Categoria: Sociedade

  • Na região mais pobre, Ponta Delgada paga a 600 magistrados um jantar de 100 euros por estômago

    Na região mais pobre, Ponta Delgada paga a 600 magistrados um jantar de 100 euros por estômago

    Há 75 mil açorianos pobres, quase um terço da população do arquipélago, mas a autarquia de Ponta Delgada ficou tão agradada em ter o Congresso do Ministério Público na sua terra que achou boa ideia oferecer ao sindicato organizador, através de uma empresa municipal, o repasto de encerramento. E não foi um jantar volante com garrafas de sumo: foi um opíparo jantar de gala que custou quase 63 mil euros, ficando assim em cerca de 100 euros por cada estômago. Além disto, por ironia, apesar do discreto mas majestático evento ter-se realizado no início de Março, a empresa municipal demorou mais de dois meses a assinar o contrato com o empresário que forneceu o jantar, o que significa que esta refeição teve contornos de ilegalidade. As entidades envolvidas – o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, a autarquia de Ponta Delgada e a empresa municipal Coliseu Micaelense – também não quiserem explicar os fluxos financeiros no âmbito do congresso, que envolveram outros apoios e pagamentos.


    Quase um em cada três açorianos (31,4%) estava em risco de pobreza no ano passado, divulgou ontem o Instituto Nacional de Estatística, mas isso não incomodou a autarquia de Ponta Delgada que, através da empresa municipal Coliseu Micaelense, se dispôs a suportar os encargos do jantar de gala de encerramento do recente congresso organizado pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP). A ‘prova do crime’ – ou seja, o uso de dinheiros públicos para custear seis centenas de refeições de luxo, na noite de 2 de Março –, foi agora descoberta pelo PÁGINA UM no autêntico ‘palheiro’ que é o Portal Base, sendo que a empresa municipal da autarquia açoriana, com liderança social-democrata, apenas consumou a contratação por ajuste directo mais de dois meses depois do repasto, o que, além de tudo o resto, constitui uma violação das normas do Código dos Contratos Públicos.

    Embora o congresso tenha sido uma iniciativa exclusiva de um sindicato, foi a empresa municipal Coliseu Micaelense, que gere o teatro local onde também se realizou o congresso, que decidiu contratar os serviços de catering para o jantar de encerramento. A factura, com IVA, chegou aos 62.655 euros, o que, considerando a capacidade oficial do espaço para jantares (599 lugares), e as informações sobre o número de participantes, representa um custo médio para o erário público de cerca de 100 euros por estômago. Além disto, também houve outros apoios financeiros da autarquia de Ponta Delgada, estabelecidos através de um protocolo, mas cujos termos se desconhecem, uma vez que tanto o município como o SMMP não o quiseram disponibilizar ao PÁGINA UM. Refira-se, em todo o caso, que no site do congresso não surge, até agora, a menção a quaisquer patrocinadores.

    Realizado entre os dias 29 de Fevereiro e 2 de Março, este congresso, o décimo terceiro, foi promovido, como habitualmente, pelo SMMP, tendo tido a presença da própria procuradora-geral da República, Lucília Gago. O encerramento contou com a presença do presidente do Governo Regional dos Açores, José Manuel Bolieiro. O último dia coincidiu com o congresso da União Internacional de Procuradores e Promotores do Ministério Público dos Países de Língua Portuguesa, onde se debateu a independência e o estatuto socioprofissional dos magistrados do Ministério Público.

    Acabados os trabalhos, a independência aos ‘costumes disse nada’, e as bocas e estômagos dos magistrados e convidados saciaram-se num repasto de 100 euros em pleno teatro com as mesas convenientemente montadas na zona da plateia e primeiro balcão. Apesar de o PÁGINA UM ter pedido esclarecimentos, por duas vezes, e feito um contacto telefónico à empresa municipal Coliseu Micaelense sobre as razões para ter suportado os custos de um jantar de gala ao preço de 100 euros por cabeça, não se obteve qualquer resposta.

    Em todo o caso, o contrato de aquisição do jantar por ajuste directo é inequívoco: foi a empresa municipal Coliseu Micaelense a contratar por ajuste directo um empresário em nome individual, Carlos Fernando Santos Furtado – que nunca antes fizera qualquer negócio com entidades públicas –, que gere um negócio de catering no concelho da Lagoa, usando a marca Q’enosso. Esta denominação é a mesma de uma empresa que Carlos Furtado dissolveu em 2018. É, aliás, através da página no Facebook do Q’enosso que se identificam as únicas fotografias do jantar, mas antes da chegada dos convivas. Numa das fotos surge o menu, embora ilegível.

    Lucília Gago, procuradora-geral da República, esteve presente no Congresso do Ministério Público. À direita, num dos almoços, mais frugal, com sumos de garrafa à disposição.

    Curiosamente, no site do congresso, apesar de constaram largas dezenas de fotografias do evento, não surge qualquer imagem do jantar de gala. Somente aparecem algumas fotos das refeições mais informais e frugais, realizadas na marina, no decurso dos três dias da programação. Numa dessas refeições até surge a procuradora-geral da República sentada a uma mesa onde se vê garrafas de sumo ‘industrial’, o que denuncia que essas não custaram certamente 100 euros por cabeça.

    Apesar da existência da prova factual de o jantar ter sido pago pela empresa municipal da autarquia de Ponta Delgada, presidida pelo social-democrata Pedro Nascimento Cabral, advogado de profissão, o SMMP não admite que tenham sido dinheiros públicos a custear o derradeiro repasto do seu congresso. A assessoria de imprensa do SMMP, relevando ter este congresso sido ainda organizado pela anterior direcção – presidida por Adão Pedro, substituído em Abril por Paulo Lona –, salienta que foi celebrado “um protocolo com a autarquia de Ponta Delgada, traduzido num apoio financeiro, recebido pelo SMMP, valor pelo qual o SMMP pagou inclusive IVA”, considerando ser “normal, para a realização de eventos desta natureza, recorrer a parcerias pontuais, numa óptica de valorização das entidades envolvidas”.

    Numa segunda fase da investigação do PÁGINA UM, o SMMP admitiu que “foi celebrado, entre outros, um protocolo de cooperação para a organização do XIII Congresso,  entre a CMPD [Câmara Municipal de Ponta Delgada] e o SMMP, conferindo ‘um apoio financeiro, destinado à comparticipação dos custos inerentes à organização do XIII Congresso do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público”, acrescentando que nesse âmbito o sindicato se comprometeu a “aplicar o apoio financeiro atribuído exclusivamente para os efeitos previstos na Cláusula Primeira do protocolo”.  

    A fonte oficial do SMMP diz que, em relação “ao jantar que encerrou o evento […],  assim como de outros serviços prestados pelo Coliseu Micaelense,  os mesmos constam em duas facturas emitidas pelo Coliseu Micaelense (e pagas pelo SMMP) respectivamente, nos valores de 44.283 euros  e 46.0031,67 euros, num total de 90.314,67 euros”. Apesar de se ter pedido, as facturas não foram enviadas ao PÁGINA UM. O SMMP não quis também revelar o protocolo nem as condições aí estabelecidas, incluindo o finaciamento autárquico. Também não explicou que serviços prestados pelo Coliseu Micaelense constam nas duas alegadas facturas nem tão-pouco o motivo para, formalmente, ter sido a empresa municipal a organizar e a pagar um jantar de luxo para um evento daquele sindicato.

    Aspecto das mesas do jantar de gala de encerramento do congresso do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público pago com dinheiros públicos.

    Além disso, como se desconhecem todos os fluxos financeiros entre as três entidades envolvidas – SMMP, autarquia de Ponta Delgada e a Coliseu Micaelense –, a hipótese de o sindicato ter recebido dinheiro da município para depois entregar à empresa municipal mostra-se bastante plausível. Nessas circunstâncias, nada de substancial muda, ou seja, o jantar de gala dos magistrados foi pago com dinheiros públicos.

    Saliente-se que apesar de ser usual a existência de apoios públicos em eventos desta natureza, nomeadamente de cedência de espaços a título gratuito ou com descontos – por exemplo, a preço de tabela, o teatro de Ponta Delgada, onde se realizou o congresso custa 4.500 euros por dia –, não se encontrou nenhum outro caso de uma autarquia a pagar directamente um jantar de gala que fosse da responsabilidade de um sindicato, ainda mais de magistrados do Ministério Público.

    Acrescente-se ainda que a situação financeira do SMMP é desafogada, registando, no ano passado, rendimentos de quase 826 euros e um lucro de 173 mil euros. Nos últimos cinco anos, os lucros acumulados deste sindicato ascenderam aos 680 mil euros e conta actualmente com capitais próprios superiores a 1,7 milhões de euros.

    O PÁGINA UM também contactou a Pocuradoria-Geral da República – que, obviamente, não tem responsabilidade sobre o SMMP – para saber se considerava ético o uso de dinheiros públicos num evento de magistrados do Ministério Público, e em especial para suportar um jantar de gala desta natureza, mas não obteve qualqyer reacção.

    No decurso dos trabalhos do congresso, a frugalidade foi a nota dominante. No fim, o jantar de gala foi ‘outra fruta’, que, talvez por pudor, não surge na galeria de fotos do congresso.

    Evidente, para já, é a irregularidade do contrato face às normas do Código dos Contratos Públicos, uma vez que o ‘repasto de gala’ se realizou no dia 2 de Março, mas o ajuste directo somente foi celebrado no passado dia 10 de Maio, após uma decisão da administração da empresa pública em 17 de Abril. Isto é, o contrato foi celebrado mais de três meses depois da execução do serviço. Nenhum problema haverá para os magistrados que deglutiram os 100 euros de comida e bebida do jantar de gala, mas os administradores da empresa municipal de Ponta Delgada podem vir a ter problemas se o Tribunal de Contas se debruçar sobre este contrato irregular.

    Quanto aos mais de 75 mil açorianos em risco de pobreza – ou seja, os tais 31,4% –, esses continuarão em risco de pobreza, ou melhor, continuarão pobres sem grandes probabilidades, se a gestão de dinheiros públicos se mantiver nesta linha, de saberem sequer o que é um jantar de 10 euros, quanto mais de 100.


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  • Assange finalmente livre

    Assange finalmente livre

    Julian Assange, jornalista e fundador da WikiLeaks, foi libertado ontem da prisão de alta segurança de Belmarsh onde estava detido há cinco anos no Reino Unido e vai regressar à Austrália. O jornalista esteve privado da sua liberdade durante mais de uma década e enfrentava a extradição para os Estados Unidos que o queriam julgar por ter divulgado informações confidenciais. Na liderança da WikiLeaks, Assange expôs crimes de guerra e violações de direitos humanos perpetrados pelos Estados Unidos. Para sair da prisão, Assange aceitou dar-se como culpado de ter acedido e divulgado informação confidencial. Esta acusação dos Estados Unidos contra Assange, bem como a conivência do Reino Unido em todo o processo de detenção do jornalista, são vistos como uma mancha para estes dois países e também como uma ameaça à liberdade de imprensa, já que constituem um grave precedente que abre a porta a novas perseguições de jornalistas no futuro.


    Julian Assange foi finalmente libertado da prisão de alta de segurança de Belmarsh em que se encontrava detido no Reino Unido e vai regressar a casa, na Austrália, depois de uma batalha judicial de 14 anos com as autoridades britânicas.

    O jornalista e fundador da WikiLeaks enfrentava a ameaça de ser extraditado para os Estados Unidos e, para ser libertado, aceitou dar-se como culpado de conspiração para obter e divulgar documentos confidenciais de defesa nacional dos Estados Unidos. Assange estava a ser acusado e perseguido por ter exposto crimes de guerra e violações dos direitos humanos cometidos pelos Estados Unidos.

    Julian Assange na sua chegada hoje a Banguecoque, Tailândia, numa paragem para reabastecimento.
    (Foto: Captura a partir de vídeo divulgado pela WikiLeaks)

    Assange, de 52 anos, esteve detido mais de cinco anos numa prisão britânica de alta segurança, depois de ter estado escondido na embaixada do Equador em Londres durante sete anos, enquanto enfrentava acusações de violação na Suécia e lutava contra acusações por parte dos Estados Unidos e a ameaça de extradição para este país.

    A libertação foi divulgada ontem pela WikiLeaks que numa mensagem na rede social X escreveu “Julian Assange está livre”, acompanhado de um comunicado da organização.

    A organização divulgou também um vídeo do momento em que Assange embarcou num avião no aeroporto de Stansted e tem vindo a tornar públicos outros vídeos com o jornalista.

    Assange irá comparecer perante um tribunal em Saipã, nas Ilhas Marianas do Norte, um território dos Estados Unidos no Pacífico, esta noite (manhã de quarta-feira no local), onde será decretada a sua sentença e será condenado a 62 meses do tempo já cumprido.

    Stella Assange apelou hoje ao público para que acompanhe a viagem do marido, “no caso de algo correr mal” e adicionou o link do voo de Julian Assange.

    “O voo VJ199 de Julian Assange aterrou em Banguecoque e em breve irá descolar novamente e voar para o espaço aéreo dos EUA, onde comparecerá perante um juiz norte-americano. Por favor, siga #AssangeJet, precisamos de todos os olhos no seu voo, no caso de algo correr mal”, escreveu Stella Assange na rede X.

    A libertação de Assange é uma das notícias do dia a nível mundial e mesmo nos media mainstream há uma alargada cobertura do acontecimento.

    Stella Assange tem sido o rosto da campanha em defesa da libertação do marido, Julian. Em entrevista ao PÁGINA UM, em Abril, Stella Assange falou sobre as condições em que o jornalista estava detido e deixou alertas sobre a perigosa tendência no mundo ocidental de se censurar a imprensa e condicionar a liberdade de expressão. (Foto: D.R.)

    Contudo, apesar da notícia ser positiva e a libertação de Assange estar a ser celebrada, defensores da liberdade de imprensa e dos direitos humanos temem que tenha sido criado um precedente grave que vai servir para perseguir, censurar e silenciar jornalistas.

    “Vamos pedir um indulto, obviamente, mas o facto de haver uma confissão de culpa, ao abrigo da Lei de Espionagem [dos Estados Unidos], em relação à obtenção e divulgação de informações de defesa nacional é obviamente uma preocupação muito séria para os jornalistas”, disse Stella Assange citada pela Reuters.

    No seu comunicado com o anúncio da libertação do seu fundador, a WikiLeaks recordou que a organização “publicou histórias inovadoras de corrupção governamental e violações dos direitos humanos, responsabilizando os poderosos pelas suas ações”. Adiantou que, “como editor-chefe, Julian pagou severamente por esses princípios e pelo direito do povo de saber”.

    O preço que Assange teve de pagar foi alto e incluiu estar, durante cinco anos, confinado a uma cela de seis metros quadrados, isolado 23 horas por dia, e longe da mulher e dos seus filhos.


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  • Autoridade Tributária: assessora externa passa a ganhar mais do que a directora-geral

    Autoridade Tributária: assessora externa passa a ganhar mais do que a directora-geral

    A presidente da Associação dos Profissionais de Protecção e Segurança de Dados (APDPO), Inês Oliveira, foi contratada pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) através de um ajuste directo usando uma polémica norma do Código dos Contratos Públicos que dificilmente se aplica a tarefas concretas como as de encarregada de protecção de dados. Mas essa não é o única questão: o contrato assinado este mês, com uma duração previsível de três anos, coloca Inês Oliveira a ganhar mensalmente mais do que a directora-geral do Fisco. E sem ter exclusividade. O contrato, que envolve pagamentos mensais, funcionando como uma avença, é de quase 194 mil euros, a que acresce o IVA, garantindo assim à assessora externa um rendimento anual superior a 64 mil euros, que se transforma em 4.600 euros se considerados 14 meses. A AT não quis explicar ao PÁGINA UM a necessidade de contratação externa de um encarregado de protecção de dados, até porque essa tarefa já esteve entregue a funcionários da ‘máquina fiscal’, incluindo uma subdirectora-geral, sem custos acrescidos.


    Já diz o ditado que não há duas sem três. A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) celebrou o terceiro contrato por ajuste directo com uma assessora externa que, desta vez, não apenas conseguiu prolongar o ‘vínculo’ por três anos como passar a ganhar mais do que um director-geral em funções no Estado. Mais: Inês Oliveira, a contemplada, conseguiu renovar uma vez mais a avença iniciada em 2023, mas agora prolongada até Junho de 2027, para trabalhar como “encarregada de Protecção de Dados” para a AT, sem ter de enfrentar qualquer concorrência.

    Mas recuemos para perceber como Inês Oliveira, que preside à Associação dos Profissionais de Protecção e Segurança de Dados (APDPO), recebeu agora este contrato público que a vai colocar a ganhar 64 mil euros por ano durante o próximo triénio. Tudo começou em finais de Novembro de 2022, quando esta consultora foi nomeada ‘encarregado de protecção de dados’ da AT por um despacho assinado pelo então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Mendes. Até aí, as funções eram exercidas por uma técnica superior da AT.

    Inês Oliveira, encarregada de Protecção de Dados da AT e presidente da Associação Portuguesa dos Profissionais de Protecção de Dados (APDPO), num vídeo do Centro Nacional de Cibersegurança.

    Nesse despacho, a “designação da mestre Inês Oliveira Andrade de Jesus como encarregada da proteção de dados da Autoridade Tributária e Aduaneira” era justificada “por reconhecidamente deter as qualidades profissionais e as aptidões necessárias ao desempenho das inerentes funções”. Este despacho revogara a nomeação ocorrida em Abril desse ano de uma técnica superior do quadro de pessoal da AT, ou seja, o Governo decidiu escolher uma opção que custava mais dinheiro público para uma função que exige conhecimentos medianos nesta área, uma vez que se circunscreve à aplicação do Regulamento Geral de Protecção de Dados. Em anos anteriores, mais precismanete em 2017, chegou mesmo a ser indicada uma subdirectora-geral para esta função, que acumulava com a supervisão da Justiça Tributária e Aduaneira.

    Na sequência desse despacho, e para formalizar a contratação de Inês Oliveira, foi feito um primeiro contrato público em 17 de Janeiro do ano passado no valor de 25.200 euros, a que acresceu IVA, com a duração de um ano. Nessas circunstâncias, a remuneração mensal foi de 2.100 euros. Mas, em 12 de Junho de 2023, ou seja, antes do fim do primeiro contrato, seria celebrado um novo, e também por de 12 meses, que serviu somente para fazer ‘disparar’ a avença, que avançou para os 61.900 euros. Esta segunda avença garantia assim uma remuneração mensal já de 5.158 euros.

    Agora, com o terceiro contrato por ajuste directo, Inês Oliveira garantiu um rendimenro de 193.853,94 euros, a que acresce o IVA, por um prazo de três anos. Neste novo contrato, celebrado no passado dia 14 de Junho, a avença garante um vencimento mensal bruto de 5.384,83 euros. Caso se considerem 14 meses, a avença será de 4.600 euros. Este valor é superior à remuneração base de 4.009,89 euros paga, em regra, a um director-geral.

    Helena Borges, directora-geral da AT.
    (Foto: Captura a partir de vídeo de uma audição no Parlamento).

    O caderno de encargos deste contrato não está disponível no Portal Base, como deveria, pelo que não se sabe em detalhe as tarefas que a assessora irá cumprir e em que moldes, nomeadamente em matéria de cumprimento de horário de trabalho e qual será o local onde desempenhará as tarefas de “encarregada de protecção de dados”. Sabe-se sim, porque está no contrato, que o pagamento das verbas será “efectuado em prestações mensais”. Assim, até ao final de 2024, Inês Oliveira vai receber 37.693,82 euros, correspondente a um pouço mais de seis meses . Em 2025, irá auferir a soma de 64.617,98 euros, valor que se repete em 2026. Em 2027, ainda terá a receber o valor de 26.924,15 euros. O contrato pode, contudo, ser ou não renovado em cada ano, “até ao limite de duas renovações”.

    A justificação avançada para a não realização de concurso nesta contratação, onde existe concorrência – ou seja, mais pessoas para exercer esta tarefa – é uma norma de execpção do Código dos Contratos Públicos que possibilita o recurso ao ajuste directo quando “a natureza das respetivas prestações, nomeadamente as inerentes a serviços de natureza intelectual, não permita a elaboração de especificações contratuais suficientemente precisas para que sejam definidos os atributos qualitativos das propostas necessários à fixação de um critério de adjudicação, nos termos do disposto no artigo 74.º, e desde que a definição quantitativa dos atributos das propostas, no âmbito de outros tipos de procedimento, seja desadequada a essa fixação tendo em conta os objetivos da aquisição pretendida”.

    Na verdade, esta norma ten sido abusivamente usada em muitos contratos, sobretudo na área jurídica, quando se pretende contratar por ajuste directo uma sociedade de advogados ‘amiga’, porque aí as tarefas futuras a executar podem ser, de facto, desconhecidas ou imptrevisíveis. Mas num caso de tarefas de análise de situações em que está em causa a aplicação do Regulamento Geral de Protecção de Dados não existem grandes dúvidas sobre as tarefas a executar. O PÁGINA Um contactou o Tribunal de Contas no sentido de saber se existe jurisprudência sobre esta matéria, mas não obteve ainda qualquer resposta.

    Saliente-se que Inês Oliveira desempenhou durante pelo menos uma década diversas funções como consultora da Direção-Geral da Política de Justiça, sempre em comissões de serviço, tendo sido encarregada de proteção de dados sem pagamentos-extra. Agora, como consultora externa, e sem exclusividade, deu um salto remuneratório bastante assinalável.

    A AT, contactada pelo PÁGINA UM através do Ministério das Finanças, não esclareceu o motivo para o recurso a uma assessora externa paga a ‘peso de ouro’ para desempenhar as mesmas funções que, até 2023, era desempenhadas por uma técnica superior da mesma entidade.


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  • Empresa ‘varre’ 1,8 milhões de euros do Município de Coimbra em ajustes directos

    Empresa ‘varre’ 1,8 milhões de euros do Município de Coimbra em ajustes directos

    A Câmara Municipal de Coimbra pagou quase 1,8 milhões de euros à JMC-Serviços de Limpeza depois de ter entregado, sem concurso, cinco contratos sucessivos a esta empresa, nos últimos 10 meses. O último ajuste directo foi assinado no dia 6 de Junho e garantiu à empresa um encaixe de 823.300 euros para prestar “serviços de limpeza das instalações municipais e dos estabelecimentos de ensino dos agrupamentos de escolas e escolas não agrupadas sediados no concelho de Coimbra”. Em resposta a questões do PÁGINA UM, o Município justificou a adjudicação dos contratos à JMC como uma solução de recurso após ter ter efectuado dois concursos urgentes que ficaram “desertos”. Entretanto, um concurso internacional que a autarquia lançou em Dezembro, ficou, na semana passada, em ‘águas de bacalhau’.


    Limpinho e sem espinhas. A JMC-Serviços de Limpeza, uma empresa com um capital social de 5.000 euros, com sede em S. João da Talha, não teve de enfrentar concorrência para facturar 1,89 milhões de euros em 10 meses. A Câmara Municipal de Coimbra adjudicou àquela empresa, em catadupa, cinco contratos por ajuste directo sucessivos para a prestação serviços de limpeza de instalações municipais e dos estabelecimentos de ensino dos agrupamentos de escolas e escolas não agrupadas sediados no concelho.

    Segundo a autarquia, a entrega do ‘serviço’ directamente à JMC foi a solução de ‘recurso’ encontrada, depois de ter organizado dois concursos que ficaram “desertos”, sem nenhuma empresa a mostrar interesse.

    Quem ganhou com o ‘deserto’ aparente de concorrentes foi a JMC que, só no mais recente contrato com aquele Município facturou 823.300 euros, num contrato que foi assinado no dia 6 de Junho pelo presidente da autarquia, José Manuel Silva, com um prazo de execução de 147 dias. Trata-se do maior contrato que a empresa já obteve com entidades públicas.

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    Mas o primeiro ajuste directo que a JMC angariou junto do Município de Coimbra foi a 8 de Agosto do ano passado. Naquele contrato, a empresa facturou apenas 6.339 euros para prestar “serviços de limpeza dos edifícios municipais sitos na Rua Ferreira Borges n.º 12 e n.º 22” durante três meses.

    Mas, eis que, a 5 de Novembro de 2023, a empresa ganhou novo contrato sem concurso. Desta vez, facturou 480 mil euros da autarquia para efectuar a limpeza de instalações municipais e escolas públicas do concelho.

    Seguiu-se, a 6 de Fevereiro deste ano, novo ajuste directo de 240 mil euros para a prestação dos mesmos serviços, contrato que voltou a repetir-se a 6 de Abril, num ajuste directo do mesmo valor do anterior.

    Em todos os contratos, a justificação para o ajuste directo é o “artigo 24.º, n.º 1, alínea c) do Código dos Contratos Públicos“, que autoriza o ajuste directo “na medida do estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante, não possam ser cumpridos os prazos inerentes aos demais procedimentos, e desde que as circunstâncias invocadas não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”.

    Em Coimbra, além dos contratos com a Câmara Municipal, a JMC tem no Portal Base seis contratos registados com a Universidade de Coimbra, entre 2019 e 2022, com valores que vão dos 4.152,08 euros aos 55.004,80 euros, dos quais quatro foram por consulta prévia, um por ajuste directo e outro por concurso público. No total, a JMC tem 149 contratos efectuados com entidades públicas desde Março de 2017, numa receita total de 13,4 milhões de euros.

    José Manuel Silva, presidente da Câmara Municipal de Coimbra.
    (Foto: António Honório Monteiro)

    Em resposta a questões colocadas pelo PÁGINA UM, a autarquia justificou a entrega dos contratos directamente à JMC como solução de ‘recurso’, após ter lançado dois concursos urgentes “que acabaram por ficar desertos”.

    Segundo a autarquia, “em outubro do ano de 2023, a Câmara Municipal encontrava-se a preparar o concurso público internacional para aquisição de serviços de limpeza de instalações municipais e de estabelecimentos de ensino”, mas “com a transferência de competências no domínio da saúde para o Município, tornou-se necessário alargar o objeto da aquisição destes serviços de limpeza de forma a abranger os estabelecimentos de saúde”. Assim, “a preparação do concurso tornou-se mais complexa e morosa, não podendo a tramitação do mesmo estar concluída a tempo do final do contrato de limpeza, na altura em execução, para os edifícios municipais e escolas”.

    Explicou que, “consequentemente, de modo a colmatar as necessidades que, entretanto, se iriam fazer sentir, nomeadamente para obstar a que tanto as instalações municipais, como os estabelecimentos de ensino e estabelecimentos de saúde ficassem sem serviços de limpeza, foram abertos dois concursos públicos urgentes, os quais acabaram por ficar desertos”. Adiantou que estes dois concursos “os potenciais interessados consideraram que o período então previsto para execução do contrato não justificava o investimento no equipamento de limpeza que o contrato impõe e, por isso, não apresentaram propostas que se continham nos limites dos preços base então definidos”.

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    O Município de Coimbra garante ter lançado dois concursos urgentes em Outubro de 2023, os quais ficaram “desertos”.

    O Município justificou que, “foi feita uma consulta informal ao mercado, tendo-se mostrado interessada a empresa JMC Serviço de Limpeza, Unipessoal Lda., a qual já tinha prestado serviços de limpeza em instalações municipais”, no ajuste directo que a empresa conseguiu em Agosto de 2023. “Consequentemente, foi feita a adjudicação por ajuste direto à JMC, enquanto decorria a preparação/instrução/tramitação do concurso público internacional, entretanto lançado em dezembro/2023”, adiantou.

    Questionada sobre como foram calculados os montantes dos contratos adjudicados à JMC, a autarquia indicou que os valores tiveram “em conta a inclusão de novos locais de limpeza, a atualização da remuneração mínima mensal garantida e eventuais flutuações de preços, incluindo o pagamento de subsídios legalmente exigíveis, bem como do facto dos dois concursos públicos urgentes”, os quais ficaram desertos.

    Resta saber se a JMC vai continuar a somar ajustes directos em catadupa junto da Câmara Municipal de Coimbra. Nas respostas ao PÁGINA UM, a autarquia referiu que “lançou o concurso público internacional para Aquisição de serviços de limpeza de instalações municipais, estabelecimentos de ensino e estabelecimentos de saúde, a 4 de dezembro de 2023, tendo o anúncio de abertura sido publicado na 2.ª série do Diário da República (n.º 20637/2023) e no Jornal Oficial da União Europeia (n.º 2023/S 233-733466)“.

    Posteriormente, o Município esclareceu que, “por deliberação da Câmara Municipal de Coimbra, de 14/06/2024, foi tomada a decisão de não adjudicação do procedimento deste Concurso Público com publicidade internacional para aquisição de serviços de limpeza de instalações municipais, estabelecimentos de ensino e estabelecimentos de saúde, ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 79.º do Código dos Contratos Públicos”.

    Segundo a autarquia, “por circunstâncias imprevistas (nomeadamente, relacionadas com a transferência de competências na área da saúde para o Município), será necessário alterar aspetos fundamentais das peças do procedimento, tendo tal decisão determinado a revogação da decisão de contratar, conforme previsto no artigo 80.º do mesmo diploma legal”.

    Explicou que “esta decisão de não adjudicação, bem como os respetivos fundamentos, e consequente revogação da decisão de contratar, foi comunicada aos concorrentes em 20/06/2024 na plataforma de compras públicas Vortal, em cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 79.º do Código dos Contratos Públicos”.

    Um dos Centros de Saúdes existentes em Coimbra. O Município justifica os sucessivos ajustes directos à JMC com o facto de ter de preparar um concurso que será mais complexo para incluir a limpeza de estabelecimentos de saúde que passaram para a sua competência em Janeiro deste ano. Mas, desde Outubro, que a autarquia sabia desta alteração.

    O Município adiantou que está a “ser preparado o novo concurso público internacional para aquisição de serviços de limpeza das instalações municipais e dos estabelecimentos de ensino dos agrupamentos de escolas e escolas não agrupadas sediados no concelho de Coimbra e aquisição de serviços de limpeza para os estabelecimentos de saúde do concelho de Coimbra que transferiram para a tutela do Município de Coimbra, a partir de 01 de janeiro de 2024, cujo lançamento no mercado se prevê que ocorra a curto prazo”.

    Em resumo, deste Outubro de 2023 que a autarquia sabia da transferência de competências no domínio da saúde para o Município, o que tornou-se necessário alargar o objeto da aquisição de serviços de limpeza de forma a abranger os estabelecimentos de saúde. Em Dezembro, lançou o concurso internacional. Seis meses depois, não adjudicou o procedimento invocando que precisa alterar condições do concurso para abranger a limpeza de estabelecimentos de saúde. A autarquia não esclareceu por que motivo não interrompeu este concurso internacional e deixou que o mesmo corresse até Junho.

    Dado que o contrato em vigor com a JMC tem um prazo de cerca de quatro meses, é provável que seja feito um ou mais contratos através de ajuste directo com esta ou outra empresa, invocando motivos de “urgência imperiosa”.


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  • Lobby do nuclear em ‘namoro’ com ministra do Ambiente

    Lobby do nuclear em ‘namoro’ com ministra do Ambiente

    Nos anos 70 do século passado, por um triz, e devido à contestação popular e de cientistas, Portugal não implantou uma central nuclear em Ferrel, junto a Peniche. No início do presente século, diversos empresários intentaram novo projecto, que abortou. Agora, com o aquecimento global como pano de fundo, e acenando com a necessidade de descarbonização energética, os lobbies do nuclear reganharam força. E já procuram seduzir a nova ministra do Ambiente que, na semana passada, recebeu em privado quatro adeptos da energia nuclear, entre os quais o ex-ministro Mira Amaral e um antigo secretário de Estado que assessorou Graça Carvalho quando tutelava a Ciência. Num momento em que se encontra em revisão o Plano Nacional Energia e Clima, este ‘namoro’ não é um acaso.


    O lobby da energia nuclear está a ganhar força no seio do Ministério do Ambiente com a mudança de Governo e a chegada de Maria da Graça Carvalho. A antiga ministra da Ciência dos Governos de Durão Barroso e de Santana Lopes reuniu na passada quinta-feira, oficialmente para discutir o mercado energético, com quatro conhecidos adeptos da construção de centrais nucleares em Portugal: Pedro Sampaio Nunes, Luís Mira Amaral, Clemente Pedro Nunes e Bruno Soares Gonçalves. As fotos deste encontro privado foram colocadas nas redes sociais pelo próprio Ministério, referindo que “o tema central” foi o mercado energético.

    Sampaio Nunes, que chegou a ser secretário de Estado Carvalho no curto Governo de Santana Lopes (Julho de 2004 a Março de 2005), tem sido um dos principia dinamizadores da construção de uma central nuclear, tendo estado associado à empresa Enupor – Energia Nuclear de Portugal, liderada por Patrick (Patrício) Monteiro de Barros, que apresentara em Junho de 2005 um projecto de construção de uma central nuclear de 1.600 MW, muito criticada na altura. O projecto nunca passou das intenções e a Enupor acabou dissolvida em Setembro de 2022. Sampaio Nunes é, aliás, um dos expoentes do empreendedorismo a pensar alto e que acaba por nem levantar voo: em 2007, através da Greencyber, pretendia construir uma refinaria de biocombustível em Sines, num investimento de 80 milhões de euros, para produzir 250 mil toneladas por ano. Recebeu mesmo a classificação PIN (projecto de interesse nacional). Nada avançou e a Greencyber foi declarada insolvente em Janeiro de 2019.

    Uma das fotos divulgadas pelo Ministério do Ambiente e Energia (DR)

    Quanto a Luís Mira Amaral é um histórico ministro do período do cavaquismo, primeiro como ministro do Trabalho e Segurança Social (1985-1987) e depois como omnipotente ministro da Indústria e Energia (1987-1995). Se é certo que não conseguiu impor, como governante, a sua preferência como governante – sobretudo por o desastre de Chernobyl de 1986 ainda estar muito presente e existir no PSD uma forte oposição a este tipo de energia –, Mira Amaral tem vindo, há mais de duas décadas, a movimentar um lobby a favor da implementação de energia nuclear em Portugal, apesar de denunciar que aquilo que existe é um “lobby das renováveis intermitentes”, como a energia eólica e solar.  

    O terceiro dos especialistas, Clemente Pedro Nunes, que reuniu com a ministra Graça Carvalho, é um professor jubilado do Instituto Superior Técnico, que chegou a ser director-geral do Ensino Superior entre 1989 e 1997. Também com larga experiência em gestão de empresas do sector químico, Clemente Nunes tem sido particularmente crítico às excessivas bonificações para o sector das renováveis durante o Governo Sócrates – e que são, em grande parte as responsáveis pelo custo elevado da electricidade para os consumidores –, mas simultaneamente é um grande adepto do nuclear.

    Por fim, Bruno Soares Gonçalves, docente do Departamento de Física do Instituto Superior Técnico e presidente do Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear (IPFN), tem sido um dos mais activos defensores da energia nuclear, tendo lançado há menos de dois anos livros sobre esta temática de leitura gratuita. O primeiro intitula-se “Fusão nuclear na era das alterações climáticas” e o segundo, em tom mais ‘evangélico’ intitula-se “Nuclear: repostas revestidas de factos científicos contra a intolerância nuclear e radiofobia”. Neste último, diz ter sido “escrito sob a forma duma posologia que deverá ser aplicada mediante a identificação dos sintomas de radiofobia ou intolerância nuclear presentes nos posts das redes sociais ou artigos”.

    Da esquerda para a direita: Bruno Soares Gonçalves, Pedro Sampaio Nunes, Clemente Pedro Nunes e Luís Mira Amaral, durante a reunião com a ministra do Ambiente e Energia no passado dia 6 de Junho. (DR)

    Além disso, Bruno Gonçalves tem sido particularmente activo na escrita de artigos de opinião em apoio á energia nuclear, como sucede na secção Azul do Público, dedicada sobretudo às alterações climáticas e ambiente. Saliente-se que o Azul é uma secção patrocinada financeiramente por diversas instituições, entre as quais a Biopolis, um consórcio de investigação entre a Universidade do Porto e a Universidade francesa de Montpellier, que tem ensino ligado às questões da energia nuclear.

    Note-se também que três destes especialistas que reuniram no Ministério do Ambiente – Clemente Pedro Nunes, Mira Amaral e Pedro Sampaio – são co-autores de um livro lançado em 2009 intitulado “Energia nuclear: uma opção para Portugal”, onde defendiam que “as preocupações ambientais com a emissão de dióxido de carbono (evidente na queima de combustíveis como o petróleo e o carvão), os riscos de dependência geoestratégica de produtores de petróleo e gás natural em regiões instáveis ou que não controlamos, como é o caso da Rússia, Médio Oriente e Magrebe, e ainda as preocupações com o esgotamento dos combustíveis fósseis, face a uma procura crescente de novos países tornam a energia nuclear uma boa opção para Portugal”.

    A posição sobre a produção de energia nuclear em território português no anterior Governo era de oposição clara. Duarte Cordeiro disse, por diversas vezes não ver vantagem no nuclear que a opção passava por alcançar 80% de eletricidade renovável até 2026 através da combinação de energia hídrica, solar e eólica, incluindo eólicas offshore.

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    Antes de assumir a pasta de ministra do Ambiente e Energia, Graça Carvalho não era tão taxativa em recusar a energia nuclear. Em Dezembro do ano passado, ainda como eurodeputada do PSD, disse, em discurso no Parlamento Europeu, que “pessoalmente, não vejo o nuclear como opção para o meu país”, mas acrescentou que “se existir tecnologia com o potencial de produzir energia limpa, de forma segura e acessível para os consumidores, esta tecnologia deve ser considerada na equação”, fazendo explicitamente referência aos “pequenos reactores modulares”, uma nova tecnologia ainda em fase de protótipo, que ‘promete’ disseminar a energia nuclear para fins específicos, com uma potência instalada entre 10 e 300 MW.

    O interesse na aposta da energia nuclear – que tem associado os riscos ambientais de acidente, a perenidade dos resíduos readioctivos e os perigos do aproveitamento do plutónio para armamento – tem vindo a ganhar força à boleia das políticas associadas ao combate às alterações climáticas, sendo que a Comissão Europeia lançou em Fevereiro passado a Aliança Industrial Europeia sobre Pequenos Reactores Modulares (SMR) para facilitar e acelerar o desenvolvimento, classificando esta tecnologia como de emissões (de dióxido de carbono) zero.

    No programa do Governo não existe, de forma clara, nenhuma referência ao nuclear, estando, contudo, explicita a revisão dos instrumentos de planeamento energético, em especial do Plano Nacional Energia e Clima (PNEC 2030) e da Estratégia Nacional de Adaptação às Alterações Climáticas (ENAAC). Existe um esboço já concluído em Junho de 2023, onde nem sequer é colocada a hipótese de inclusão do nuclear, mas esse documento está a ser naturalmente remodelado pelo actual Governo Montenegro, sendo a abertura para reunir em privado com quatro lobistas do nuclear um sinal relevante.

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    Chernoby foi há quase três décadas, mas os receios de acidentes, além dos elevados custos, mantêm-se como um dos obstáculos à aposta no nuclear, apesar do crescente lobby que apresenta este tipo de energia como ‘amiga do ambiente’ num cenário de alterações climáticas.

    Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero, diz estranhar uma reunião ministerial com quatro personalidades ligadas à promoção do investimento em energia nuclear em Portugal, mas acredita que os compromissos do Governo Costa nesta matéria se mantenham. “O primeiro esboço da revisão do PNEC, deixada pelo Governo anterior, deve ser mantida sobre a não inclusão do nuclear; não vejo outra alternativa”, diz.

    O PÁGINA UM pediu ao Ministério do Ambiente a confirmação, ou recusa, da realização de estudos ou análises que apontem para a inclusão do nuclear na estratégia energética de Portugal, mas não obteve (ainda) qualquer reacção.


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  • Controlo ‘inteligente’ de fronteiras: Governo já gastou 16,8 milhões em dois ajustes directos pouco ‘smart’

    Controlo ‘inteligente’ de fronteiras: Governo já gastou 16,8 milhões em dois ajustes directos pouco ‘smart’

    No maior contrato dos últimos 16 anos que já fez em Portugal com entidades públicas, a sucursal da tecnológica espanhola Indra viu sair-lhe a sorte grande. A Presidência do Conselho de Ministros decidiu entregar a esta empresa, sem concurso, um contrato de 8,4 milhões de euros para instalar e manter quiosques ‘self-service’ no âmbito do projecto ‘Smart Borders’ da União Europeia. Trata-se do segundo ajuste directo milionário que o Governo de Luís Montenegro faz na sequência de uma despesa decidida pelo anterior Executivo de António Costa. O anterior contrato, também feito por ajuste directo, no valor de 8,4 milhões de euros, foi entregue à TimeStamp, como o PÁGINA UM noticiou. Eleva-se assim para 16,8 milhões de euros os gastos do actual Governo com o projecto de controlo digital de fronteiras, cuja despesa autorizada pelo anterior governo socialista atinge os 25 de milhões de euros. Mas estes contratos entregues sem concurso têm pouco de ‘smart’, já que foram feitos sem concurso e os cadernos de encargos de ambos os ajustes directos estão escondidos em gavetas.


    Em casa de ferreiro, espeto de pau. A Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros realizou mais uma despesa no âmbito do projecto europeu de controlo digital de fronteiras – ‘Smart Borders’ –, mas os dois contratos milionários já efectuados são tudo menos ‘smart’. Depois de ter entregue, de ‘mão-beijada’, sem se conhecer os critérios de escolha, um contrato de 6,8 milhões de euros, a que acresce o IVA, à empresa TimeStamp, como o PÁGINA UM noticiou há duas semanas, o Governo de Luís Montenegro reincidiu e assinou novo contrato sem concurso, desta vez à sucursal portuguesa da tecnológica espanhola Indra. Também neste ajuste directo, o valor foi de 6,8 milhões, mais IVA.

    Eleva-se, assim, para 16,8 milhões de euros o valor gasto pelo Governo no projecto ‘Smart Borders’, sempre sem concurso e sem sequer mostrar os respectivos cadernos de encargos.

    Estes contratos surge na sequência de uma Resolução do Conselho de Ministros ainda assinada por António Costa, que decidiu que o Estado deveria gasar, sem concurso público, 25 milhões de euros para os novos sistemas de controlo de fronteiras, alegando, sem justificar, “urgência imperiosa”. Ora, o plano comunitário de controlo de fronteiras foi aprovado em 2018 na União Europeia, pelo que se levanta a dúvida sobre a legalidade do uso desta fundamentação de “urgência imperiosa” para a adjudicação sem concurso público destes contratos à TimeStamp e à Indra Sistemas Portugal.

    (Foto: D.R.)

    Tal como o PÁGINA UM detalhou anteriormente, o novo sistema de entrada e saída (EES), o qual deverá entrar em operação no segundo semestre deste ano, prevê a agilização do controlo de estrangeiros (fora do Espaço Schengen) em viagens de curta duração, com a eliminação do carimbo do passaporte e automatização de procedimentos.

    Existe uma segunda componente do projecto, que estará operacional no primeiro semestre do próximo ano, que consiste no novo Sistema Europeu de Informação e Autorização de Viagem (ETIAS), que vai passar a exigir a diversos países uma autorização especial de viagem mesmo que não seja exigido visto, actualmente.

    Na sequência da atribuição do ajuste directo à TimeStamp, o PÁGINA UM questionou a Presidência do Conselho de Ministros, mas só obteve respostas evasivas. Por exemplo, sobre os critérios que levaram à escolha da Timestamp, fonte oficial afirmou que “a escolha da entidade em causa foi assegurada no estrito cumprimento do Código dos Contratos Públicos […], ou seja, de acordo com critérios técnicos e objetivos e com a rigorosa observância do princípio da imparcialidade”. A mesma fonte adiantou que, naquele caso, “procedeu-se a uma consulta preliminar a várias empresas”, mas identificou essas empresas consultadas.

    (Foto: D.R.)

    Se, para os contribuintes, estes dois contratos milionários adjudicados sem concurso são mais uma despesa a suportar com impostos, já para as duas empresas escolhidas é ouro sobre azul, pois encaixam as verbas sem ter de enfrentar concorrência. No caso da Indra Sistemas é mesmo o maior contrato conseguido com entidades públicas em Portugal nos últimos 16 anos, pelo menos, já que o primeiro contrato que consta no Portal Base envolvendo esta empresa data de 2008. O segundo maior contrato ganho pela subsidiária portuguesa da Indra, no valor de 6.586.429,62 euros, ocorreu em Dezembro de 2017, também num ajuste directo atribuído pela secretaria-geral do Ministério da Administração Interna, para a “aquisição de serviços de manutenção do sistema integrado de vigilância, comando e controlo”.

    Para justificar o procedimento de ajuste directo é invocado o artigo 24.º, n.º 1, alínea c) do Código dos Contratos Públicos que autoriza a não realização de concurso “na medida do estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante, não possam ser cumpridos os prazos inerentes aos demais procedimentos, e desde que as circunstâncias invocadas não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”.

    No contrato assinado no dia 5 de Junho, que não vem acompanhado por caderno de encargos, como deveria, constam obrigações vagas que a empresa terá de cumprir, nomeadamente o objecto do contrato: “Aquisição, instalação, integração, manutenção e assistência técnica de equipamentos quiosque self-service no âmbito do Projeto Smart Borders” por um prazo de três anos. Também é referido que o prazo de execução é de 75 dias.

    (Foto: D.R.)

    O contrato menciona que a adjudicação foi decidida pelo secretário-geral da secretaria-geral da Presidência do Conselho de Ministros num despacho de 23 de Maio e que a minuta do contrato foi aprovada na mesma data. De resto, é mencionado que o objecto do contrato obedece a características e especificações técnicas mencionadas no caderno de encargos e anexos, que não foram tornados públicos, como era suposto. Também declara que o procedimento dispensa o parecer prévio da AMA-Agência para a Modernização Administrativa.

    O que é certo é que, de ajuste directo em ajuste directo, o Governo de Montenegro vai distribuindo milhões à boleia do projecto ‘Smart Borders’ mas de uma forma pouco ‘smart‘, sem concorrência, e, sobretudo, sem transparência, já que nem os cadernos de encargos dos ajustes directos são disponibilizados. Portugal irá ter, nos próximos anos, um sistema inteligente de controlo de fronteiras mas à custa de procedimentos nada inteligentes de distribuição de dinheiros públicos.


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  • Controlo de fronteiras: Governo gasta 8,4 milhões de euros em ajuste directo decidido por António Costa

    Controlo de fronteiras: Governo gasta 8,4 milhões de euros em ajuste directo decidido por António Costa

    Uma Resolução do Conselho de Ministros ainda assinada por António Costa decidiu gastar, sem concurso público, 25 milhões de euros para os novos sistemas de controlo de fronteiras (Smart Borders), alegando, sem justificar, “urgência imperiosa”, um expediente de duvidosa legalidade nestas circunstâncias porque nem sequer é apresentada fundamentação. E o Governo Montenegro, que se queixou da ‘herança’ de despesas do anterior executivo, concordou com o procedimento de ajuste directo e já assinou um contrato de 8,4 milhões de euros com uma empresa (Timestamp), escolhida com base em critérios nada transparentes. A Presidência do Conselho de Ministros nem sequer mostra o caderno de encargos para se saber o que foi comprado com uma inusitada verba para este tipo de aquisições, tratando isto como se estivesse a comprar tremoços para acompanhar umas imperiais de sorte a refrescar uma tarde soalheira.


    O Governo de Luís Montenegro – que criticou o Governo de António Costa de lhe ter deixado despesas excepcionais, algumas aprovadas já depois das eleições – não aparenta particulares preocupações uma gestão criteriosa dessas mesmas despesas.

    O actual Governo, através da Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros, concordou em seguir uma resolução do Conselho de Ministros do início de Março, assinada exclusivamente por António Costa, no sentido de autorizar a realização de despesa para aquisição de software até 25 milhões de euros por ajuste directo no âmbito do pojecto comunitário Smart Borders para controlo automatizado de entradas e saída no Espaço Schengen.

    gray suv on road during daytime

    O primeiro contrato por ajuste directo – sem sequer se conhecer os detalhes da escolha nem aquilo que foi adquirido por nada constar no Portal Base – foi assinado na sexta-feira passada com a Timestamp no valor de 6,8 milhões de euros, já depois de um despacho no passado dia 17 de David Xavier, secretário-geral da Presidência do Conselho de Ministros. Com IVA, a despesa atingem valores próximos de 8,4 milhões de euros.

    A escolha do procedimento por ajuste directo, baseado exclusivamente numa resolução do Conselho de Ministros não é consensual, e terá ainda de ser sancionado pelo Tribunal de Contas. Isto porque a Resolução do Conselho de Ministros do Governo Costa apenas determina que se adopte os “procedimentos de ajuste directo […] por motivos de urgência imperiosa”, mas sem adiantar qualquer fundamentação. Com efeito, no Código dos Contratos Públicos, considera-se aceitável um ajuste directo, independentemente do valor – e este, para o género, é anormalmente elevado –, “na medida do estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante, não possam ser cumpridos os prazos inerentes aos demais procedimentos, e desde que as circunstâncias invocadas não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”.

    Ora, independentemente do interesse em modernizar o controlo de fronteiras, subsistem muitas dúvidas se a alegada “urgência imperiosa” resulta mesmo de “acontecimentos imprevisíveis” pela Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros, e se esta entidade está isenta de culpas por um eventual atraso na implementação do projecto Smart Borders em Portugal, que foi aprovado em 2018 na União Europeia, que integra duas componentes.

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    Por um lado, o novo sistema de entrada e saída (EES), que deverá começar a estar operacionalizado no segundo semestre deste ano, prevê a agilização do controlo de estrangeiros (fora do Espaço Schengen) em viagens de curta duração, com a eliminação do carimbo do passaporte e automatização de procedimentos. Quanto à outra componente, a começar a funcionar no primeiro semestre do próximo ano, trata-se do novo Sistema Europeu de Informação e Autorização de Viagem (ETIAS), que vai passar a exigir a diversos países uma autorização especial de viagem mesmo que não seja exigido actualmente necessário visto.

    O PÁGINA UM colocou diversas perguntas concretas à Presidência do Conselho de Ministros, todas respondidas com evasivas. Sobre os critérios que levaram à escolha, em concreto, da Timestamp – e de nenhuma outra –, fonte oficial diz que “a escolha da entidade em causa foi assegurada no estrito cumprimento do Código dos Contratos Públicos […], ou seja, de acordo com critérios técnicos e objetivos e com a rigorosa observância do princípio da imparcialidade”.

    E adiantou também que “na situação em apreço procedeu-se a uma consulta preliminar a várias empresas […], tendo em vista o planeamento eficaz do procedimento aquisitivo e assegurando a aquisição pretendida em condições mais favoráveis”. Contudo, não foram identificadas essas empresas consultadas, não tendo sido dada qualquer resposta quando se insistiu na identificação das empresas alegadamente contactadas para além da Timestamp, que garantiu o chorudo contrato de 8,4 milhões de euros.

    2 men in yellow and black suit action figures

    Em todo o caso, a mesma fonte garante que “não compete a qualquer membro do Governo, anterior ou actual, praticar atos decisórios no âmbito dos procedimentos pré-contratuais para as aquisições” desta natureza, e que, deste modo, “o Governo actualmente em funções não teve qualquer interferência na escolha da empresa seleccionada”.

    Apesar de ter sido pedido o caderno de encargos, e insistido, a Presidência do Conselho de Ministros não o enviou, dizendo apenas que se está perante uma “aquisição de infraestrutura tecnológica de suporte à instalação, gestão e manutenção dos novos sistemas europeus de controlo de fronteiras”, sem qualquer discriminação. Trata-se, contudo, e saliente-se, de uma compra de 8,4 milhões de euros, e não propriamente da aquisição de tremoços para acompanhar umas imperiais de sorte a refrescar uma tarde soalheira.


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  • Ministério da Defesa anuncia auditoria em licença ilegal sem assumir ligação à notícia do PÁGINA UM

    Ministério da Defesa anuncia auditoria em licença ilegal sem assumir ligação à notícia do PÁGINA UM

    Há 12 dias, o PÁGINA UM revelou que a Leitek Unipessoal, cujo sócio único é um ex-militar condenado por corrupção passiva, obteve uma licença do Ministério da Defesa para comercializar tecnologias militares, contrariando um impedimento legal. Hoje, num sábado, e ignorando a notícia do PÁGINA UM, o gabinete de Nuno Melo anunciou uma auditoria aos licenciamentos de comercialização de tecnologias militares desde 2015 no decurso de uma alegada “averiguação preliminar” que detectou o caso de uma “empresa cujo sócio foi condenado em pena de prisão”. O gabinete de Nuno Melo não quis (ainda) dizer se a ‘averiguação preliminar’ consistiu na leitura da notícia do PÁGINA UM ou se, além da Leitek, há ainda outra empresa licenciada com um sócio condenado por crimes incompatíveis.


    Doze dias depois do PÁGINA UM ter revelado que a empresa unipessoal de um antigo capitão de fragata, condenado em 2008 por corrupção passiva, ter recebido uma licença para exercer actividades de comércio e tecnologias militares, o Ministério da Defesa anunciou hoje, num sábado, uma auditoria a todos os licenciamentos desde 2015. Em causa está uma lei de 2009 que proíbe expressamente que, por razões de idoneidade, essa licença está vedada a quem tenha sido condenado, em Portugal ou no estrangeiro, por diversos crimes graves.

    Conforme a notícia do PÁGINA UM do passado dia 13 de Maio, o antigo secretário de Estado da Defesa Nacional, Carlos Pires, através de um despacho de 26 de Setembro do ano passado, concedeu uma licença de comércio de tecnologia militar à empresa Leitek Unipessoal, pertencente a Clélio Ferreira Leite, após passar pelo crivo da Autoridade Nacional de Segurança.

    Clélio Ferreira Leite, ex-capitão de fragata e actual sócio único e gerente da Leitek, ao lado de Jincai Yang, presidente da World UAV [Unmanned Aerial Vehicle] Federation.

    No despacho governamental diz-se que “a sociedade comercial [Leitek] cumpre os pressupostos cumulativos para a atribuição de licenciamento para o exercício das atividades pretendidas, previstos no nº 1 do artigo 8º da Lei nº 49/2009, mas esquece completamente o artigo referente à idoneidade – usada também como critério de exclusão, por exemplo, para exercício de funções em instituições financeiras.

    Porém, conforme o PÁGINA UM revelou em exclusivo, o passado de Clélio Ferreira Leite não lhe permitia, por razões de idoneidade, obter essa licença por causa de uma condenação por corrupção passiva em actos praticados no final da primeira década deste século. Com efeito, a lei em causa determina que “sem prejuízo de outras circunstâncias atendíveis, considera-se não possuir idoneidade quem tenha sido condenado, no País ou no estrangeiro, por crimes de falência dolosa, falência por negligência, falsificação, furto, roubo, burla, extorsão, abuso de confiança, infidelidade, usura, corrupção, emissão de cheques sem provisão, apropriação ilegítima de bens do sector público ou cooperativo, falsas declarações, branqueamento de capitais ou infracções à legislação especificamente aplicável às sociedades comerciais, ou ainda por crimes praticados no exercício de actividades de comércio ou de indústria de bens e tecnologias militares”, ou que “tenha comprovadamente tido envolvimento no tráfico ilícito de armas ou de outros bens e tecnologias militares ou de dupla utilização ou, ainda, na violação de embargos de fornecimento de bens e tecnologias militares decretados pela Organização das Nações Unidas, pela União Europeia, pela Organização para a Segurança e Cooperação na Europa ou pelo Estado português”.

    Ora, em Setembro de 2006, Clélio Ferreira Leite, que chegou a estar indigitado para director-geral de Armamento e Equipamentos de Defesa – um organismo responsável pela execução financeira dos contratos de reequipamento das Forças Armadas –, foi detido numa megaoperação da Polícia Judiciária, ficando em prisão preventiva e acabou condenado a sete anos de prisão efectiva por corrupção passiva.

    tilt shift lens photo of mini drone

    Apesar de o Ministério da Defesa Nacional nunca ter reagido à notícia do PÁGINA UM – que incidiu sobre factos do Governo socialista e, portanto, anteriores à tomada de posse do actual ministro Nuno Melo – , a nota de imprensa oficial hoje revelada não assume ser uma tomada de posição devida ao caso concreto da Leitek e ao cadastro de Clélio Ferreira Leite, bem como aos falhanços no controlo dos licenciamentos por parte da Direcção-Geral de Recursos de Defesa Nacional e do Gabinete Nacional de Segurança.

    A nota do gabinete do Ministro da Defesa Nacional não identifica qualquer empresa e diz apenas que “depois de uma averiguação preliminar, verificou-se que, aparentemente [sic], desde o ano de 2015 não têm vindo a ser cumpridas as exigências” relacionadas com a idoneidade para o exercício de actividades de comércio ou indústria de bens tecnologias.

    E acrescenta ainda, sem sequer admitir que o Ministério da Defesa teve conhecimento da notícia de 13 de Maio do PÁGINA UM, “ter sido apurado numa amostragem restrita de processos considerados, o eventual licenciamento […] de uma empresa cujo sócio foi condenado em pena de prisão por um crime” integrado nas incompatibilidades da lei, como é o caso da corrupção.

    Carlos Lopes Pires, secretário de Estado da Defesa do Governo de António Costa, que tomou posse em Julho de 2023, não concedeu apenas um despacho polémico a conceder uma licença de comércios de tecnologias militares à empresa de um cidadão da Córsega na Zona Franca da Madeira. Também não conferiu a idoneidade do sócio único da Leitek, já com uma impeditiva condenação por corrupção.

    O PÁGINA UM contactou a assessoria de comunicação de Nuno Melo para confirmar se a “averiguação preliminar” do Ministério da Defesa consistiu na leitura da notícia sobre o caso da Leitek e da condenação de Clélio Ferreira Leite publicada há 12 dias. Ou se, ao invés, o Ministério da Defesa tinha, nessa “averiguação preliminar” detectado outra empresa com sócio cadastrado – e, portanto, estarmos perante duas empresas e não apenas uma. O Ministério da Defesa diz não haver mais nada a comunicar além do constante na sua nota de imprensa.

    Ainda sobre Clélio Ferreira Leite saliente-se também que é um destacado membro da World UAV [Unmanned Aerial Vehicle] Federation, um organismo sedeado em Hong Kong e controlada sobretudo por personalidades e empresas chinesas. Os denominados veículos aéreos não-tripulados, vulgarmente designados por drones, têm vindo a ganhar uma grande preponderância em operações militares, como se tem observado nos conflitos na Ucrânia e Gaza, tendo sido desenvolvido nos anos mais recentes quer novas tecnologias de ataque como de defesa. No entanto, a lei de 2009 não estabelece especiais cuidados na análise das ligações empresariais com determinados países.


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  • Violência doméstica: 72 crimes por dia no ano passado. Municípios do Alentejo e Açores com os piores rácios

    Violência doméstica: 72 crimes por dia no ano passado. Municípios do Alentejo e Açores com os piores rácios

    Os mais recentes dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) sobre a violência doméstico em contexto de casal já assustam, ultrapssando os 26 mil crimes registados só no ano passado. Mas o PÁGINA UM foi mais longe na análise e calculou os rácios deste tipo de crimes em função dos registos das autoridades policiais em cada município e da respectiva população residente. E mostra que a violência conjugal, embora presente em quase todo o lado, apresenta prevalências pavorosas em zonas rurais e do interior, sobretudo em partes do Alentejo, dos Açores e do interior da região Norte. Em exclusivo, o PÁGINA UM revela todos os números entre 2021 e 2023, naquele que será o primeiro trabalho de um dossier de investigação dedicado à criminalidade em Portugal.


    As autoridades policiais registaram, só no ano passado, uma média diária de mais de 72 crimes de violência doméstica contra cônjuge ou análogos, ou seja, incluindo todos os casos de coabitação em comum entre casais. Em todo o ano de 2023 foram 26.041 crimes registados pelas autoridades policiais. Estes números absolutos, revelados na semana passada no site do Instituto Nacional de Estatística (INE), estão em linha com os valores apurados em 2022 (26.073 crimes similares), mas são substancialmente mais elevados do que em 2021 (22.524).

    Nos últimos três anos, o INE apresenta estes registos em números absolutos por município, colocando assim os concelhos de maior dimensão no topo, mas uma análise do PÁGINA UM, com base nas estimativas oficiais da população, possibilita apurar os rácios de criminalidade que se revelam, em muitos casos, surpreendentes.

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    Com efeito, em termos absolutos, os três concelhos mais populosos do país – Lisboa (cerca de 547 mil habitantes), Sintra (388 mil) e Vila Nova de Gaia (quase 307 mil) – são os que contabilizam mais crimes de violência doméstica. A capital portuguesa registou 1.777 destes crimes ao longo do ano passado, uma média de quase cinco casos por dia, enquanto em Sintra se contabilizaram 1.309 crimes, uma média de cerca de sete casos em cada dois dias. Estes dois municípios são os únicos que estiveram acima da fasquia do milhar de casos num só ano, evidenciando-se um crescimento entre 2021 e 2023 da ordem dos 26% em Lisboa e de quase 39% em Sintra.

    Já a grande distância, no terceiro município mais populoso, Vila Nova de Gaia, as autoridades policiais contaram, no ano passado, 680 crimes de violência, uma média pouco inferior a dois casos por dia. Acima de um caso por dia durante o ano passado estão somente municípios com mais de 100 mil habitantes: além dos três já referidos, são os casos de Loures (676 crimes em 2023), Porto (620), Cascais (522), Almada (512), Amadora (504), Oeiras (489), Funchal (481), Seixal (422), Matosinhos (394) e Vila Franca de Xira (368).

    Particularmente preocupante é a evolução em alguns destes municípios. Por exemplo, entre 2021 e 2023, no concelho do Funchal os crimes de violência doméstica cresceram 53%, em Loures 41%, no Seixal, em Oeiras e em Oeiras 38%.

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    No lado oposto, de entre os concelhos com mais de 100 mil habitantes com menor registo de crimes de violência doméstica estão Barcelos (221 casos em 2023), Maia (224) e Viseu (226).

    Porém, quando se analise o rácio da violência doméstica – ou seja, os crimes por ano em função da população residente –, o cenário modifica-se, revelando-se a verdadeira dimensão de um grave problema socio-económico. Com efeito, considerando o número de crimes por mil residentes, o município mais violento é Barrancos: embora tenha um registo de 10 casos em 2023, tal sucedeu numa comunidade com menos de 1.500 habitantes. Se o seu rácio (6,8 casos por mil) fosse o de Portugal, em vez dos 26 mil casos registados a nível nacional, haveria mais de 71 mil. Ou seja, o pequeno município alentejano – conhecido pelas festas com touro de morte –, não é, neste aspecto, um exemplo muito dignificante.

    Barrancos não é, contudo, um caso isolado no Alentejo, que se revela, nesta análise, como a região com maior prevalência de violência doméstica, seguindo-se os Açores. Com efeito, no top 10 dos municípios com maior rácio de violência doméstica em Portugal, sete são do Alentejo – Barrancos, Ferreira do Alentejo, Avis, Viana do Alentejo, Alter do Chão, Arronches e Cuba – e três dos Açores – Velas, Lagoa e Ribeira Grande. Nestes municípios, as autoridades policiais registaram no ano passado entre 4,8 e 6,8 crimes por cada mil residentes. Em alguns destes municípios, o crescimento entre 2021 e 2023 foi bastante significativo. Em Velas passou de 1,4 por mil em 2021 para 5,7 em 2023; em Alter do Chão de 1,3 para 5,4 e em Arronches de 1,4 para 5,0.

    Se considerarmos os 20 municípios com maior violência doméstica, com excepção do Funchal (que tem mais de 100 mil habitantes), todos têm características sobretudo rurais, ganhando também preponderância o Alentejo. Metade destes municípios são alentejanos. No continente, o município do litoral com pior rácio de violência doméstica é Albufeira, com 4,1 crimes por mil residentes, ocupando a 21ª posição.

    Barrancos, pequeno município alentejano conhecido pelos touros de morte, apresentou os piores rácios de violência doméstica no ano passado.

    No caso da Grande Lisboa, os concelhos da Moita e Barreiro – respectivamente com 3,7 e 3,6 crimes por mil habitantes – são os piores. Já Lisboa e Sintra – que, em termos absolutos lideram a violência doméstica – acabam por descer de posição consideravelmente numa perpectiva de taxa de criminalidade. O município de Sintra ocupa o 48º lugar para o ano passado em termos de rácio, com 3,4 crimes por mil residentes, enquanto Lisboa ocupa a 56ª posição, com 3,2 crimes por mil residentes, ainda acima da média nacional (2,5 por mil).

    No Norte – que em termos globais apresenta taxa de violência doméstico inferior à média nacional (2,1 por mil) –, há poucos municípios com rácios superiores a Lisboa, sendo todos de Trás-os-Montes e Alto Douro: Vila Flor (4,3 crimes por mil residentes), São João da Pesqueira (3,8), Freixo de Espada-à-Cinta (3,8), Alfândega da Fé (3,5), Peso da Régua (3,4), Vila Nova de Foz Côa e Torre de Moncorvo (3,3). Os dois principais municípios nortenhos – Porto e Vila Nova de Gaia – apresentaram também rácios mais baixos do que Lisboa: 2,6 e 2,2 por mil residentes.

    Em todo o caso, a região Centro é aquela com melhores rácios – ou seja, com menos crimes de violência doméstica por mil residentes. As autoridades policiais registaram, no ano passado, menos de 1,8 crimes desta natureza por mil residentes. Em todo o caso, existem excepções muito negativas, mais uma vez quase sempre concentrados no interior, onde se destacam os municípios de Belmonte, Arganil, Celorico da Beira, Vila Velha de Ródão, Vila Nova de Paiva, Oliveira do Bairro, Seia, Penamacor, Manteigas, Cantanhede, Marinha Grande, Mangualde, Batalha, Góis, Fundão, Sever do Vouga, Ílhavo, Mêda, Estarreja e Covilhã. Estes concelhos apresentaram rácios compreendidos entre 3,0 e 4,5 crimes de violência doméstica por mil residentes.

    Corvo: a pequena ilha açoriana, com quatro centenas de pessoas, é o único concelho do país sem registo de crimes de violência doméstico entre 2021 e 2023.

    No extremo oposto – neste caso, favorável –, deve salientar-se os sete concelhos onde, no ano passado, não houve registos policiais de violência doméstica. Curiosamente, três são dos Açores – Corvo, São Roque do Pico e Lajes das Flores – e dois são do Alentejo – Mértola e Ourique –, duas regiões onde campeiam rácios elevados de violência doméstica. Neste grupo de sete ‘pacíficos’ (e magníficos) municípios estão ainda dois do distrito de Bragança: Vimioso e Vinhais. Em todo o caso, somente Corvo manteve o pleno de ausência de crimes de violência doméstico no triénio 2021-2023, enquanto Lajes das Flores teve também um ‘nulo’ em 2021.

    Se se considerar um período de três anos, o cenário não se modifica muito. Os cinco piores concelhos ao nível da violência doméstica são Barrancos (20,5 crimes por mil residentes no triénio), Ferreira do Alentejo (17,9), Avis (16,0), Ribeira Grande (15,1) e Celorico da Beira (14,6), enquanto os cinco mais ‘pacíficos’ são Corvo (sem crimes), Mértola (1,6 crimes por mil residentes no triénio), Vimioso (1,9), Vinhais (2,7) e São Vicente (2,9). Quanto a Lisboa ocupa a 61ª posição a nível nacional, com um rácio no triénio de 8,9 crimes por mil residentes, estando um pouco abaixo de Sintra (56ª posição, com 9,1 por mil no triénio). O concelho do Porto está mais abaixo, na 115ª posição, com 7,3 crimes registados por mil habitantes entre 2021 e 2023, situando-se Vila Nova de Gaia na posição 164, cimj um rácio de 6,6.

    Por ser uma entidade publicamente reconhecida pOR serviços neste sector, o PÁGINA UM contactou a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) para obter comentários, explicando previamente a análise efectuada com os dados do INE. Mas esta instituição de solidariedade social – que, no ano passado, recebeu 3,8 milhões de euros em donativos e subsídios estatais, funcionando à base de uma dezena de acordos e protocolos com o Estado e quase outros tantos protocolos camarários – não mostrou qualquer disponibilidade.

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    O gabinete de comunicação da APAV alegou ao PÁGINA UM não haver agenda nesta semana de qualquer responsável para comentar este assunto. A APAV conta com sete membros da direcção, presidida por João Lázaro, 109 trabalhadores e contabilizou custos com pessoal superiores a 2,4 milhões de euros no ano passado.

    Aliás, esta associação tem registado um crescimento económico assinalável, duplicando o seu activo entre 2015 e 2023, passando de cerca de 2,8 milhões de euros para quase 5,7 milhões no ano passado, muito por fruto do aumento dos rendimentos, sobretudo subsídios públicos. No ano passado, os rendimentos da APAV aproximaram-se dos 4 milhões de euros, quando há cerca de uma década rondavam os 2 milhões de euros.


    Pode consultar AQUI os valores de todos os concelhos, com o número total de crimes de violência doméstica e o respectivo rácio (crimes por mil residentes). Para o cálculo do rácio de cada um dos três anos (2021, 2022 e 2023) considerou-se as estimativas da população (do INE) para o respecfivo concelho relativas ao ano anterior.


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  • Câmara de Cascais apresenta comprovativos de refeições no valor de 233 mil euros como se fosse ‘uma tasca no meio do monte’

    Câmara de Cascais apresenta comprovativos de refeições no valor de 233 mil euros como se fosse ‘uma tasca no meio do monte’

    Eis o resultado de uma investigação do PÁGINA UM que foi ‘até ao osso’, para servir de exemplo, sobre um caso que não será único no pouco escrutinado mundo autárquico. Perante a recusa da Câmara Municipal de Cascais em dar esclarecimentos sobre um estranho contrato de fornecimento de refeições a refugiados ucranianos – quando os seus centros de acolhimento já estariam ‘às moscas’ –, o PÁGINA UM recorreu ao Tribunal Administrativo, que acabou por obrigar a autarquia liderada pelo social-demicrata Carlos Carreiras a libertar as provas do cumprimento de um contrato de quase 233 mil euros. E as provas são.. uma ‘planilha de Excel’ (ou folha de cálculo) e um conjunto de supostas requisições manuscrias pela mesma ignota pessoa, sem qualquer timbre nem assinatura de um qualquer responsável autárquico, cheias de discrepâncias de números e sinais de manipulação. Estas ‘provas’ não são válidas, garante Paulo de Morais, líder da Frente Cívica e antigo vice-presidente da autarquia do Porto, que compara esta forma de contabilidade da Câmara de Cascais à de “uma tasca no meio do monte”.


    Adensam-se as suspeitas sobre o efectivo fornecimento de refeições destinadas aos centros de refugiados ucranianos através de um contrato celebrado pela Câmara de Cascais e a empresa ICA – Indústria e Comércio Alimentar, que acabou por custar 232.799,69 euros ao erário público.

    Depois de uma sentença da juíza Mafalda Andrade, do Tribunal Fiscal e Administrativo de Sintra, determinar a obrigatoriedade do município liderado pelo social-democrata Carlos Carreira – que sempre recusara ao PÁGINA UM o acesso aos documentos -, o município acabou por enviar uma simples impressão de uma ‘planilha de Excel‘ – com os cálculos dos itens pagos no decurso dos dias de contrato – e um rol de papéis manuscritas pela mesma pessoa, mas sem qualquer assinatura nem timbre de qualquer serviço ou departamento municipal.

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    Em causa, recorde-se, estão os moldes de execução de um contrato por ajuste directo no valor de 250 mil euros – o terceiro em dois anos para o mesmo fim – que a autarquia de Cascais assinou com a ICA, uma empresa de refeições, em 26 de Setembro do ano passado, para fornecimento de refeições aos refugiados ucranianos durante um prazo previsto de 91 dias, ou seja, até final de 2023. Ou então “até se esgotar o valor contratual máximo”, de acordo com o contrato, que com IVA seria de 307.500 euros.

    A necessidade do fornecimento de refeições para cidadãos ucranianos nessa altura era já mais do que duvidosa. Numa reportagem do Diário de Notícias em Fevereiro do ano passado, Carlos Carreiras dizia que nos dois centros de acolhimento em Cascais, então existentes, estavam “apenas 132 cidadãos” ucranianos, acrescentando que se esperava que até ao final de Março esse número fosse “cerca de metade e que até Maio/ Junho já todos [tivessem] encontrado soluções”.

    O PÁGINA UM também teve conhecimento de que, no último trimestre de 2023 – ou seja, mais de ano e meio após a chegada de refugiados provenientes da Ucrânia por causa da invasão russa à região do Donbass -, era diminuto o número de utentes dos dois centros de acolhimento do município de Cascais.

    Uma das ‘provas’ do fornecimento de quase 233 mil euros em refeições que ninguém viu é uma ‘planilha de Excel’ (ou folha de cálculo) que nem sequer bate certo com supostas requisições manuscritas sem qualquer assinatura.

    Para adensar a estranheza neste processo, acresceu a celeridade com que foi passada a factura pela ICA pelos alegados serviços de fornecimento de alimentação e também o rápido pagamento pelos serviços da Câmara Municipal de Cascais, ainda no decurso do prazo inicialmente previsto da execução do contrato. Com efeito. apenas dois dias depois da assinatura do contrato, ou seja, no passado dia 28 de Setembro, a ICA passou uma factura no valor total de 232.799,69 euros, desconhecendo-se, porque não foram apresentados quaisquer documentos oficiais, as razões para este novo valor. Nem tão-pouco se sabe a razão para o contrato ter decorrido durante 41 dias – e não 91 dias -, pois o contrato estabelecia um ‘tecto máximo’ de 307.500 euros. Além disso, no caderno de encargos nem sequer eram definidos os preços por unidade de refeição, ou seja, não se sabia sequer a quantidade total de pequenos-almoços, almoços, lanches e jantares.

    A factura da ICA, aceite pelos serviços municipais, possui também outras particularidades. Primeiro, porque indica apenas um unidade (1 UN) para “Serviço Refeição – Almoços Refugiados” – onde surge o tal valor de 232.799,69 euros com IVA, sendo que o valor antes deste imposto era de 189.268,75 euros -, quando foram servidos pequenos-almoços, almoços, lanches e jantares, em números distintos ao longo dos dias e em cada refeição. Segunda particularidade da factura: a ICA conseguiu adivinhar em 28 de Setembro do ano passado, com um ‘erro’ de apenas 0,71 cêntimos, o valor total das refeições que supostamente acabou por fornecer até ao dia 30 de Outubro, uma segunda-feira, dando assim por terminado ao fim de 41 dias um contrato que deveria durar mais 50 dias.

    E não se diga que essa previsão – ou ‘adivinhação’ – era fácil de fazer, porque, de acordo com a tal planilha de Excel’, fornecida pela Câmara Municipal de Cascais após a intervenção do Tribunal Administrativo, constata-se que existem variações entre refeições ao longo do mesmo dia e variações ao longo dos dias. Por exemplo, foram fornecidos pequenos almoços entre 270 e 315 utentes ao longo do período. Já almoços tiveram ‘saídas’ entre os 285 e os 300 utentes, com a particularidade de, com excepção de dois dias, serem sempre em unidade redondas terminadas em zero. Quanto aos lanches e aos jantares, foram servidos, em cada caso, refeições a entre 270 e 320 utentes. Além disso, ainda se contabilizaram diariamente o formeciumento de mais de seis centenas de unidades de água, além de descartáveis e ainda despesas com pessoal de cozinha aos fins-de-semana.

    Autarquia de Cascais apresentou requisições mauscritas de refeições supostamente fornecidas pela ICA, sem qualquer assinatura, acompanhada por uma ‘planilha de Excel’. Além do arcaismo, e não ser uma prova válida, nem sempre existe coincidência nos números, e as suspeitas de manipulação são flagrantes.

    Sendo certo que os preços unitários das refeições eram bastante distintos – pequeno-almoço (1,95 por unidade sem IVA), lanche (2,25 euros por unidade), almoço e jantar (4,55 euros por unidade, em ambas as refeições), água (40 cêntimos por unidade), além dos descartáveis (55 cêntimos por unidade) -, e em função das quantidades fornecidas, certo é que se esgotou mintante da factura em 30 de Outubro. Ainda terá dado, miraculosamente para as refeições habituais, mas não deu sequer para o dia seguinte. Acabou ao 41º dia aquilo que se esperaria durar 91 dias.

    Mas aí então coloca-se uma questão humanitária: se, com efeito, terá havido 300 pessoas a comer o pequeno almoço ainda fornecido pela ICA no dia 30 de Outubro do ano passado – e pago pela autarquia de Cascais – e ainda 290 pessoas a almoçarem nas mesmas circunatâncias, e mais 282 pessoas a lancharem, e mais 290 a jantarem, e mais 630 águas a serem fornecidas e 580 descartáveis a serem ‘consumidos’, que sucedeu no dia seguinte, no 31 de Outubro? E nos dias seguintes, tendo em conta que o contrato previa uma duração de 91 dias? As cerca de três centenas de ucranianos que supostamente existiam nos centros, e que foram alimentados entre 20 de Setembro e 30 de Outubro, passaram a nada comer? Havia mesmo cerca de três centenas de ucranianos nessa altura? Alguma prova fotográfica? Nada mais foi enviado pela autarquia em cumprimento da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.

    Além disto, os documentos enviados pela autarquia de Cascais – repita-se, sem estarem sequerem papel timbrado nem terem assinaturas – sofrem de ‘desconformidades’ quando se confrontam os números de refeições que surgem na ‘planilha do Excel’ e os supostos registos das requisições. Por exemplo, logo no primeiro dia de fornecimento de refeições são indicados 300 almoços na ‘planilha’, mas na suposta requisição surgem 290.

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    Por ser análise fastidiosa, o PÁGINA UM somente analisou em detalhe os 10 primeiros dias de fornecimento, constando uma dezena de discrepâncias, que envolvem mais de uma centena de refeições, entre os números que constam na planilha e nas requisições. Mais do que o valor em causa, estas discrepâncias suscitam legístimas suspeitas de uma manipulação malfeita.

    Para uma análise independente aos documentos do contratos entre a autarquia de Cascais e a ICA, o PÁGINA UM enviou-os a Paulo de Morais, docente universitário e presidente da Frente Cívica, que ocupou o cargo de vice-presidente da Câmara Municipal do Porto entre 2002 e 2006. Manifestando a sua estupefacção pela ausência de assinaturas e registos formais, Paulo de Morais diz ser “patético que os serviços jurídicos da autarquia de Cascais apresentem este tipo de provas sobre um contrato de valor tão elevado”.

    O líder da Frente Cívica deefnde que, em circunstâncias especiais – que já não se aplicariam, no último trimestre do ano passado, a refugiados ucranianos que tinham chgado nos primeiros meses de 2022 – “até seria aceitável que houvesse registos mais informais em momentos de crise ou urgência, mas que fossem depois formalizados em documentos oficiais. A Câmara de Cascais não é uma tasca no meio do monte”, diz. Salientando que este caso suscita “legítimas suspeitas” por estar assente em documentos que não têm qualquer validade legal, Paulo de Morais defende que, atendendo ter este modus operandi sido detectado pelo PÁGINA UM apenas por intervenção do Tribunal Administrativo, as autarquias devem mostar disponibilidade para “serem escrutinadas”.

    Carlos Carreiras, presidente da Câmara Municipal de Cascais: somente mostrou documentos ao PÁGINA UM após ser obrigado pelo TrIbunal Administrativo e Fiscal de Sintra.

    O PÁGINA UM vai remeter todos os elementos deste contrato entre a autarquia de Cascais e a ICA – possível com uma intimação no Tribunal Administrativo, bem sucedida através do FUNDO JURÍDICO apoiado pelos leitores – ao Tribunal de Contas, uma vez que, por norma, esta entidade não faz comentários sobre casos que não abordou formalmente. Ou seja, só se pronuncia em consequência de actos de fiscalização ordinária ou após tomar conhecimento de suspeitas de irregularidades ou ilegalidades.

    Note-se que, no âmbito desta intimação, o PÁGINA UM também pedira elementos sobre um contrato entre a Câmara de Cascais e o Modelo Continente também para o fornecimento de alimentos e de bens de higiene para os centros de refugiados, cujos preços no caderno de encargos estavam hiperinflacionados, ou seja, o contrato previa a compra de produtos no valor de 180 mil euros mas que custavam, de facto, apenas 14 mil. Neste caso, e na sequência de uma notícia do PÁGINA UM em Outubro do ano passado, a autarquia admitiu no Tribunal Administrativo de Sintra que afinal nunca houve qualquer compra.


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