deste texto) está abaixo do nível de alerta (80 pontos) mas obriga a monitorização e alguma mitigação.

    O valor de 63,7 é apenas um número que sai de um modelo que o IST não permite ser validado de forma independente. Não se conhece os pressupostos para que a partir de um valor acima de 80 no IAP se esteja num nível de alerta.

    5 – “Para o mês de Setembro aconselhamos o reforço da monitorização e passar a mensagem de que o perigo pandémico ainda não terminou, sobretudo com o regresso às aulas e a provável disseminação de novas variantes, sempre mais rápidas a contagiar.

    Futurologia sem base científica. Não se compreende o receio de as novas variantes puderem apresentar maior disseminação; por regra, vírus com maior rapidez (facilidade) de disseminação apresentam menor letalidade. Aliás, a evolução dos outros coronavírus apontam para essa forte hipótese para o SARS-CoV-2.

    6 – “Recomendamos a utilização de máscara sempre que o risco de contágio possa existir.

    Afirmação que não encontra respaldo no modelo, pelo que constitui uma mera opinião sem referência científica. Convinha lerem as evidências encontradas pela Cochrane.

    7 – “A monitorização dos números da pandemia deve ser feita de forma rigorosa e transparente até a declaração de “Fim De Pandemia” da OMS. Dados rigorosos e muito actualizados devem fundamentar a tomada de decisão. Nesse sentido, reforçamos o já dito antes, nesta fase será recomendável que sejam publicados os números dos internamentos e os dados regionais. Bastará para tal usar um sistema semelhante ao usado na divulgação dos dados dos novos casos e óbitos, sem necessidade de elaborar relatórios diários.

    Não deixa de ser caricato e risível – e também hipócrita – que os peritos do IST apelem para uma monitorização de forma rigorosa e transparente, quando para o PÁGINA UM ter acesso ao Relatório Rápido nº 52 houve necessidade de recorrer a uma intimação ao Tribunal Administrativo de Lisboa. E para ter acesso aos ficheiros informáticos teve de recorrer ao Tribunal Central Administrativo Sul. Será que os peritos do IST, não sendo de Humanidades, entendem o conceito de transparência?

    baby lying on blue blanket

    8 – “Como escrito muitas vezes nos nossos relatórios: “Há ainda e sempre a possibilidade da introdução de novas mutações do SARS-CoV-2”. Fica a ressalva de que uma nova variante pode sempre colocar em causa previsões baseadas nas variáveis e parâmetros das variantes actuais. O país deve manter-se preparado, nomeadamente quando não existem medidas de mitigação e uma baixa monitorização, para enfrentar uma situação de grande risco em Setembro com agravamento em Outubro.”

    Tudo pode acontecer, de facto; até o fim do Mundo; até um dia termos peritos do IST a realizar relatórios desta natureza com isenção, rigor, sobriedade… e transparência. E já agora, alguém se recorda se houve alguma situação “de grande risco em Setembro com agravamento em Outubro” de 2022 em Portugal? Não, não houve. Mais um falhanço dos peritos.

    9 – “O período entre vagas pandémicas subiu ligeiramente e está agora entre 120 e 130 dias, como demonstra a transformada de Fourier dos dados da incidência, no gráfico abaixo.

    O uso da transformada de Fourier pressupõe que o comportamento do vírus foi, é e será sempre cíclico. Se assim fosse, como os peritos do IST assumem com grande fé, a pandemia nunca deixará de existir, porque haveria novos surtos ad aeternum.

    10 – “Repetimos o escrito no anterior relatório que se mantém actual: “As autoridades de saúde devem adaptar a sua estratégia a esta periodicidade. Há uma indicação que no início de Setembro, com um erro de 15 a 20 dias, teremos o início de uma nova vaga pandémica. Estamos a modelar os nossos sistemas dinâmicos com perda de imunidade, natural e adquirida, o que resulta em soluções periódicas, amplamente documentadas na literatura, v.g., [Martcheva, M. (2015). An introduction to mathematical epidemiology (Vol. 61, pp. 9-31). New York: Springer]. Se a hipótese da perda de imunidade se verifica, estas vagas vão-se suceder de forma periódica ao longo dos anos. A única forma de quebrar estes ciclos será com vacinas de nova geração. A teoria e a história indicam, também, que as ondas pandémicas se irão atenuando ao longo dos ciclos repetidos até o vírus se tornar “endémico”. Isso é possível, mas apenas o próximo Inverno vai ditar se estamos realmente nesse caminho e o país deve continuar preparado e com mecanismos de resposta rápida.

    Eis uma perfeita, conclusiva e comprometedora declaração de fé. A realidade tem estado a desmentir este alarmismo. Em Setembro e Outubro de 2022 houve pouco mais de 10 mil casos positivos – também por se ter desistido de testar de forma massiva – e um registo de 400 óbitos, que representa uma média diária de menos de sete óbitos por dia. Desde Agosto de 2022 até à data – ou seja, quase sete meses – a mortalidade diária atribuída à covid-19 nunca ultrapassou os 12 óbitos, mesmo durante o Inverno deste ano, mostrando assim fortes sinais de estarmos numa fase endémica. A ideia de que a “única forma de quebrar estes [supostos] ciclos será com vacinas de nova geração” não tem suporte científico e soa a completa propaganda.

    11 – “Neste momento ter excesso de confiança é o risco que Portugal corre, ‘preparar o pior esperando o melhor’ continua a ser o lema mais seguro quando se enfrenta uma situação de risco indeterminado mas com uma probabilidade elevada de ocorrer, os sinais serão dados em Setembro/ Outubro de 2022.

    O tempo mostrou, e os peritos do IST demonstraram, que pior do que o “excesso de confiança” é o “excesso de alarmismo”. E a má Ciência também é má.