Categoria: Sociedade

  • SNS apaga campanha de sensibilização que incluía ‘virtudes’ das drogas

    SNS apaga campanha de sensibilização que incluía ‘virtudes’ das drogas


    Uma campanha de informação sobre o uso de drogas, lançada este mês pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS), acabou por se tornar tão tóxica que foi eliminada das redes sociais.

    Em causa estão publicações do SNS nas redes sociais, designadamente no Facebook e Instagram, com informação sobre o uso de substâncias, como canábis e cocaína. A polémica estalou porque a campanha mencionava os “efeitos” provocados pelas drogas e que arriscavam servir de incentivo ao consumo das substâncias, por parecerem até ser positivos.

    Foto: Os “slides” polémicos que faziam parte da campanha de informação do SNS ainda estão disponíveis na Internet, tendo como referência a página do SNS no Facebook.

    A campanha de informação do SNS sobre cada substância era composta por quatro “slides” com informações separadas e o objectivo, no último slide, era facultar os contactos para quem precisasse da ajuda do Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD), a entidade pública identificada na campanha. O principal problema é que, separado dos restantes, um dos slides destacava os efeitos ou alegadas ‘virtudes’ dos estupefacientes, o que poderia induzir à experimentação.

    No caso da campanha sobre o uso de canábis, publicada no início deste mês, o SNS referia que os efeitos do consumo da substância incluem: relaxamento; alteração da percepção do tempo; aumento do apetite; e euforia leve.

    Já na campanha de informação relativa ao uso de cocaína, publicada no dia 10 de Outubro, o SNS destacava que os efeitos do consumo da droga incluem: euforia; aumento de energia; sociabilidade; e diminuição da fadiga. Este slide em particular está a ser partilhado nas redes sociais, separado dos restantes slides, para criticar o SNS pelo conteúdo da campanha de sensibilização.

    O director-executivo do SNS, Álvaro Almeida (em baixo, o segundo a contar da esquerda), e os membros do conselho de gestão do SNS (da esquerda para a direita): Francisco Matos, Ana Oliveira, Ana Rangel, Helder Sousa e Fernando Pereira. / Foto: D.R.

    A campanha, apurou o PÁGINA UM, foi elaborada pelo SNS e validada pelo ICAD, em termos científicos, mas não recebeu criticas positivas dos utilizadores das redes sociais que viram nos “slides” polémicos o risco de servirem como incentivo ao consumo daquelas substâncias que causam dependência.

    Apesar de terem sido apagadas das redes sociais, as imagens da campanha do SNS ainda se encontram espalhadas na Internet. Fazendo uma pesquisa nos motores de busca, encontram-se as imagens, que remetem para a página do SNS no Facebook. Mas quando se clica nas imagens, já não se encontram na página do SNS naquela rede social. Ou seja, existem indícios de que estiveram no perfil oficial desta entidade.

    O PÁGINA UM confirmou junto de uma fonte oficial que a campanha sobre o uso de canábis e cocaína é verídica e que as publicações foram eliminadas das redes sociais pelo SNS, para serem alvo de “reflexão”.

    Foto: Os quatro “slides” que constituem a campanha do SNS sobre o uso de cocaína e que ainda se encontram disponíveis na Internet, apesar de terem sido apagadas da página do SNS no Facebook.

    Para o psiquiatra Luís Patrício, um dos pioneiros no tratamento das toxicodependências em Portugal e autor da página ‘Mala de Prevenção‘, “felizmente, tendo em conta o conteúdo, foi apagado” das redes sociais. Mas, salientou que, “infelizmente, está na rede [Internet]”.

    O especialista recordou “um outro disparate dos anos 90, quando também nos serviços do Ministério da Saúde foi publicada uma informação também disparatada” sobre heroína, em que foi usada uma frase similar a esta: “a gota sedutora que escorre”. Ora, a heroína, é “um produto/droga de consumo abusivo, geradora de intensa dependência”.

    “Estes factos devem-nos fazer pensar que algo tem de mudar em termos de exigência e de competência”, defendeu o psiquiatra.

    No caso da campanha que agora foi apagada das redes sociais, Patrício alertou que, quem vir apenas o slide sobre os efeitos do uso das drogas, “de forma isolada, pode pensar não se tratar de uma informação no âmbito da prevenção sanitária social, mas de um slide integrado numa campanha com perspectivas geopolíticas económicas”.

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    Foto: D.R.

    O psiquiatra observou que quem publicou a campanha “ou não valorizou, porventura, o risco, no âmbito da educação para a saúde/prevenção, na perspectiva sanitária e social, ou teria apenas talvez alguma boa intenção”.

    Luís Patrício salientou que, com o slide polémico, “quem não sabe [quais são] os efeitos, fica a saber” e, “alguém menos informado ou mais frágil, até pela vivência grupal, queira comprovar os efeitos da “gulosa” assim é o nome em calão [para a cocaína]”. Por outro lado, “quem esteja em sofrimento directo ou indirecto relacionado com cocaína, poderá sentir alguma tristeza ou até revolta dados os estragos provocados pela cocaína nos que, sem desejarem, ficaram agarrados, dependentes”.

    O psiquiatra destacou que, na sensibilização sobre o uso de drogas, “um dos equívocos reconhecidos foi, nos anos 70 e 80, serem publicitados os efeitos da substância no âmbito da prevenção” que causou um “efeito contrário ao desejado”. Mas, “porventura, em Portugal, ainda há quem não tenha sido ensinado ou compreendido”.

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    Foto: D.R.

    Defendeu que “é preciso repensar a prevenção em Portugal”, com “mais competência, mais exigência, mais profissionalismo” porque “as boas vontades são simpáticas, mas não chegam”.

    Em resposta a questões do PÁGINA UM, fonte oficial do SNS indicou “que a direcção executiva do Serviço Nacional de Saúde não tem intervenção nessas campanhas, nem na publicação dos conteúdos das redes sociais do SNS”. Formalmente, o ICAD não comentou a polémica. O PÁGINA UM fez também várias tentativas de contacto com a porta-voz da ministra da Saúde, Ana Paula Martins, para obter um comentário, mas até ao momento não nos foi comunicada qualquer resposta.

    A par da campanha sobre o uso de canábis e de cocaína, o SNS também publicou recentemente uma campanha nas redes sociais a alertar para os riscos do consumo de álcool, mas, neste caso, a publicação do SNS não deixou rasto tóxico e mantém-se disponível.

  • Reputação: Banco de Portugal contrata sondagem mas exige correcções se o resultado não agradar

    Reputação: Banco de Portugal contrata sondagem mas exige correcções se o resultado não agradar


    Para uma instituição que se quer sóbria, polémicas não têm faltado ao Banco de Portugal, a começar pelo seu governador até há pouco tempo, Mário Centeno. Talvez por isso, a instituição agora liderada por Álvaro Santos Pereira mantenha-se preocupada com a sua reputação e tenha seguido uma ideia herdada do seu antecessor: fazer um barómetro de reputação.

    Assim, dois dias após a substituição de Centeno por Santos Pereira, o banco confirmou a contratação de uma empresa de sondagens para perguntar aos portugueses o que pensam da instituição. Na verdade, o que os portugueses acharem é irrelevante: a acção do Banco de Portugal no quotidiano é praticamente nula, limitando-se à supervisão das instituições financeiras e à execução das directivas do Banco Central Europeu.

    Mário Centeno terminou oficialmente o seu mandato como governador do Banco de Portugal no dia 19 de Julho mas manteve-se no cargo até à nomeação do seu sucessor. Foi substituído pelo antigo ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira, cujo mandato como governador teve início no dia 6 de Outubro. / Foto: D.R.

    Certo é que a decisão de avançar com a despesa foi tomada pela direcção do Departamento de Logística e Instalações do Banco de Portugal no passado dia 20 de Julho, em pleno fim oficial do mandato de Centeno, mas o contrato foi celebrado dois dias após a tomada de posse de Santos Pereira, no dia 8 deste mês. A empresa escolhida, após um procedimento de consulta prévia, acabou foi a Marktest que receberá 73.099 euros, com IVA incluído, para elaborar e conduzir um estudo de mercado durante três anos, embora possa ser revogado a cada ano.

    Segundo o caderno de encargos do procedimento, consultado pelo PÁGINA UM, “o Banco de Portugal, com a elaboração de um Barómetro Anual da sua reputação, pretende monitorizar o nível de conhecimento e de confiança da sociedade sobre a sua missão e actividades e adaptar as suas estratégias de comunicação de forma mais eficiente”.

    No entanto, ainda não estão definidas as questões a colocar — estimadas em cerca de três dezenas — nem o número total de pessoas a inquirir. Em todo o caso, um estudo desta natureza, para ter credibilidade estatística representativa da população adulta portuguesa (cerca de 8,2 milhões de pessoas), deve incluir pelo menos 600 entrevistas, o que corresponde a um erro amostral próximo de ±4%. Para uma amostra de 1.000 inquiridos, o erro desce para cerca de ±3%, garantindo maior robustez. Em termos de custos, cada inquérito telefónico ronda entre 15 e 25 euros, dependendo da complexidade e duração, o que colocaria o valor total do estudo entre 9.000 e 25.000 euros.

    Álvaro Santos Pereira, governador do Banco de Portugal desde 6 de Outubro.

    Assim, face ao custo envolvido, é mais provável que seja escolhida uma amostra de cerca de 600 inquiridos, o mínimo necessário para garantir validade estatística, permitindo à empresa contratada maximizar a margem de lucro sem comprometer formalmente a credibilidade do estudo.

    A decisão deste barómetro surge ainda para cumprir uma meta do Banco de Portugal, que definiu, no seu plano estratégico para 2021-2025, como um dos objetivos aumentar a proximidade e a confiança junto da sociedade”.

    E bem que precisa. Têm sido várias as polémicas em torno da instituição, no passado mais distante e no mais recente. Basta lembrar que, apesar de toda a supervisão, grandes bancos colapsaram, com destaque para o BES, em 2014, com as decisões do Banco de Portugal a deixar um conjunto de investidores lesados. Depois, os gastos e alguns luxos, designadamente com salários, contratações e promoções, têm deixado marcas reputacionais negativas.

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    Foto: D.R.

    A somar, mais recentemente, há a polémica em torno da nova sede do Banco de Portugal, na zona de Entrecampo, envolvendo os terrenos da Fidelidade, agora com capitis chineses, que já é vista como um elefante branco. Acrescem todas as polémicas em torno de Mário Centeno, que até na saída do cargo de governador foi motivo de notícia devido ao conteúdo da mensagem que enviou aos trabalhadores da instituição, com um tom que alguns viram como narcísico.

    Agora, o Banco de Portugal contratou a Marktest para aferir “do conhecimento e confiança” que “a sociedade portuguesa adulta” tem desta instituição cada vez mais distantes dos portugueses..

    O contrato está dividido em três fases operacionais que incluem ao desenho, implementação e apresentação do estudo. Assim, “no prazo máximo de uma semana após a outorga do contrato ou em data posterior se o Banco de Portugal assim o indicar, deverá ser realizada uma reunião de kick-off entre as partes para a preparação do plano detalhado dos trabalhos a executar, a identificação de factores críticos de sucesso e riscos do estudo”.

    O Banco de Portugal fechou acordo com a Fidelidade para construir um novo edifício num terreno (na foto) onde antes se situava a Feira Popular, junto a Entrecampos, Lisboa. Foto: PÁGINA UM

    Adivinha-se uma tarefa espinhosa para a Marktest e o Banco de Portugal. Por um lado, o banco quer ouvir os portugueses, por outro não quererá publicar um barómetro de reputação negativo. A chave estará nas questões a colocar aos portugueses que, certamente, não irão incluir perguntas sobre o que pensam da luxuosa Quinta da Fonte Santa, que exige uma manutenção milionária, ou o valor total pago pelo Banco de Portugal com mudanças, instalações temporárias (com tapumes em obras nunca iniciadas) e a construção na nova sede.

    Porém, a instituição agora liderada por Santos Pereira tem a ‘faca e o queijo na mão’: o caderno de encargos do contrato destaca explicitamente que, se houver alguma coisa que esteja ‘incorrecta’ no relatório final, a Marktest terá de “garantir a realização de todas as correcções e/ou propostas de melhoria, à sua custa, solicitadas pelo Banco de Portugal, e disponibilizar uma nova versão actualizada”.

  • A fortuna de Dino d’Santiago: em cinco anos, Estado dá-lhe 1,6 milhões de euros para ‘empoderamento social’

    A fortuna de Dino d’Santiago: em cinco anos, Estado dá-lhe 1,6 milhões de euros para ‘empoderamento social’


    No final de 2021, Dino d’Santiago — o músico português nascido no Algarve mas com orgulhosas raízes cabo-verdianas — dizia ao Observador: “Hoje já me sinto merecedor de tudo.” E tem sido isso mesmo que sucedeu a Claudino Jesus Borges Pereira, hoje com 42 anos.

    Ao sucesso musical, Dino d’Santiago somou o reconhecimento político, tendo sido, em 2023, condecorado com a Medalha de Mérito Cultural, é agora membro da Comissão para a Igualdade e Luta Contra a Discriminação Racial e até do Conselho Geral da Universidade de Aveiro . Tudo isto muito por ter assumido um papel de relevância pública nos projectos sociais em que se envolveu, sobretudo nas áreas da raça e da discriminação. Publicou recentemente o livro Cicatrizes, com prefácio da escritora (e conselheira de Estado) Lídia Jorge, e recebeu ainda um convite para conceber uma ópera “estrelada” no Centro Cultural de Belém, numa encomenda da Bienal de Artes Contemporâneas. Por isso, é amiúde visto em companhia de figuras públicas e de poder.

    Dino d’Santiago com Carlos Moedas em Osaka, numa acção social da Mundu Nôbu, que levou um jovem á Exposição Mundial de Osaka: Foto: DR.

    Mas há outro lado da história: Dino d’Santiago tem sido copiosamente apoiado, como poucos, pelos poderes públicos. E o apoio não é apenas de solidariedade e ‘pancadinhas nas costas’. É com ‘txeu dinheru’ – como se dirá na ilha de Santiago para ‘”muito dinheiro”. Com efeito, ao longo dos últimos cinco anos, Dino d’Santiago tem conseguido implementar, graças à sua popularidades nos corredores da política, um modelo de financiamento que, sendo formalmente escorreito, choca pelas verbas envolvidas.

    Na passada terça-feira, o PÁGINA UM revelou que, através da associação Mundu Nôbu — que fundou em finais de 2023 e que preside, sem se conhecerem outros membros da direcção além de Liliana Valpaços —, Dino d’Santiago conseguiu garantir, nos últimos 13 meses, 481 mil euros de duas empresas municipais (Gebalis e EGEAC) para a prestação de serviços sociais e para dois espectáculos musicais contratualizados por valores inflacionados. Mas essa era apenas uma parte da história.

    Uma investigação mais aprofundada nos últimos dias apurou que, de forma directa e indirecta, desde 2021, Dino d’Santiago já garantiu muito mais em subsídios e contratos públicos: quase 1,6 milhões de euros, grande parte através de uma empresa da qual é o único sócio.

    Ligações privilegiadas ao poder não têm trazido apenas capacidade de intervenção, mas também muito dinheiro. Foto: DR.

    Antes de fundar a associação Mundu Nôbu — nome retirado do álbum homónimo de 2018 —, o músico criou, em 2019, a empresa unipessoal Batuku Roots, com sede em Albufeira, que incluía, além das actividades musicais, o arrendamento de imóveis e a comercialização de vestuário e brindes. Contudo, foi em Lisboa, e sobretudo a partir de 2021, que a empresa começou a facturar em grande escala.

    Nesse ano, ainda com fortes limitações impostas pela pandemia — período em que muitos artistas foram severamente penalizados —, a Câmara Municipal de Lisboa entregou-lhe 250 mil euros de subsídio para lançar um projecto online denominado “Lisboa Criola”. No mesmo ano, o Turismo de Portugal, no âmbito das medidas de mitigação dos efeitos económicos da pandemia, concedeu-lhe mais de 20 mil euros.

    Em 2022, já sem restrições sanitárias, o projecto de Dino d’Santiago manteve-se activo, centrando-se num festival de música com workshops e conferências durante três dias. Resultado: mais 250 mil euros atribuídos à Batuku Roots, valor que, segundo as demonstrações financeiras consultadas pelo PÁGINA UM, representou praticamente a totalidade das suas receitas desse ano. E, como não há duas sem três, em 2023 a empresa de Dino d’Santiago voltou a receber 250 mil euros da autarquia liderada por Carlos Moedas. Nesse exercício, a Batuku Roots registou receitas de 346 mil euros, não se sabendo se os cerca de 100 mil euros adicionais provêm de actividade empresarial ou de outros subsídios públicos.

    Em três edições da ‘Lisboa Criola’, uma das quais online, a empresa unipessoal de Dino d’Santiago, a Batuku Roots, recebeu 750 mil euros da autarquia liderada por Carlos Moedas.

    Na lista de entidades subvencionadas em 2024 pela autarquia de Lisboa, a Batuku Roots já não surge, mas a razão parece simples: com a criação da associação Mundu Nôbu no final de 2023, Dino d’Santiago deslocou as suas atenções e passou a beneficiar de um estatuto ainda mais privilegiado nos corredores do poder — deixando de necessitar de apresentar candidaturas e passando a celebrar contratos directos com a Câmara de Lisboa, através da Gebalis e da EGEAC. Entre 2024 e 2025, essas contratações já totalizam 481 mil euros.

    A associação Mundu Nôbu recebeu ainda, em Setembro de 2023, um apoio adicional de 314.863 euros no âmbito do Portugal Inovação Social, destinado a um projecto de “empoderamento e capacitação de jovens afrodescendentes” com duração de três anos. O projecto é um dos que a autarquia de Lisboa apoiou este ano.

    Contas feitas, e não tendo sido possível confirmar se houve outros financiamentos por outras entidades públicas de menor dimensão, Dino d’Santiago obteve, através da empresa e da associação, cerca de 1,6 milhões de euros em apoios e contratos públicos desde 2021, sendo que no caso da Mundu Nôbu a verba de subsídios atinge quase 800 mil euros. E a autarquia de Lisboa é, de longe, o principal financiador:Ç mais de 1,2 milhões de euros, entre a Batuku Roots e a Mundu Nôbu. No caso da associação, são também divulgadas mais de uma dezena de entidades privadas como parceiras, designadamente o Banco BPI, a Fundação La Caixa, o BNP Paribas, a Fundação Calouste Gulbenkian, a FNAC, a Emerald Group, a PwC, a Microsoft, a IKEA, a Worten, a Randstad, a Euro M e o ISPA. Mas nada se indica sobre os montantes envolvidos ou se se trata de prestação de serviços ‘pro bono’.

    Concerto do ano passado, que incluiu uma conferência, que deu à Mundu Nôbu 130 mil euros pagos pela EGEAC. Como artista, Dino d’Santiago recebe, por norma, menos de 20 mil euros.

    Contactados novamente a associação Mundu Nôbu e Dino d’Santiago, houve desta vez resposta — embora evasiva. O PÁGINA UM quis saber o valor total dos financiamentos públicos obtidos desde 2021, quer através da associação, quer da empresa, bem como as respectivas proveniências. Foi ainda questionado se, dado que a Batuku Roots deixou de receber financiamento da autarquia em 2024, Dino d’Santiago passou a prestar serviços remunerados à associação Mundu Nôbu. Reiterou-se também o pedido de relatório e contas de 2024 — que já deveriam estar aprovados até Março —, bem como a lista de membros dos órgãos sociais e o número de associados, informações que continuam a não ser divulgadas.

    Em resposta individual, Dino d’Santiago afirmou que “a Batuku Roots é a empresa onde desenvolvo a minha actividade profissional e artística, sendo a Mundu Nôbu uma associação privada sem fins lucrativos, no âmbito da qual procuro, enquanto cidadão, contribuir com o meu empenho cívico, social e solidário”. Garantiu ainda que “até à data, nem eu, nem a minha empresa ou qualquer familiar meu, recebemos qualquer verba por parte da Mundu Nôbu”, acrescentando que, “pelo contrário, tal como a minha co-fundadora Liliana Valpaços, aloquei verbas significativas na Mundu Nôbu, a título pessoal”.

    Contudo, sem relatório e contas aprovados nem documentos contabilísticos disponíveis, esta declaração não é comprovável. O PÁGINA UM voltou a questionar Dino d’Santiago sobre os montantes que ele e a sua parceira Liliana Valpaços supostamente alocaram à associação, e que modelo contabilístico foi usado, mas não houve ainda resposta.

    O empoderamento de jovens tem incluído visitas de Dino d’Santiago e dos jovens dos projectos da Mundu Nôbu à Presidência da República. Foto: DR.

    Já na resposta conjunta de Dino d’Santiago e Liliana Valpaços, enquanto representantes da associação Mundu Nôbu, foram repetidos os mesmos argumentos, e acrescentaram que, quanto às informações financeiras e plano de actividades, “agindo com a transparência que caracteriza a associação, após aprovação em Assembleia Geral, o que se prevê ocorrer a curto prazo, aquela poderá ser disponibilizada para consulta, verificados os pressupostos para tal aplicáveis”.

    Importa salientar que os planos de actividades devem ser elaborados no início do ano a que dizem respeito, e os relatórios e contas de um determinado exercício têm de ser aprovados até Março do ano seguinte. Ora, já passaram mais de seis meses do prazo.

    Uma associação não está obrigada à mesma transparência que uma empresa privada – e esse modelo está cada a enraizar-se mais -, mas o facto de a Mundu Nôbu receber avultados apoios públicos coloca-a sob a alçada da Inspecção-Geral das Finanças e do Tribunal de Contas, para eventual verificação da boa aplicação dos dinheiros públicos.

    Acresce ainda que, recebendo já mais de 800 mil euros em tão pouco tempo, a associação aparenta ser uma estrutura fechada, porque repetidamente Dino d’Santiago não responde aos pedidos de divulgação dos membros dos distintos órgãos sociais. E o facto de, por lei, uma associação não poder distribuir lucros, tão não significa que esteja impedida de desviar receitas através de fornecimentos de serviços ou mesmo remunerações dos seus dirigentes.

    Site do Mundu Nôbu com informações genéricas e sem qualquer menção aos órgãos sociais nem ao plano de actividades nem a contas. A equipa não inclui sequer o nome da directora executiva, Liliana Valpaços, e Dino d’Santiago surge como fundador, não havendo indicação dos órgãos sociais.

    E apesar de não terem respondido a parte das questões nem revelado documentos sobre a associação — que, mesmo admitindo mérito social, se mantém envolta em opacidade —, Dino d’Santiago e Liliana Valpaços deixam um aviso ao PÁGINA UM: “Gostaríamos de sublinhar que qualquer informação que venha a ser veiculada em canais públicos com carácter difamatório, ofensivo ou contrária à realidade dos factos, bem como os prejuízos, designadamente financeiros, da mesma decorrentes, serão tratados em sede própria. Não pode a Mundu Nôbu permitir que uma missão que se quer humanitária seja alvo de qualquer acção de descredibilização, com impacto em todos os que para a mesma contribuem.

    Ou seja, uma associação que já recebeu quase 800 mil euros de dinheiros públicos foi convidada por um jornal a mostrar transparência e, em vez disso, ameaça com um processo judicial – algo que, aliás, pode ser até patrocinada pela pbbr — Sociedade de Advogados, outra das parceiras do Mundu Nôbu.

  • Associação de Dino d’Santiago já ‘sacou’ 481 mil euros à autarquia de Lisboa em prestação de serviços e cantorias

    Associação de Dino d’Santiago já ‘sacou’ 481 mil euros à autarquia de Lisboa em prestação de serviços e cantorias


    Nos últimos 13 meses, a associação Mundu Nôbu, presidida pelo músico Dino D’Santiago e gerida pela sua parceira Liliana Valpaços, conseguiu encontrar um verdadeiro mundo novo de financiamento público através de alegadas prestações de serviços a empresas municipais de Lisboa.

    À margem dos habituais concursos e candidaturas públicas, a que estão sujeitas dezenas de organizações não-governamentais, a associação criada no final de 2023 pelo músico residente no Algarve, mas com forte projecção mediática na capital, já conseguiu firmar, desde Agosto do ano passado, quatro contratos directos com estruturas da Câmara Municipal de Lisboa, no montante global de 481 mil euros (equivalente a 385 mil euros acrescidos de IVA).

    Carlos Moedas e Dino d’Santiago no ano passado num concerto na Praça do Município. Foto: CML.

    O expediente foi simples: em vez de subsídios ou apoios sujeitos a regras de concurso, a Mundu Nôbu passou a figurar como prestadora de serviços, assinando contratos de aquisição directa — ora para a execução de projectos sociais com a Gebalis, empresa municipal de habitação, ora para a organização de concertos a preços manifestamente inflacionados com a EGEAC, responsável pela gestão cultural da cidade.

    O primeiro grande contrato surgiu em Agosto do ano passado, quando a EGEAC assinou com a recém-criada associação um acordo de 130 mil euros para a “concepção, coprodução e apresentação ao público do Festival Mundo Novo 2024”. O evento, integrado nas Festas na Rua, foi apresentado com o tema “A interculturalidade portuguesa no topo do Spotify”, mas, na prática, resumiu-se a uma conferência com Dino D’Santiago e convidados, seguida de um concerto nocturno na Praça do Município, com actuações de Dino D’Santiago, Irma, Soluna, Crioulo, Maro e Bateu Matou. Pelas imagens disponíveis, o público presente não terá ultrapassado o milhar de pessoas, embora o evento tenha contado com a presença do presidente da autarquia, Carlos Moedas.

    O ritmo de contratos acelerou este ano. Em Junho, a Gebalis adjudicou à Mundu Nôbu um contrato de 20 mil euros, por ajuste directo, para um projecto de intervenção comunitária denominado “O Teu Lugar no Mundo”, destinado a jovens entre os 14 e os 22 anos. A descrição contratual era vaga: realização de reuniões semanais de duas horas com até 160 participantes, divididos por grupos. Não há registos fotográficos nem informação sobre o local de realização das sessões, mas a empresa municipal pagou integralmente a verba correspondente a oito encontros, uma vez que o contrato teve a duração de 60 dias. Curiosamente, o valor adjudicado coincidiu com o limite máximo legal que dispensa concurso público.

    Concerto do ano passado, que incluiu uma conferência, que deu à Mundu Nôbu 130 mil euros pagos pela EGEAC. Como artista, Dino d’Santiago recebe, por norma, menos de 20 mil euros.

    Mal terminou esse contrato, a Gebalis renovou a prestação de serviços por mais doze meses, agora no valor de 125 mil euros, sob a designação “fase de desenvolvimento”. Este novo acordo, celebrado em Agosto, foi classificado como uma “contratação excluída” — expressão que, na prática, significa um procedimento fora das regras habituais da contratação pública, situação de legalidade duvidosa no contexto deste serviço. Assim, um apoio temporário transformou-se num contrato anual que assegura mais de 10 mil euros mensais à associação de Dino D’Santiago, com cláusulas invulgares.

    Mais do que um instrumento de intervenção social, o contrato revela-se um veículo de promoção da própria associação. De acordo com o documento, e sob o pretexto de “articulação” com a empresa municipal, prevê-se a realização de visitas mensais aos bairros para “apresentar o projecto e convidar jovens e famílias a conhecer a Mundu Nôbu”, bem como a produção de conteúdos digitais com menções expressas à entidade.

    Em vez de actividades concretas e metas mensuráveis, o contrato estabelece uma rotina de reuniões, relatórios e intercâmbios vagos, que acabam por servir sobretudo para dar visibilidade e notoriedade à associação beneficiária, mais do que para gerar resultados tangíveis junto dos moradores dos bairros municipais.

    Dino d’Santiago e Liliana Valpaços: uma associação em Lisboa que encontrou um expediente para não ter de andar com arrelias e burocracias em candidaturas para apoios públicos: basta fazerprestação de serviços à Gebalis e uns concertos inflacionados para a EGEAC. Foto: CML.

    O quarto e mais recente contrato foi assinado no passado dia 19 de Setembro, novamente com a EGEAC, para a coprodução e apresentação do “Mundo Nôbu Experience 2025”, por um valor total de 110 mil euros. O evento, previsto para 12 de Novembro no Capitólio, está descrito apenas como um “concerto” entre as 20h30 e as 23h00. O documento não especifica o conteúdo artístico, nem há qualquer referência a orçamentos detalhados. Curiosamente, nem o Capitólio, nem a EGEAC, nem a Agenda Cultural de Lisboa incluem o espectáculo nas respectivas programações, o que levanta dúvidas quanto à efectiva execução do contrato.

    Mais surpreendente ainda é o contraste entre estes valores e os cachês de Dino D’Santiago. Nos últimos anos, os concertos do músico, de ascendência cabo-verdiana, têm oscilado geralmente abaixo dos 20 mil euros. A Câmara de Lisboa pagou-lhe 6.000 euros em 2018, no âmbito da Moda Lisboa; em 2019, recebeu 5.500 euros da Associação Vicentina, 17.000 euros da Câmara de Alcobaça e 15.000 euros da de Aveiro (num espectáculo conjunto com Branko). Em Viana do Castelo o valor foi de 10.500 euros, na Figueira da Foz de 5.000 euros, e apenas em Albufeira, sua região natal, atingiu o valor excepcional de 71.400 euros no ano passado. Em 2024, só se encontra um contrato público de espectáculo, com a Câmara de São João da Madeira, no montante de 9.000 euros.

    A associação Mundu Nôbu parece, assim, ter descoberto um modelo engenhoso: usar uma figura pública de grande visibilidade para obter financiamentos públicos regulares, com um modelo de gestão pouco transparente, sem depender de candidaturas competitivas ou de voluntariado associativo. Apresentando-se como uma organização sem fins lucrativos, actua de facto como uma estrutura profissional, concentrada e opaca. Apesar de se afirmar aberta a novos sócios, apenas duas figuras estão visivelmente associadas ao projecto: Dino D’Santiago, presidente, e Liliana Valpaços, responsável pela execução dos contratos e, desde o ano passado, alegadamente remunerada após uma alteração estatutária.

    Site do Mundu Nôbu com informações genéricas e sem qualquer menção aos órgãos sociais nem ao plano de actividades nem a contas. A equipa não inclui sequer o nome da directora executiva, Liliana Valpaços, e Dino d’Santiago surge como fundador, não havendo indicação dos órgãos sociais.

    O PÁGINA UM contactou por duas vezes a associação Mundu Nôbu, solicitando esclarecimentos sobre as contas do exercício de 2024, o plano de actividades dos seus dois anos de existência, os órgãos sociais e o número de sócios efectivos. Não houve qualquer resposta — talvez por se entender que não é necessário prestar contas à imprensa quando se gerem dinheiros públicos.

    No site da associação surge a equipa da Mundu Nôbu constituída por uma psicóloga, uma responsável pela comunicação e marketing, um responsável administrativo e financeiro e três monitores. Nada consta de relatórios, nem os nomes dos órgãos sociais (direcção, assembleia geral, conselho consultivo e fiscal único), nem planos de actividades. Apenas se exibem fotografias genéricas e frases inspiracionais sobre “interculturalidade” e “empoderamento”.

    Não há sequer referências a eventos realizados nem a iniciativas futuras, e mesmo o anunciado concerto de 12 de Novembro no Capitólio permanece envolto em silêncio. Já a lista de parceiros institucionais e privados é extensa e bem exposta — mais de uma dezena —, uma espécie de convite da Mundu Nôbu para se apoiar uma história de sucesso: só com sorrisos, palmadinhas das costas, dinheiro público… e sem questionamentos.

  • Canal TV dos tribunais administrativos tem já meio milhão de euros pronto para gastar

    Canal TV dos tribunais administrativos tem já meio milhão de euros pronto para gastar


    A Justiça administrativa em Portugal pode ler lenta, com processos a desenrolar-se por anos, e inacessível a muitos, já que as custas são proibitivas, mas não se pode acusá-la de retrógrada: o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF) prepara-se para lançar um canal de televisão em regime de streaming com conteúdos jurídicos – e esta até poderá acessível aos cidadãos comuns, pagando uma subscrição. Não se sabe é se o valor será indexado à famosa Unidade de Conta (UC).

    O lançamento do canal JAF TV, que tem estreia marcada para o segundo semestre de 2026 será financiado com verbas retiradas de um projecto de digitalização do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). O CSTAF tem disponíveis, por agora, 422,8 mil euros de um ‘bolo’ de 950 mil euros que recebeu para “a melhoria das condições de contexto de funcionamento do sistema de Justiça da República Portuguesa, nas vertentes legal, procedimental, de gestão do conhecimento e do paradigma tecnológico”.

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    Foto: D.R.

    Em concreto, o projecto não fala especificamente num canal televisivo, mas sim em investimentos em plataformas digitais dos Tribunais Administrativos, incluindo a contratação de recursos tecnológicos, hardware e software. Grande parte dos investimentos (55,5% do total) deste financiamento global foi já gasto na aquisição de hardware e de software, incluindo de inteligência artificial.

    A decisão de criar o canal JAF TV, que terá de ser autorizada pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social, foi aprovada pelo CSTAF no passado dia 23 de Setembro, mas não nascerá desacompanhada. O projecto televisivo terá parceiros terá cofundadores, segundo a deliberação publicada em Diário da República na passada sexta-feira.  

    Não se pense que este canal servirá para a transmissão de actos processuais como já sucede com o Tribunal de Justiça da União Europeia, até porque são raras as audiências nos tribunais administrativos, que funcionavam à base de requerimentos e despachos escritos. Na verdade, a JAF TV serve para auxiliar na formação certificada especializada dos magistrados da jurisdição administrativa e fiscal, disponibilizando essa formação a quem, na área do direito, tenha interesse em pagar o acesso. Mas também terá uma componente mais aberta, prevendo-se quatro rubricas e ainda um podcast mensal. 

    A ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, e o juiz conselheiro Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia, que tomou posse como presidente do CSTAF em Outubro de 2024. / Foto: D.R.

    Já desde sexta-feira que o PÁGINA UM preparava uma notícia sobre o lançamento deste canal e enviou questões ao CSTAF, designadamente sobre como será financiado o canal, tendo-nos sido enviadas respostas na segunda-feira. Mas só ontem, após novo contacto telefónico, recebemos a resposta final sobre a origem concreta do financiamento. Em paralelo, sem nada indicar no contacto telefónico feito com o PÁGINA UM, o CSTAF emitiu um comunicado público para anunciar o lançamento do canal, antecipando-se à notícia do PÁGINA UM.

    Antes, nas respostas escritas enviadas ao nosso jornal, o CSTAF esclareceu que as entidades cofundadoras da JAF TV “serão estabelecimentos de ensino superior, instituições públicas e associações de magistrados que acrescentarão qualidade à componente formativa do canal”, disse fonte oficial do CSTAF em resposta a perguntas do PÁGINA UM. Mas poderão alugar por um valor simbólico, a determinar, “os meios tecnológicos e humanos da JAF TV para a realização e transmissão de eventos próprios que se alinhem com a missão do canal”.

    Também não são ainda conhecidos os preços de subscrição da JAF TV, os quais “estão a ser definidos de acordo com o estudo económico financeiro que está a ser elaborado para o canal”. Mas é certo que “qualquer interessado, seja individualmente ou através de uma pessoa coletiva, pública ou privada, pode subscrever e aceder aos conteúdos do canal JAF TV”.

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    O que se sabe é que o canal de TV vai ter um “serviço por assinatura” que “consiste no pagamento de uma quantia periódica – mensal, trimestral ou anual – que confere ao utilizador acesso ilimitado a todos os conteúdos da plataforma, incluindo seminários, congressos, ações de formação, entrevistas e podcasts, no período subscrito”. A criação desta “modalidade visa proporcionar uma receita previsível para o canal e incentivar o consumo contínuo de conteúdo por parte dos subscritores”.

    Também vai disponibilizar o pagamento por conteúdo, que “permite ao utilizador pagar um valor único para aceder a um conteúdo singular e específico, como um seminário, um congresso ou um curso específico, sem a necessidade de uma assinatura contínua”.

    A JAF TV terá descontos para entidades parceiras cofundadoras, as quais “beneficiam de um desconto automático de 35 % em todos os serviços e de condições especiais para a utilização do canal para os seus próprios eventos”. Também “serão estabelecidos descontos de 25 % para estudantes de direito, mestrado ou doutoramento, mediante comprovativo de inscrição”.

    (Da esquerda para a direita) O presidente do STA e do CSTAF, juiz conselheiro Jorge Aragão Seia, a ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, o secretário de Estado-Adjunto e da Justiça, Gonçalo Cunha Pires, e a juíza-secretária, juíza desembargadora Eliana Almeida Pinto, a qual vai liderar o novo canal JAF TV. / Foto: D.R.

    O canal será dirigido pela juíza-secretária do CSTAF, a juíza desembargadora Eliana Almeida Pinto, que assumirá a função de diretora-geral, a quem caberá definir “a estratégia editorial e institucional do canal”, com a supervisão do presidente do CSTAF.

    A criação de um canal de streaming não foi a única mudança recente aprovada pelo CSTAF. Na mesma sessão em que foi aprovada a criação da JAF TV foi também aprovada a criação de um Gabinete de Relações Internacionais, um Gabinete de estudos e um Gabinete de apoio ao presidente do CSTAF e juiz-secretário.

  • Comissão Nacional de Eleições ‘aprova’ com silêncio a realização de debates patrocinados

    Comissão Nacional de Eleições ‘aprova’ com silêncio a realização de debates patrocinados


    A Comissão Nacional de Eleições (CNE), presidida pelo juiz-conselheiro Pires Trindade, recusa comentar e revelar se adoptará alguma posição sobre o patrocínio da secção regional do Norte da Ordem dos Engenheiros (OERN), através do pagamento de 25 mil euros, à realização de quatro debates autárquicos promovidos pelo Jornal de Notícias (JN) com candidatos às presidências das Câmaras Municipais do Porto, Braga, Viana do Castelo e Bragança, mas cujo contrato excluía alguns dos partidos concorrentes.

    Apesar de três mensagens de correio electrónico enviadas pelo PÁGINA UM desde quarta-feira terem sido confirmadas como recebidas pelos serviços da CNE, não houve qualquer resposta deste organismo independente quanto à legalidade e oportunidade da iniciativa. A menos de um dia das eleições, o silêncio da entidade fiscalizadora deixa sem escrutínio um modelo inédito — e potencialmente perigoso — de “debates patrocinados” em plena campanha. E abre portas, no futuro, para ‘modalidades’ ainda mais promíscuas e desviantes.

    Como o PÁGINA UM revelou, o JN introduziu nesta campanha uma “inovação”: debates financiados por um terceiro, que assume a definição dos temas a discutir. No caso, a OERN celebrou mesmo um contrato público para estabelecer as condições dos debates, tendo estes se centrado em exclusivo nos temas da “habitação” e “mobilidade”. A cláusula contratual, firmada entre a OERN e a Notícias Ilimitadas (proprietária do JN), limitou convites a forças com representação nas Assembleias Municipais, provocando exclusões em todos os concelhos abrangidos.

    No Porto, por exemplo, apenas 8 das 12 candidaturas estiveram no palco; em Braga, participaram 7 de 10; em Viana do Castelo a CDU ficou de fora; em Bragança subiram ao debate 4 de 7 listas. Para além de condicionar temas e formato, o financiador viu ainda assegurada visibilidade institucional: o presidente da OERN, Bento Aires, foi o centro das atenções, sendo até fotografado no meio dos candidatos.

    O carácter polémico destes debates patrocinados decorre de três planos. Primeiro, a natureza da OERN: sendo uma associação pública profissional que exerce poderes públicos (inscrição, disciplina, regulação profissional), está sujeita a legalidade, imparcialidade, prossecução do interesse público e neutralidade institucional. Financiar debates com candidatos, em período eleitoral, pode colidir com a neutralidade e condicionar o pluralismo.

    Segundo, a parceria com um órgão de comunicação social, remunerada e com temas predeterminados, fere a necessária separação entre jornalismo e patrocínio, agravada pelo facto de o conteúdo ter sido divulgado em formato informativo e moderado por um ex-jornalista com funções comerciais, o que suscita dúvidas de incompatibilidade ética e autonomia editorial. Terceiro, as exclusões de candidaturas legalmente admitidas afectam a igualdade de oportunidades entre concorrentes, princípio basilar da disputa eleitoral.

    Debate eleitoral no Porto dinamizado pelo Jornal de Notícias e pago pela Ordem dos Engenheiros. Presidente da secção regional do Norte, Bento Aires, teve direito a foto de conjunto no meio dos candidatos.

    Questionado pelo PÁGINA UM, Bento Aires, líder da OERN, justificou por escrito que “a Engenharia está envolvida no desenvolvimento das autarquias em diferentes dimensões”, garantindo, contra o que resulta do contrato, que “todos os candidatos (…) foram convidados”. E assegurou que os debates decorreram “com total imparcialidade e isenção”. Porém, nem nos vídeos alojados nas páginas do JN e da OERN, nem nas peças de enquadramento, é referida a existência de patrocínio remunerado nem a interferência do financiador na escolha de temas. Esse défice de transparência é grave em qualquer circunstância; em campanha, é inaceitável.

    Perante este quadro, qual deveria ser o papel da CNE? De acordo com as suas competências, esta Comissão tem o dever de zelar pela regularidade dos actos eleitorais, assegurar a igualdade de tratamento das candidaturas e vigiar a neutralidade das entidades públicas, emitindo recomendações e deliberações quando detecta riscos para a liberdade de voto, a isenção informativa e a equidade. Pode ainda instar correcções imediatas e encaminhar ocorrências para a competente actuação contra-ordenacional quando aplicável.

    Num contexto em que uma entidade do sector público financia debates e define regras de participação e temas, esperar-se-ia, no mínimo, um esclarecimento célere sobre se é compatível com a lei eleitoral e com os princípios de neutralidade e igualdade que um patrocinador externo seleccione temas e, por via contratual, condicione quem pode ou não subir ao palco.

    Debate eleitoral em Braga pago pela Ordem dos Engenheiros.

    A urgência de uma posição não é meramente formal. O precedente criado pela OERN e pelo JN abre a porta a que, no futuro, associações empresariais, ordens públicas, fundações ou grupos sectoriais ditem, mediante pagamento, as agendas de debate e o perímetro dos convidados em plena campanha. Se hoje foram “habitação” e “mobilidade”, amanhã poderão ser interesses agrícolas, energéticos, imobiliários ou securitários, com o risco de privatizar a agenda pública e moldar a cobertura informativa segundo quem paga. O mercado dos debates substitui a mediação editorial e o interesse público por contratos comerciais, dissolvendo a fronteira entre informação e publicidade em matéria eminentemente política.

    Recorde-se que, além das exclusões, houve ganhos de imagem para o financiador: a marca da OERN esteve permanentemente associada aos debates, e o seu presidente apareceu em destaque ao lado dos candidatos. Os encontros foram moderados por um quadro comercial do grupo de media, circunstância que aumenta a percepção de promiscuidade entre áreas comerciais e conteúdos editoriais. Tudo isto, em período de campanha, quando a legislação e as boas práticas impõem especial rigor.

    N.D. (15/10/2025) O PÁGINA UM escreveu inicialmente que o actual presidente da CNE era o juiz conselheiro Santos Cabral, antigo director nacional da Polícia Judiciária. Essa informação constava no site da CNE à data da publicação. O PÁGINA UM foi alertado por Santos Cabral informando que já cessara funções em 21 de Julho. Contactado o CNE sobre essa situação, André Wemans, porta-voz desta entidade, esclareceu hoje que “que detetado ontem que uma outra página (constante de um submenu designado “História”) não continha a data de fim de mandato do anterior Presidente da CNE – 18.ª CNE – a mesma foi completada com essa data e aditado o espaço do atual Presidente em funções”. Informou também que “relativamente ao V/ pedido sobre os debates, informo que o mesmo se encontra pendente para informação dos Serviços, com vista a submeter à Comissão.”

    Embora por um erro de uma entidade (que deveria ter a informação actualizada), o PÁGINA UM lamenta a informação inicialmente transmitida e pede desculpas ao juiz conselheiro Santos Cabral pela referência na notícia original, entretanto corrigida neste aspecto, que não altera a substância.

  • Jornal de Notícias introduziu nas eleições autárquicas um modelo inédito: debates patrocinados

    Jornal de Notícias introduziu nas eleições autárquicas um modelo inédito: debates patrocinados


    O Jornal de Notícias introduziu nesta campanha eleitoral uma “inovação”: a realização de debates patrocinados, em que a entidade que paga assume a escolha dos temas a debater. Para agravar, a entidade pagadora foi a secção regional do Norte da Ordem dos Engenheiros (OERN), que está impedida de condicionar a campanha eleitoral por se enquadrar no sector público, uma vez que exerce funções atribuídas pelo Estado.

    Apresentada como uma série de “debates com Engenharia”, promovida em conjunto pela OERN e pelo Jornal de Notícias — que publicou o conteúdo em formato informativo e com a participação de jornalistas, o que constitui uma incompatibilidade legal, já que estes não podem participar em eventos de índole comercial —, a iniciativa decorreu ao longo das últimas duas semanas, em plena campanha eleitoral. Realizaram-se quatro debates com candidatos às Câmaras Municipais do Porto, Braga, Viana do Castelo e Bragança, centrados sobretudo em dois temas escolhidos pela Ordem dos Engenheiros – Região Norte (OERN): habitação e mobilidade.

    Debate eleitoral em Braga pago pela Ordem dos Engenheiros.

    Para isso, a entidade liderada por Bento Aires dispôs-se a pagar quase 25 mil euros, com IVA, para ver – e ele aparecer – os candidatos a debaterem habitação e mobilidade. Presume-se que, se fosse a Confederação dos Agricultores de Portugal a financiar, poder-se-ia ter assistido a debates sobre a produção de couves de Bruxelas e de nabos. Ou, se o patrocínio viesse de uma coligação da Confraria da Alheira de Mirandela, da Confraria do Fumeiro, Salpicão e Linguiça de Vinhais e da Confraria do Bucho Raiano de Sabugal – que efectivamente existem – , talvez os candidatos discutissem o impacto dos enchidos no desenvolvimento regional. O Jornal de Notícias demonstra que tudo agora será possível se houver 25 mil euros.

    De facto, segundo o contrato celebrado entre a OERN e a Notícias Ilimitadas, proprietária do Jornal de Notícias, as condições desta esdrúxula relação comercial com vista à realização de um debate político determinavam que seriam convidados apenas os representantes dos partidos com assento na Assembleia Municipal de cinco concelhos — sendo que o debate previsto para Vila Real acabou por não se realizar. Esta cláusula restringia o número de participantes, levando à exclusão de várias candidaturas legalmente registadas nas eleições autárquicas de 2025.

    Assim, no Porto, onde existiam 12 candidaturas activas, apenas oito participaram no debate de 30 de Setembro. Ficaram de fora o Partido Liberal Social, o ADN, a CDU e o Partido Trabalhista Português. Em Braga, onde o debate se realizou no dia 1 de Outubro, estiveram presentes sete das dez listas concorrentes. Em Viana do Castelo, a CDU ficou igualmente excluída do debate de 29 de Setembro, e em Bragança, realizado no dia 25 de Setembro, participaram apenas quatro das sete candidaturas registadas.

    Debate eleitoral no Porto dinamizado pelo Jornal de Notícias e pago pela Ordem dos Engenheiros. Presidente da secção regional do Norte, Bento Aires, teve direito a foto de conjunto no meio dos candidatos.

    A própria OERN não escondeu as suas intenções nesta parceria: “colocar em evidência a influência da Engenharia e dos/as Engenheiros/as nas políticas locais e como as autarquias podem crescer e inovar quando a decisão é feita com Engenharia”. Contudo, em nenhum dos debates — disponíveis nos sites do jornal e da OERN — é feita qualquer referência a esta parceria ser remunerada, nem os diferentes candidatos terão sido informados de que a escolha dos temas resultou de um pagamento da Ordem dos Engenheiros ao Jornal de Notícias.

    Este inédito (ou pelo menos até agora desconhecido) modelo de debates patrocinados levanta questões legais e éticas. A Ordem dos Engenheiros é uma associação pública profissional, mas com um enquadramento jurídico que a equipara às entidades públicas, razão pelo qual tem de cumprir as regras de contratação pública.

    Uma vez que exerce “poderes públicos”, a Ordem dos Engenheiros está sujeita aos princípios da legalidade, imparcialidade e prossecução do interesse público, não podendo as suas actividades envolver interferência político-partidária nem favorecimento de interesses particulares, sendo obrigatória a neutralidade institucional. Assim, a celebração de um contrato comercial para promover debates políticos durante o período eleitoral pode violar estes princípios e colocar em causa a natureza pública e independente da instituição.

    Com 25 mil euros, Bento Aires pôde brilhar junto dos candidatos autárquicos.

    Por outro lado, a participação do Jornal de Notícias enquanto parceiro e beneficiário financeiro da iniciativa suscita dúvidas sobre a independência editorial e a necessária separação entre jornalismo e patrocínio institucional. O contrato previa que o jornal assegure a divulgação dos debates, seleccionando temas previamente acordados com a OERN, o que introduz uma clara condicionante à autonomia editorial. Os debates foram também moderados por um antigo jornalista, Paulo Ferreira, agora com funções de direcção-comercial. Paulo Ferreira é também investigador do Centro de Estudos de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, sendo assim colega da actual presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, Helena Sousa. O regulador tem sido particularmente condescendente com a promiscuidades nos grupos de media,

    Questionado pelo PÁGINA UM sobre a eventual ilegalidade do contrato e sobre as exclusões verificadas, o presidente do Conselho Directivo da Região Norte da Ordem dos Engenheiros, Bento Aires, respondeu apenas por escrito, dizendo que a realização dos debates se deveu ao facto de que “a Engenharia está envolvida no desenvolvimento das autarquias em diferentes dimensões, como habitação, mobilidade, segurança e planeamento”. Acrescentou, apesar de ser contrariado pelo próprio contrato assinado entre as partes, que “todos os candidatos a Presidente de Câmara Municipal foram convidados atempadamente, tendo comparecido os que aceitaram o convite”, assumindo ainda que “os debates decorreram com total imparcialidade e isenção, sendo um contributo cívico para aprofundar o debate público das temáticas referidas.”

    O PÁGINA UM também contactou a Comissão Nacional de Eleições (CNE) para obter comentários sobre se a realização de debates patrocinados por entidades com funções públicas durante o período pré-eleitoral é compatível com a lei eleitoral, mas não obteve ainda resposta, embora o pedido tenha sido confirmado como recebido.

    Paulo Ferreira, ex-jornalista, agora com funções comerciais no Jornal de Notícias, foi o moderador dos debates. É também investigador do Centro de Estudos de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho.

    Além das dúvidas jurídicas, especialistas em ética dos media alertam que a introdução de debates patrocinados — onde o financiador define os temas e as regras de participação — compromete a independência jornalística e cria precedentes de condicionamento editorial por via contratual. Este caso ocorre num contexto em que a linha que separa jornalismo informativo e conteúdos pagos se tem tornado cada vez mais difusa, nomeadamente em iniciativas de branded content e “parcerias institucionais”.

    Contudo, ao envolver debates entre candidatos em plena fase eleitoral, a iniciativa da OERN e do Jornal de Notícias ultrapassa o domínio publicitário e entra na esfera da comunicação política condicionada, levantando questões sérias de transparência, legalidade e equidade democrática.

  • Mais de 13% da população activa: Mourão, Monforte e Moura lideram dependência do Rendimento Social de Inserção

    Mais de 13% da população activa: Mourão, Monforte e Moura lideram dependência do Rendimento Social de Inserção


    Três concelhos alentejanos concentram o epicentro da dependência social em Portugal. Mourão, Monforte e Moura são os municípios que largamente sobressaem quando se observa o mapa de 2024 do Rendimento Social de Inserção (RSI) em função da população activa, ontem divulgado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE).

    A prestação social que deveria ser transitória mostra estar a enraizar-se em muitas regiões do país, constituindo uma espécie de indicador da pobreza estrutural portuguesa. Nestes três concelhos do Alentejo interior, de acordo com o INE, mais de 13% da população activa vive do RSI: 137,25 por mil em Mourão, 135,25 em Monforte e 133,66 em Moura. São valores mais de cinco vezes superiores à média nacional, que se situou no ano passado nos 24,22 por mil — ou seja, cerca de 2,4%.

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    O município da Ribeira Grande, nos Açores, com 100,29 beneficiários por mil habitantes activos — o equivalente a 10% da população — é o quarto concelho acima dos 10%, um número fortemente influenciado pela freguesia de Rabo de Peixe, símbolo histórico da exclusão social. No mesmo arquipélago, outros concelhos reforçam a gravidade da situação, ainda que com valores mais baixos: Nordeste (80,28), Povoação (77,56) e Santa Cruz da Graciosa (67,31). Estes dados evidenciam que, em várias ilhas açorianas, o RSI deixou de ser uma rede de segurança para se converter num pilar essencial da economia local.

    Ainda acima dos 6% da população activa destacam-se Elvas (65,84), Idanha-a-Nova (63,98), Serpa (63,62), Vidigueira (62,68) e Avis (61,49). A lista mantém-se quase toda no sul do país, reforçando o peso estrutural do Alentejo como território mais dependente de prestações sociais. Só Moimenta da Beira (61,44) rompe o padrão, surgindo como o primeiro concelho fora do Alentejo e dos Açores a ultrapassar a barreira dos 6%. Logo depois aparecem Santa Marta de Penaguião (59,94), Figueira de Castelo Rodrigo (58,89), Peso da Régua (58,59) e Murça (58,18), todos no interior norte, na zona de Trás-os-Montes e Douro.

    Mas a maior surpresa acaba por ser o peso do RSI na cidade do Porto. Segundo o INE, o rácio foi no ano passado de 58,04 por mil habitantes em idade activa — o equivalente a 5,8% da população —, o que significa que cerca de 6.400 pessoas beneficiaram desta prestação. Em números absolutos, este é o concelho do país com o maior número de beneficiários.

    Mourão, no Alentejo, lidera a dependência social em Portugal: acompanhada de Monforte e Moura, têm um rácio de RSI em função da população activa mais de cinco vezes a média nacional.

    Ponta Delgada (58,35) e Lagoa (54,50), nos Açores, e Campo Maior (53,69), Cuba (52,75), Reguengos de Monsaraz (51,48) e Beja (50,02), no Alentejo, fecham o grupo dos territórios onde mais de 5% da população activa depende do subsídio. O Baixo Alentejo, no seu conjunto, regista 52,79 beneficiários por mil habitantes activos — 5,3% da população —, ultrapassando mesmo a média dos Açores (49,07).

    No plano regional, o contraste é evidente. A média nacional situa-se nos 24,22 por mil, o que significa que 2,4% da população activa portuguesa vive com o RSI. Acima deste valor encontram-se o Baixo Alentejo (52,79) e os Açores (49,07), mas também, com índices de apoio social bastante elevados, o Alto Alentejo (37,52), o Douro (37,26), a Península de Setúbal (31,62), a Área Metropolitana do Porto (31,61), as Terras de Trás-os-Montes (30,93) e o Alto Tâmega e Barroso (30,90). São, pois, regiões que ultrapassam os 3% da população activa dependente.

    O padrão é claro: as áreas com menor diversificação económica e menor densidade populacional exibem rácios mais elevados, e as zonas industriais ou mais urbanizadas apenas escapam a esta regra quando enfrentam problemas estruturais de emprego e rendimentos baixos.

    Porto é o município que, em termos absolutos, mais população activa beneficia de apoio social

    No extremo oposto, há um outro país: um total de 38 concelhos contam com menos de 1% da população activa a receber RSI. A liderança positiva cabe a Vizela, onde apenas 0,47% da população é beneficiária — 4,71 por mil. Barcelos (5,23) e Esposende (5,86) seguem-se como os concelhos com maior autonomia social. O top 10 dos menos dependentes completa-se com Oliveira de Frades (6,72), Óbidos (7,00), Ponte de Lima (7,80), Sever do Vouga (7,31), São Roque do Pico (7,32), Vila Verde (7,51) e Mealhada (7,61). Todos apresentam uma economia mais diversificada, níveis de emprego estáveis e maior coesão social — factores que mitigam a necessidade de apoio público permanente.

    Outros concelhos com valores inferiores a 1% incluem Oleiros, Melgaço, Arruda dos Vinhos, Mira, Arraiolos, Condeixa-a-Nova, Terras de Bouro, Vale de Cambra, Monção, Mafra, Póvoa de Lanhoso, Santiago do Cacém, Oliveira de Azeméis, Anadia, Vouzela, Santa Cruz, Guimarães, Arcos de Valdevez, Nazaré, Murtosa, Ponte da Barca, Ourém, Caldas da Rainha, Vila do Bispo, Caminha, Sobral de Monte Agraço e Arouca.

    A dispersão geográfica destes concelhos demonstra que a baixa dependência do RSI não é exclusiva de regiões consideradas ricas: há concelhos rurais, com indústria ou agricultura robusta, que conseguem garantir uma autonomia económica mínima sem recurso massivo ao subsídio.

    Nas grandes metrópoles, o quadro não é favorável, sobretudo porque os valores absolutos são inquietantes. Em Lisboa, 36,46 por mil habitantes activos — 3,6% — recebem RSI, valor acima da média nacional, embora inferior ao de outras áreas metropolitanas. Sintra, curiosamente, está muito abaixo (16,47), enquanto a Amadora (24,45) se situa praticamente na média nacional. Cascais, símbolo de riqueza, apresenta 17,11 por mil, e Oeiras, o concelho com maior proporção de licenciados, ainda regista 10,86 — cerca de 1,1% da população. Ou seja, mesmo nos territórios mais prósperos, persistem bolsas de vulnerabilidade.

    Estes números traçam um retrato nítido de um país dividido. Por um lado, um Portugal que conseguiu diversificar a sua base económica e reduzir a dependência; por outro, um Portugal que permanece encurralado em ciclos de pobreza e exclusão social, onde o RSI deixou de ser uma ponte para a integração para se transformar num pilar de sobrevivência.

    Haverá, por certo, quem queira retirar “dividendos” políticos — por ver predominância dos apoios sociais em Mourão e Monforte, com comunidades ciganas relevantes —, mas a equação é mais complexa. A interioridade, o isolamento e a fragilidade produtiva continuam a ser factores determinantes, mas há igualmente um problema de cultura institucional: a prestação foi concebida como instrumento de inserção, mas em muitas zonas está a tornar-se uma condição permanente, por faltarem investimentos públicos que quebrem uma crónica debilidade socioeconómica.

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    Aliás, mais do que uma “geografia étnica”, a distribuição do RSI coincide, em larga medida, com uma geografia do despovoamento e da concentração desregulada. Concelhos envelhecidos, com baixa natalidade e pouca oferta de emprego, acabam por depender de mecanismos de redistribuição que perpetuam a inércia — embora cada vez se observem mais franjas urbanas, como o Porto e até Vila Nova de Gaia, com problemas que já não parecem conjunturais.

    Mas também há lições a retirar do outro extremo, mais favorável. Se considerarmos que o rácio de RSI em função da população activa indica sinais de menor ou maior prosperidade económica, verifica-se que as regiões menos dependentes de apoios sociais não são necessariamente as mais ricas, mas aquelas que mantêm uma actividade económica real — indústria, agricultura ou serviços — e uma relação mais equilibrada entre Estado e comunidade.

  • Sede da ‘polícia da bolsa’: Remodelações de interiores ‘às mijinhas’ custarão mais de oito milhões de euros

    Sede da ‘polícia da bolsa’: Remodelações de interiores ‘às mijinhas’ custarão mais de oito milhões de euros


    A ‘polícia da bolsa’ , o jargão usado para nomear a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), queixa-se frequentemente de falta de recursos humanos para melhor fiscalizar os mercados financeiros. Mas, como já se tornou hábito no sector público português, mesmo se os recursos humanos escasseiam, poucos decisores conseguem fugir à tentação de deixar obra feita, literalmente, com placa de inauguração à mistura.

    Neste tipo de cultura vigente, os membros do conselho de administração da CMVM, liderado por Luís Laginha de Sousa – que trouxe a ‘escola’ do Banco de Portugal, de onde foi administrador entre 2017 e 2022 – não fogem à regra e aprovaram um projecto de melhoraria de interiores da sua sede em Lisboa, junto ao Hospital Curry Cabral, que não tem fim à vista nem contas perfeitamente definidas. Mas pelo que se tem já gasto é possível estimar que custarão para cima dos oito milhões de euros,

    A remodelação da sede da CMVM prevê a criação zonas de lounge. / Foto: Projecto de remodelação da sede da CMVM | D.R.

    Só para a remodelação do piso técnico (onde se encontra maquinaria), do piso 1 e metade do piso 11, a CMVM está agora disposta, de acordo com um concurso público, a pagar um pouco mais de dois milhões de euros, que inclui um ginásio com balneários e ainda uma zona de gaming (jogos electrónicos) para os cerca de 220 trabalhadores. Note-se que esta remodelação é apenas de interiores, uma vez que o edifício do final dos anos 80 encontra-se em excelentes condições estruturais.

    No futuro, serão avançadas as remodelações das outras áreas de um edifício com 13 pisos à superfície, não havendo ainda previsão de custos finais. Isto porque a CMVM, para que os gastos possam passar de forma discreta, tem desenvolvido a remodelação por fases. No ano passado, foi adjudicada à Arfus em Abril a remodelação do piso 0, incluindo o auditório, com um custo total de 652 mil euros, com IVA incluído. Contudo, se se juntar os gastos anteriores, incluindo os projectos de arquitectura, para já a factura chega já ultrapassa os três milhões de euros.

    E a ‘procissão’ só agora vai no adro. Fazendo uma estimativa, atendendo às remodelações já adjudicadas e a concurso, que rondam cerca de 600 mil euros por piso, o custo global de melhorar todos os13 pisos aproximar-se-á dos oito milhões de euros, se não houver derrapagens.

    O processo de remodelação do edifício da CMVM iniciou-se há cinco anos. O primeiro contrato conhecido, datado de Maio de 2020, visou uma due diligence técnica ao imóvel, num investimento modesto de 9.450 euros, destinado a avaliar as condições estruturais e funcionais do edifício.

    Actualmente, os dois últimos pisos da sede da CMVM, que são usados pelos quadros de topo do regulador, apresentam uma decoração clássica, com madeiras nobres e tapeçarias. / Foto: Projecto de remodelação da sede da CMVM | D.R.

    Seguiram-se, em 2022 e 2023, novas empreitadas com valores progressivamente mais elevados, nomeadamente estudos prévios, projectos base de arquitectura e especialidades, bem como consultoria para renovação de espaços interiores, incluindo o hall de elevadores e zonas comuns.

    Este ano, o processo atingiu uma nova etapa, com a aquisição de serviços para automatização e controlo do edifício (SACE), sinalizando a transição de uma fase de planeamento e reabilitação física para uma vertente mais tecnológica e de eficiência operacional.

    Ao longo de cinco anos, a CMVM escolheu sucessivamente a Savills Portugal, uma sucursal de uma empresa britânica do sector imobiliário, para estas intervenções. Assim, os contratos celebrados desde 2020 somam 283.843 euros, valor que, acrescido do IVA a 23%, eleva o montante global já gasto para cerca de 349.127 euros.

    Agora, passou-se para a fase do concurso para a escolha da empresa de construção que vai executar o projecto de remodelação profunda da sede da CMVM já está em marcha com um preço base de 1,7 milhões de euros. Com IVA aumenta para os 2,09 milhões.

    Este será o aspecto futuro dos dois pisos superiores da sede da CMVM, após as obras de remodelação. / Foto: Projecto de remodelação da sede da CMVM | D.R.

    Segundo o projecto de remodelação, consultado pelo PÁGINA UM, o objectivo da obra é actualizar os interiores do edifício, criar espaços de trabalho abertos e modernizar os espaços que se encontram “datados”, embora em boas condições.

    Também os dois andares mais altos do edifício, 11º e 12º, que são usados pelos quadros de topo da CMVM, serão alvo de um “extreme makeover“: as madeiras nobres, o mobiliário clássico e as tapeçarias serão substituídos por uma decoração de interiores sofisticada, com um toque de estética escandinava — mas num país sem os recursos financeiros daquela região do Mundo, conforme das imagens que acompanham os documentos de procedimento concursal.

    No final desta remodelação extrema, a sede da CMVM ficará irreconhecível. A intervenção abrange assim a reconstrução dos interiores de 13 pisos – do piso 1 ao 12.º e ainda um piso “técnico”. Cada piso tem cerca de 514 metros quadrados, sendo que o primeiro serve diversos fins, dispondo, por exemplo, de uma cafetaria que será ampliada.

    A “nova” sede da CMVM vai contar com espaço multiusos dedicado ao exercício físico e dois balneários. / Foto: Projecto de remodelação da sede da CMVM | D.R.

    Segundo os documentos do concurso com a “memória descritiva” do projecto de remodelação, “a construção do edifício data do ano de 1989, pelo que a sua linguagem arquitectónica é marcada por uma sobriedade nas formas e volumes, combinada com uma certa ousadia na utilização das cores, tanto no exterior, como no interior”.

    Actualmente, os pisos “encontram-se organizados com base nos critérios de utilização, função, grau de confidencialidade e nível
    hierárquico dos utilizadores”, sendo que “esta lógica é reflectida na compartimentação dos espaços e nos materiais utilizados em cada piso”. Assim, os pisos destinados a quadros de topo têm actualmente materiais nobres e mobiliário clássico. Os restantes pisos, estão decorados de forma mais austera e “fria”.

    O documento destaca ainda que “os dois últimos pisos do edifício apresentam uma organização espacial distinta dos demais, onde a nobreza dos materiais se destaca”, mas “a reduzida incidência de luz natural e o pé direito baixo conferem a estes espaços uma atmosfera mais escura e pesada do que o desejável”.

    Em resumo, o objectivo da remodelação é eliminar o aspecto “antiquado” dos espaços e criar interiores com mais luz e espaços abertos.

    O edifício-sede da CMVM, na Rua Laura Alves, 4, em Lisboa. / Foto: D.R. | CMVM

    Todas as zonas no edifício vão ser renovadas, dos gabinetes da administração às casas-de-banho. No piso 1, a cafetaria vai ser “substancialmente expandida, com o intuito de acomodar um maior número de utilizadores” tendo o novo espaço sido “concebido com uma diversidade de ambientes acolhedores, promovendo a interação e o convívio, incluindo, também, uma zona de gaming, para fomentar a dinamização entre os colegas”.

    Também no piso 1, o espaço multiusos será “significativamente ampliado e relocalizado numa zona mais reservada, proporcionando um ambiente propício à prática de exercício físico, complementado por balneários de apoio”.

    Já que a CMVM tem meios escassos, o regulador concluiu que não precisa de tanto espaço e libertará três pisos, que ficarão disponíveis. Segundo a documentação disponibilizada no concurso. “constatou-se que a utilização integral do edifício pela CMVM se revelava excessiva, decorrente da ineficiência do
    layout dos pisos, da área desproporcionalmente alocada à circulação e da existência de espaços que, face às novas necessidades, se tornaram obsoletos”.

    Nesse sentido, “foi possível determinar que a ocupação necessária poderia ser optimizada, libertando três pisos para um novo inquilino”.

    A nova ‘cantina’ da CMVM. / Foto: Projecto de remodelação da sede da CMVM | D.R.

    Deste modo, na remodelação, os três pisos que serão “libertados” — entre os piso 2 e 4 — vão ser renovados “com os acabamentos básicos de um espaço interior, incluindo as infraestruturas técnicas essenciais”, uma configuração, “frequentemente descrita como uma “tela em branco”, oferece ao futuro ocupante a flexibilidade de adaptar o espaço às suas necessidades específicas”.

    Com este “libertar” de espaço no edifício, o conselho de administração da CMVM consegue encontrar, assim, um argumento para promover esta obra de renovação como trazendo eficiência. Resta saber se o papel do regulador da Bolsa como polícia dos mercados financeiros vai beneficiar com este “extreme makeover” da sede. Uma coisa é certa: os ‘scores‘ dos funcionários nos jogos electrónicos vão melhorar.

  • ‘Low cost’ no contrato  dos eléctricos: Carris nem sequer quis saber se os técnicos da MNTC tinham qualificações

    ‘Low cost’ no contrato dos eléctricos: Carris nem sequer quis saber se os técnicos da MNTC tinham qualificações


    A Carris dispensou a MNTC — a empresa também responsável pela manutenção do Elevador da Glória no momento do acidente mortal de 3 de Setembro — de apresentar qualquer comprovativo das qualificações profissionais dos técnicos afectos à manutenção dos eléctricos históricos e articulados Siemens , antes da adjudicação.

    Ou seja, a empresa municipal está a permitir que a manutenção seja realizada por pessoas sem experiência ou qualificações. Recorde-se, aliás, que, apesar de ser uma obrigação contratual da MNTC, o cabo do Elevador da Glória terá sido substituído por técnicos da Carris, uma vez que a empresa contratada não detinha conhecimentos para essa função.

    a yellow trolley car on a city street

    Aliás, a respeito do acidente do Elevador da Glória, caso se prove que a Carris assumiu a substituição do cabo e a ligação deste ao trambolho, através de um soquete de liga metálica, a responsabilidade passará a recair directamente sobre a própria empresa municipal, por ter violado as regras contratuais — ao intervir num equipamento cuja manutenção estava externalizada —, passando a assumir integralmente o ónus técnico e jurídico de um acto de montagem que exige certificação específica segundo as normas EN 13411-4 e EN 12385-8, com todas as consequências em termos de responsabilidade civil e criminal.

    De acordo com os elementos do procedimento do concurso público da manutenção dos eléctricos de Lisboa, a que o PÁGINA UM teve acesso, o programa do concurso previa que “o júri do procedimento pode solicitar aos concorrentes quaisquer comprovativos das formações, certificações ou experiência profissional mencionados no currículo de qualquer um dos elementos a afectar à prestação dos serviços”.

    No entanto, esse poder nunca foi exercido. Aliás, o júri do concurso — Isabel Cruz, Alexandra Silva e Ana Tomás, técnicas da Carris — acabou por tranquilizar a MNTC, esclarecendo por escrito, ainda antes da decisão final, que não seria necessário cumprir esse requisito durante a fase de concurso, embora tenha ressalvado que a empresa municipal “reserva-se o direito de solicitar, em sede de execução contratual, todas as certificações que se demonstrem necessárias”. Porém, tal nunca sucedeu até agora, segundo apurou o PÁGINA UM.

    Resposta do júri do concurso público de manutenção dos eléctricos, esclarecendo a MNTC de não ser necessário cumprir uma norma do programa de concurso sobre os comprovativos do currículo dos elementos das equipas.

    Com essa flexibilização, a MNTC pôde concorrer e vencer o procedimento, apresentando uma proposta abaixo do preço base (475.200 euros), derrotando a concorrência da Gasfomento. A Carris aceitou, assim, celebrar um contrato de manutenção de três anos sem comprovação prévia das competências técnicas da adjudicatária — uma lacuna grave, tendo em conta que se trata da mesma empresa envolvida no acidente do Elevador da Glória, onde se verificaram falhas estruturais e ausência de certificações válidas no cabo de tracção.

    Mas o problema não se resume ao controlo da adjudicação. O PÁGINA UM analisou o caderno de encargos da manutenção dos 45 carros eléctricos históricos e dos sete eléctricos articulados de Lisboa, tendo concluindo que é tecnicamente pobre, revelando, tal como já sucedia com o caderno de encargos dos ascensores, um nível de exigência muito inferior ao praticado pela STCP, no Porto, em matérias de segurança, rastreabilidade e rigor metrológico. Saliente-se que a MNTC é também a empresa responsável pela manutenção dos eléctricos na Cidade Invicta.

    Com efeito, enquanto a operadora portuense estruturou o seu plano de manutenção segundo princípios de engenharia industrial, com verificações periódicas diferenciadas (diárias, quinzenais, mensais, semestrais, anuais e de revisão geral), a Carris limita-se a prever revisões a cada 3.000 quilómetros no caso dos eléctricos, com verificações diárias, mas sem qualquer diferenciação por subsistema nem definição de critérios técnicos de aceitação ou rejeição.

    Exigências dos eléctricos históricos do Porto são incomensuravelmente superiores aos de Lisboa.

    Por outro lado, o plano da STCP obriga a ensaios não destrutivos (magnetoscopia e ultrassons), medições dimensionais com registo obrigatório, testes de equilíbrio dinâmico conforme a norma ISO 1940 G 2.5, verificação geométrica dos bogies segundo padrões UIC (Union Internationale des Chemins de Fer) e certificação de estanquidade de reservatórios de ar por entidades acreditadas. No caso do Porto, cada operação deve ser registada em ficha própria, com valores medidos, instrumento utilizado, data, técnico responsável e assinatura, garantindo rastreabilidade integral.

    Já a Carris não exige nenhum ensaio metrológico à MNTC, não define instrumentos nem tolerâncias e limita-se a indicar que devem ser efectuadas “verificações” e “revisões”, sem qualquer método prescrito. As “verificações”, como sucedia com os elevadores, podem ser a ‘olhómetro’.

    Essa diferença traduz-se num fosso de cultura técnica: enquanto o plano de manutenção da STCP demonstra a existência de engenharia aplicável a sistemas críticos de transporte, o da Carris é uma listagem funcional, assente na observação empírica e sem referências normativas. Em Lisboa, não há menção a normas ISO, EN ou UIC, nem exigência de certificações independentes de componentes críticos, como rodados, eixos, travões ou molas. Também não se prevê qualquer sistema de rastreabilidade técnica: o controlo documental resume-se a folhas de obra e relatórios administrativos, sem fichas metrológicas nem rastos de auditoria.

    Manutenção engloba eléctricos históricos e os modernos eléctricos articulados da marca Siemens. Foto: Carris.

    A pobreza técnica do caderno de encargos da Carris contrasta com a gravidade dos riscos envolvidos. Os eléctricos históricos — tal como os funiculares — são equipamentos antigos, sujeitos a fadiga estrutural e esforços dinâmicos que exigem inspecções especializadas e ensaios periódicos. Ainda mais no caso dos eléctricos de Lisboa, como o famoso 28, que percorrem zonas de grande declive, como a Calçada da Estrela, mesmo ao lado da Assembleia da República, a Calçada do Combro, a zona que liga o Chiado à Baixa, a Rua da Voz do Operário e a Rua Angelina Vida.

    A ausência de critérios técnicos e de medições verificáveis fragiliza o controlo de integridade e aumenta o risco de falhas não detectadas. Mesmo as penalizações contratuais, de 100 a 150 euros por omissão de manutenções, são simbólicas e não contemplam as consequências de incumprimentos que ponham em causa a segurança operacional.

    O PÁGINA UM já havia revelado, ao longo do mês passado, que a Carris tem adoptado um modelo de fiscalização essencialmente formal sem exigências escritas, baseado na confiança contratual. Agora, comprova-se que esse laxismo se estende à fase de planeamento técnico, com um caderno de encargos desprovido de parâmetros objectivos e metodologias de verificação.

    Conselho de Administração da Carris: a privilegiar o baixo custo e a elevada insegurança.

    Na verdade, a Carris aparenta privilegiar o preço baixo, algo que pode sair caro quando se trata de segurança. Com efeito, para a manutenção de 45 carros eléctricos históricos e dos sete eléctricos articulados, a empresa municipal de Lisboa vai gastar, em média, 158 mil euros com a manutenção da MNTC. Por sua vez, a STCP está disposta a gastar 380 mil euros por ano, em média, para a manutenção de apenas oito eléctricos históricos. Numa outra perspectiva, o custo no Porto por veículo é de De um lado, o ‘low cost’; do outro, a segurança.

    A comparação entre a STCP e a Carris – que há poucos dias até suspendera um concurso pública de ‘remotorização’ de 57 eléctricos antigos, que nada tem a ver com manutenção, para melhorar o caderno de encargos, conforme revelou a CNN Portugal – evidenciam dois modelos distintos: enquanto no Porto se seguem regras e se mede com rigor, em Lisboa continua a valer o improviso e o “olhómetro”. Adivinhe-se qual aquele modelo com maior probabilidade de estar sujeito aos ‘azares’ que resultam em desastres.

    N.D. O PÁGINA UM optou, intencionalmente, por desta vez não colocar questões à Carris, uma vez que, invariavelmente desde Setembro, a empresa municipal não remete nem revela quaisquer documentos, alegando que “está a receber inúmeras solicitações de entidades e de órgãos de comunicação social” e prometendo que “a todos está a ser dada resposta com prioridade e a maior brevidade possível”.

    Como há questões formuladas à Carris há mais de três semanas ainda sem resposta, presume-se que novas perguntas não seriam respondidas em tempo útil, juntando-se ao rol de promessas não cumpridas pela administração liderada por Pedro Bogas. Naturalmente, o PÁGINA UM incluirá quaisquer comentários que a Carris entenda relevantes.