Categoria: Sociedade

  • Violência doméstica sobre homens quadruplicou em 15 anos

    Violência doméstica sobre homens quadruplicou em 15 anos

    Apesar de as mulheres continuarem a ser as principais vítimas de violência doméstica, há cada vez mais homens a surgir como as vítimas nas participações por violência doméstica que chegam às autoridades. No ano de 2023 o número de denúncias feitas por homens vítimas de violência doméstica em contexto de casal atingiu mesmo o recorde: 10.309. O PÁGINA UM analisou a série temporal desde 2008 e mostra que em 15 anos a violência sobre homens aumentou 296%, apesar de, no ano passado, por cada 100 agressões contavam-se 78 vítimas do sexo feminino. O vice-presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, Manuel Albano, diz que mais do que um aumento real das agressões violência, este aumento nas estatísticas é um reflexo das campanhas de sensibilização para o fenómeno da violência doméstica, que pode ser física, psicológica, económica, ou mesmo abranger estes três tipos de abuso em simultâneo.


    No início, são rosas, passeios à beira-mar, muitos sorrisos e juras de amor. Mas há casos em que as promessas de felicidade se diluem e as relações azedam e acabam a assemelhar-se a filmes de terror. Aos milhares de mulheres que anualmente denunciam os seus parceiros por violência doméstica, têm-se juntado cada vez mais de homens que se queixam de ser vítimas de agressões. E são cada vez mais. Já ultrapassam a fasquia dos 10 mil por ano e bateram no ano passado um novo recorde.

    Segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), actualizados no final do mês passado, em 2023, o número de participações às autoridades em que as vítimas de violência doméstica eram homens atingiu as 10.309. Trata-se de um aumento de 30% face aos dados registados há três anos, mas se se comparar com os valores de há 15 anos – em 2008 contabilizaram-se 2.603 participações por homens –, a evolução é impressionante: 296%. Ou seja, quase quadruplicou.

    Apesar de as mulheres continuarem, de longe, a serem os principais alvos de violência doméstica, o diferencial entre denúncias de vítimas do sexo feminino e do sexo masculino está a estreitar-se. De facto, segundo os novos dados do INE, em 2023, as queixas de violência doméstica feitas por homens representaram já 28% do total de queixas feitas junto das autoridades policiais, que somaram 37.214. Ou seja, em cada 100 agressões participadas, 72 ainda são de mulheres. Em 2008, por cada 100 agressões que chegavam ao conhecimento das autoridades, 88 eram de mulheres. Há 15 anos, havia uma média diária de 58 participação; no ano passado subiu para 102.

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    A explicação para este aumento do número de queixas em que as vítimas são homens estará na maior sensibilidade que existe para o tema da violência doméstica. Manuel Albano, vice-presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade do Género (CIG) disse ao PÁGINA UM que as inúmeras campanhas públicas sobre o tema têm “‘desocultado’ o fenómeno da violência doméstica”, incentivando mais pessoas a sentirem segurança para “denunciar os crimes”. Ou seja, há agora uma maior predisposição para a denúncia de situações de agressões entre casais do que havia antes, quando ainda não se estava perante um crime público.

    Para Manuel Albano, as estatísticas deste tipo de crime não revelam toda a realidade, já que os dados conhecidos são apenas os relativos às denúncias que chegam à PSP e à GNR. “Penso que nunca se saberá ao certo quantas pessoas são vítimas de violência doméstica”, disse aquele responsável do CIG, em declarações ao PÁGINA UM.

    No caso dos homens, este responsável destaca existir ainda uma percepção social de que “os homens não choram”, salientando que “isto não é verdade”. Por outro lado, também existe a ideia generalizada de ser mais difícil para um homem apresentar queixa por violência doméstica. “Denunciar este crime tem exactamente a mesma dificuldade quando é feito por mulheres”, defende.

    Número de queixas de violência doméstica em que o agressor é o cônjuge ou análogo efectuadas junto da PSP e da GNR. Fonte: INE/Valores em unidades.

    De resto, apesar de haver mais queixas de homens, Manuel Albano destaca que as mulheres continuarão previsivelmente a ser sempre as principais vítimas. No ano passado, 26.905 mulheres apresentaram queixa nas autoridades como vítimas de agressões físicas ou psicológicas, representando 72% do total, embora se tenha até registado uma ligeira queda de 2,2% face ao ano anterior, quando o número de denúncias feitas por mulheres atingiu o recorde.

    Nessa linha, não surpreende que a gravidade da agressão física seja maior nas vítimas do sexo feminino. Em 2023, dos 22 homicídios cometidos em contexto doméstico, 17 das vítimas eram mulheres, havendo a registar três homens e duas crianças, segundo dados do Portal da Violência Doméstica. Este ano há a lamentar 18 mortes, sendo que 15 eram mulheres e três homens.

    Segundo dados do mesmo Portal, entre Janeiro e o final de Setembro deste ano, houve 23.032 ocorrências registas pela PSP e a GNR referentes a crimes de violência doméstica, mas esta base de dados não apresenta dados discriminados por sexo.

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    Por outro lado, tanto no caso dos homens como das mulheres, não existem dados sobre se o agressor é ou não do sexo oposto, podendo haver situações de violência doméstica em casais do mesmo sexo. Os dados do INE não revelam essa informação. Mas, seja de que sexo for a vítima e o agressor, o crime de violência doméstica constitui um atentado a “um direito humano, um direito fundamental” em que quem agride se aproveita do poder que detém sobre o parceiro, argumenta Manuel Albano. “E são as mulheres quem mais sofre num contexto de intimidade”, lamenta.

    Recorde-se que a violência doméstica passou a ser considerado um crime público a partir do ano 2000, quando houve uma alteração legislativa que reforçou a protecção das vítimas. Contudo, a maior percepção e conhecimento em torno deste tipo de violência, deverá levar a que continue a haver mais denúncias, sinalizou o mesmo responsável da CIG. Até porque hoje, além dos postos policiais da PSP e da GNR, existem em todos os distritos pontos de atendimento para vítimas de violência doméstica, o que facilita a denúncia.

    O PÁGINA UM contactou também a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), mas ninguém se mostrou interessado ou disponível.


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  • Em Portugal, ainda há 13 municípios onde mais de uma em cada cinco casas não tem água canalizada

    Em Portugal, ainda há 13 municípios onde mais de uma em cada cinco casas não tem água canalizada

    Portugal continua, no século XXI e meio século depois do 25 de Abril, a ser um país ainda dividido por desigualdades económicas e sociais, com regiões privilegiadas e outras mais ‘esquecidas’. Os mais recentes dados do Instituto Nacional de Estatística revela que há 13 concelhos onde mais de um quinto das habitações não tem ainda acesso a água canalizada da rede pública. Cerca de metade destes concelhos estão no Alentejo, sendo que os restantes se localizam sobretudo na região Norte, embora haja um na região Centro e outro no Algarve. Os municípios de Cinfães e Marco de Canaveses são os casos mais deploráveis, com quase metade das habitações sem ligação a sistemas públicos de água, constituindo assim um elevado risco de saúde pública.


    Ter água sempre disponível a sair da torneira, com quantidade e controlo de qualidade assegurados, é serviço que ainda está longe de ser uma realidade em todas as casas do país. E a estatística nacional esconde as profundas assimetrias e desequilíbrios ainda vigentes em Portugal. Os dados revelados esta semana pelo Instituto Nacional de Estatística, relativos ao ano de 2022, até mostram um país de ‘primeiro mundo’, onde somente três em cada 100 alojamentos não têm serviço público de abastecimento de água.

    Porém, como a ‘estória’ da falácia estatística que defende que duas pessoas comeram metade de um frango quando, na verdade, só uma o comeu inteiro, no caso do abastecimento de água Portugal Continental está excelente mas ‘esconde’ 13 munícipios com mais de uma em cada 10 alojamentos sem abastecimento de água de rede pública. Cinfães, no distrito de Viseu é o pior concelho: quase metade (47%) das casas não têm água canalizada, seguido de perto por Marco de Canaveses, no distrito do Porto, onde 46% dos lares têm de ir buscar água a furos privados ou mesmo à fonte, com risco para a saúde pública.

    a hand holding a glass of water

    De acordo com os mais recentes dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), divulgados esta semana e respeitante ao ano de 2022, estes municípios, sendo os piores, estão longe de ser casos únicos. No Alentejo encontram-se seis dos municípios com mais de um quinto das casas sem abastecimento de água. Três dos municípios situam-se no distrito de Beja: Odemira; Alvito; e Almodôvar. Outros dois municípios pertencem ao distrito de Portalegre: Marvão; e Arronches. O sexto é Montemor-o-Novo, no distrito de Évora.

    Na região do Norte contabilizam-se cinco concelhos no top dos piores: Cinfães, no distrito de Viseu; Marco de Canaveses, no Porto; Freixo de Espada à Cinta, em Bragança; Vale de Cambra, no distrito de Aveiro; e Vila Verde, em Braga. Os restantes situam-se na região Centro – São Pedro do Sul, distrito de Viseu – e no Algarve – Monchique, no distrito de Faro.

    De resto, dos 308 concelhos do país, apenas 135 têm a totalidade das casas com abastecimento de água da rede, sendo que o INE não dispõe de dados relativamente à região Autónoma dos Açores nem aos concelhos de Mirandela, Crato e Idanha-a-Nova. Cerca de uma centena tem menos de 5% das habitações ainda sem água canalizada, incluindo a Região Autónoma da Madeira, que tem 99,9% das habitações com abastecimento da rede.

    Concelhos com a maior percentagem de alojamentos sem acesso a abastecimento público de água em 2022. Fonte. INE.

    Não é por isso de estranhar que a penetração da cobertura dos sistemas de distribuição de água se reflicta também nos dados anuais de água distribuída pelos municípios ou empresas, que tem reflexo directo no consumo per capita. Segundo indicadores do INE, por também ser o município com menos casas com água canalizada, Cinfães também é o concelho com o menor volume de água distribuída por habitante. Também no top dos 10 concelhos com menor volume de água distribuída está Marco de Canaveses, que surge no sexto lugar com menor consumo.

    No lado oposto, o concelho que mais água distribui por habitante é Albufeira, que até está no grupo de municípios com uma elevada cobertura de abastecimento de água pela rede público (95%). Porém, o elevado volume anual per capita distribuído – 199,5 metros cúbicos em 2022, o que representa quase 550 litros por dia para cada pessoa – advém de uma ‘inflação’ decorrente do turismo, uma vez que os residentes pontuais não entram na contabilidade para o cálculo unitário. Este volume é, aliás, o triplo do valor médio registado pelo INE para todo o país: 64,6 metros cúbicos, representando 177 litros por habitante.

    Não surpreende assim que, embora em alguns casos haja ‘responsabilidades’ nas perdas de água nos sistemas de abastecimento, a generalidade dos municípios com maior volume de água distribuída sejam de zonas de grande actividade turística, designadamente na região do Algarve, no Porto Santo (Madeira), em Lisboa e em Grândola.

    Concelhos com mais e menor volume de água distribuída (m3/habitante por ano). Fonte: INE

    De notar ainda que também na quantidade de água distribuída por habitante há uma diferença grande em termos regionais. Os concelhos com menor volume de água por habitante são sobretudo da região Norte, enquanto os que somam mais consumo de água da rede são destinos preferidos em termos turísticos, designadamente os que ficam localizados mais a Sul, além da própria capital. A excepção é Mangualde, no distrito de Viseu, que registou 122,4 metros cúbicos de água distribuída por habitante.

    Numa altura em que crescem as pressões em Portugal e outros países contra a pressão turística e o seu impacto no dia-a-dia das cidades, o que é certo é que as que mais turistas atraem melhor cobertura de abastecimento de água têm, o que pode ser visto também como uma questão de progresso e bem-estar das populações. O acesso a água canalizada através de sistemas públicos é visto como um indicador de progresso, além de uma das necessidades mais básicas para garantir a saúde e o bem-estar das populações, uma vez que é, teoricamente, um garante de fornecimento estável e de qualidade da água consumida.


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  • 31 milhões em três anos: Porto Editora aproveita manuais digitais para vender computadores

    31 milhões em três anos: Porto Editora aproveita manuais digitais para vender computadores

    Desde 2018, os contribuintes desembolsaram 36,6 milhões de euros em contratos feitos com a Porto Editora, na maioria por ajuste directo, mas grande parte da verba (30,8 milhões) advem de contratos a partir de 2022. O grupo portuense, que possui conhecidas editoras de manuais escolares, tem beneficiado de muitos contratos por ser o escolhido pelos agrupamentos escolares e escolas do ensino público para fornecer manuais digitais e licenças de acesso a conteúdos. Mas, à boleia, a Porto Editora acaba a vender ‘kits’ de computadores, muitas vezes sem concorrência, porque as escolas decidem, de forma questionável, não separar as aquisições. Em contratos recentes, a Porto Editora cobrou 490 euros por cada portátil. Somando os manuais digitais e software, cada ‘kit’ para alunos rendeu mais de 900 euros. No top 20 dos maiores contratos ganhos pela Porto Editora, a Região Autónoma da Madeira dá um ‘baile’ ao Continente. As escolas madeirenses são responsáveis pelos 16 contratos mais valiosos feitos com a Porto Editora. Na sua maioria, são adjudicações feitas no último ano e meio por ajuste directo.


    As licenças de acesso a manuais digitais têm sido o’ cavalo de Tróia’ da Porto Editora para facturar milhões de euros em contratos com as escolas do ensino público, muitas vezes sem concurso. O grupo editorial, que detém a Areal e a Raiz, ganhou já contratos no valor de 36,6 milhões de euros desde 2018, na maioria por ajuste directo, mesmo quando o objecto do negócio foi a venda de ‘kits’ informáticos para os alunos, num sector com ampla concorrência.

    As escolas e os professores têm autonomia para escolher os manuais escolares a adoptar a cada ano lectivo, mas no que toca o material informático, o caso muda de figura. Ainda assim, à boleia da compra de manuais digitais e licenças de acesso a conteúdos pedagógicos, há escolas a adjudicar contratos por ajuste directo de milhares de euros sem a devida fundamentação legal.

    A Porto Editora tem beneficiado desta prática. Num levantamento feito pelo PÁGINA UM a contratos públicos registados no Portal Base, a Porto Editora é a ‘rainha’ da venda de manuais e licenças digitais, detendo 100% dos contratos. Na mesma análise, constata-se que em diversos contratos, além dos manuais e das licenças digitais, a empresa vende ‘kits’ informáticos para alunos.

    three person pointing the silver laptop computer

    Já em Setembro do ano passado, o PÁGINA UM tinha denunciado esta prática, de haver contratos por ajuste directo com a Porto Editora para vender tablets e computadores em ‘packs‘ à boleia dos manuais e licenças digitais. Em contratos recentes, a Porto Editora cobra mais de 900 euros por cada ‘kit’ para alunos do 10º ano, por exemplo, com o custo de cada portátil a sair a quase 500 euros ao Estado.

    De resto, este ano, a editora obteve os dois maiores contratos de sempre feitos com o Estado, ambos envolvendo a venda de ‘kits’ e manuais digitais a escolas da Região Autónoma da Madeira. O seu maior contrato de sempre, no valor de e 1.036.411,89 euros, que, acrescido de IVA, eleva a despesa dos contribuintes para 1.264.422,50 euros, foi efectuado a 22 de Julho com a Secretaria Regional de Educação, Ciência e Tecnologia – Escola Secundária Francisco Franco, no Funchal, referente à ‘Aquisição de manuais escolares digitais, bens e serviços conexos, 2024/2025’. Apenas a Porto Editora concorreu a este concurso público anunciado a 7 de Junho e com data-limite para entrega de propostas a 8 de Julho.

    Este contrato inclui a venda, pela Porto Editora, de 780 portáteis Chromebook, com bolsa de proteção personalizada, para alunos do 10º ano, disponibilização da ‘Plataforma LMS-Learning Management System com conteúdos e recursos educativos’, licenças ‘para Firewall Cloud (Secure Access Service Edge – SASE)’, licenças de acessos aos ‘Manuais em Formato digital’ e ainda licenças da ‘plataforma MDM-Mobile Device Management, para gestão centralizada dos equipamentos’. Cada ‘kit’ foi vendido ao preço de 907,52 euros, excluindo IVA. Além disso, o contrato abrangeu o fornecimento de licenças digitais a alunos do 11º ano ao preço de 416,64 euros, cada.

    Valor (em euros) dos contratos públicos relativos à compra de manuais digitais, licenças de acesso ou ‘kits’ com manuais digitais e computadores ou tablets. A Porto Editora foi a entidade contratada em 100% dos contratos detectados pelo PÁGINA UM. Fonte: Portal Base.

    O segundo maior contrato, no valor de 797.852,37 euros, foi efectuado a 19 de Agosto com a Escola Secundária Jaime Moniz, no Funchal. Este contrato engloba, por exemplo, a venda de 600 ‘kits’ no valor de 907,52 euros para os alunos do 10º ano, que inclui um portátil ‘Chromebook com bolsa de protecção’, num valor global de 544.512 euros, sem IVA. No caso dos ‘kits’ para os alunos do 11º ano, a Porto Editora cobra 416,64 euros por cada um, apenas para disponibilizar manuais digitais, software de cibersegurança e a plataforma LMS-Learning Management System. Fazendo as contas, significa que a Porto Editora vendeu, neste contrato, computadores portáteis para alunos ao preço de 490,88 euros sem IVA.

    De resto, os 16 maiores contratos da Porto Editora com entidades públicas foram celebrados com escolas da Região Autónoma da Madeira em contratos adjudicados, na sua maioria, no último ano e meio, tendo gerado mais de 8,1 milhões de euros de receita à Porto Editora. Destes contratos, 12 foram feitos por ajuste directo.

    Numa análise a várias compras de ‘kits’ informáticos para alunos feitas por escolas públicas, nos últimos meses, e registadas no Portal Base, o PÁGINA UM detectou contratos em que cada ‘kit’ composto por portátil, uma mochila de transporte, um ‘headset‘ e um rato com ligação USB custa em redor dos 410 euros ou 415 euros, incluindo um sistema operativo. Além do custo mais baixo, alguns dos contratos para a aquisição de portáteis para os alunos são feitos através de concurso ou consulta prévia, mas, na sua maioria, têm sido adjudicados por ajuste directo, apesar de existirem diversas empresas a operar no mercado.

    woman reading book

    Nos contratos registados no Portal Base referentes à aquisição de manuais e licenças digitais, todos feitos com a Porto Editora, verifica-se que o ‘pico’ das compras ocorreu em 2023, quando o valor total da despesa atingiu os 12,4 milhões de euros. Contudo, este ano o valor global dos contratos vai em 10,3 milhões de euros e há ainda procedimentos que não estarão registados no Portal Base.

    Além da Porto Editora, outras empresas que surge ligada a compras por ajuste directo relacionadas com a digitalização das escolas e a aquisição de material informático são a Meo e a Altice, que facturaram 460 mil euros com contratos públicos. Estes contratos feitos pelas escolas surgem num contexto de políticas que têm promovido uma maior digitalização do ensino público e a desmaterialização dos manuais escolares em papel.

    Recorde-se que, em 2018, a Direcção-Geral das Actidades Económicas e a Associação de Editores e Livreiros assinaram uma convenção relativa à venda de manuais escolares destinados aos ensinos básico e secundário, na qual se previa a distribuição de licenças digitais a todos os alunos do ensino público abrangidos pela medida de gratuitidade dos manuais escolares. Nesse sentido, anualmente, o Estado tem subsidiado ‘vouchers’ que são enviados aos encarregados de educação dos alunos para serem trocados por manuais escolares novos ou usados, os quais vem acompanhados por licenças de acesso a conteúdos digitais das editoras.

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    Neste caso, são os pais que recebem os ‘subsídios’ e, por isso, não surgem compras de manuais escolares às diferentes editoras no Portal Base. “A relação é entre o Ministério da Educação e os pais, que recebem os ‘vouchers’, pelo que não há uma compra de manuais às editoras por parte de nenhuma escola”, afirmou Pedro Sobral, presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), em declarações ao PÁGINA UM.

    Pedro Sobral defendeu que, no caso da compra de manuais digitais por parte das escolas, como as que estão registadas no Portal Base, faz sentido que sejam feitas por ajuste directo, já que “são as escolas que escolhem os manuais que pretendem”. Recordou que essas compras surgem inseridas em programas de digitalização das escolas e desmaterialização dos manuais em papel.

    Estes programas surgiram no âmbito do ‘Plano de Ação para a Transição Digital’ aprovado pelo Governo socialista em Abril de 2020. Nesse âmbito, desde então que o Ministério da Educação, Ciência e Inovação tem vindo a implementar, por exemplo, um projecto-piloto relativo ao uso de manuais digitais que, no ano lectivo passado, abrangeu 24 mil alunos de 104 agrupamentos escolares e escolas não agrupadas. No total, para o ano lectivo de 2023-2024, foi fixado o tecto de 24,167 milhões de euros que o Governo autorizou a gastar em licenças digitais de manuais.

    Página online da ‘Escola Virtual’ do grupo Porto Editora. Foto: Captura de ecrã/PÁGINA UM

    Mas a aposta na ‘desmaterialização’ dos livros escolares está em ‘banho-maria’ e tem um futuro incerto. “Felizmente, o anterior Governo decidiu, e bem, suspender esse plano”, disse Pedro Sobral, frisando que existem muitos estudos científicos que revelam a importância que o uso de livros em papel tem para o adequado desenvolvimento das crianças, nomeadamente nas suas capacidades de leitura, escrita e compreensão de textos.

    “Na APEL, pugnamos por uma complementariedade de formatos”, juntando o manual em papel com conteúdos digitais, frisou Pedro Sobral. “Não somos contra a digitalização, pelo contrário. Pensamos que é complementar”, salientou.

    Também o actual Governo já indicou que a estratégia de apostar numa maior digitalização dos manuais escolares está sob análise. Isto acontece numa altura em que persistem as dúvidas sobre os benefícios do uso exclusivo de livros digitais pelos alunos e também os ‘efeitos adversos’ que surgem com a excessiva exposição de crianças e jovens a ecrãs. Ao mesmo tempo, aumenta a pressão por parte de movimentos como o ‘Menos Ecrãs, Mais Vida‘, para travar o projecto dos manuais digitais nas escolas públicas.

    Seja como for, o negócio dos manuais digitais já rendeu milhões à Porto Editora e, até ordem contrária, as escolas irão continuar a comprar licenças se quiserem que os alunos continuem a poder usar os computadores comprados em ‘kit’ junto com os manuais digitais.


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  • Por tudo e por nada, Estado e autarquias usam suposta “urgência imperiosa” para contratos obscuros

    Por tudo e por nada, Estado e autarquias usam suposta “urgência imperiosa” para contratos obscuros

    Só este ano, a conta dos ‘contratos de mão-beijada’ milionários envolvendo prestadores escolhidos a dedo e sem concorrência – a antecâmara para a corrupção – já ultrapassou os 290 milhões de euros, e apenas incluindo os acordos acima de meio milhão de euros. O caso mais recente está a ‘incendiar’ a política dos Açores, e envolve a escolha de um dos accionistas privados da empresa pública de electricidade, a EDA, controlada pelo Governo Regional daquele arquipélago. O PÁGINA UM apanhou na ‘rede’ um autêntico regabofe, com justificações absurdas, e que aparentemente passam incólumes à fiscalização do Tribunal de Contas, apesar da jurisprudência.


    É o segundo maior ajuste directo de sempre invocando “urgência imperiosa”, sendo apenas ultrapassado pela polémica construção de dois navios patrulha em 2015, por 77 milhões de euros, no Estaleiros de Viana do Castelo determinada pelo Governo de Passos Coelho. Um contrato celebrado no final de Setembro passado pela empresa pública EDA – Electricidade dos Açores e a Bencom, no valor de quase 50 milhões de euros, está a levantar polémica naquele arquipélago, não apenas por ter sido assinado a um sábado, mas por envolver uma empresa do Grupo Bensaúde.

    Esta ‘holding’ é o principal accionista, através da ESA (39,7%) da empresa de electricidade dos Açores maioritariamente detida pelo Governo Regional (50,1%), e a decisão de adjudicação, após um concurso público internacional lançado em Maio deste ano ter ficado deserto, está a causar acusações de conflito de interesses. Os potenciais candidatos tiveram apenas um mês para apresentar propostas de fornecimento de combustível durante três anos.

    A administração da eléctrica açoriana, sem explicar as razões de não se precaver deste tipo de imponderáveis em concursos públicos de grande complexidade, alegou agora ser “impossível repetir um novo procedimento concursal a tempo de garantir o abastecimento de fuelóleo necessário à produção de energia eléctrica” nas ilhas de São Miguel, Terceira, Pico e Faial, daí que optou por um ajuste directo por nove meses em condições que não sequer minimamente conhecidas através do Portal Base. Na plataforma da contratação pública, consultada pelo PÁGINA UM, consta apenas um contrato ‘minimalista’ sem o caderno de encargos e sem a proposta apresentada pela Bencom. Ignora-se assim o preço unitário do fuelóleo e os custos de logística e armazenamento. O contrato nem sequer foi assinado por qualquer membro do Conselho de Administração da EDA.

    Foto: D.R./Bencom

    Sem explicações concretas sobre as razões de um concurso público ter ficado deserto – sendo que, em casos similares, se deve a preços-base baixos ou a exigências de candidaturas que não permitem propostas em tempo útil –, e das verdadeiras responsabilidades da empresa pública, colocam-se em todo o caso dúvidas, a serem dirimidas pelo Tribunal de Contas, sobre a legalidade da invocação da “urgência imperiosa” para entregar de ‘mão-beijada’, e sem limite de valor, um fornecimento de combustíveis no valor de 50 milhões de euros. Isto porque o Código dos Contratos Públicos exige que os “motivos de urgência imperiosa” sejam resultantes de “acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante [neste caso, a EDA], não possam ser cumpridos os prazos inerentes aos demais procedimentos, e desde que as circunstâncias invocadas não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”.

    Ora, uma administração que lança um concurso público ‘em cima da hora’ para o fornecimento de combustível que se sabe, há muito, ser necessário, não pode depois justificar que não teve responsabilidades. Além disso, o princípio dos “acontecimentos imprevisíveis” não deve configurar casos como os de concursos públicos sem concorrentes, um risco que pode ser previsível e até quantificável em termos percentuais. Na verdade, subjacente aos “acontecimentos imprevisíveis” estão fenómenos meteorológicos e naturais ou mesmo crises de saúde pública.

    A interpretação do Tribunal de Contas tem sido no sentido de que “são motivos de urgência imperiosa aqueles que se impõem à entidade administrativa de uma forma categórica, a que não pode deixar de responder com rapidez […], sob pena de, não o fazendo com a máxima rapidez, os danos daí decorrentes causarem ou poderem vir a causar prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação”. Mas o Tribunal de Contas salienta ser “ainda necessário que essa urgência imperiosa seja resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante, e não sejam, em caso algum, a ela imputáveis”, reforçando que “acontecimentos imprevisíveis são todos aqueles que um decisor público normal, colocado na posição do real decisor, não podia nem devia ter previsto”. E acrescenta que ”estão, portanto, fora do conceito de acontecimentos imprevisíveis, os acontecimentos que aquele decisor público podia e devia ter previsto”.

    Foto: D.R.

    Contudo, cada vez com maior facilidade as empresas públicas e entidades da Administração Públicas, e mesmo o próprio Governo, pelo ‘esquema’ da “urgência imperiosa” para entregar, sem qualquer concurso público, adjudicações de avultados montantes. De acordo com um levantamento exaustivo do PÁGINA UM aos ajustes directos acima de meio milhão de euros publicados este ano, contabilizam-se 162 contratos, envolvendo 59 entidades públicas. A empresa de electricidade açoriana EDA lidera em termos de montante: além do já referido contrato de quase 50 milhões de euros, celebrou já este mês um ajuste directo ‘urgente’ de locação de uma central termoeléctrica à Aggreko Iberia por quase 973 mil euros. Os dois ajustes directos por “urgência imperiosa” despacharam assim 50,95 milhões de euros, sem IVA.

    Em todo o caso, o Estado-Maior das Força Aérea é a entidade pública que mais vezes encontra “urgência imperiosa” para entregar contratos sem concurso público. Somente este ano, de acordo com os registos do Portal Base, contam-se 14 ajustes directos desta natureza que totalizaram quase 33,3 milhões de euros. Todos estes contratos se referem à contratação de meios aéreos para combate aos incêndios rurais de 2023 e deste ano, que beneficiaram a Avincis, a Helibravo, a HTA Helicópteros e a Gestifly. A simples aplicação do ‘bom senso’ – ou seja, da evidência da necessidade, ano após ano, de meios aéreos – deveria retirar, desde logo, o argumento da “urgência imperiosa”, mas Tribunal de Contas (e a decência) pouco se tem incomodado com esta repetida situação, e aparentemente só uma coisa é certa: para o ano o Estado-Maior da Força Aérea repetirá a dose com mais ajustes directos desta natureza.

    Ajustes directos por “urgência imperiosa” com meios aéreos também foram usados pelo Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), depois de atrasos nos concursos públicos por razões políticas. O segundo destes contratos, no valor de 12 milhões de euros, assinado em finais de Junho com a Avincis, levaria à demissão do então presidente do INEM, Luís Meira, mas já houvera outro, no valor de seis milhões de euros com a Babcock em finais do ano passado, que seria publicado no Portal Base em Janeiro deste ano. Acrescem, com o estafado argumento da “urgência imperiosa”, dois contratos de serviços de reparação e manutenção da frota do INEM, num total de 1,46 milhões de euros. Contas feitas, apenas em quatro “urgências imperiosas”, o INEM despachou, sem burocracias e com nula transparência, quase 19,5 milhões de euros nos últimos 10 meses.

    (D.R.)

    O Governo, ele próprio, também aprecia a “urgência imperiosa” para despachar ajustes directos por empresas escolhidas a dedo. Contas feitas, desde o início deste ano foram publicados no Portal Base um total de 10 contratos desta natureza celebrados por departamentos governamentais, totalizando cerca de 25 milhões de euros.

    A Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros já contabiliza três ajustes directos desta natureza no montante global de 17,7 milhões de euros para software e hardware de controlo de fronteiras. Mais uma vez a urgência foi invocada, quando, na verdade, o sistema de Smart Borders há muito estava previsto, como destacou o PÁGINA UM em Junho passado.

    A Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna contabiliza, por sua vez, quatro contratos por ajuste directo devido a alegada “urgência imperiosa”, mas os montantes são mais reduzidos: quase 4,9 milhões de euros, entregues à Timestamp (um contrato) e à Meo. No caso de um dos ajustes directos a esta última empresa, por exemplo, a justificação para a “urgência imperiosa” por “acontecimentos imprevisíveis” é absolutamente ridícula: tratou-se da “aquisição de serviços para implementação do Centro de Suporte aos Técnicos de Apoio Informático (CSTAI) para utilização dos Cadernos Eleitorais Desmaterializados”, no âmbito das eleições para o Parlamento Europeu em Junho passado. Custou, em três dias, um pouco mais de 1,3 milhões de euros, ganhos pela Meo, sem os incómodos da concorrência. Estas eleições estavam, obviamente, previstas há muitos e muitos anos.

    Por fim, na área governamental, o Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e das Infraestruturas também já fez este ano três ajustes directos por “urgência imperiosa”, dois dos quais no mês passado, sendo que o outro se concretizou ainda no tempo do Governo Costa. Os três contratos, no valor de 2,4 milhões de euros, destinaram-se a suportar custos do serviço aéreo no arquipélago da Madeira e aquele que era prestado pela Sevenair – através da ligação Bragança-Vila Real-Viseu-Cascais-Portimão. No caso desta última ligação, o serviço acabou por ser suspenso no final do mês passado, devido à falta de pagamento. Para suspender o serviço, desta vez não houve mais “urgência imperiosa”.

    A Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros já contabiliza três ajustes directos para software e hardware de controlo de fronteiras. Foto: D.R.

    As autarquias apreciam também bastante os ajustes directos por “urgência imperiosa”, embora com contratos acima de 500 mil euros ‘somente’ se encontram publicados este ano um total de 21 contratos, envolvendo 16 municípios: Murça, Porto, Santo Tirso, Sintra e Maia (dois, cada), Trofa, São João da Madeira, Vila Nova de Gaia, Lisboa, Barreiro, Moita, Seixal, Almada, Coimbra, Espinho e Gondomar.

    De todos estes, Maia, Murça, Santo Tirso, Sintra, Porto e Gondomar ultrapassam a fasquia de um milhão de euros, mas o último destes municípios supera isso, e por muito. E é um ‘caso’ que tem todos os contornos de ser ‘de polícia’.  De facto, o ajuste directo de quase 13,9 milhões de euros, celebrado no passado dia 25 de Setembro, e que entrou em vigor no início do presente, é a continuação, dir-se-ia ad aeternum, de uma relação comercial iniciada entre a autarquia socialista e a Rede Ambiente. Desde Julho de 2022, o município tem feito sucessivos contratos de aquisição de serviços de recolha de resíduos sólidos urbanos, sem concurso, a esta empresa que integra o Grupo Terris, com sede naquele concelho nortenho e que é ré no processo ‘Ajuste Secreto’. O próprio CEO do Grupo Terris, e ex-presidente da Rede Ambiente, viu em 2019 o Tribunal de Santa Maria da Feira decretar-lhe o arresto preventivo de bens.

    Estes ajustes directos sucedem a um contrato ganho por concurso público pela Rede Ambiente e EGEO em 2012, em consórcio, pelo valor de 35,8 milhões de euros. Até final do ano passado, a autarquia de Gondomar fez três contratos de ‘mão-beijada’ no valor de cerca de 12,9 milhões de euros, de acordo com dados disponíveis no Portal Base. Mas, supostamente, não teve tempo para concluir entretanto um concurso público e celebrou um novo ajuste directo por “urgência imperiosa” por um período de dois anos no valor de 13,9 milhões de euros. Este é, de longe, o maior ajuste directo da autarquia gondomarense e foge também do espírito legal do Código dos Contratos Públicos, uma vez que não só há responsabilidades do município na não conclusão de concurso público como, por outro lado, o prazo de execução (730 dias) excede muito o “estritamente necessário” previsto nos normativos.

    Foto: D.R.

    De entre o tipo de serviços e aquisição de bens acima de 500 mil euros alvo deste expediente de ajuste directo por “urgência imperiosa”, o sector da energia, muito por via dos contratos da EDA (quase 51 milhões de euros), é aquele que mais verbas envolve, totalizando, segundo a análise do PÁGINA UM, um pouco mais de 84 milhões de euros. No total de 23 contratos, além dos dois da EDA, destacam-se os cinco celebrados pela Infraestruturas de Portugal (12,5 milhões de euros), os seis da Transtejo (10,8 milhões de euros) e os cinco da Soflusa (quase seis milhões). Tudo “urgência imperiosa”, porque, alegadamente, não seria previsível haver necessidade de usar combustíveis para transporte.

    Seguem-se, a grande distância, os contratos, já acima referidos, relacionados com a aquisição de serviços de aeronaves, que ultrapassam os 33,2 milhões de euros, aos quais se acrescentam mais 18 milhões de se incluírem os meios aéreos para emergência médica, e mais 2,4 milhões se se contabilizarem também a contribuição para os voos regionais.

    Também rodeado por um mistério está o sistemático recurso à “urgência imperiosa” em 31 contratos por ajuste directo acima de meio milhão de euros para a prestação de serviços de refeições, detectados pelo PÁGINA UM no Portal Base, e envolvendo 16 entidades públicas, das quais sete são unidades locais de saúde (ULS), ou os antigos centros hospitalares, e seis são autarquias. No caso da ULS de São José – que sucedeu ao Centro Hospitalar de Lisboa Central –, este ano já se contam seis “urgência imperiosas” para alimentação, envolvendo quase 5,1 milhões de euros. A ULS de Santa Maria, antigo Centro Hospitalar de Lisboa Norte, não está longe: um pouco mais de quatro milhões de euros em refeições por quatro ajustes directos. A empresa ‘campeã’ destes ajustes directos, sobretudo nos hospitais, tem sido a Itau, que ‘apanhou’ 20 dos 31 contratos desta natureza, sacando 18 milhões do ‘bolo’ de 26,5 milhões de euros despachados por “urgência imperiosa”.

    broom, ragpicker, mop

    Os serviços de limpeza – mais um tipo de serviços ‘previsíveis’ em entidades com o mínimo de planeamento – são também ‘chão’ para negócios sustentados pela “urgência imperiosa”, que permitem escolhas a dedo. A análise do PÁGINA UM detectou 17 entidades de toda a natureza que usaram este expediente em contratos que já envolveram 23,5 milhões de euros.  De entre as entidades públicas que mais dinheiro gastaram este ano com estes contratos de ‘mão-beijada’ com justificações espúrias estão a Autoridade Tributária e Aduaneira (2,04 milhões de euros), a Guarda Nacional Republicana (3,37 milhões de euros), o Metropolitano de Lisboa (3,59 milhões de euros), e a ULS de Santa Maria (2,94 milhões de euros). Aqui aparentemente existe uma espécie de oligopólio, porque são várias as empresas, consoantes os adjudicantes, que beneficiam destes negócios da “urgência imperiosa”. De acordo com os dados do Portal Base, houve 11 empresas de limpeza que conseguiram este tipo de ajustes directos, embora o destaque seja da Fine Facility Services, com 5,94 milhões de euros.

    De resto, contabilizando os gastos pelos sectores definidos pelo PÁGINA UM, os X contratos por “urgência imperiosa” acima de meio milhão de euros no sector das comunicações já quase atingiu os sete milhões de euros, no sector do controlo de fronteiras um pouco mais de 10,9 milhões de euros, no sector da informáticxa quase 8,5 milhões de euros, no sector das obras públicas cerca de 14,6 milhões de euros – destacando-se a construção de um edifício modular no hospital de Ponta Delgada, no valor de 11,2 milhões de euros –, no sector da segurança quase 9,7 milhões de euros – e no sector dos serviços de manutenção aproximadamente 6,7 milhões de euros.

    Também relevantes são os encargos hospitalares feitos ao abrigo da “urgência imperiosa”, tanto para medicamentos (11 milhões, onde se incluem 3,7 milhões de euros pagos à Novartis por duas doses de Zolgensma, o polémico fármaco do caso das gémeas) como para material e serviços hospitalares. Embora em diversos casos se possa admitir mesmo a aquisição urgente, pelas particularidades do sector, já tudo se mostra mais obscuro quando, por via de uma alegada – mas nunca justificada com argumentos escritos – “urgência imperiosa”, também não há redução de contrato a escrito. Por exemplo, na compra de material de consumo clínico pela ULS de Braga no valor de 729.636 euros ocorrida em Março deste ano, e publicada no Portal Base em Julho passado, não se sabe nem preço nem que produtos foram efectivamente adquiridos para o serviço vascular, de neurorradiologia e de anestesia. Mas a gestão do hospital de Braga, como o PÁGINA UM já teve oportunidade de revelar, é outro caso ‘doentio caso’ de gestão de dinheiros públicos a merecer atenção do Ministério Público.

    clear medical hose
    Foto: D.R.

    Pelo lado dos adjudicatários – ou seja, das 73 empresas e consórcios que beneficiaram da escolha a dedo por “urgência imperiosa –, da lista compilada pelo PÁGINA UM com contratos acima de meio milhão de euros, o destaque vai para a Bencom (por via do contrato com a EDA), com quase 50 milhões de euros, seguindo-se a Avincis (meios aéreos), a Petrogal (energia) e a Itau (alimentação), todos com valores a rondar os 18 milhões de euros.

    A Rede Ambiente (resíduos) e a Iberdrola (energia) conseguiram facturar, graças aos ajustes directos por “urgência imperiosa”, analisados pelo PÁGINA UM, 13,9 milhões e quase 13,4 milhões de euros, respectivamente. Ainda acima dos 10 milhões, estão ainda incluídas a Modular Builders Worldwide (obras públicas, no caso a construção do edifício modular do hospital de Ponta Delgada) e a Gestifly (prestação de serviços de aeronaves).

    Com valores entres cinco milhões e 10 milhões de euros surgem a Helibravo Aviação, com quase 9,9 milhões de euros, a Timestamp (7,9 milhões de euros), a Indra Sistemas Portugal (6,8 milhões de euros), a Babcock (6,6 milhões de euros), a Fine Facility Services (5,9 milhões de euros), a HTA Helicópteros (5,8 milhões de euros) e a Meo (quase 5,5 milhões de euros). Muitos milhões que chegaram em ‘bandejas’. Se o preço foi justo, se houve defesa do interesse público, se houve corrupção – ninguém sabe dizer, porque poucos (ou nenhuns) querem saber.


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  • ‘Obras de Santa Engrácia’ em Águeda desgraçam milhões de euros

    ‘Obras de Santa Engrácia’ em Águeda desgraçam milhões de euros

    Em Águeda deve achar-se que o dinheiro brota do chão como as hortaliças: um projecto de remodelação de um simples mercado municipal anda desde 2016 com projectos de empreitadas e alterações contratuais sem que as obras de requalificação terminem. Depois de um contrato de 2021 ter sido alterado duas vezes, a autarquia social-democrata decidiu, depois de já ter gastado cerca de 4 milhões de euros, que se pode gastar outro tanto, tendo celebrado no mês passado um novo contrato, desta vez por ajuste directo à mesma empresa que se tem mostrado incapaz de concluir a obra. De contrato em contrato, a ‘coisa’ ultrapassará os 8 milhões de euros. E não se sabe quando haverá ‘obra feita’, porque o histórico mostra que nada está garantido, excepto haver dinheiros públicos e falta de intervenção do Tribunal de Contas.


    Oito anos já passaram em Águeda, e nos quatro cantos do Mundo, e da almejada requalificação do Mercado local só se vê uma coisa: aumento interminável de custos.

    Em 2016, a autarquia então liderada pelo socialista Gil Nadais decidiu lançar um concurso público para elaboração do projecto de requalificação do Mercado municipal que andaria, supostamente, a aguardar melhorias há três décadas. Aparentemente, a prestação de serviços pela elaboração do projecto saiu baratinha: o preço-base era de 55 mil euros, mas a Ciratecna, um gabinete de estudos de Vila Franca de Xira, contentou-se com menos de metade (24.980 euros) e ganhou o contrato. Nasceu barato o que viria a tornar-se caro; muito caro e sem fim.

    Somente em pleno primeiro ano da pandemia, em Outubro de 2020, já com o actual presidente da autarquia Jorge Almeida em funções – então por um movimento independente, mas que viria a ‘passar-se’ para o PSD na reeleição em 2021 –, o concurso público para a empreitada avançaria com um preço-base a rondar os 4,6 milhões de euros. E quem ganhou, com uma proposta de apenas cerca de 1.200 euros abaixo desse preço-base, foi a Socértima, uma empresa de construção civil de Anadia, um concelho vizinho, ‘afastando’ as propostas de mais quatro concorrentes (DGPW, Rial Engenharia, Embeiral e Joaquim Fernandes Marques & Filho).

    Vista virtual do mercado municipal de Águeda. A realidade custa a aparecer.

    Concretizada a adjudicação em Março de 2021, o prazo de execução ficou definido em 420 dias, o que significa que a obras deveriam estar concluídas em Maio do ano seguinte. Mas surgiram problemas: Maio chegou e não havia ainda requalificação concluída. Dois meses depois, a presidência desta autarquia do distrito de Aveiro decidiu então reformular o projecto, contratando, após consulta prévia, mais uma consultora, a R5e. Gastaram-se mais dois meses, e em Agosto o município procedeu a uma alteração contraual com a Socértima, aumentando o preço para praticamente mais 1,9 milhões de euros. Ou seja, passou de 4,59 milhões para cerca de 6,49 milhões, por força de trabalhos a mais e a menos.

    Quem julgasse que finalmente a remodelação avançaria, desenganou-se. Ao longos dos meses seguintes, o executivo de Jorge Almeida foi apresentando em reunião de câmara sucessivas pequenas e grandes alterações, fruto de pequenos e grandes erros e omissões.

    Chegou o ano de 2024, e Mercado renovado nem vê-lo. E eis que em Abril passado surgiu uma nova alteração contratual, com o terceiro contrato adicional com uma ‘estranha’ contabilidade: pagamento de trabalhos a mais de10.141,82 euros, mais uma parcela de trabalhos complementares de 291.382,93 euros, e depois um acordo de trabalhos a menos de 2.775.545,52 euros. Quase antes mesmo de se conseguir perceber em quanto afinal ficaria a obra, a autarquia de Águeda anularia o ‘remendado’ contrato originário de 2021, e lançaria um novo concurso para nova empreitada, mesmo depois de se ter gastado cerca de 4 milhões de euros.

    Jorge Almeida, presidente da autarquia de Águeda. Gastar milhões de euros de dinheiros públicos: sim. Justificar gastos à imprensa: não.

    As peripécias não terminaram. O novo concurso, que acabou por ser lançado em Julho passado com um preço-base de cerca de 4,7 milhões de euros e uma dilação do prazo de execução de mais 300 dias, teve resultados muito ‘sui generis’: houve oito empresas que se candidaram, mas seis apresentaram valores ridiculamente baixos  – sendo que uma (Canas Engenharia e Construção indicou zero euros e outra, a Empribuild, apenas um euro) –, outra ainda apresentou um valor bem acima do preço-base (Embeiral, com 5,7 milhões de euros) e, por fim, a Socértima, que vinha desenvolvendo a obra, aos soluços desde 2021, apresentou uma proposta de 4,3 milhões de euros. Contudo, esta enviou a sua proposta um minuto depois do prazo. Por esse motivo, o júri do concurso excluiu todos.

    E que sucedeu então?

    A autarquia de Águeda sentiu-se na liberdade de seguir para um ajuste directo, convidando a Socértima para a celebração de novo contrato, que viria a ser assinado no passado dia 16 de Setembro, por 4,3 milhões de euros e um prazo de mais 300 dias. Ou seja, se tudo correr bem – o que contrariará as expectativas de uma obra que sempre esteve a correr mal –, a ‘inauguração’ será em Julho de 2025 com um preço final a rondar os 8,5 milhões de euros. Se não houver mais ajustes, claro.

    O PÁGINA UM procurou esclarecimentos de Jorge Almeida, presidente social-democrata da autarquia de Águeda, mas nunca obteve reacção. Já Luís Pinho, vereador do Partido Socialista, na oposição e sem pelouro, diz que tem assumido “um papel muito cauteloso e crítico relativamente ao Mercado e ao projeto em curso”, confirmando que “a obra derrapou em valor e nos prazos, alegadamente por problemas relacionados com o projeto e as peças técnicas que o sustentavam”.

    Mercado municipal de Águeda: remodelação tornou-se uma ‘obra de Santa Engrácia’.

    Este vereador acrescenta que, “contudo, nunca nos foi demonstrado que tinha de ser desta forma e acima de tudo nunca foi atribuída qualquer responsabilização a quem deveria assumir os erros, se os houve”, lamentando, por isso: “nunca houve contraditório face ao que o construtor alegou e que a câmara anuiu”. “Aquilo que era um projeto caríssimo passou para o dobro com grave prejuízo do orçamento camarário”.

    Neste momento, sem Mercado reabilitado, os feirantes têm aproveitado instalações provisórias desde Agosto de 2022, sendo que, de acordo com Luís Pinho, os comerciantes que se encontravam no interior do espaço antigo estão agora em contentores, com algumas queixas sobretudo na estação do calor. O vereador socialista acrescenta também que “a zona de feira (feirantes de rua) acaba por ser um espaço em torno da obra que causa alguma perturbação na distribuição dos feirantes e na circulação, mas é o espaço existente”, reforçando que, “decididamente, quem está em piores condições são os pequenos produtores agrícolas, instalados numa pequena tenda sem as mínimas condições”. E, já agora, também os contribuintes, que vão pagar o dobro do que estava inicialmente previsto. Pelo menos.


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  • Em 17 municípios mais de um em cada 10 residentes veio do estrangeiro nos últimos seis anos

    Em 17 municípios mais de um em cada 10 residentes veio do estrangeiro nos últimos seis anos

    O fluxo migratório recente em Portugal tem sido quase generalizado, com apenas 11 concelhos com mais emigração do que imigração entre 2018 e 2023, de acordo com uma análise detalhada do PÁGINA UM aos dados oficiais do Instituto Nacional de Estatística (INE). E há outros aspectos sociológicos bastante relevantes: apesar de as grandes cidades receberam mais imigrantes, a dinâmica migratória é muitíssimo mais intensa em determinados concelhos rurais, particularmente nas áreas agrícolas dos distritos de Lisboa, Santarém e Leiria, para além do muito ‘badalado’ município de Odemira. Num contexto em que a imigração passou a ser uma ‘luta ideológica’ sobre segurança, na verdade há um debate que continua adiado: como integrar imigrantes em áreas rurais com evidente escassez de serviços públicos e de habitação devido aos desinvestimentos nas últimas décadas?


    O forte fluxo migratório dos últimos anos, proveniente sobretudo da imigração, está a causar uma mudança sociocultural muito mais profunda nos concelhos rurais do que nos municípios urbanos, mesmo os das áreas metropolitanas. Esse fenómeno está sobretudo concentrado em determinadas zonas associadas à agricultura dos distritos de Lisboa, Santarém e Leiria, embora, fora destas regiões, Odemira e Vila Velha do Ródão se destaquem.

    Embora os dados absolutos do Instituto Nacional de Estatística (INE) sobre saldo migratório entre 2018 e 2023, analisados pelo PÁGINA UM, indiquem que, grosso modo, os imigrantes se estejam a concentrar, em termos absolutos, nas principais cidades portuguesas, certo é que a sua distribuição tem sido generalizada a todo o país. E daí, em muitos municípios rurais, com a agricultura ainda com peso significativo, a presença de imigrantes acaba por se mostrar bastante mais relevante.

    Apesar de os dados anuais disponibilizados pelo INE não indicarem o número de imigrantes que entram por ano em cada concelho nem o número daqueles que saem (emigração) – mas apenas o saldo migratório, ou seja, a diferença entre imigração e emigração –, o somatório desses saldos num determinado período temporal em função da população constitui um indicador bastante razoável (embora até por defeito) sobre como a dinâmica migratória afecta a evolução demográfica e social local. Convém referir que este saldo migratório do INE não reflecte as migrações internas, isto é, as mudanças interanuais entre concelhos. Em todo o caso, este somatório do saldo migratório representa um indicador expedito da atractividade das diversas regiões.

    Farm Workers Setting up a Tunnel at a Farm

    E, de facto, se é certo que, desde 2018, foram os municípios urbanos que contabilizaram números mais elevados de dinâmica migratória (favorável às entradas), mostra-se surpreendente que haja municípios rurais onde os fluxos relativos são bastante superiores. Aliás, um aspecto ainda mais surpreendente se salienta na análise aos dados do INE: mesmo com o saldo natural bastante negativo em grande parte do país, o saldo migratório é positivo na generalidade do território nacional, com poucas excepções. Com efeito, no somatório dos fluxos migratórios entre 2018 e 2023, apenas 11 concelhos, entre 308, apresentaram mais saída do que entradas, a saber: Castelo de Paiva (-2 pessoas), Vila Franca do Campo (-24), Arouca (-52), Barrancos (-53), Portalegre (-76), Cinfães (-91), Resende (-101), Peso da Régua (-118), Baião (-216) e Felgueiras (-770).

    Estes casos isolados revelam, assim, uma nova faceta demográfica de Portugal, com um país a crescer em número de pessoas, mas com saldos naturais negativos. Exemplo disso sucede em Lisboa, que apesar de ter mais mortes do que nascimentos, registou um saldo migratório acumulado, entre 2018 e 2023, de 15.606 pessoas, sendo apenas ultrapassado pelo Porto, que teve um aumento de 18.398 indivíduos neste período. Os restantes oito concelhos do top 10 dos saldos migratórios acumulados são todos urbanos, do eixo Porto-Braga e da Área Metropolitana de Lisboa, a saber: Vila Nova de Gaia (+10.386 indivíduos), Braga (+10.011), Seixal (+9.450), Sintra (+8.404), Maia (+8.106), Cascais (+7.979), Torres Vedras (+7.894) e Matosinhos (+7.589). Esta dezena de municípios representa quase um quarto (23,3%) do total do fluxo migratório em todo o país entre 2018 e 2023, que totalizou pouco mais de 445 mil pessoas.

    Mas se os municípios das grandes cidades aparentam mostrar um maior grau de atracção, por apresentarem maiores saldos absolutos, o impacte sociodemográfico destas dinâmicas migratórias depende muito da dimensão dos concelhos e da sua atractividade em termos de emprego. Assim, se se considerar a população estimada para o ano de 2023 pelo INE – 10.639.726 habitantes – e um fluxo migratório acumulado (2018-2023) positivo de 445.449 pessoas, pode considerar-se que aproximadamente 4,2% da actual população m Portugal vivia no estrangeiro nos últimos seis anos.

    Municípios com maior saldo migratório acumulado absoluto entre 2018 e 2023. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Saliente-se, porém, que este valor será uma aproximação à realidade, uma vez que se um imigrante, que se instalou inicialmente num determinado concelho, se deslocar para outro concelho português em ano posterior, não será novamente detectado nesta ‘contabilidade’ do INE, uma vez que passa a ser um mero ‘migrante interno’ como pode suceder a qualquer cidadão nado e sempre criado em Portugal. Se morrer, o efeito demográfico, porque ‘contribui’ para a redução populacional, mantendo-se a ‘contribuir’ para o fluxo migratório do período em análise.

    Por outro lado, tem de se considerar que o saldo migratório em cada município é o valor líquido da imigração deduzida a emigração (saída para o estrangeiro), pelo que o número de imigrantes (e concomitantemente da percentagem na população total) pode até pecar por defeito. Em todo o caso, o peso do fluxo migratório em função da população residente no ano mais recente constituirá um bom indicador das transformações demográficas e sociais em curso nas diferentes regiões do país.

    Considerando isto, os concelhos de maior dimensão – e com maior fluxo migratório absoluto – estão longe, ao contrário da percepção mediática, de ser aqueles com maior introdução relativa de imigrantes na população local. Com efeito, do top 10 em termos dos municípios com maior fluxo migratório absoluto no último sexénio, Torres Vedras – que tem ainda fortes características rurais e uma actividade agrícola relevante (uma das principais fontes de emprego dos imigrantes) – ocupa apenas a 28ª posição na lista global em termos de percentagem do fluxo migratório em função da população. Com uma população residente de cerca de 88 mil habitantes, o saldo migratório entre 2018 e 2023 foi de 7.894 pessoas, resultando assim em 9% do total.

    O segundo concelho deste leque com maior percentagem é o Porto: 7,4%, colocando-se na 60ª posição a nível nacional. Dos restantes concelhos do topo 10 em termos de saldo migratório, a ‘diluição’ da imigração é ainda maior, ou seja, o seu peso demográfico sente-se menos. Acima da média nacional (4,2%) estão Maia (5,7%), Seixal (5,5%), Braga (5,0%). Matosinhos, por sua vez, coincide com a média, enquanto abaixo encontram-se Vila Nova de Gaia (3,3%), Lisboa (2,8%) e Sintra (2.1%). Ou seja, os dois maiores concelhos de país (Lisboa e Sintra) não evidenciam uma grande alteração sociodemográfica proveniente da imigração dos últimos seis anos.

    De facto, com algumas excepções, têm sido as regiões mais rurais a assistir a uma maior chegada relativa de imigrantes, causando uma inversão nos fluxos demográficos. Durante largas décadas, os municípios e regiões tradicionalmente mais ligados ao sector primário foram registando perdas populacionais tanto por vida do saldo migratório como do saldo natural. Mas tal inverteu-se. A região com maior dinâmica migratória no período 20178-2023 foi o Oeste: teve um saldo migratório positivo de 37.041 pessoas numa população estimada no ano passado de 399.396 habitantes, o que representa 9,5% do total, ou seja, mais do dobro do valor registado a nível nacional. O Alentejo Litoral também contabilizou um fortíssimo dinamismo para tão curto período: saldo migratório positivo de 8.428 pessoas numa população em 2023 da ordem dos 101 mil habitantes, ou seja, 8,3% do total. Um pouco mais atrás surge a região da Lezíria do Tejo com 7,8%.

    As regiões mais urbanas, onde se inserem Lisboa e Porto, apresentam valores substancialmente mais baixos. A Área Metropolitana de Lisboa, apesar de ter registado um saldo migratório acumulado no período 2018-2023 de quase 99 mil pessoas, esse número pesa apenas 3,3% no total da sua população no ano passado (cerca de 2,96 milhões de habitantes). No caso da Área Metropolitana do Porto, esse peso é um pouco maior (4,5%), resultante de um saldo migratório acumulado de 80.858 pessoas numa comunidade de cerca de 1,8 milhões de pessoas.

    an empty baggage claim area at an airport

    No extremo oposto, as duas regiões no Continente com menor fluxo de imigrantes são ambas do Norte: Tâmega e Sousa e ainda Ave, cujo peso do saldo migratório acumulado na população estimada em 2023 foi de apenas de 0,6% e 1,8%. Os Açores também se mostram ainda pouco atractivos: no conjunto, o arquipélago registou um saldo migratório acumulado de 4.448 pessoas numa população de pouco mais de 241 mil habitantes.

    Porém, é numa análise municipal que se revelam as diferentes dinâmicas, muito dependentes dos distintos factores de atractividade ligadas, obviamente, ao emprego mais associado à população imigrante. Assim, até por ser uma das zonas mais ‘badaladas’, o concelho com maior fluxo migratório relativo no último sexénio (2018-2023) é Odemira. Para uma população de 33.124, estimada para o ano passado neste concelho alentejano, houve um saldo migratório positivo de 5.487 indivíduos. O cruzamento destes dois indicadores demográficos aponta assim para que 16,6% da população agora residente em Odemira terá chegado a partir do estrangeiro nos últimos seis anos.

    O segundo concelho com maior percentagem no fluxo migratório em função da população é outro concelho rural: Vila Velha de Ródão. Apesar do fluxo ser da ordem do meio milhar de pessoas em seis anos (556 indivíduos), a sua população cifrou-se apenas em 3.515 habitantes, pelo que o peso do indicador do saldo migratório na população é de 15,8%. Se se descontar o Corvo (a pequena ilha açoriana teve um saldo migratório positivo de 64 pessoas numa população de 435 habitantes), praticamente todos os municípios que registam um fluxo migratório acumulado com um peso superior a 10% da população são da região mais agrícola dos distritos de Lisboa, Leiria e Santarém, a saber: Óbidos (14,6%), Sobral de Monte Agraço (14,4%), Bombarral (13,7%), Vila de Rei (13,3%), Vila Nova da Barquinha (13,1%), Cadaval (12,8%), Salvaterra de Magos (11,8%), Pedrógão Grande (11,7%), Arruda dos Vinhos (11,6%), Lourinhã (11,3%), Alenquer (10,8%), Benavente (10,7%) e Entroncamento (10,1%). A única excepção neste lote é o município algarvio de Aljezur (10,7%), na ‘área de influência’ das explorações agrícolas da região de Odemira.

    Municípios com maior peso do saldo migratório acumulado entre 2018 e 2023 em função da população residente em 2023. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Nos concelhos com maior população, e mais urbana, esta dinâmica não se faz sentir tanto; muito pelo contrário. O primeiro município com mais de 100 mil habitantes – num total de 25 – que apresenta um maior peso do saldo migratório acumulado nos últimos seis anos face à sua população é o Porto, com 7,4%. E apenas mais cinco municípios desta dimensão apresentam valores acima da média nacional: Valongo (6,3%), Maia (5,7%), Seixal (5,5%), Leiria (5,1%) e Braga (5,0%).

    Este é, aliás, um sinal evidente de um fenómeno social inédito em Portugal: uma forte imigração nos anos mais recentes está a compensar o êxodo rural que marcou as últimas décadas, estando as regiões menos urbanizadas com maior poder relativo de atracção. Mas, do outro lado da moeda, estão os desafios de integração dos imigrantes em comunidades mais conservadoras e em regiões que, nas últimas décadas, foram sendo afectadas por desinvestimentos (e abandonos) no sector dos serviços públicos e mesmo na habitação.


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  • Nova SBE: Fundação Alfredo de Sousa ‘falsifica’ data de aprovação de relatório para não perder estatuto de utilidade pública

    Nova SBE: Fundação Alfredo de Sousa ‘falsifica’ data de aprovação de relatório para não perder estatuto de utilidade pública

    A lei determina que perdem o estatuto de utilidade pública as entidades beneficiárias que incumpram os prazos de envio dos relatórios e contas para a Presidência do Conselho de Ministros em dois anos consecutivos. Seria o caso da Fundação Alfredo de Sousa, dona dos edifícios do campus de Carcavelos da Nova SBE, que foi presidida por Miguel Pinto Luz até Março passado. Numa tentativa de ‘iludir’, a fundação fez aprovar os dois relatórios e contas no último mês, depois das revelações do PÁGINA UM, fazendo crer que os documentos foram aprovados em Abril. Só que o ‘gato’ ficou com o ‘rabo de fora’: a certificação legal das contas e o parecer do fiscal único, da responsabilidade de uma sociedade de revisores, é de 6 de Setembro, confirmando assim uma “violação reiterada”da Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública. Apesar da evidente ilegalidade, o secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, Paulo Lopes Marcelo, continua sem dizer se vai revogar o estatuto de utilidade pública de uma entidade que foi presidida até Março pelo actual ministro das Infra-estruturas.


    A Fundação Alfredo de Sousa – uma entidade com fundos públicos e privados, que gere o campus de Carcavelos da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa (Nova SBE) – terá artificiosamente antecipado a data formal de aprovação dos relatórios e contas de 2022 e de 2023 numa vã tentativa de manter o estatuto de utilidade pública. Esta entidade – que foi presidida até Março de 2024 pelo actual ministro da Infraestruturas, Miguel Pinto Luz – está em forte risco, se o Governo aplicar os normativos legais, de perder o estatuto de utilidade pública por “violação reiterada” da Lei-Quadro, uma vez que não enviou atempadamente, em dois anos consecutivos, informação relevantes sobre a sua gestão financeira.

    Recorde-se que, conforme revelou o PÁGINA UM em Agosto passado, a fundação baptizada em homenagem ao primeiro reitor da UNL tem acumulado prejuízos crónicos, que, na hora da sua entrada no Governo de Pinto Luz, se aproximavam já dos 9 milhões de euros. Acrescia a isso o atraso na aprovação das contas de 2022, que nunca ocorreu em 2023, ainda com Pinto Luz como presidente, algo que se veio a repetir com as contas do exercício do ano seguinte, que somente no passado mês terão visto a ‘luz do dia’, já depois das primeiras notícias do PÁGINA UM sobre a Fundação Alfredo de Sousa.

    Nos documentos recentemente colocados no site desta entidade, constam agora, como data da assinatura dos dois relatórios e contas – atestados com a assinatura de todos os administradores – os dias 22 e 29 de Abril deste ano, mas essas não podem ter sido, legalmente, as datas da aprovação. Por duas razões. Por um lado, há cerca de dois meses, os serviços da Nova SBE tinham enviado ao PÁGINA UM os relatórios e contas provisórios de 2022 e de 2023, uma vez que continham apenas cinco das oito assinaturas dos administradores e não integravam ainda qualquer a certificação legal de contas (CLC), também exigida às fundações de maior dimensão.

    Por outro, a CLC às demonstrações financeiras de 2022 e de 2023, bem como os dois pareceres do fiscal único, que agora já surgem no site (e que podem ser consultados aqui e aqui), têm a data de 6 de Setembro de 2024, sendo da responsabilidade da sociedade de revisores Macedo, Caldas & Bento.

    Ou seja, a Fundação Alfredo de Sousa só teve assim condições para considerar as contas aprovadas a partir dessa data. E também só depois dessa data poderia enviar os relatórios e contas para a Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros (SGPCM), mas já em clara violação dos prazos legais, suceptível de lhe ser revogado o estatuto de utilidade pública..

    Miguel Pinto Luz foi administrador da Fundação Alfredo de Sousa entre 2017 e início deste ano, tendo ocupado a presidência desde 2021.

    Com efeito, de acordo com a Lei-Quadro, para ser mantido o estatuto de utilidade pública – que, além de constituir um factor de marketing relevante, concede diversos benefícios fiscais e tarifários, bem como um regime especial ao abrigo do Código das Expropriações –, as entidades que o recebem têm de comunicar à SGPCM o relatório e contas anual e o relatório de actividades, bem como publicitar a lista dos titulares dos órgãos sociais em funções, com indicação do início e do termo dos respectivos mandatos. O prazo para comunicação obrigatória dos relatórios é de “seis meses a contar da data do encerramento desse exercício”, devendo estes também estar disponíveis ao público em geral.

    Ora, como a administração desta fundação só teve contas de 2022 e de 2023 formalmente aprovadas agora em Setembro de 2024, a aplicação da lei determina, sem apelo nem agravo, a perda do estatuto de utilidade pública. A Lei-Quadro é taxativa ao considerar que constitui fundamento susceptível de determinar a revogação “o incumprimento, em dois anos seguidos ou três interpolados, dentro do período total de validade do estatuto de utilidade pública” dos deveres, entre outros, da comunicação dos relatórios com as demonstrações financeiras e de actividades. Após a aplicação deste ‘castigo’, que teria de ser sancionado pela Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, a Fundação Alfredo de Sousa apenas poderia requerer novamente a atribuição do estatuto de utilidade pública “passados cinco anos da decisão de revogação”.

    Perante a evidente violação da Lei-Quadro, o PÁGINA UM questionou em 14 de Agosto passado o secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, Paulo Lopes Marcelo, sobre se iria diligenciar no sentido da revogação da utilidade pública da Fundação Alfredo de Sousa, apesar de esta contar como fundadores uma universidade pública (Universidade Nova de Lisboa), a autarquia de Cascais, o Banco Santander, a Jerónimo Martins e a Arica. Não se obteve qualquer reacção.

    Paulo Lopes Marcelo a cumprimentar o Presidente da República na tomada de posse: o silêncio do secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros é revelador sobre o incómodo em se aplicar uma lei que castigaria o desleixo da gestão de uma fundação presidida por Miguel Pinti Luz.

    Apesar de tudo isto, fonte oficial da Nova SBE garantiu ao PÁGINA UM que as contas foram aprovadas em Abril, e apenas houve atraso na recolha das assinaturas de alguns administradores, acrescentando que houve um parecer prévio, em Abril, do Conselho de Curadores, cujo presidente, o actual reitor da Universidade Nova de Lisboa, João Sáàgua, se demitiu em Janeiro.  

    Aliás, embora sem qualquer referência no seu site, e contrariando também a Lei-Quadro das Fundações, a cadeira da presidência da instituição que gere o campus de Carcavelos terá sido entretanto ocupada, segundo fonte oficial da Nova SBE, por Rui Diniz, um anterior vogal. Contudo, a nomeação deste economista, que é o CEO da CUF – Hospitais e Clínicas, terá sido feita de forma tão discreta que nem sequer se encontra qualquer referência na imprensa nem qualquer comunicado oficial tanto da Nova SBE como da própria fundação. O PÁGINA UM vai solicitar as actas das diversas reuniões da Fundação Alfredo de Sousa.


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  • Nada se vê da piscina de São João da Madeira, mas Souto Moura já ‘nada’ em 400 mil euros

    Nada se vê da piscina de São João da Madeira, mas Souto Moura já ‘nada’ em 400 mil euros

    Nem sequer são obras de Santa Engrácia, porque ainda nem saíram do papel, mas certo é que a nova piscina municipal de São João da Madeira arrisca ser um ‘sumidouro’ de dinheiros públicos antes de sequer ser lançada a primeira pedra. Em 2011, era então presidente da edilidade o actual ministro da Coesão Territorial, Castro de Almeida, um concurso de ideias ganho por Souto de Moura resultou num contrato de 250 mil euros para o projecto de arquitectura e de especialidade. Porém, a falta de consenso político ‘abortou’ a obra, orçada inicialmente em 4,5 milhões de euros, mas que antes de qualquer pedra lançada, em 2016, já subirá para os 5,7 milhões. Agora, liderada pelo Partido Socialista, a autarquia do distrito de Aveiro ‘ressuscitou o sonho’ e, mesmo sem garantias de financiamento nem prazo de execução, deu um novo passo: pediu alterações ao projecto a Souto Moura. São mais 150 mil euros.


    Corria ainda o ano de 2011, e Eduardo Souto Moura, que acabara de ser então galardoado com o prestigiado Prémio Pritzker de Arquitetura, tinha razões para festejar: vencera um concurso público para a concepção do projecto de arquitectura das piscinas municipais de São João da Madeira. A selecção fora feita a partir de 46 candidaturas, e o ‘prémio’ consistia num contrato de praticamente 250 mil euros, que incluía o projecto de arquitectura propriamente dito e os projectos de estabilidade e de especialidade, incluindo das componentes de segurança e energia.

    Implicando uma empreitada estimada inicialmente em 4,5 milhões de euros, a nova piscina coberta de São João da Madeira seria o quarto projecto que Eduardo Souto Moura desenvolvia para este município do distrito de Aveiro, e estava prevista a sua construção no Complexo Desportivo Paulo Pinto, substituindo o antigo equipamento em funcionamento desde os anos 80 do século passado.

    woman leaning on white concrete surface beside swimming pool during daytime

    O contrato para a execução do projecto foi assinado em Maio de 2012 por Souto de Moura e Castro Almeida, o actual ministro da Coesão Territorial, que então presidia à edilidade de São João da Madeira. No momento da apresentação do projecto, em Setembro de 2014, o custo previsto já saltara para os 5,3 milhões de euros, mas apontava-se como justificação os investimentos para poupança energética, sendo que esta seria a primeira piscina coberta da Europa com certificação internacional LEED (Leadership in Energy and Environmental Design).

    Porém, apesar de ser ter cogitado um pedido de empréstimo de cerca de dois milhões de euros ao Banco Europeu de Investimento, “não foi alcançado o consenso político necessário na Câmara Municipal, entre as diferentes forças políticas, e a realização da obra não foi aprovada”, salienta fonte da autarquia agora liderada pelo socialista Jorge Vultos Sequeira, que assumiu funções em 2017.

    E o projecto ‘ressuscitou’. Ou melhor dizendo, teve de ‘renascer das cinzas’ com uma injecção de mais 155 mil euros para Souto Moura alegadamente ‘renovar’ um projecto de arquitectura das novas piscinas que, a surgirem, ainda não têm um custo previsto de empreitada. A autarquia socialista diz ser necessário ainda, para agora avançar com a construção de piscinas que já tinham projecto definido por Souto Moura, “adequar este projeto, com data de 2012, a normas e regulamentos actualmente em vigor implementados por via de atualizações verificadas durante os últimos 12 anos, isto é, aprovadas em momento posterior à elaboração do projeto inicial”, designadamente de ordem técnica e organização funcional.

    Pormenor do plano da piscina ‘gizado’ por Souto Moura em 2012.

    No sentido de justificar a nova ‘chamada’ de Souto Moura, a autarquia aponta, aliás, para uma portaria de Dezembro do ano passado sobre requisitos técnicos e de funcionamento gerais das instalações desportivas de uso público e também de nova normas de poupança energética. E destaca mesmo, em concreto, as actualizações necessárias ao nível tanto das estruturas como das instalações hidráulicas como de sistemas de energia e de segurança.

    Contas feitas, aparentemente, nada será aproveitado do projecto de arquitectura anterior, embora no contrato de 2014 tivessem sido discriminados os custos de cada projecto de especialidade. Por exemplo, o estudo do comportamento térmico, incluindo declaração de conformidade regulamentar, ficou orçado em 5.338 euros, e a certificação LEED custou, no ‘bolo’ dos 250 mil euros recebido por Souto Moura, valeu 23.375 euros.

    Na verdade, de acordo com o contrato de 2014, as obrigações de Souto Moura já tinham ‘prescrito’ há muito. Nesse contrato, o arquitecto comprometia-se a conceder assistência técnica durante a execução da empreitada, mas ficava desobrigado dessa tarefa caso essa fase não fosse iniciada nos três anos seguintes à aprovação do projecto de execução. A opção passaria assim por um novo concurso de ideias ou por uma adjudicação por ajuste directo a Souto de Moura. A opção da autarquia socialista foi a segunda, entregando ao Prémio Pritzker mais um cheque de 155 mil euros.

    Apesar de evidenciar a existência de condições políticas para avançar com as novas piscinas – o Partido Socialista tem maioria na autarquia –, não se sabe ainda quanto custará a execução do projecto. Fonte oficial da autarquia admitiu ao PÁGINA UM que, apesar de não haver comparticipação europeia nos investimentos em infra-estruturas desportivas, o projecto é mesmo para avançar, mesmo não se sabendo o custo, que em 2016 se estimava já em 5,7 milhões de euros sem haver ainda uma pedra metida.

    Souto Moura, Prémio Pritzker de Arquitetura em 2011. Foi nesse ano que venceu o concurso de ideias para o projecto da nova piscina municipal em São João da Madeira. Treze anos depois, piscina nem vê-la, mas o arquitecto já ‘viu’ 400 mil euros pelo projecto e agora pela alteração do projecto.

    “Naturalmente, o valor da concretização de um projeto que tem cerca de 12 anos, aos preços de hoje, ser[á} mais elevado”, admite a autarquia de São João da Madeira, acrescentando que “a estimativa do novo valor será conhecida após a actualização do projeto”. Quanto à previsão para o início da empreitada”, a mesma fonte diz ser “prematuro” indicar uma data, “atendendo a todo o processo que se seguirá”, incluindo o prazo de 120 dias para Souto Moura alterar o projecto, a aprovação pelos diferentes órgãos autárquicos, a operação de financiamento, o lançamento de concurso da empreitada e o visto do Tribunal de Contas.

    Em suma, por agora, o único a ganhar com a ‘mítica’ piscina de São João da Madeira é Souto Moura, uma individualidade particularmente crítica do poder local, que soma agora 400 mil euros em dois projectos de Arquitectura. E o adágio popular diz que ‘não há duas sem três’.


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  • Um ano de horror em Gaza: o cemitério da civilização

    Um ano de horror em Gaza: o cemitério da civilização


    Em 16 de Setembro, o Ministério da Saúde palestiniano publicou um documento de 649 páginas com uma lista de todas as mortes causadas pela punição colectiva israelita de Gaza pelo massacre do Hamas em 7 de Outubro.

    A lista inclui mais de 34 mil das 41 mil vítimas de Gaza. As restantes vítimas ainda não foram identificadas. A lista não inclui as 10 mil pessoas (no mínimo) presas sob os escombros nem todas as vítimas indirectas da agressão israelita. O prazo abrangido pelo documento estende-se até 31 de Agosto. Desde então, pelo menos mais mil habitantes de Gaza foram mortos.

    Ao lado dos nomes das vítimas também estão listados o sexo, número de documento pessoal e idade. Nas primeiras 14 páginas do documento, o número na faixa ‘Idade’ é 0 Zero. São 14 páginas com o nome de crianças mortas antes de completarem o seu primeiro aniversário.

    Foto: D.R.

    No passado dia 9 de Setembro, outro ano escolar deveria ter começado em Gaza. Depois de um ano de horror indescritível, cerca de 640 mil crianças deveriam estar voltando às salas de aula. Cerca de 45 mil teriam ingressado no primeiro ciclo.

    É claro que isso não aconteceu.

    Enquanto 700 equipas das Nações Unidas (ONU) vacinavam em massa as crianças palestinianas contra a poliomielite, cujo ressurgimento em Gaza marca uma forma de eclipse social, as bombas e mísseis israelitas continuavam a chover. No dia em que as aulas deveriam ter começado, o exército israelita invadiu a escola do campo de refugiados de Nuseirat, que funcionava no âmbito do programa Agência das Nações Unidas de Assistência e Obras para a Palestina (UNRWA). Doze mil pessoas que tinham sido expulsas das suas casas encontraram refúgio lá. Vinte e cinco foram mortas no ataque; seis eram funcionários da ONU. Em pouco menos de um ano, 250 trabalhadores humanitários e 170 jornalistas foram assassinados no enclave palestiniano – mais do que em qualquer guerra até agora.

    Este ataque ao que deveria ter sido uma zona segura custou a uma mãe palestiniana todos os seus seis filhos.

    Cerca de 40% das vítimas do massacre israelita em Gaza eram crianças. Outras 20.000 crianças ficaram órfãs ou separadas dos pais. Um ano de destruição indescritível que certamente se estenderá pelas gerações vindouras.

    Foto: D.R.

    Neste momento, nenhum lugar em Gaza é seguro. De acordo com dados da ONU, 93% dos habitantes foram deslocados internamente – a maioria deles várias vezes, alguns deles até 10 vezes. Mais de 80% de Gaza foi devastada. O enclave palestiniano foi praticamente demolido, portanto, tornou-se inabitável durante anos.

    Mais de um milhão de pessoas – um pouco menos de metade da população de uma das áreas mais densamente povoadas do mundo – está a tentar sobreviver nas condições brutais no campo de Al Mawasi, na costa do Mediterrâneo. A maioria deles fugiu para lá depois que o exército israelita lançou uma ofensiva terrestre em Rafah, onde 1,3 milhão de pessoas procuraram refúgio após os primeiros meses da invasão de Israel.

    Em Al Mawasi, os refugiados exaustos, doentes e profundamente traumatizados quase não têm água, alimentos e medicamentos à sua disposição. As condições nos outros abrigos temporários entre as ruínas pós-apocalípticas são praticamente as mesmas. Apenas alguns hospitais em Gaza conseguiram continuar a funcionar. Inúmeras instalações médicas foram saqueadas; centenas de trabalhadores médicos assassinados. Durante semanas a fio, as forças israelitas sitiaram vários hospitais, incluindo o maior deles – Al Shifa.

    A situação dos residentes de Gaza agravou-se ainda mais em Maio, durante a ofensiva terrestre em Rafah, quando o exército israelita assumiu o controlo do lado palestiniano da passagem da fronteira egípcia – e pouco depois também do chamado Corredor de Filadélfia.

    Isto provocou a paralisação quase total da ajuda humanitária, cujo afluxo já tinha sido severamente dificultado pelos bloqueios israelitas. É agora claro que Israel optou por recrutar a fome em massa como mais uma arma no seu arsenal. Neste momento, mais de 70% da população de Gaza está a passar fome, totalmente dependente da ajuda externa que quase nunca chega. Isto é especialmente verdadeiro no caso do isolamento a norte de Gaza, que foi transformado num gueto faminto onde as forças israelitas atacaram comboios humanitários em diversas ocasiões.

    Já há dois meses, a reputada revista médica britânica The Lancet estimou o número total de vítimas directas e indirectas da agressão israelita em 186.000. Ou 8% de toda a população de Gaza.

    Guerras Eternas

    Pode-se perguntar: como pode ser tudo isso?

    As estruturas internacionais não estão a funcionar. As Nações Unidas foram há muito reduzidas a um fóssil vivo que presidiu a um número cada vez maior de genocídios (Ruanda, Srebrenica, Darfur, Gaza, …). O domínio geral dos membros permanentes do Conselho de Segurança, em combinação com os seus direitos de veto, representam o obstáculo final a qualquer tipo de intervenção competente. Especialmente agora, em tempos de perturbação bipolar global, cujas guerras frias estão agora a fundir-se numa guerra bastante quente.

    As decisões do Tribunal Penal Internacional (ICC) e do Tribunal Internacional de Justiça (CIJ) em Haia perderam há muito tempo quase toda a relevância. O mesmo se aplica ao direito humanitário internacional, às principais convenções internacionais e ao próprio conceito de direitos humanos, que agora parecem meros ecos de uma época passada que talvez nunca tenha realmente existido. Os tempos tornam-se mais distópicos a cada hora – e mais divididos, racistas e estratificados. Todos os contratos sociais há muito existentes estão a desmoronar-se diante dos nossos olhos. É praticamente o mesmo em todo o mundo, e certamente no Ocidente agora quase impossivelmente narcisista.

    Esta é parte da razão pela qual vivemos numa época de guerra eterna.

    Nem uma única guerra iniciada depois do 11 de Setembro de 2001 terminou realmente. No Afeganistão, em Agosto de 2021 assistiu-se ao regresso dos Taliban ao poder, após 20 anos de ocupação norte-americana. Sim, muitos dos combates podem ter acalmado, mas a guerra contra a população afegã está longe de terminar. A invasão do Iraque pela “coligação” em Março de 2003 – seguida de uma ocupação e de uma guerra civil selvagem – enviou ondas de choque por toda a região. Os ecos da guerra no Iraque tiveram um impacto terrível na guerra sem fim na Síria e nos horrores em curso no Iémen, que a chamada comunidade internacional há muito varria para debaixo do tapete.

    A guerra que eclodiu no Sudão, em Abril passado é uma das guerras mais horríveis do nosso tempo. Segundo dados da ONU, também provocou a maior crise humanitária da história… E não há fim à vista. Tal como aconteceu com os conflitos na Líbia e na República Democrática do Congo. Este último conflito dura desde 1997. Os seus primeiros seis anos custaram seis milhões de vidas.

    E depois há a guerra na Ucrânia, que traz todas as características de mais uma guerra eterna. Ao lado dos massacres diários em Gaza, é o melhor testemunho da total irresponsabilidade da comunidade internacional, que é cada vez mais liderada por psicopatas e até por assassinos em massa.                         

    a yellow car is parked on the side of the road
    Foto: D.R.

    Poucos dias depois das atrocidades do Hamas no sul de Israel, o secretário-geral da ONU, António Guterres, comentou que os ataques do Hamas “não aconteceram no vácuo“. Foi a descrição mais branda possível de 75 anos de racismo sistematizado, roubo de terras, deslocalizações forçadas, apartheid, humilhação colectiva e violência perpetrada por Israel.

    A manhã de 7 de Outubro trouxe a constatação de que o status quo se foi para sempre. E que uma resposta selvagem de Israel era inevitável. Também era certo que a comunidade internacional não conseguiria encontrar uma resposta. Parafraseando o secretário-geral: o que aconteceu depois dos ataques do Hamas também não aconteceu no vácuo.

    Tudo o que foi dito acima foi perfeitamente compreendido pelos líderes do Hamas, que optaram por ceder à sua própria impotência política e ao estado completamente depravado da política interna palestiniana para levar a sua própria nação à beira da ruína total. Após a sua tomada violenta do poder no Verão de 2007, o Hamas governou o enclave palestiniano com mão de ferro. E também, de mãos dadas com os seus co-progenitores, a elite política israelita.

    Foi a receita perfeita para um desastre total e implacável.            

    Foto: D.R.

    Durante o ano de massacres em massa em Gaza, as autoridades israelitas de extrema-direita lideradas pelo eterno primeiro-ministro Benjamin Netanyahu não conseguiram alcançar um único dos seus objectivos oficiais. Cerca de 100 reféns israelitas ainda permanecem em Gaza, embora não esteja claro quantos ainda estão vivos e quantos foram mortos pelos seus captores ou pelas bombas e mísseis israelitas.

    Esta é a principal razão por trás dos protestos em massa que ocorrem nas ruas de Tel Aviv e de outras cidades israelitas todos os fins de semana. Em 14 de Setembro, por exemplo, mais de um milhão de israelitas protestaram e exigiram a libertação imediata dos reféns. Não pela força militar, que já se revelou insuficiente, mas através da negociação de um cessar-fogo com o Hamas.

    Depois de um ano de selvageria desenfreada, o exército israelita não conseguiu derrotar o Hamas, nem no sentido militar nem no sentido político. Apesar de ter sofrido enormes baixas, a posição do Hamas na região foi significativamente reforçada. Acima de tudo, nas ruas do mundo árabe, onde ainda existe um mínimo de solidariedade para com os palestinianos… Ao contrário das elites políticas árabes corruptas, que ficaram suficientemente felizes em trair Gaza pelo que parece ser uma última vez.

    Tendo em conta o facto de o Hamas ser indiscutivelmente uma organização terrorista e de as autoridades palestinianas (AP) serem meros subcontratantes da ocupação israelita, os palestinianos não têm ninguém que os represente.

    Israel como uma ameaça a si mesmo

    Apesar de toda a carnificina, Israel ainda está inundada com enormes quantidades de armas.

    Segundo os últimos dados da Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI), a grande maioria das armas importadas por Israel entre 2019 e 2023 veio dos Estados Unidos (65,6%); 29,7% vieram da Alemanha, 4,7% de Itália. Há dois meses, Washington autorizou uma venda adicional de armas a Israel no valor de 20 mil milhões de dólares.

    De acordo com dados do SIPRI, as vendas combinadas de armas europeias a Israel no ano passado totalizaram 326,5 milhões de euros – 10 vezes mais do que em 2022. Por outro lado, o Ministério da Defesa de Israel admite livremente que Israel exportou 13 mil milhões de dólares em armas em 2023. O seu acordo de armas mais lucrativo foi com a Alemanha, que pagou a Israel 3,5 mil milhões de dólares pelas suas armas. Interceptador de mísseis antibalísticos Arrow 3 sistema.

    No Médio Oriente, tal como em qualquer outro lugar, enriquecer com a guerra é normalmente uma via de dois sentidos.

    Foto: D.R.

    Um ano de violência em Gaza e cada vez mais ao longo da Cisjordânia ocupada também enfraqueceu significativamente o próprio Israel. As suas perspectivas de segurança, sociais, económicas e políticas diminuíram enormemente. Muitos investimentos internacionais foram retirados. Em todos os 76 anos da sua história, Israel nunca esteve tão dividido internamente e insultado globalmente.

    Vale a pena afirmar que Netanyahu e os seus parceiros de coligação de extrema-direita, messiânicos e semelhantes aos Taliban começaram a conduzir o Estado judeu para o seu actual caminho totalitário ainda antes de 7 de Outubro. A sede de poder do primeiro-ministro de Israel nunca foi tão evidente quando tentou aprovar uma forma judicial que colocaria o Supremo Tribunal – o tradicionalmente mais independente e progressista entre as instituições israelitas – inteiramente sob o seu controlo.

    Atenção: a motivação de Netanyahu era mais pessoal do que política. Ainda há um julgamento em andamento sobre suas supostas práticas corruptas.

    Ao longo dos últimos anos, os extremistas governantes liderados por Netanyahu levaram a cabo uma espécie de revolução (anti)cultural em Israel. No entanto, apesar disso, e do facto de as autoridades israelitas terem sido totalmente culpadas pelo fiasco de segurança de 7 de Outubro, o controlo do poder do primeiro-ministro parece mais firme do que era há um ano. Não importa que nenhum dos seus principais objectivos políticos declarados tenha sido alcançado. E não importa que, ao espalhar o conflito ao Líbano, à Síria, ao Irão e ao Iémen, o primeiro-ministro expôs o Estado judeu a um grave risco existencial.

    Em 13 de Setembro, o jornal israelita Maariv publicou uma sondagem segundo a qual Netanyahu e o seu partido ainda ganhariam o maior número de assentos no parlamento. A mesma sondagem também evidenciou que a popularidade pessoal do primeiro-ministro aumentou desde o início da guerra. O público israelita parece considerá-lo o homem mais adequado para o cargo.

    Foto: D.R.

    Mais uma vez: como pode estar a acontecer tudo isto?

    Toda a oposição política genuína no país foi extinta. O que resta é liderado por oportunistas desavergonhados como Beni Gantz, que a Casa Branca há muito escolheu como sucessor de Netanyahu.

    O que hoje em dia passa por oposição é, portanto, cúmplice da orgia contínua de crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Palavras semelhantes poderiam ser usadas para descrever uma grande parte dos actuais manifestantes antigovernamentais. O terrível sofrimento dos palestinianos não é algo com que se sintam obrigados a preocupar-se, dado que os seus protestos são sobretudo alimentados por preocupações etnocêntricas.

    Em abril passado, o historiador Amos Goldberg, professor associado da Universidade Hebraica de Jerusalém, publicou um artigo muito significativo na revista israelita Sicha Mekommit.  Intitulado, ‘Sim, isso é genocídio‘, o artigo classificava em alto e bom som as acções israelitas em Gaza como genocídio – e depois justificava meticulosamente a afirmação.

    É claro que tal posição exige enorme coragem no Israel de hoje. Os riscos estão longe de ser negligenciáveis.

    Prevalece na sociedade israelita uma atmosfera radical de desumanização dos palestinianos de um nível tal de que não me consigo lembrar nos meus 58 anos de vida aqui.” Goldberg declarou recentemente numa entrevista.

    Goldberg também relatou que a princípio hesitou muito em usar a palavra genocídio e tentou fazer tudo o que pôde para se convencer do contrário. “Ninguém quer ver-se como parte de uma sociedade genocida. Mas havia uma intenção explícita, um padrão sistemático e um resultado genocida – então, cheguei à conclusão de que é exatamente assim que o genocídio se parece”, diz Goldberg.

    Uma vez que você chega a essa conclusão, você não pode ficar em silêncio“, disse o historiador israelita de forma clara.

    Portanto, cabe aos corajosos historiadores locais continuarem dizendo a verdade. Mas quem fornecerá os dados para futuros bravos historiadores? Os jornalistas estrangeiros continuam impedidos de entrar em Gaza e os jornalistas nacionais estão a ser mortos propositadamente pelo exército israelita.


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  • “Culpado de fazer jornalismo”: Conselho da Europa diz que Assange foi um preso político

    “Culpado de fazer jornalismo”: Conselho da Europa diz que Assange foi um preso político

    A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa considerou que Julian Assange, jornalista e fundador da WikiLeaks, foi um preso político no Reino Unido. Após uma audiência a Assange, esta semana, a instituição apelou aos Estados Unidos para que alterem a Lei de Espionagem e pediu ao país para que não a volte a usar contra jornalistas. A audiência, que teve lugar em Estrasburgo, marcou a primeira declaração pública de viva voz por parte do jornalista australiano. Na sua declaração numa sessão plenária do Conselho da Europa, Assange declarou que apenas está em liberdade porque aceitou dar-se como “culpado de fazer jornalismo”.


    A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europeu (APCE) considerou que Julian Assange, jornalista e fundador da WikiLeaks, foi um preso político quando esteve detido no Reino Unido, na sequência de uma acusação dos Estados Unidos.

    A instituição condenou o encarceramento de Assange e pediu aos Estados Unidos para alterarem a Lei de Espionagem de 2017 e também apelou que não a mesma não seja de novo usada contra jornalistas.

    O jornalista e fundador da WikiLeaks esteve ontem presente numa sessão plenária do Conselho Europeu, junto com a sua mulher, Stella Assange, e o editor-chefe da WikiLeaks, Kristinn Hrafnsson. Na sua declaração proferida perante a audiência, Julian Assange afirmou: “estou livre hoje, após anos de encarceramento, porque porque me declarei culpado de fazer jornalismo”.

    Stella e Julian Assange na sessão plenária da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa. Foto: D.R./Wikileaks

    O Conselho da Europa, com sede em Estrasburgo, França, foi criado em 1949 e é uma instituição que actua na defesa dos direitos humanos, da democracia e do Estado de Direito no continente europeu. A Assembleia reúne membros de 46 nações que integram o Conselho Europeu e já antes tinha condenado a detenção de Assange e tinha alertado para o grave precedente que a sua prisão criou.

    A APCE aprovou uma resolução sobre “A detenção e condenação de Julian Assange e os seus efeitos arrepiantes nos direitos humanos” com 88 votos a favor, 13 contra e 20 abstenções.

    Na resolução, a Assembleia Parlamentar mostrou uma profunda preocupação em relação “ao tratamento duro e desproporcional” que Assange enfrentou e considerou que criou “um efeito perigoso e arrepiante” que ameaça a protecção de jornalistas e denunciantes em todo o Mundo.

    Julian Assange à saída do tribunal em Saipã, nas Ilhas Marianas do Norte (território dos Estados Unidos), já como um homem livre. (Fonte: D.R.)

    Assange foi finalmente libertado, no passado mês de Junho, depois de ter aceitado um acordo com a Justiça norte-americana. Para sair em liberdade, o jornalista declarou ser culpado do crime de conspiração para fazer espionagem por publicar provas de crimes de guerra e abusos de direitos humanos por parte dos Estados Unidos e irregularidades cometidas pelos Estados Unidos em todo o Mundo.

    Foi o fim de 14 anos de perseguição, que incluíram o encarceramento de Assange em condições duras numa prisão de alta segurança no Reino Unido. Assange regressou entretanto ao seu país Natal, a Austrália, onde reside actualmente com a mulher e os dois filhos do casal.

    Numa entrevista ao PÁGINA UM, em Março deste ano, Stella Assange afirmou que já tinha alertado que o caso do seu marido era apenas um dos sinais alarmantes da crescente tendência de se querer eliminar a liberdade de imprensa e censurar.

    De resto, na Europa tem vindo a ser implementada legislação, como a nova directiva para os media e a directiva sobre serviços digitais, que tem merecido críticas por abrir a porta ao amordaçar de jornalistas e agrilhoar da liberdade de expressão. [Sobre este temas pode ler mais AQUI AQUI].

    Além disso, recentemente a Comissão Europeia tentou que fosse aprovada legislação para eliminar a privacidade e a encriptação de mensagens, ferramentas essenciais para o jornalismo e protecção de denunciantes.

    Nota: Pode ler AQUI o testemunho completo de Julian Assange perante a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa.


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