A Fidelidade, da chinesa Fosun, é a companhia de seguros contratada pela Carris, à qual deverá caber pagar as eventuais indemnizações devidas às vítimas e respectivas famílias, na sequência do trágico acidente que ceifou 17 vidas e deixou duas dezenas de feridos graves.
A companhia de seguros foi contratada pela Carris no dia 16 de Novembro de 2023, após o lançamento de um concurso público. O contrato, no valor de 11.738.184 euros, teve início a 1 de Janeiro de 2024, com um prazo de 12 meses, sendo prorrogável até ao máximo de três anos.
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Segundo o contrato, a apólice cobre “serviços de seguros para a Carris, nos seguintes ramos: responsabilidade civil automóvel; acidentes de trabalho; multirriscos; responsabilidade civil exploração”.
Refere que “no ramo automóvel (Lote 1), estão os riscos e responsabilidades a transferir, e abrangem: seguro obrigatório de responsabilidade civil; coberturas facultativas (para a frota de apoio – danos próprios, furto ou roubo, quebra isolada de vidros, fenómenos da natureza e actos de vandalismo, assistência em viagem, ocupantes e viatura de substituição”.
As especificações técnicas respeitantes a este procedimento constam das cláusulas técnicas e respetivos anexos, que são parte integrante do caderno de encargos, o qual não está disponível publicamente.
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Ao concurso público lançado em 2023, concorreram, além da Fidelidade, a Generali, a Lusitânica, a MDS e a Willis.
Este contrato com a Fidelidade é o mais recente adjudicado pela Carris para a aquisição de serviços de seguros e divulgado no Portal Base. Não consta na plataforma outro contrato de seguros da Carris recente, designadamente um específico para os ascensores.
As indemnizações a pagar na sequência deste trágico acidente poderão ser superiores ao habitual se forem abertos processos contra a Carris nos países de origem das vítimas.
Uma das questões que se colocou ontem, após o acidente, foi o facto de a Carris não ter nenhum contrato de manutenção dos ascensores em vigor que esteja divulgado no portal de registo de contratos públicos, o Portal Base, como o PÁGINA UM noticiou em primeira mão.
A companhia terá indicado que tem um contrato de manutenção válido por via de um ajuste directo que adjudicou. Mas, até ao momento, ainda não divulgou qualquer contrato. Resta agora saber se o contrato eventualmente efectuado por ajuste directo, a existir, foi assinado antes ou depois do dia 1 de Setembro ou se terá sido assinado com efeitos retroactivos. Aspectos que são, eventualmente, cruciais para uma seguradora.
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Por norma os contratos são assinados com assinatura digital, cujo registo contém um ‘timestamp‘, um resgisto do dia e da hora da assinatura que torna quase impossível a adulteração de datas. Caso se conclua que não existia contrato de manutenção válido na altura do acidente, pode agravar o grau de negligência.
O PÁGINA UM tentou obter respostas junto da Carris, através de diversos meios de contacto, designadamente solicitando a disponibilização do contrato de manutenção que a empresa afirma ter adjudicado por ajuste directo, mas até à publicação deste artigo, ainda não obtivemos respostas. Também consultado o Portal Base, não se encontra ainda publicado esse eventual contrato. Ainda não possível contactar a Fidelidade.
Adenda:
Cerca de 45 minutos depois da publicação desta notícia, a Fidelidade fez um comunicado de imprensa onde expressa “o seu profundo pesar e endereça sentidas condolências às famílias e amigos das vítimas”, Adiantou que “a prioridade absoluta neste momento é apoiar todos os que foram afetados por esta tragédia”.
A companhia de seguros anunciou ainda a disponibilização de linha directa de atendimento telefónico “para apoiar as vítimas e as suas famílias”. Frisa que, “tendo em conta o elevado número de cidadãos estrangeiros envolvidos”, a linha está disponível em português, inglês e francês, “através do número (217948826), disponível 24 horas por dia, 7 dias por semana”. A seguradora disponibiliza também “equipas especializadas de apoio psicológico”.
Concluiu o comunicado reiterando a “total disponibilidade para colaborar com todas as entidades competentes e facilitar de forma rápida e transparente os processos de indemnização e de assistência necessários”.
A arte urbana vale ouro – pelo menos quando sai das mãos de Vhils, nome artístico de Alexandre Farto, um dos mais conceituados artistas plásticos da cena de street art ligada ao graffiti com obras em cidades como Londres, Xangai, Paris, Los Angeles e Hong Kong. E sobretudo vale ouro quando sai dos cofres públicos.
Na sexta-feira passada, em vésperas de eleições, o município da Amadora, liderado pelo socialista Vítor Ferreira, decidiu encomendar uma uma peça artística — um diorama de oito toneladas — para comemorar o centenário do nascimento de Mário Soares, apesar de o antigo presidente da República e primeiro-ministro, falecido em 2017, ter nascido em Dezembro de 2024. Preço: 246 mil euros, com IVA incluído, uma vez que Vhils usará a sua empresa, a Silhuetas Difusas.
Obra de Vhils na Fábrica Braço de Prata, em Lisboa. / Foto: D.R.
De acordo com o caderno de encargos, a que o PÁGINA UM teve acesso, a obra ficará instalada na Praça da Liberdade, no antigo Ski Skate Park, na cidade da Amadora, e terá uma altura de 2,5 metros e um comprimento de cinco metros. E será “construído integralmente em cimento, conferindo-lhe uma solidez e durabilidade apropriadas para o espaço público. No documento, destaca-se que “a escolha do material reforça a ideia de permanência e resistência, em consonância com os ideais que a obra procura representar”, ou seja, o papel de líder socialista na implantação da democracia.
O contrato relativo a esta encomenda, que foi adjudicado por ajuste directo, prevê que o prazo para conclusão da peça artística “não poderá ser superior a 120 dias”, o que permitirá, eventualmente, que esteja pronta para as comemorações não do 100.º aniversário de Mário Soares, que foi em 7 de Dezembro de 2024, mas pelo menos de 101.º aniversário.
Os custo da obra contempla tanto a “criação e concepção artística” como a “a execução, coordenação, desenvolvimento e finalização da obra artística e respetivos materiais e equipamentos de apoio”, e inclui ainda o transporte desde o atelier de Vhils até á praça escolhida para a instalação do diorama.
Mário Soares. / Foto: D.R.
O município da Amadora fica, porém, “responsável pelas intervenções necessárias, preparação do local e equipamento necessário (grua) para a instalação da obra artística no Parque da Liberdade, antigo Ski Skate Park, sito na Rua Carvalho Araújo, 105”.
Este é o primeiro grande contrato público que Vhils garante em 2025. Até agora, desde Janeiro, tinha apenas registado um contrato por ajuste directo, de 11.880 euros, adjudicado pela autarquia de Santa Maria da Feira para “serviços de Restauro e Manutenção da Peça Diorama Cork Factory”.
Mas ainda faltam quatro meses para o ano terminar e Vhils pode ainda angariar mais encomendas públicas. Foi o que aconteceu em 2024, quando facturou 442.505,6 euros através de quatro contratos com municípios. Um deles foi o da Amadora, que pagou então 113.955,60 euros pelo “fornecimento de obra artística pública”. Os outros três municípios foram Albufeira, Grândola e Castelo de Vide.
Foto: D.R.
Em 2023, o artista de 38 anos “apenas” ganhou 71.500 euros da autarquia de Albufeira pela “locação de exposição ART REEF by VHILS por Nuno Sá”.
Em 2021 e 2022 não há registo de contratos públicos com o artista, mas o ano de 2020 foi o melhor: facturou 474.577 euros, sobretudo graças a uma aquisição de obra artística e prestação de serviços pela Estrutura de Missão para a Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia em 2021.
Antes, Vhils ganhou 420.060,97 euros em 2017. Os outros dois anos em que houve encomendas públicas foram os de 2013 e 2014, com contratos de 11.550 euros e 19.900 euros, respectivamente.
Foto: Instagram / D.R.
Assim, apesar de 2025 ainda estar longe dos seus melhores anos em termos de encomendas públicas, com este ajuste directo do Município da Amadora, o ano já ficou “composto”.
Assim, a empresa do artista lisboeta ainda poderá encaixar mais alguns milhares de euros com entidades públicas este ano. Para já, a Silhuetas Difusas tem outra tarefa a cumprir: publicar as contas de 2024, que já estão em atraso. E também as de 2023.
Não morreu na praia, como sucedeu com outros processos similares: foi mesmo admitida por uma juíza do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa e está a avançar formalmente. A associação Ius Omnibus – que reúne vários docentes e investigadores portugueses e estrangeiros – conseguiu que os tribunais portugueses aceitassem uma acção popular contra a Alphabet Inc. (dona da Google) e três subsidiárias, incluindo a portuguesa, pedindo que sejam declaradas ilícitas as práticas de vigilância e tratamento de dados pessoais que a empresa vem realizando desde Março de 2012.
O sinal de que a acção foi aceite surgiu com a publicação de um edital, afixado no dia 11 deste mês, que marca formalmente a fase em que todos os interessados – incluindo consumidores com mais de 13 anos que tenham usado produtos ou serviços da Google – são chamados a intervir no processo. Dispõem de 30 dias para aderir à causa da Ius Omnibus ou para apresentar oposição, embora o prazo se estenda por todo o mês de Setembro, em virtude das férias judiciais que apenas terminam neste domingo.
Na prática, para o cidadão comum, um edital desta natureza é um acto de publicidade judicial: é a forma de o tribunal tornar pública uma acção que visa interesses colectivos, permitindo que todos os titulares desses interesses se juntem ao processo. Neste caso, o tribunal informa que os utilizadores da Google em Portugal, que se sintam lesados pelas práticas da gigante tecnológica, podem associar-se a um litígio que, se for decidido a favor da associação, poderá obrigar a Google a alterar as suas políticas de privacidade e a indemnizar os consumidores.
A citação judicial identifica a Alphabet e as três subsidiárias – Google LLC, Google Ireland Limited e Google Portugal – e permite que qualquer pessoa que tenha usado produtos da Google desde 2012 — Gmail, YouTube, Android, Google Maps ou mesmo o motor de pesquisa — e que entenda ter visto a sua privacidade violada, possa intervir no processo.
O pedido da Ius Omnibus – criada em 2020 e actualmente presidida por Lena Hornkohl, professora alemã de Direito Europeu na Universidade de Viena – é vasto e ambicioso, constituindo a mais abrangente acção judicial movida em Portugal contra uma big tech. A associação sustenta que a Google desenvolveu ao longo dos anos uma verdadeira máquina de vigilância, capaz de penetrar na vida quotidiana dos consumidores, criando perfis detalhados dos seus hábitos, gostos e localizações. Afirma que a política de privacidade de 2012 — e a sua revisão em 2016 — foi desenhada para associar e cruzar dados de todos os serviços da empresa, permitindo a monitorização constante dos utilizadores, com o objectivo de maximizar lucros através da publicidade personalizada.
Nessa medida, o tribunal é chamado a declarar que tais práticas violam o princípio da minimização de dados, o direito à autodeterminação informativa e a própria Constituição, por colocarem em causa a liberdade e a privacidade dos cidadãos. A petição acusa ainda a Google de utilizar “técnicas de concepção enganosas” (deceptive design patterns) para induzir os utilizadores em erro, levando-os a aceitar partilhas de dados que, se adequadamente informados, não aceitariam. São apresentados exemplos concretos: a manutenção do histórico de localização mesmo após o utilizador desactivar a função; a opacidade do chamado “modo de navegação anónima” do Chrome — que afinal não impede a recolha de dados — e a utilização de janelas de interface que induzem os consumidores a clicar em botões que permitem rastreamento. A associação denuncia também práticas comerciais enganosas, como a suposta “gratuitidade” dos serviços que, na realidade, se pagam com dados pessoais.
Do ponto de vista jurídico, trata-se de uma acção popular com efeitos potencialmente estruturantes: se o tribunal reconhecer que a Google recolheu e transferiu dados para os Estados Unidos sem garantias adequadas de protecção, isso poderá abrir caminho a uma decisão com impacto europeu, semelhante aos casos “Schrems I” e “Schrems II” no Tribunal de Justiça da União Europeia, que invalidaram os mecanismos de transferência de dados entre a União Europeia e os EUA. A Ius Omnibus pede que se declare que houve violação sistemática das obrigações de informação, de consentimento e de limitação de finalidades – princípios basilares do Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD).
O edital agora publicado é mais do que um aviso: é uma convocatória cívica. Concede 30 dias para que os utilizadores se pronunciem, podendo intervir no processo e reforçar a representatividade da acção. Caso nada façam, serão considerados representados pela associação, o que significa que uma eventual decisão favorável os poderá beneficiar automaticamente. O aviso judicial lembra, contudo, que a constituição de advogado é obrigatória, e o processo seguirá a tramitação de uma acção comum, com produção de prova, audição de testemunhas e eventual condenação da Google.
Em Portugal, a Google tem sede na Rua Duque de Palmela, em Lisboa, curiosamente no edifício que alojou o Expresso até 2021. Foto: Idealista.
Independentemente do desfecho, esta iniciativa marca um momento de afirmação do direito colectivo à privacidade em Portugal: nunca antes um tribunal português foi chamado a pronunciar-se de forma tão ampla sobre o modelo de negócio de uma gigante tecnológica. Para a Google, está em causa não apenas a imagem pública, mas a própria base da sua actividade – a recolha e exploração massiva de dados pessoais como motor da economia digital. Para os consumidores, é a oportunidade de sujeitar a escrutínio judicial práticas que, durante anos, foram aceites como inevitáveis.
A batalha começa, porém, agora – e Portugal pode tornar-se palco de uma das decisões mais relevantes na defesa dos direitos digitais na Europa.
O relatório de 35 páginas entregue pelo Conselho Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (CNCTI) ao Governo um relatório de 35 páginas não dá qualquer aval nem sequer se pronuncia sobre a estratégia de Fernando Alexandre, ministro da Educação, Ciência e Inovação, de fundir a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) com a Agência Nacional de Inovação (ANI), operação que dará origem à anunciada Agência para a Investigação e Inovação (AI2).
Ao contrário do que insinuou e titulou o jornal Público na edição de ontem, o órgão consultivo limitou-se a traçar um retrato detalhado do sistema científico e tecnológico português, mas limita-se a elencar virtudes e debilidades do ‘ecossistema científico’, propondo linhas de orientação gerais, mas não subscreve o modelo institucional que o Governo Montenegro quer impor.
Fernando Alexandre, ministro da Educação, Ciência e Inovação.
O relatório do CNCTI, analisado pelo PÁGINA UM, sem data e sem qualquer referência se foi aprovado em plenário ou elaborado por alguma das seis comissões que o integram, até faz questão de reconhecer que “o ecossistema português de investigação e inovação revela-se coeso, articulado e completo, com instrumentos e instituições que cobrem todas as fases do desenvolvimento tecnológico”, acrescentando que “esta diversidade, quando bem coordenada, constitui uma alavanca estratégica para o reforço da competitividade, a transição para uma economia baseada no conhecimento e a resposta eficaz aos grandes desafios sociais, ambientais e tecnológicos, do presente e do futuro”.
Sublinhando ainda que a ciência nacional possui “qualidade reconhecida internacionalmente”, o relatório analisa também o papel, além da FCT e da ANI, do IAPMEI, que não será mexido pelo Governo caso avance com a fusão. Nem a fusão incide em medidas estruturais que são desenvolvidas por outras entidades do ecossistema científico, nomeadamente a AICEP – Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal, o Banco de Fomento e as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), que, refere o relatório, “assumem papel importante na internacionalização e no financiamento”.
O relatório destaca mesmo que a situação actual, tripartida, “revela um distribuição funcional coerente e complementar, na qual a FCT assegura a base científica e os recursos humanos, a ANI promove a articulação entre ciência e economia, e o IAPMEI apoia a consolidação da inovação em ambiente empresarial”.
E diz ainda que “no seu conjunto, estes instrumentos visam cobrir todo o ciclo de inovação, desde a geração do conhecimento até à sua valorização económica”, ressalvando apenas que “a eficácia do sistema depende fortemente da sua coordenação estratégica, da simplificação dos processos de acesso e da capacidade de resposta às necessidades reais dos investigadores, empresas e empreendedores”
Estas passagens, ignoradas pela notícia do Público, desmontam a tese de que o relatório se resume a identificar falhas que só uma fusão poderia sanar. É verdade que o parecer identifica problemas sérios de governação, destacando, entre outros, a “fragmentação institucional, sobreposição de funções e falta de coordenação estratégica”, referindo ainda que “nem sempre o ecossistema [científico] é capaz de justificar os investimentos realizados com resultados concretos, visíveis, sustentáveis e significativos”. Contudo, em nenhum momento se afirma que a resposta a estas fragilidades passe por extinguir a FCT ou a ANI.
Pelo contrário, a análise aponta para caminhos amplos para se aproximar dos modelos irlandês e neerlandês: “Para que Portugal possa ascender a um patamar superior de desempenho, será fundamental evoluir de um ecossistema disperso e centrado na produção científica para um modelo coordenado, focado em missões, e fortemente orientado para a criação de valor económico, social e ambiental”. Ou seja, mais do que a engenharia institucional preconizada pelo ministro Fernando Alexandre, o que o relatório reclama é clareza estratégica e coordenação eficaz.
Uma das críticas à fusão é o receio de haver uma centralização dos apoios á Ciência quase em exclusivo à investigação aplicada.
Curiosamente, o CNCTI adverte que as transformações devem ser avaliadas pelo impacto real e não por anúncios políticos, criticando o facto de não existirem “instrumentos transversais e consistentes de avaliação do impacto, dificultando a monitorização das políticas públicas de ciência e inovação,”, sugerindo indicadores e métrica, sem os quais “a melhoria contínua e a responsabilização tornam-se inviáveis”.
O contraste entre o relatório e a leitura política é, por isso, flagrante pela leitura da notícia do Público, que se limitou a citar declarações de Carlos Oliveira, presidente do CNCTI, e transformou um parecer analítico num suposto “aval” à estratégia governamental. De facto, ao escrutinar o texto integral, torna-se claro que o órgão consultivo não se compromete com a fusão nem valida a narrativa do ministro. Aliás, o parecer insiste na palavra articulação, repetida por 26 vezes, entre as diversas entidades. Quanto à palavra ‘fusão’ nem por uma vez surge.
O director do Diário de Notícias, Filipe Alves, decidiu analisar as contas do PÁGINA UM, escolhendo escalpelizar de forma enviesada a rubrica de Fornecimentos e Serviços Externos, no valor anual de cerca de 60 mil euros. Ora, é precisamente nesta rubrica que se incluem contabilisticamente as despesas correntes de funcionamento — renda da redacção, serviços de electricidade, água, comunicações, contabilidade, gestão do site, bem como custos associados à investigação jornalística e material informático.
A informação é pública: metade do orçamento do PÁGINA UM (em 2024, as receitas por donativos rondaram cerca de 5.000 euros por mês), destina-se ao pagamento de honorários pelo trabalho jornalístico, e não apenas dos ‘jornalistas residentes’. Apesar disso, Filipe Alves preferiu construir uma narrativa absurda, insinuando ilegalidades, ao criticar o facto de eu, como director do PÁGINA UM, não ter assinado um contrato de trabalho com a empresa PÁGINA UM Lda., do qual sou gerente e sócio maioritário (uma das condições deste projecto).
Ou seja, o director do Diário de Notícias, que passou por jornais ecoómicos, acha que eu deveria ter feito um contrato entre “eu e mim”, juridicamente impossível — e encontra ‘ilegalidades’ por emitir recibos verdes apenas para tarefas literárias, no montante global de 6.000 euros em 2024, como se fosse ‘crime’ eu não ter contrato e receber mais, mesmo que isso implicasse endividamento do projecto, pois as receitas não dão, por agora, para mais.
Mais grave e contraditório é Filipe Alves acusar o PÁGINA UM de falta de transparência quando, pelo contrário, se optou pela figura societária de uma empresa, sujeita a fiscalização da Autoridade Tributária e da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), precisamente por ser o modelo mais exigente em matéria de transparência e supervisão.
A perplexidade torna-se maior quando se recorda que a Global Notícias, empresa que detém o Diário de Notícias e ainda 30% da Notícias Ilimitadas (proprietária do Jornal de Notícias e da TSF), não cumpriu sequer a obrigação legal de entrega das contas anuais através da Informação Empresarial Simplificada (IES) ao Instituto dos Registos e do Notariado, cujo prazo, já prorrogado por 10 dias, terminou a 25 de Julho.
Por isso, o PÁGINA UM decidiu disponibilizar um contador em tempo real, lembrando a cada segundo o atraso da Global Notícias no cumprimento das suas obrigações legais. Talvez assim Filipe Alves se recorde de olhar para dentro da sua própria casa a arder — em incumprimento — em vez de inventar falhas inexistentes na casa sólida e transparente dos outros. Até porque, em 2023, só ao Estado, a Global Notícias devia mais 8 milhões de euros. Mas o que é isso, para o Filipe Alves, quando se pode lançar lama para o PÁGINA UM?
É uma sentença muito aguardada e ainda não tem data marcada, embora seja esperada para Setembro. Mas se o ‘julgamento do ano’ em Portugal, que opõe o dueto Anjos a Joana Marques, causou estupefacção pelo pedido de indemnização de mais de 1,1 milhões de euros, fica-se agora a saber que dinheiro não faltará: as demonstrações financeiras da Marques Leitão, empresa detida pela humorista e pelo marido, mostram um saldo bancário, no final de 2024, no valor total de 1.230.277 euros e mais 65 cêntimos. Na verdade, Joana Marques e o marido Daniel Leitão tornaram-se milionários no ano passado.
Com efeito, de acordo com as contas da empresa constituída em 2016, inicialmente denominada Joana Marques e Daniel Leitão Lda., o ano passado foi de sucesso financeiro extraordinário, fruto de um crescimento dos negócios. Os lucros atingiram os 602 mil euros no ano passado. Este valor não inclui os 94 mil euros que o casal também recebeu a título de honorários como gerentes da empresa.
Em 2024, Joana Marques e o marido, Daniel Leitão, facturaram mais de 1,3 milhões de euros através da sua empresa, Marques Leitão, Lda. / Foto: D.R./Instagram
Este lucro de 2024 somou-se aos dos anos anteriores, pelo que em resultados transitados (lucros acumulados), a Marques Leitão soma agora quase 1,1 milhões de euros, sabendo-se que o ‘investimento’ inicial do casal (leia-se, capital social) foi de apenas 1.000 euros.
Em todo o caso, de acordo com a análise do PÁGINA UM, os últimos dois anos marcam o ‘boom’ da empresa, muito fruto de Joana Marques se ter tornado uma das humoristas mais requisitadas, incluindo para campanhas publicitárias.
No ano passado, a facturação da Marques Leitão ascendeu a quase 1,4 milhões de euros, quase triplicando as receitas de 2023, que se tinham cifrado nos 484 mil euros. Os lucros de 2024, por sua vez, quadruplicaram face ao ano de 2023, passando de 152 mil euros para 602 mil. Ou seja, mais de dois terços do património da empresa da humorista proveio dos resultados de 2023 e 2024. Acrescem ainda os honorários como gerentes no valor de 200 mil euros nesse período.
A humorista da Renascença tem diversos contratos publicitários. Na imagem, surge na sua conta no Instagram a “vender” produtos de uma conhecida cadeia de lojas de cosmética e perfumaria. Mas também publicita outras marcas, como a fabricante dos chocolates Regina. / Foto: D.R. / Instagram
Assim, contas feitas, numa eventualidade de Joana Marques ser condenada – e não quiser recorrer da decisão – terá liquidez para arranjar o valor máximo da indemnização solicitada pelos Anjos, bastando, por hipótese académica, uma simples transferência bancária. De facto, se os Anjos ganharem — e quando uma decisão judicial transitar em julgado —, no limite, os bens da humorista da Rádio Renascença podem ser executados, ou a sua quota na empresa, até porque Joana Marques e o marido têm um casamento em regime de comunhão de adquiridos.
Recorde-se que os Anjos processaram Joana Marques e exigem uma indemnização superior a 1,1 milhões de euros alegando que sofreram prejuízos — e até acne — depois da humorista ter gozado com a dupla que cantou o hino nacional numa cerimónia no âmbito daprova do MotoGP no Algarve em Abril de 2022.
Nos seus diversos contratos publicitários, Joana Marques também “vende” hamburgers do McDonald’s. / Foto: D.R.
O julgamento terminou no dia 11 de Julho e aguarda-se que seja marcada a sessão para leitura da sentença pela juíza Francisca Preto. Certo é que se a humorista for condenada ao montante máximo, não terá de se endividar para pagar aos Anjos, e até será previsível que, com o tempo entre recursos, venha a facturar mais uns milhões. E sem grandes dramas. de facto, a empresa marques Leitão conta apenas com dois empregados – a humorista e o marido -, e nem sequer tem dívidas bancárias nem custos com juros, sendo que o principal activo é o reconhecimento da própria Joana Marques como marca.
O processo dos Anjos concedeu, na verdade, maior visibilidade à humorista que aprecia ‘atacar’ celebridades mas protegendo o status quo político e económico, até porque uma parte substancial das receitas provém de campanhas publicitárias, como as que tem feito recentemente para a seguradora Generali (Logo), a McDonald’s e a Perfumes & Companhia. A saúde financeira da sua empresa agradece e aplaude.
Uma campanha publicitária de prevenção de incêndios rurais, que foi aprovada pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) no mês de Maio, só agora viu a luz do dia. Foi assinado ontem o contrato que pode já não vir a tempo de prevenir alguns grandes incêndios, mas, que vem mesmo a calhar para empresas de comunicação social, sedentas de receitas.
Em causa está uma verba de 589.900 euros, (ou 725.577, com IVA) que sai dos cofres do ICNF e vai direitinha para a comunicação social para a “difusão de publicidade institucional, no âmbito da campanha de sensibilização para a redução dos incêndios rurais”. Trata-se de uma campanha publicitária que arranca com dois meses de atraso, face ao previsto. Isto numa altura em que há uma forte pressão mediática em relação aos incêndios rurais, dado o acumular de tragédias e a grande dimensão da área ardida este ano.
Foto: D.R.
O contrato foi adjudicado à empresa Nova Expressão, através de concurso público — sem ser divulgado se houve mais concorrentes. A decisão de adjudicação foi tomada pelo ICNF no dia 4 de Agosto e, segundo as condições do procedimento, o contrato entrou em vigor no 11º dia após aquela data, ou seja, no dia 19 deste mês. Isto apesar de o contrato só ter sido assinado ontem, segundo a data que consta na plataforma de registo de contratos públicos, o Portal Base.
O contrato vai vigorar durante cinco meses “não devendo a respectiva vigência estender-se para além de 31/12/2025, incluindo eventuais prorrogações dos prazos de execução contratualmente previstas”.
Os principais beneficiários desta “chuva” de anúncios — e de receita — serão os canais de televisão generalista de âmbito nacional, os quais irão arrecadar entre 59% e 61% dos anúncios, de acordo com o caderno de encargos consultado pelo PÁGINA UM. “A difusão da campanha [a nível nacional] deve utilizar preferencialmente os canais ‘free-to-air’ (FTA) RTP 1, SIC e TVI, atingindo, no mínimo, 85,00 % da população-alvo”, refere o documento.
O contrato do ICNF de distribuição de publicidade pela comunicação social foi assinado no mesmo dia em que a ministra do Ambiente e da Energia, Maria da Graça Carvalho, visitou as áreas protegidas da Serra do Açor afetadas por incêndios rurais. Fizeram parte da comitiva ministerial Nuno Sequeira, vogal do conselho diretivo do ICNF , e Paulo Farinha Luís, diretor regional da Conservação da Natureza e das Florestas do Centro. / Foto: ICNF
Mas o ICNF admite que “podem ser utilizados outros canais de televisão, de abrangência nacional, desde que não seja prejudicada a performance pretendida”.
A comunicação social regional e local também vai receber entre 39% e 41% do ‘bolo’ que vai ser distribuído nesta receita publicitária, designadamente rádios e imprensa. Aqui enquadram-se estações de rádio de grandes grupos de media. “A difusão da campanha [em rádios regionais] deverá considerar as seguintes estações: Rádio M80 e Rádio TSF, com um mínimo de 200 spots em cada uma”, diz o mesmo documento.
Serão ainda beneficiadas “pelo menos, 30 estações a nível local” e “um mínimo de 40 jornais regionais e ou locais”, com o foco nos que cobrem os concelhos e freguesias de risco prioritário em matéria de fogos.
Foto: ICNF
Esta campanha de prevenção de incêndios estava prevista ser feita em três fases, sendo que a primeira, dedicada ao tema das “queimadas”, deveria ter tido início 15 de Junho e terminado a 24 de Junho, de acordo com o caderno de encargos.
A segunda fase da campanha, sobre o tema “fogos de artifício, churrascos e beatas”, deveria ter arrancado a 25 de Junho e prolongar-se até 23 de Setembro. Por fim, a terceira fase da campanha, dedicada ao tema das “máquinas” tinha data marcada de início para 24 de Setembro e iria terminar a 31 de Outubro. Contudo, o próprio caderno de encargos já previa que pudesse vir a haver um ajustamento das datas das três fases, dependendo da data de adjudicação.
A “chuva” de anúncios milionária que vai cair no “colo” de alguma comunicação social nacional surge depois de Portugal registar o pior incêndio rural de sempre — em Arganil — e quando a área ardida do país está em níveis recorde da última década.
Foto: D.R.
Segundo dados provisórios do Sistema de Gestão de Informação de Incêndios Florestais, até hoje, 27 de Agosto, a área ardida em espaços rurais atingiu os 251.131 hectares, com o registo de 6.939 ocorrências. O ano de 2025 é, assim, o pior da década em matéria de incêndios rurais.
Esta distribuição de verbas pelos media, sobretudo pelos três grandes canais de televisão, surge quando os fogos ocupam quase diariamente a abertura dos telejornais, com imagens de tragédias e desolação, com serras, casas e campos pintados de negro ou ainda em chamas.
Anúncio de sensibilização do ICNF divulgado na sua página no Facebook. / Foto: ICNF
Mas, se é certo que a campanha de prevenção de incêndios rurais do ICNF começa tarde, não começa a más horas. Pelo menos para as empresas de media que vão ter receita extra graças a esta oportuna campanha do ICNF.
O PÁGINA UM contactou o presidente do ICNF, Nuno Banza, que remeteu esclarecimentos para o departamento de imprensa daquele organismo. Até à hora de publicação desta notícia, ainda não foi possível obter um comentário do ICNF sobre este contrato publicitário.
O anúncio espalhou-se rapidamente entre jovens fãs portugueses: um popular youtuber brasileiro, cujo canal foi banido no YouTube, surge num vídeo onde anuncia que pondera mudar-se para Portugal. O objectivo do streamer é poder escapar a nova legislação que o impede de gravar conteúdos com a participação de menores, sem autorização judicial prévia.
Trata-se do influencer Felipe Sápio, conhecido como Taspio, que arrecadou 12 milhões de seguidores nas redes sociais junto do público infanto-juvenil, sobretudo com a publicação de vídeos em que participavam crianças e adolescentes.
O influencer brasileiro Taspio tinha 12 milhões de seguidores nas redes sociais antes de o seu canal no YouTube ter sido fechado por alegadamente violar a lei, após denúncias feitas na plataforma. / Foto: D.R./ Instagram
O anúncio de Taspio surgiu após vários streamers brasileiros que publicam vídeos no YouTube em que participam crianças e adolescentes terem visto os seus canais serem apagados pela plataforma. O canal de Taspio foi um deles, mas não foi o único. A plataforma também eliminou os canais dos populares streamers brasileiros João Caetano e Paty e Dedé, com a justificação de que violavam as políticas de segurança infantil. A decisão do YouTube foi confirmada ao portal de notícias da Globo, g1.
Os três canais banidos pelo YouTube pertenciam a criadores de conteúdos residentes no estado do Paraná, no Brasil, e são conhecidos precisamente por produzirem vídeos com a participação de crianças e adolescentes. Os jovens que apareciam nos vídeos e em publicações nas redes sociais dos streamers eram organizados em grupos informais e chamados de “tropas”.
Os canais foram banidos na noite de quarta-feira, 20 de Agosto, e permanecem inactivos. O YouTube indicou ao g1 que as denúncias que motivaram a remoção dos canais foram feitas de forma anónima na plataforma.
João Caetano. O streamer brasileiro tornou-se uma celebridade junto do público mais jovem, graças aos seus vídeos. / Foto: D.R. / Instagram
Os streamers estão agora a procurar reverter a decisão do YouTube. Num comunicado enviado ao g1, os influencers banidos garantiram que “não houve qualquer notificação prévia” por parte do YouTube e que a eliminação dos canais foi “em desacordo com a lei, uma vez que não oportunizou aos influenciadores o direito de resposta”.
Mas os streamers ponderam uma alternativa. Num vídeo aparentemente feito em directo (‘live‘) na plataforma TikTok, e que tem sido republicado por várias contas nas redes sociais, Taspio sugere que, se não for possível voltar a gravar e a publicar vídeos com menores no Brasil, Portugal será o “plano B”. “Como isso é uma lei que aconteceu no Brasil, caso não dê certo (o recurso da decisão do YouTube e a reversão de legislação), a gente vai, todo o mundo, se mudar para Portugal, morar em Portugal e começar do zero em Portugal; são outras leis, outro mundo”, afirmou no vídeo feito em directo.
Os canais destes streamers agora banidos do YouTubearrecadavam, em conjunto, dezenas de milhões de seguidores numa altura em que crianças e jovens trocaram há muito a televisão por conteúdos no YouTube e nas redes sociais. Entre crianças e adolescentes portugueses, os populares streamers brasileiros são muito conhecidos, com as suas casas com piscina, carros topo de gama e vídeos apelativos.
Foto: D.R.
A decisão do YouTube surge após um caso polémico e também na sequência de uma decisão judicial no Paraná. Recorde-se que o Ministério Público (MP) do Estado do Paraná, obteve uma decisão judicial que proíbe influencers e empresas da cidade de Londrina, no Paraná, de produzir, gravar, divulgar ou partilhar conteúdos com crianças e adolescentes sem autorização judicial prévia.
A decisão formalizada em Junho surgiu a partir de uma investigação iniciada em Abril, após o MP ter recebido denúncias sobre conteúdos audiovisuais considerados sensíveis e inadequados, envolvendo a participação de menores. A decisão também se aplica a conteúdos produzidos fora da cidade, desde que realizados por influencers e empresas sediados em Londrina.
Entre os temas apontados nas publicações analisadas estavam violência física, sequestros, afogamentos, sexualização e relações precoces, bem como exposição de seminudez, bullying em público, consumo de álcool e tabaco, uso de armas – reais ou simuladas-, e tentativas de homicídio.
João Caetano numa das suas publicações no Instagram. / Foto:
Desde 2020 que o streamer publicava vídeos de menores com “cenas de namoro” e danças de teor sexual. Os dois streamers foram detidos depois do influencer Felca ter denunciado perfis que usam crianças e adolescentes para promover a “adultização infantil”. As suas contas nas redes sociais foram encerradas mas o canal do Spotify continua activo, como o PÁGINA UM verificou. O single ‘Empina essa bunda’ conta com mais de 9 milhões de audições.
Estes casos no Brasil estão a colocar novos holofotes no tema dos limites da exposição de menores na Internet e no papel das gigantes tecnológicas na regulação de conteúdos sensíveis para crianças e jovens.
Hytalo Santos e o companheiro encontram-se detidos acusados de tráfico humano e exploração sexual de menores. / Foto: D.R. / Instagram
Mas não só. segundo o advogado Miguel Santos Pereira, caso algum, ou vários, dos populares influencers brasileiros se mudem de armas e bagagens para Portugal, vai também ser colocada na agenda o tema da exploração de menores em produção de conteúdos, sejam eles emitidos na Internet — redes sociais e plataformas — ou em outros media, como a televisão.
“Pode mesmo haver um debate sobre a alteração da lei para melhor proteger os menores”, disse Santos Pereira. Isto porque “os pais, quando recebem dinheiro para os filhos participarem em produções, são beneficiários e podem não proteger os melhores interesses dos menores”, disse Santos Pereira.
Um dos casos que em Portugal tem merecido críticas é a popular série Morangos com Açúcar – que está agora a reposição num canal por cabo – por acusações de exploração de menores e adultização de crianças e adolescentes.
Foto: D.R.
Recentemente, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) decidiu arquivar uma participação contra o canal Biggs, dedicado ao público juvenil, na sequência da emissão de um episódio da conhecida série juvenil, que inclui uma cena sugestiva de um encontro sexual a três entre adolescentes, como o PÁGINA UM noticiou.
Em todo o caso, o debate em torno do tema da adultização de menores na produção de conteúdos, bem como da responsabilização dos pais, pode ganhar nova força em Portugal, com a polémica em torno dos streamers no Brasil. Sendo que a transferência do exercício dos poderes parentais para as mãos do poder judicial, no caso de autorização para um menor participar em produção de conteúdos, levanta muitas questões.
Seja como for, o debate sobre os limites da exposição de menores em vídeos e encenações e as questões sobre os efeitos da adultização de crianças e adolescentes estão, cada vez mais, na ordem do dia. Bem como o tema do acesso do público infanto-juvenil a certo tipo de conteúdos tanto na Internet como na televisão.
Foto: D.R.
Na Austrália, foi anunciado, no final de Julho, que o YouTube será incluído na proibição das redes sociais para menores de 16 anos, na nova legislação que deverá entrar em vigor em Dezembro e que tem gerado forte polémica. Inicialmente, o Governo australiano tinha excluído a plataforma da proibição, a qual irá abranger o TikTok, o Instagram, o Facebook, o X e o Snapchat.
A legislação está a ser tanto aplaudida como contestada por eventuais violações de privacidade, já que todos passarão a ter de provar a sua idade para aceder àquelas plataformas digitais.
Por outro lado, há a dúvida sobre se menores de 16 poderão continuar a ter acesso a conteúdos naquelas plataformas, através de televisões, ou mesmo que não tenham conta. Além disso, poderão continuar aceder a outras plataformas e redes como o LinkedIn, o WhatsApp e o Roblox, que também apresentam perigos.
Mais de 14,6 milhões de euros de subvenção estatal no ano passado, 221 jornalistas no quadro, uma editoria de fotografia com orçamento próprio de quase 600 mil euros – e, no entanto, enquanto o país ardia, a agência noticiosa Lusa decidiu retratar a participação de imigrantes no combate aos incêndios rurais com uma reportagem preguiçosa, redigida a partir de uns telefonemas, da “cópia” parcial de um artigo do Dhaka Post e ‘enfeitada’ por fotografias de arquivo .
Nada de repórteres no terreno, nada de fotografias tiradas por fotojornalistas, nada de confronto com os protagonistas principais, nada de validação junto das entidades responsáveis. Acrescia a tudo isto um tom laudatório, quase missionário, ao qual se somava um pormenor inadmissível até num estagiário de jornalismo: alguns dos imigrantes referidos pela Lusa eram identificados apenas com um nome. A peça acabou reproduzida sem pestanejar pelo Expresso, que — mais uma vez — demonstrou ser apenas correia de transmissão de uma informação mal apurada. E ainda fez pior: em vez de fotografia de arquivo (como fez a Lusa), alguém se lembrou no Expresso de ‘enfeitar’ uma reportagem manca (por ter sido feita ao telefone nem sequer ter sido enviado um fotojornalista) com imagens de má qualidade pescadas nas redes sociais.
Reportagem ‘original’ do Expresso, via Lusa.
Analise-se as ‘imagens’ usadas pelo Expresso – e aqui aplica-se o ditado de que uma imagem vale por mil palavras, embora neste caso signifique que uma má imagem pode destruir a credibilidade de mil palavras. A dúvida saltava à vista.
Numa, um grupo de 14 homens com camisolas amarelas posa sentado a uma mesa de madeira, com garrafas de Coca-Cola e copos de plástico. Na outra, vê-se um conjunto de sapadores de capacete amarelo e fato anti-fogo laranja e verde segurando uma mangueira, alinhados em plena serra, mais um a olhar para a câmara de uniforme amarelo e verde e chapéu, enquanto um pequeno fogo de mato lavra a alguns metros de distância.
Na primeira fotografia, os traços dos sapadores denotavam a sua origem étnica, mas a qualidade da imagem e diversos elementos causavam estranheza. Na segunda, além da fraca qualidade, a aparente descontração do elemento que olhava para a câmara levantava dúvidas num cenário de fogo activo, embora também pudesse tratar-se de uma acção preventiva de fogo controlado noutra época do ano.
Fotografia usada pela ‘reportagem’ do Dhaka Post e depois usada pelo Expresso.
Seriam fotografias ilustrativas de equipas de sapadores? Eram, afinal, imagens autênticas ou fruto das manipulações correntes em tempos de inteligência artificial? Foi o que muitos começaram a questionar nas redes sociais — e até um deputado do Chega, Rui Paulo Sousa, aproveitou para lançar suspeitas sobre a veracidade da reportagem. Ao longo do dia de ontem, a rede social X inundou-se de publicações a pôr em causa a autenticidade das fotos – e, por arrasto, da própria reportagem –, não faltando análises sobre a probabilidade de recurso a inteligência artificial que a classificavam como altamente suspeita.
Esta polémica não teria nascido, sublinhe-se, se a Lusa e o Expresso tivessem feito o mínimo trabalho jornalístico: produzir as suas próprias imagens – é para isso que existem fotojornalistas numa agência que teve rendimentos no ano passado de mais de 18,8 milhões de euros – ou, na pior das hipóteses, confirmar a origem das fotografias, ouvir responsáveis da associação que supostamente emprega os homens retratados e garantir que as declarações encaixavam no contexto real. Mas nada disso foi feito.
Na pseudo-reportagem da Lusa, depois amplificada pelo Expresso com uso de imagens não validadas, não surge uma única palavra de Vasco Campos, presidente da Caule – Associação Florestal Beira Serra, uma das mais dinâmicas da região Centro e alegado empregador dos sapadores florestais retratados. Não há confirmação, não há enquadramento, não há sequer números. Apenas uma narrativa romanceada sobre imigrantes da região do Indostão que estariam “na linha da frente” do combate às chamas.
Segunda fotografia da polémica ‘reportagem’.
Perante a quantidade absurda de reacções sobre a eventual manipulação de imagens e de informação usada pela Lusa e Expresso, o PÁGINA UM fez aquilo que se exige a quem leva o jornalismo a sério: foi ouvir Vasco Campos. E, embora tenha lamentado que o jornalista da Lusa (e o Expresso) não o tenha contactado, este dirigente da associação com sede no concelho de Oliveira do Hospital confirmou ao PÁGINA UM, sem rodeios, que as fotos eram verdadeiras, embora captadas antes dos incêndios recentes com recurso a um telemóvel antigo — daí a fraca qualidade — e que 70% dos seus sapadores florestais são hoje estrangeiros.
Na verdade, fundada em 2001, a Caule possui actualmente seis equipas de cinco elementos cada, portanto 30 pessoas, não incluindo técnicos, a proteger cerca de seis mil hectares de floresta nos concelhos de Oliveira do Hospital e Seia. “Sobretudo a partir de 2019, foi esta a solução que encontrámos. Estou muito satisfeito”, afirma. Entre os trabalhadores, predominam, conforme destaca, cidadãos do Bangladesh, Paquistão e Índia, a que se juntam alguns africanos, incluindo dois angolanos e um marroquino.
Os números são, portanto, claros, apesar de omitidos na pseudo-reportagem da Lusa: de 30 sapadores da Caule, duas dezenas são imigrantes. E a experiência, garante Vasco Campos, tem sido positiva. “Na generalidade, são excelentes trabalhadores, cumpridores e cordatos. Sentam-se à mesma mesa que eu”, diz, frisando que a integração local é boa e que várias famílias já vivem na região, com filhos, alguns já nascidos em Portugal. “Aqueles que andam na escola são muito bons alunos”, acrescenta ainda, notando com graça que alguns dos mais jovens até bebem uma cerveja de vez em quando, ou fumam, “mas às escondidas dos mais velhos”.
Publicação no X do deputado Rui Paulo Sousa.
O verdadeiro problema para a manutenção destas equipas multiétnicas, admite Vasco Campos, é financeiro: “Não conseguimos pagar mais do que o salário mínimo nacional. O salário bruto ronda os 1.500 euros, mas reduz-se no líquido porque há descontos pesados para impostos, segurança social e seguros, que são caríssimos nesta profissão de alto risco.” Os apoios estatais cobrem menos de metade das despesas, e muitas tarefas de silvicultura têm de ser asseguradas como contrapartida. Em todo o caso, vários destes elementos estão em casas disponibilizadas pela associação e os membros isolados juntaram-se para alugar habitações em aldeias próximas. Nestas condições, um salário mínimo numa aldeia de Oliveira do Hospital vale muitíssimo mais do que o mesmo rendimento numa cidade como Lisboa, o que permite a estes imigrantes pouparem dinheiro para enviarem para os seus países, como aliás sucedeu com as remessas dos emigrantes portugueses que rumaram sobretudo para países europeus e americanos a partir da década de 60 do século passado.
Na frente de combate, a eficácia destas equipas de sapadores que integram imigrantes ficou demonstrada nos incêndios recentes: ainda arderam cerca de 1.500 hectares de terrenos florestais da associação Caule, mas a intervenção dos sapadores foi decisiva para travar a propagação em zonas críticas. “Trabalhámos noite dentro, que é quando as condições meteorológicas são mais favoráveis para um ataque ao fogo em zonas bem geridas”, acrescenta Vasco Campos.
Conclusão: de facto, há equipas de sapadores maioritariamente estrangeiros, como a da Caule — mas também se fica a saber como a desinformação nas redes sociais, criticada rudemente pela imprensa, é afinal muitas vezes gerada paradoxalmente a partir de má informação da própria imprensa.
Ontem, rapidamente circularam no X diversas publicações a atribuírem manipulação de imagens por inteligência artificial.
Quando a principal agência de notícias do país publica uma reportagem sem fotografias próprias in loco, sem validar fontes e sem ouvir quem devia ouvir, o resultado é um produto jornalístico frágil, permeável a dúvidas legítimas e combustível perfeito para suspeições populistas. A verdade passa a ser refém do amadorismo. E quando depois um jornal que se autoproclama de referência ‘saca’ fotos de má qualidade e coloca como créditos as redes sociais, sem identificar sequer a fonte em concreto, não se pode queixar da perda de credibilidade, que o afecta a si, mas também a todo o jornalismo.
Este caso ilustra uma tendência cada vez mais preocupante: o jornalismo português, mesmo aquele subsidiado com milhões de euros do erário público, prefere poupar nos custos mais elementares — deslocar repórteres, enviar fotojornalistas, gastar combustível — para se refugiar na comodidade do telefone e no saque às redes sociais. As redacções deixam de fazer trabalho de campo e transformam-se em escritórios de copy-paste. A diferença entre notícia e boato, entre reportagem e comentário laudatório, esbate-se perigosamente.
Neste caso em concreto, além das falhas na reportagem, destaca-se o uso de fotografias obtidas em redes sociais, sem qualquer validação, em vez de serem feitas por um fotojornalista, ainda mais relevante por se tratar, supostamente, de uma reportagem, que nem sequer faz sentido ser feita a partir de uma secretária.
Agência Lusa fez uma reportagem ser ir ao local. O Expresso republicou e decidiu ir ‘pescar’ fotos amadoras nas redes sociais sem sequer identificar correctamente a fonte.
E aqui remete-se para um problema que começa a ser crónico: a perda da relevância da fotografia como elemento fulcral do jornalismo, e sobretudo na reportagem jornalística, no seio da imprensa mainstream. Até porque se pensa que, agora, com a democratização dos smartphones com câmaras fotográficas, se generalizou a ideia de que a fotografia pode ser obtida de qualquer forma.
José Manuel Ribeiro, um dos mais reputados fotojornalistas portugueses, afirma que “o primeiro problema é que os cursos de comunicação social e jornalismo têm vindo a eliminar o ensino de fotografia”, algo que se agravou com a crise financeira na imprensa.
“Com a redução das redacções, são pessoas impreparadas profissionalmente que estão a escolher as fotografias a publicar”, salienta este antigo fotojornalista da Lusa, Público e Reuters, que lamenta que “os órgãos de comunicação social tenham deixado de ter editorias de fotografia”. Para José Manuel Ribeiro, agora “o tratamento das fotografias é mau; antes, a foto era uma garantia de autenticidade e dava credibilidade às notícias e reportagens.”
Alegadamente, o próprio Grok atribuiu manipulação nas fotografias. A possibilidade de ‘falsos positivos’ aumenta, contudo, quando fotos amadoras são tiradas com telemóveis mais antigos.
Para agravar, hoje existe uma tendência na imprensa, que não ocorria há alguns anos, de se usar material da Lusa sem validação posterior. Assim, no caso da “reportagem” sobre os sapadores imigrantes, o Expresso publicou-a tal como estava, como quem despeja mercadoria numa banca, sem edição crítica, sem escrutínio. E coloca a cereja em cima do bolo do descrédito: usa fotos amadoras fazendo crer que estavam na reportagem original da Lusa.
Este é o retrato de uma dependência estrutural: o jornal que em tempos se quis referência torna-se refém de uma agência que lhe serve material pronto a usar, mesmo que esse material seja deficiente. Resultado: os leitores foram confrontados com uma reportagem que não esclareceu, não quantificou e não contextualizou — apenas contribuiu para a cacofonia em torno dos fogos e da imigração.
Em suma: sim, é verdade que hoje em Portugal há equipas de sapadores florestais compostas maioritariamente por estrangeiros. Sim, eles são protagonistas na prevenção e no combate inicial aos fogos. Mas aquilo que a Lusa e o Expresso entregaram ao público foi uma pseudo-reportagem sem rigor, com fotografias duvidosas, sem protagonistas ouvidos e sem dados fiáveis. O debate público sobre imigração e incêndios não precisa de peças romantizadas; precisa de factos sólidos, de vozes directas, de números verificados.
Brigadas de sapadores florestais da Caule. O PÁGINA UM falou ontem com o presidente desta associação, Vasco Campos. Fonte: Caule – Associação Florestal da Beira Serra
Este episódio mostra como nasce e se propaga a desinformação: não da sombra obscura das redes sociais, mas do coração de órgãos que deviam ser guardiões da informação fidedigna. Quando os meios de referência falham no básico, abrem caminho ao boato, ao populismo e à descrença.
A desinformação, neste caso como em tantos outros, começa não no X ou no Facebook ou no WhatsApp, mas sim em redacções preguiçosas, com a chancela oficial da agência nacional de notícias. E o aplauso da imprensa generalista que, com as reportagens da Lusa, fica satisfeita por encher chouriços.
Agosto de 2025 ficará gravado como o mês mais negro na já longa história do combate aos incêndios rurais em Portugal. E não por pouco. Embora o número de ocorrências não seja particularmente elevado – 2.255 registos, muito aquém dos mais de 10.486 ignições em Agosto de 2003 (o pior mês de sempre, em que arderam 312 mil hectares em 31 dias) –, a devastação ultrapassa qualquer parâmetro aceitável em termos de eficácia na extinção.
Até ao dia de hoje, de acordo com dados oficiais do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), os 211.240 hectares de floresta, matos e áreas agrícolas já consumidos pelas chamas desde o dia 1 de Agosto farão deste mês o terceiro pior, assumindo que os 212.917 hectares dizimados em Agosto de 2005 serão ultrapassados.
Se a última semana do mês em curso não piorar os valores, Agosto de 2025 ficará apenas aquém dos tristemente lendários meses de Agosto de 2003 (312 mil hectares) e de Outubro de 2017 (289 mil hectares), neste caso ardidos em pouco mais de 24 horas devido a fenómenos meteorológicos absolutamente atípicos.
Contudo, a tragédia de Agosto de 2025 atinge proporções históricas na ineficácia do combate, que nunca foi tão baixa, revelando fragilidades profundas no modelo português de resposta aos incêndios.
De facto, se o retrato absoluto já assusta, o retrato relativo é ainda mais chocante. Em Agosto de 2003, o primeiro mês dantesco da triste história dos fogos rurais em Portugal, cada incêndio destruiu, em média, cerca de 105 hectares, a primeira vez que se superou a fasquia dos 100 hectares. Esse valor manteve-se sempre como um triste recorde até Outubro de 2017, em que, por virtude de uma área ardida de 289 mil hectares em apenas pouco mais de 1.500 incêndios, se atingiu uma média de 189 hectares.
Evolução mensal da área média ardida por incêndio rural (excluindo fogachos) em Portugal, de Janeiro de 2001 a Agosto de 2025 (até dia 24). O valor registado em Agosto de 2025 é o mais elevado de sempre, atingindo 339 hectares por incêndio, muito acima dos anteriores picos de Outubro e Junho de 2017, Setembro de 2024 e Agosto de 2003. Fonte: ICNF. Análise: PÁGINA UM.
Se Outubro de 2017 teve condições meteorológicas atípicas, que dificultavam o combate, já Setembro do ano passado devia ter sido mais um sinal do colapso do actual modelo de combate. Esse mês concentrou quase toda a área ardida de 2024 e cada incêndio (num total de 821) destruiu, em média, 154 hectares, um valor também absurdamente elevado.
Mas em Portugal, o absurdo pode sempre ser ultrapassado, mesmo com valores estratosféricos. No mês de Agosto de 2025, ainda em curso, cada incêndio consumiu em média 339 hectares – ou seja, quase 80% acima do recorde negativo anterior. E o número de ignições acima de um hectare (622) fica muito aquém dos três piores meses em área ardida: Agosto de 2003 contabilizou 2.980 incêndios (ocorrências com mais de um hectare), Outubro de 2017 contabilizou 1.531 e Agosto de 2005 teve 4.518. Ou seja, nesses períodos, o sistema de combate teve provas de fogo e falharam; agora, com menor intensidade de combate alargado, ainda falharam pior.
Mesmo quando se incluem os chamados fogachos (ignições de reduzida dimensão, inferiores a um hectare), a imagem é igualmente devastadora no presente mês de Agosto: cada ocorrência, mesmo contabilizando as mais pequenas, resultou em quase 94 hectares de área ardida em Agosto de 2025, ultrapassando largamente os 81 hectares de Outubro de 2017 e, sobretudo, os outros meses mais negros. Por exemplo, em Agosto de 2003, ainda o pior mês em área ardida, registaram-se 10.486 ignições (cerca de quatro vezes mais do que em Agosto de 2025), pelo que a média por ocorrência se fixou em 30 hectares.
Evolução mensal da área média ardida por ocorrência (inclui fogachos, incêndios florestais e agrícolas e ainda reacendimentos) em Portugal, de Janeiro de 2001 a Agosto de 2025 (até dia 24). O valor em Agosto de 2025 é o mais elevado de sempre, atingindo 94 hectares por ocorrência, muito acima dos anteriores picos (Outubro de 2017 e Setembro de 2024). Fonte: ICNF. Análise: PÁGINA UM.
Este contraste entre o número relativamente baixo de ignições em Agosto de 2025, sobretudo em comparação com 2003 e 2005, e a dimensão catastrófica dos danos não pode ser explicado pela meteorologia ou pelo acaso. O PÁGINA UM analisou todos os registos mensais desde Janeiro de 2001 até ao presente, e a conclusão é inequívoca: a máquina de combate está em colapso, mesmo com uma tendência de redução de ignições, e Setembro do ano passado já foi o primeiro sinal.
O país enfrenta hoje menos ignições do que há vinte anos – reflexo provável de maior sensibilização da população, menor incidência de actos dolosos e de práticas negligentes –, mas o dispositivo de supressão não conseguiu impedir que fogos de média e grande dimensão se transformassem em verdadeiros monstros incontroláveis.
A explicação para esta deriva não reside apenas nas condições de calor extremo ou na acumulação de combustível vegetal, factores que são comuns a outras épocas. O problema mostra-se estrutural: Portugal mantém um modelo de combate anacrónico, assente numa miríade de corporações pseudo-voluntárias, dependentes de subsídios e apoios, mas sem verdadeira coordenação estratégica.
Evolução do número de ocorrências (inclui fogachos, incêndios florestais e agrícolas e ainda reacendimentos) em Portugal, de Janeiro de 2001 a Agosto de 2025 (até dia 24). O valor registado em Agosto de 2025 é apenas o 80.º mês com mais ocorrências desde Janeiro de 2001. Fonte: ICNF. Análise: PÁGINA UM.
Multiplicam-se as associações e estruturas locais, cada uma a reclamar mais meios e mais recursos, mas sem um planeamento central eficaz nem uma doutrina clara para debelar incêndios em regiões de risco acrescido, como o Centro e o Norte Interior, onde se concentram vastas manchas de povoamentos florestais, matos e áreas agrícolas abandonadas.
O país investe anualmente centenas de milhões de euros em meios aéreos, máquinas e dispositivos, mas falha naquilo que é essencial: prever e neutralizar os incêndios que, pela sua localização e condições, têm alta probabilidade de atingir grandes dimensões. Ao invés de uma estratégia nacional que privilegie o ataque inicial rápido e coordenado nos focos críticos, continua-se a gastar energias e recursos numa guerra de desgaste, em que milhares de homens são mobilizados para fogos já fora de controlo, enquanto os decisores políticos se escudam em discursos inflamados sobre a “coragem dos bombeiros”.
Agosto de 2025 é, por isso, um mês-síntese das contradições portuguesas: menos fogos do que no passado, apesar da tentativa de criar uma percepção diferente, mas incêndios cada vez mais devastadores; mais meios, mas menos eficácia; mais discursos de exaltação, mas menos resultados concretos. Se em 2003 e 2005 o drama pôde ser explicado pela combinação de um número extraordinário de ignições com condições meteorológicas extremas, e se em 2017 a tragédia se deveu ao caos de coordenação e falhas operacionais, o que hoje se observa é ainda mais inquietante: o sistema está, pura e simplesmente, a perder eficácia estrutural.
Indicadores dos 20 piores meses desde 2001. Fonte: ICNF. Análise: PÁGINA UM.
Portugal habituou-se a viver com a retórica do “combate heroico” e com a lógica cíclica da “economia do fogo”: cada ano de desastre é seguido de promessas de reformas e investimentos, que logo se dissolvem na espuma das estações. As corporações locais, dependentes de subsídios, clamam por mais recursos, os fornecedores de meios aéreos multiplicam contratos milionários, e os políticos exibem-se nos “postos de comando” a debitar palavras de circunstância. Entretanto, a floresta arde, os solos erodem e as aldeias do interior esvaziam-se, ano após ano, numa espiral de abandono e desolação.
A tragédia de Agosto de 2025 não é, por isso, apenas o resultado de um verão quente. É o espelho de um modelo esgotado, incapaz de se adaptar à realidade contemporânea. O país reduziu drasticamente as ignições ao longo das últimas duas décadas, sinal de que já não somos a mesma sociedade de descuido e fogo posto dos anos 80 e 90. Mas, ao mesmo tempo, nunca estivemos tão mal preparados para enfrentar os grandes incêndios que, inevitavelmente, surgem em zonas críticas.
Os desastrosos números da eficácia no combate – e há ainda outros indicadores que permitiriam reconfirmar este desastre, se forem disponibilizados – são um retrato fiel da falência do sistema. Não estamos perante um azar estatístico, mas perante um falhanço nacional que exige reflexão séria e reformas profundas.
Caso contrário, o próximo mês de Setembro, ou um outro qualquer em época de risco, poderá não ser apenas o pior em eficácia: poderá ser, pura e simplesmente, o pior de sempre em todos os indicadores. Com este modelo, todos os recordes negativos são possíveis de bater.