Não há muitos motivos para sorrir. O fluxo para todo o tipo de urgências hospitalares no Serviço Nacional de Saúde registou no mês de Agosto um crescimento de quase 20% face ao triénio anterior, que resultaram em mais quatro mil internamentos. Mas os casos mais graves, com pulseiras vermelha e laranja, contabilizaram valores ainda superiores (29%), que demonstram que os portugueses não andam bem de saúde. E alguns não recuperarão jamais. O último mês foi o segundo mais letal desde os anos 50, ultrapassado apenas por 2003. Mas agora não houve ondas de calor. Ministério da Saúde não comenta.
De forma inexplicável, o passado mês de Agosto foi o segundo mais mortífero desde 1951, de acordo com uma análise do PÁGINA UM aos dados do Instituto Nacional de Estatística, enquanto as urgências hospitalares contabilizaram crescimentos inesperados em comparação com os períodos homólogos anteriores. O Ministério da Saúde não comenta estes dados.
Apesar de ausência de ondas de calor em Portugal durante o mês passado – o fenómeno que ocorreu em vários países europeus neste Verão não atingiu território nacional –, os números de óbitos estiveram sempre acima do que seria expectável, tendo-se contabilizado, no total dos 31 dias de Agosto, 9.574 mortes. Para este mês, o valor mais elevado apenas se encontra em 2003 que, no decurso de uma onda de calor de mais de duas semanas, deixou um saldo total de 10.111 óbitos.
Ministro da Saúde, Manuel Pizarro, foi dar sangue no dia 1 de Agosto, mas não explica motivos de acréscimo de mortes e do fluxo de urgência hospitalar durante esse mês.
Consultando os dados do INE desde 1951, e compilando os últimos registos diários do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), o Agosto de 2023 é o segundo pior, embora o terceiro consecutivo acima dos 9.000 óbitos: em 2021 contabilizaram-se 9.227 mortes e no ano passado 9.309 mortes. Saliente-se que antes de 1951 registaram-se alguns meses de Agosto mais mortíferos, mas nessa época a mortalidade no Verão estava sobretudo associado a doenças associadas à falta de higiene e problemas de saneamento que proliferavam com o aumento da temperatura na época de estio.
A evolução da mortalidade diária neste último Agosto confirma também que não foram as temperaturas elevadas a causa da mortalidade elevada, até porque, em abono da verdade, o Verão é a época do ano menos letal em Portugal.
Consultando os registos diários do Índice Icaro apenas se registaram, ao longo do último mês de Agosto, seis dias com valores acima de 0,2 e nenhum superior a 1, o que contrasta, por exemplo, com os nove dias acima de 0,2 que se contabilizaram no ano passado. Além disso, no mês passado houve dias com mortalidade superior a 300 óbitos mesmo quando o Índice Icaro estava a zero, o que é uma situação anómala.
Evolução da mortalidade total em Portugal no mês de Agosto desde 1951. Fonte: INE e SICO.
Aliás, a persistência de dias com óbitos acima de 300 foi a marca de Agosto passado, com 21 dias. No ano passado houve 15, em 2021 contabilizaram-se 14 e em 2020 contaram-se 11. Nos anos anteriores à pandemia, os registos do SICO mostram que eram bastante raros os dias que ultrapassavam os 300 óbitos: entre 2014 e 2019, o máximo foi de seis dias, e 2014 e 2015 nem sequer tiveram um.
O PÁGINA UM tentou saber, junto do Ministério da Saúde, se existe já alguma explicação para esta situação perfeitamente anómala, sendo certo que não existem evidências de estar a ocorrer um aumento da letalidade causada pelas novas variantes da covid-19. O site do OurWorldinData aponta para um registo de 44 óbitos para Portugal no mês de Agosto até ao dia 30.
Em todo o caso, apesar da habitual ausência de respostas do Ministério de Manuel Pizarro às perguntas do PÁGINA UM – que inclui nada dizer sobre o alegado estudo sobre o excesso de mortalidade nos anos da pandemia –, observou-se um significativo aumento da actividade hospitalar ao longo do mais recente mês.
De acordo com os registos da Monitorização Diária dos Serviços de Urgência, em Agosto de 2023 os hospitais do Serviço Nacional de Saúde tiveram 561.189 episódios de urgência, dos quais resultaram 40.498 internamentos. Este fluxo representa um aumento de 19% no número de atendimentos de urgência e uma subida de 12% nos internamentos.
Evolução do fluxo de episódios nas urgências hospitalares em Agosto no período entre 2020 e 2023. Fonte: ACSS. Análise: PÁGINA UM.
Mas a evolução ainda se mostra mais gravosa analisando a tipologia dos episódios através da triagem de Manchester. No recente mês de Agosto, registaram-se 1.717 episódios de pulseira vermelha (emergência) e 51.141 de pulseira laranja (muito urgente), um crescimento de 14% e 12%, respectivamente, face ao ano passado.
Se se comparar com o triénio 2020-2022, o crescimento de casos de emergência cresceu 27% e os de muita urgência quase 29%.
Saliente-se que, de acordo com o protocolo da triagem de Manchester, os casos emergentes (pulseira vermelha), com perigo de vida imediato, requerem uma intervenção imediata, estando associado, em grande parte dos casos, a acidentes ou situações agudas, como ataques cardíacos ou acidentes vasculares cerebrais. Os casos de muita urgência (pulseira laranja) – cuja evolução já constitui um indicador do estado de saúde de uma comunidade, até pelo número mais elevado face aos casos emergentes – requerem um tempo de atendimento nas urgências hospitalares preferencialmente inferior a 10 minutos.
Evolução do número de internamentos após atendimento nas urgências e número agregado de casos emergentes e muito urgentes em Agosto no período entre 2020 e 2023. Fonte: ACSS. Análise: PÁGINA UM.
Não se mostra agora possível comparar o fluxo das urgências hospitalares com o período anterior à pandemia, por uma razão simples, mas reveladora da cultura de obscurantismo do Ministério da Saúde: os dados anteriores a 2020 foram simplesmente retirados do sistema de monitorização.
O PÁGINA UM vai solicitar à Administração Central do Sistema de Saúde a reposição da informação anterior à pandemia, que continha dados desde Novembro de 2017, e se tal não for satisfeito recorrerá ao Tribunal Administrativo para a obtenção dos dados entretanto “apagados de consulta pública.
Quase não se dão por elas, por serem apenas três em cada 1.000 mortes contabilizadas em Portugal. Poucas centenas em cada ano. Em todo o país eram menos de um óbito por dia; mas agora, de repente, já é um pouco mais de um por dia, e analisando em detalhe verifica-se que nos últimos dois anos o incremento da mortalidade nos adolescentes e jovens adultos, com idades entre os 15 e os 24 anos, aumentou 22% face ao período pré-pandemia. O forte aumento coincidiu com o início do programa de vacinação contra o SARS-CoV-2, a partir do quatro trimestre de 2021. Mas esse é tema tabu. O PÁGINA UM até já tinha, há cerca de um ano, detectado uma tendência preocupante. Daí para cá, só piorou.
Há um problema persistente e já indisfarçável, excepto se o “sangue jovem” for já indiferente para os lados da Avenida João Crisóstomo, sede do Ministério da Saúde: a mortalidade total na faixa etária dos 15 aos 24 anos está anormalmente elevada desde o início de 2022. A situação nem sequer se pode já considerar surpreendente, porque em Setembro do ano passado o PÁGINA UM já detectara uma preocupante tendência crescente na mortalidade dos adolescentes e jovens adultos desde Outubro de 2021.
Mas desde Setembro, esta situação só piorou. E piorou duplamente, porque há um manto de silêncio político e mediático sobre estas mortes há largos meses, enquanto os media mainstream apenas se entretêm quando há show off, como a trágica (e desumana) morte de um idoso de 93 anos que, quando nasceu em 1930 tinha então uma probabilidade de viver só até aos 50 anos, ou seja, menos 43 anos do que aqueles que acabou vivendo. Os jovens que estão a perder a vida em circunstâncias não apuradas (porque aparentemente não interessa saber as causas) nem sequer terão a chance de contribuir para que, dentro de décadas, não se continue a deixar morrer nenhum idoso sozinho numa maca de hospital…
Em Setembro do ano passado, numa análise do PÁGINA UM aos dados do Sistema de Informação do Certificados de Óbito (SICO) já se constatara que em todo o mês de Agosto de 2022 tinham sido contabilizados 45 óbitos, um máximo desde 2014 – ano em que se começou a recolher estes dados com detalhe etário e mensal – para os jovens daquele intervalo de idades. Mais do que um recorde fortuito, enquadrava-se numa tendência crescente.
Considerando a evolução da média da mortalidade anual – ou seja, o somatório dos óbitos dos 12 meses anteriores –, o mês de Agosto do ano passado mostrava estar num pico (com 360 óbitos), que contrastava com 304 óbitos no mesmo período de 2021. E o PÁGINA UM já anunciava não haver sinais de abrandamento.
E o pior cenário confirmou-se. Uma nova análise do PÁGINA UM aos dados do SICO mostram que, para a faixa etária dos 15 aos 24 anos, o crescimento da mortalidade anual – calculada em função dos 365 dias anteriores – só inverteu ligeiramente na segunda semana de Novembro do ano passado, depois de se estabelecer um novo máximo nos 377 óbitos. Isto significa que morriam então 103 jovens deste grupo etário em cada 100 dias, quando antes da pandemia, e mesmo antes do início da vacinação contra a covid-19, o rácio era de 87 mortes por cada 100 dias. Significa que, extrapolando para 365 dias, havia um acréscimo inexplicável e inesperado de quase 60 mortes por ano de adolescentes e jovens adultos.
Evolução da mortalidade acumulada nos últimos 365 dias para o grupo etário dos 15 aos 24 anos em cada dia desde Janeiro de 2015. Nota: para suavizar pequenas variações diárias procedeu-se ainda, para cada dia, ao cálculo da média móvel a 30 dias. Fonte: SICO / DGS. Análise: PÁGINA UM.
No início de Janeiro deste ano ainda se chegou a observar uma ligeira retracção dos níveis de mortalidade deste grupo juvenil, mas este nunca ficou abaixo dos 360 óbitos (nos últimos 365 dias). E a partir daí encetou-se nova subida que atingiu os 375 óbitos (nos últimos 365 dias) em 21 de Julho. Anteontem, dia 23 de Agosto, este nível de mortalidade situava-se nos 371 óbitos – ou seja, desde 24 de Agosto de 2022 foi esse o número total de mortes em Portugal de jovens entre os 15 e os 24 anos.
Comparando com períodos homólogos durante a pandemia, entre 24 de Agosto de 2021 e 23 de Agosto tinham morrido 360 jovens desta faixa etária – menos 11 óbitos. No período homólogo de 2020 a 2021 apenas 295 – menos 76 óbitos. No período homólogo de 2019 a 2020 registaram-se 338 – menos 33 óbitos. Este último valor, mais elevado do que o contabilizado no ano seguinte, não terá sido devido à covid-19, uma vez que no primeiro ano da pandemia apenas se registou um óbito por esta doença nesta faixa etária.
Nos períodos de Agosto a Agosto dos anos anteriores à pandemia, as diferenças face ao período homólogo de 2022-2023 nos níveis de mortalidade na faixa etária dos 15 e os 24 anos situaram-se entre menos 36 e menos 74 óbitos.
Em Setembro do ano passado, tendo feito uma análise similar, detectando já sinais evidentes de agravamento da mortalidade entre adolescentes e jovens entre os 15 e 24 anos, a situação só piorou.
Para confirmar que este acréscimo de mortalidade nesta faixa etária não é conjuntural, e aparenta ser já estrutural – e é pelo menos coincidente com o início do período de vacinação contra a covid-19 nos jovens –, diga-se que nenhum outro grupo etário apresenta similar cenário.
De acordo com outra análise do PÁGINA UM, para o período de 1 de Janeiro a 23 de Agosto (ou 22 de Agosto nos anos bissextos) desde 2014, é certo que o grupo dos maiores de 85 anos tem sido o mais “fustigado”, mas estamos perante uma faixa etária que está já fora da esperança média de vida, ou seja, com taxas de mortalidade bastante elevadas (acima dos 15% ao ano).
Mesmo assim, comparando, para este período do ano, a mortalidade no quadriénio 2020-2023, observa-se que os mais idosos registaram um acréscimo de mortalidade de 16% face ao quadriénio 2016-2019, com o pior ano a ser o de 2022. Porém, no ano em curso, apesar da mortalidade ainda estar bem acima de qualquer ano pré-pandemia, o número de óbitos está abaixo do registado em 2022 e 2021. Além disso, convém salientar que este grupo etário tem estado a aumentar nas últimas décadas, sendo daí que também se justifica um aumento do número absoluto de óbitos.
Ora, mas tal não se verifica no grupo etário dos 15 aos 24 anos, que até revela uma ligeira diminuição populacional em termos absolutos face à gradual diminuição da natalidade nas duas últimas décadas. Nestes casos, um aumento no número de óbitos em determinado período significa automaticamente uma subida da taxa de mortalidade.
Assim, no período de 1 de Janeiro a 23 de Agosto, se se comparar o quadriénio 2020-2023 com o quadriénio 2016-2019, constata-se um agravamento de 15,3% da mortalidade neste grupo de jovens. Contudo, a situação ainda se agrava mais se se comparar o biénio 2022-2023 (média de 243 óbitos) com o período de 2014-2021 (média de 202 óbitos), revelando-se um aumento da taxa de mortalidade de 20,3%. E se se considerar apenas o quinquénio anterior à pandemia (2015-2019), a taxa de mortalidade aumenta 22%.
A dimensão deste flagelo nos jovens entre os 15 e os 24 anos – que passa despercebido num país que se habitua a ter mais de 300 óbitos, na sua esmagadora maioria de pessoas bastante idosas – não encontra paralelo nas faixas etárias antecedentes e subsequentes.
A análise do PÁGINA UM aos dados do SICO desde 2014 para o período entre 1 de Janeiro e 23 de Agosto (ou 22 de Agosto, nos anos bissextos) mostra que, confrontando o quadriénio 2020-2023 (que engloba os anos da pandemia) com o quadriénio anterior (2016-2019), a taxa de mortalidade infantil até apresentou uma melhoria substancial (-23,3%), confirmando aliás a boa evolução deste indicador já salientada em notícia de Maio passado. Isto mesmo se 2022 e 2023 apresentam números mais elevados do que 2021, que foi ano atípico (no bom sentido).
Ministério da Saúde anda desde Agosto de 2022 a dizer que estuda as causas do excesso de mortalidade, mas Manuel Pizarro até já culpou as alterações climáticas.
No grupo dos 1 aos 4 anos, a redução é de 2,5%, embora os valores de 2022 e 2023 sejam mais elevados do que os dois primeiros anos da pandemia (2020 e 2021). Em todo o caso, este é, por norma, um grupo etário de baixíssima taxa de mortalidade, pelo que se pode concluir que a última década tem sido marcada pela estabilidade. O mesmo se pode dizer para o grupo dos 5 aos 14 anos, em que a variação entre os dois quadriénios é praticamente nula.
Como a variação entre quadriénios no grupo etário dos 25 aos 34 anos também se mostra baixa (apenas 2,4%), sendo que os números de óbitos em 2022 e até de 2023 são superados por outros anos do período 2014-2019, mais se destaca assim, pela negativa, a situação da mortalidade dos adolescentes e jovens adultos dos 15 aos 24 anos.
E ainda mais se se juntar, na comparação, o grupo etário dos 35 aos 44 anos, que claramente foi um grupo pouco ou nada afectado pela pandemia, quer pela covid-19, quer pela desregulação do Serviço Nacional de Saúde, quer mesmo por hipotéticos efeitos adversos das vacinas contra o SARS-CoV-2. Com efeito, sendo certo que nos anos anteriores à pandemia, entre 1 de Janeiro e 23 de Agosto, se contabilizam, neste grupo etário, mais de um milhar de óbitos, a partir de 2021 os valores passam a estar abaixo dessa fasquia. Os números deste ano (864 óbitos) são mesmo os mais baixos desde 2014.
Número de óbitos por grupo etário e ano desde 2014 no período de 1 de Janeiro a 23 de Agosto (ou 22 de Agosto, em anos bissextos). Fonte: SICO /DGS. Análise: PÁGINA UM.
Nos grupos imediatamente subsequentes, apesar de o quadriénio 2020-2023 apresentar valores acima do quadriénio anterior à pandemia (2016-2019), os dois últimos anos mostram uma tendência de regresso à normalidade. Nos diversos grupos etários entre os 55 e os 84 anos verifica-se mesmo uma contínua descida ano após ano, desde 2021, o pico da pandemia. Os valores de mortalidade do grupo etário dos 75 aos 84 anos desde o início do ano em curso (20.534 óbitos) até já se situa abaixo da generalidade dos anos entre 2014 e 2022.
Este cenário geral, contudo, só agrava, por isso, a situação dos adolescentes e jovens dos 15 aos 24 anos. Mesmo se, no total, representam apenas 0,3% do total dos óbitos. Mas a morte dos jovens não são apenas mortes: são vidas que deixaram de ser vividas. E isso custa mais…
Entretanto, recordemo-nos que em Agosto de 2022, o Ministério da Saúde anunciou um estudo para analisar e detectar as causas para o excesso de mortalidade. Ainda não deu “sinais de vida”, apesar de o ministro Manuel Pizarro se ter antecipadao e culpado jáas alterações climáticas. Enquanto isto, o PÁGINA UM ainda aguarda os resultados de um recurso junto do Tribunal Central Administrativo Sul, através do seu FUNDO JURÍDICO, para aceder aos dados discriminados do SICO que, em poucos dias de análise, permitiria apurar as principais doenças ou afecções responsáveis por esses excessos.
Apresentado de forma discreta em Washington na Primavera deste ano, o doutoramento de André Peralta Santos – que está a ter uma meteórica ascensão para a cúpula da Direcção-Geral da Saúde, ocupando neste momento o posto que era de Graça Freitas, de forma interina, enquanto decorre um concurso onde é o principal favorito – mostra que, durante a pandemia da covid-19, os lockdowns foram desastrosos para os doentes com outras patologias. Apesar de uma redução nos internamentos, que até poderia beneficiar os doentes pela menor pressão sobre as equipas hospitalares, na verdade a taxa de letalidade aumentou significativamente, chegando a duplicar em doentes com outras infecções respiratórias ou problemas digestivos. Embora muito parca em interpretações, a tese de Peralta Santos, de apenas 116 páginas, revela também que, afinal, metade dos óbitos atribuídos à covid-19 terão ocorrido fora dos hospitais, algo estranho para uma doença que, em condições graves, necessita sempre de medicação e assistência hospitalar.
A tese de doutoramento de André Peralta Santos, o actual director-general interino da Saúde, apresentada em Abril passado na Universidade de Washington mostra um cenário desastroso para os doentes não-covid tratados em hospitais públicos durante os dois lockdowns impostos pelo Governo no segundo trimestre de 2020 e nos primeiros quatro meses de 2021.
Apesar de se ter conseguido o efeito de aliviar o fluxo de doentes, supostamente para direccionar meios para tratar doentes com covid-19, a taxa de mortalidade aumentou significativamente para as outras patologias, sobretudo no lockdown entre Janeiro e Abril de 2021.
Com base em dados do Ministério da Saúde, Peralta Santos – que ocupara o cargo de director dos Serviços de Informação e Análise da Direcção-Geral da Saúde (DGS) entre Setembro de 2020 e Outubro de 2021, antes de sair para concluir o doutoramento nos Estados Unidos – analisou mais de 2,5 milhões de episódios de internamentos clínicos em 41 hospitais do SNS desde 2018. E comparou as hospitalizações e a taxa de mortalidade hospitalar no período anterior à pandemia com o primeiro lockdown (Março a Maio de 2020), o segundo lockdown (Janeiro a Abril de 2021) e o período entres essas duas restrições.
O objectivo neste capítulo – um dos quatro que compõe a tese de apenas 116 páginas, incluindo bibliografia e introduções – era perceber o impacte resultante da prioridade concedida aos doentes com covid-19 em detrimento do tratamento de doentes com outras patologias.
Recorde-se que, no ano passado, o PÁGINA UM já detectara, com base nos dados do Portal da Transparência do SNS, que a pandemia trouxera um “pandemónio” aos hospitais, com aumentos generalizados das taxas de mortalidade hospitalar, mesmo nas alas não-covid, isto apesar da redução significativa nos internamentos. Em Maio do ano passado, o PÁGINA UM também constatara que durante 2020 e 2021 – os dois primeiros anos da pandemia – tinham sido contabilizados quase menos 280 mil pessoas internadas do que nos dois anos anteriores (2018 e 2019), e mesmo considerando que a covid-19, que só surgiu no final do primeiro trimestre de 2020, contribuiu com 57.227 internados entre Fevereiro de 2020 e Dezembro de 2021.
André Peralta-Santos, actual director-geral interino da Saúde.
A análise de André Peralta Santos, embora parca em considerações, chega às mesmas conclusões já alcançadas pelo PÁGINA UM – mas nunca assumidas pela DGS nem pelo Governo –, salientando que, “no geral, o número médio de episódios de internamento por mês diminuiu durante o lockdown de Março a Maio de 2020, o que foi consistente em todos os grupos etários, sexos e condições” das diversas patologias da CID-10 [10ª revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde], ocorrendo o mesmo entre Janeiro e Abril de 2021. Entre os dois lockdowns, Peralta Santos concluiu que o efeito não foi tão relevante.
Apesar de supostamente mais aliviados, os serviços hospitalares não-covid tiveram, contudo, um desempenho desastroso. Embora sem adjectivar esse impacte, Peralta Santos conclui que ajustando a análise por grupo etário, sexo e diagnóstico (por grupo de doenças), os cuidados hospitalares diminuíram em 22% devido ao efeito imediato do primeiro lockdown, e em 35% durante o segundo lockdown, mas a taxa de letalidade nos doentes não-covid subiu 17% no primeiro lockdown, 15% durante o período entre os dois lockdowns, e aumentou espantosamente 62% durante o segundo lockdown.
Ainda de acordo com as análises de Peralta Santos – o candidato mais bem posicionado para suceder, em definitivo, na liderança da DGS –, “durante o primeiro lockdown, o aumento na taxa de letalidade hospitalar (CFR) foi maior entre os pacientes internados por condições do sistema digestivo”, com um aumento de 55%, e por “doenças do sistema circulatório”, com um aumento de 21%.
Tese de doutoramento está registada desde Abril deste ano na Universidade de Washington
O desempenho hospitalar ainda foi pior durante o segundo lockdown, nos primeiros quatro meses de 2021. Peralta Santos aponta que, neste período, o crescimento da letalidade hospitalar (não-covid) chegou aos 48% “para pacientes com doenças circulatórias, aumento[u] 97% para pacientes internados com condições respiratórias, [registou um] aumento de 99% para pacientes internados com condições digestivas, [contabilizou um] aumento de 77% para pacientes internados com condições geniturinárias, [apresentou um] aumento de 252% para pacientes internados com doenças musculoesqueléticas e [teve ainda um] aumento de 50% para pacientes internados com outras doenças infecciosas.”
Numa análise estratificada por idades, Peralta Santos também identificou – embora tenha sido, estranhamente, parco em interpretações ou comentários – substanciais aumentos de letalidade a partir dos 25 anos em doentes não-covid internados em hospitais sobretudo durante o segundo lockdown. No caso do grupo etário dos 25 aos 44 anos, a taxa de letalidade aumentou 80% entre Janeiro e Abril de 2021, registando uma subida de 56% na faixa etária dos 45 aos 64 anos, e de 61% para os maiores de 65 anos.
Ao invés de procurar encontrar hipóteses para este agravamento da mortalidade hospitalar nas alas não-covid, o actual director-geral interino da DGS apenas apresentou, na sua tese, hipóteses puramente especulativas sem se basear em dados. Para Peralta Santos, a letalidade terá aumentado, sobretudo no segundo lockdown, não por via de um défice nos cuidados primários ao longo do primeiro ano da pandemia (que foi evidente, por força da suspensão de consultas e diagnósticos), mas porque “apenas os pacientes não relacionados à covid-19 mais graves foram admitidos em hospitais” ou porque “houve um deslocamento do local de morte do hospital para instalações de cuidados de longo prazo e residências.”
Para confirmar estas hipóteses – que carecem de qualquer sustentação de dados na tese de doutoramento – mostrar-se-ia necessária uma análise subsequente às comorbilidades dos internados nas alas não-covid e uma análise à mortalidade total (e fora de meio hospitalar), que como se sabe também aumentou consideravelmente até finais de 2022. Peralta Santos não fez nenhuma destas análises na sua tese.
Além de tudo isto, um dos dados mais desconcertantes desta tese de doutoramento de André Peralta Santos acaba também por ser a admissão de que os óbitos atribuídos à covid-19 pelas autoridades de saúde portuguesas terão sido fortemente inflacionados.
De acordo com um diagrama inserido na página 60 da sua tese, o director-geral da Saúde aponta para a contabilização de 11.170 óbitos por covid-19 em meio hospitalar até Abril de 2022, embora os dados oficiais registassem um número de mortes acima dos 22.300.
Aposta integral na covid-19 teve consequências dramáticas nas outras doenças, apesar do Governo nunca ter desejado aprofundar a investigação sobre esses efeitos, designadamente no excesso de mortalidade total.
Para uma doença que causa, em casos fatais, grave insuficiência respiratória e necessidades de medicação e cuidados médicos, algo não bate certo quando os dados do doutoramento do próprio director-geral da Saúde assume que metade dos óbitos por covid-19 sucederam em casa ou em lares sem assistência médica condigna.
O PÁGINA UM tentou obter comentários e explicações de André Peralta Santos sobre a sua própria tese de doutoramento – que se encontra disponível apenas no site da Universidade de Washington. Porém, o director-geral da Saúde – que nunca fez menção pública sequer ao tema da sua tese – nem sequer reagiu. Peralta Santos apresenta-se, na rede social X, como “médico e cientista”. Aparentemente, não aprecia dar explicações sobre os seus trabalhos científicos.
No filme “Apollo 13”, lançado em 1995, ficou célebre a frase “Houston, we have a problem”. Em 2023, ninguém – leia-se, políticos, autoridades de saúde, certos investigadores e imprensa mainstream – quer ouvir frases preocupantes, e prefere-se apagar o rádio. As mortes súbitas associadas às vacinas contra a covid-19 não serão certamente tão frequentes como apontou há dois anos o documentário Died Suddenly, mas não são zero. Nem meia dúzia. O PÁGINA UM foi vasculhar a (intencionalmente desorganizada e pouco detalhada) base de dados da Agência Europeia do Medicamento, a EudraVigilance, e descobriu números preocupantes quando escreveu “Sudden death”. E que merecem investigação, e não obtusas atitudes de avestruz, porque a Ciência não é negar os riscos; é avaliar e quantificar riscos. Sejam estes pequenos ou grandes.
Nos meios científicos, o debate cada vez está mais intenso. E felizmente agora começa a haver mais abertura de revistas científicas para publicar artigos que não “endeusam” apenas as vacinas. Por exemplo, os quatro editores japoneses da revista científica Vaccines apelaram para o envio até ao final deste mês de artigos para a publicação numa edição especial dedicada à tolerância imunológica e doenças autoimunes após a vacinação contra a covid-19 e seus efeitos adversos relacionados.
No convite, estes editores, três dos quais do Centro Médico Ohashi da Universidade de Toho (Tóquio), destacam que “as vacinas têm sido usadas para combater a pandemia global de COVID-19, mas as reações adversas pós-vacinação aumentaram proporcionalmente”. E apontam que as “causas plausíveis de reações pós-vacinação incluem a libertação de citocinas inflamatórias, a regulação negativa de ACE2, dano vascular induzido pela proteína spike e autoimunidade”, concluindo que agora “existe uma preocupação particular de que as doenças autoimunes possam aumentar no futuro devido a essas características”. E acrescentam ainda que “várias doenças autoimunes pós-vacinação foram relatadas, incluindo alopecia areata, distúrbio do espectro da neuromielite óptica, trombocitopenia imune e artrite reumatoide.”
Mas falar de mortes associadas às vacinas contra a covid-19 – e sobretudo de mortes súbitas – continua a ser um dos grandes temas tabu para políticos e sobretudo para a comunicação social que apelou incessantemente para a vacinação desde finais de 2020, e que apelou mesmo para a discriminação das pessoas que optassem por não se vacinar – mesmo se alegassem imunidade natural.
E, no entanto, tudo isto remete para o dito castelhano: “Aquí no hay brujas, pero que las hay, las hay“. Teóricos da conspiração dirão que houve aos milhares – e a cada pontada de coração ou morte repentina de um jovem, a vacina contra a covid-19 logo é apontada como suspeita. Mas se esse é, por certo, um extremo, não menos extremista é a postura das autoridades de saúde, a começar pela portuguesa, ao ignorar esse risco, como se não existisse, como se fosse zero.
Num perturbante e desafiador editorial da edição deste Verão do Journal of American Physicians and Surgeons, a médica Jane M. Orient coloca o dedo na ferida ao criticar a fraca aposta da comunidade científica em desvendar a efectiva segurança das vacinas e sobretudo em estudar em detalhe as eventuais suspeitas de mortes súbitas associadas à vacina contra a covid-19 – que há dois anos foram catapultadas através de um polémico documentário, logo classificado como associado a teorias da conspiração, intitulado Died Suddenly.
Investigar as reacções adversas e até as mortes súbitas associadas à vacina da covid-19 já não é um tabu completo, mas ainda há muita informação a desvendar para se avaliar qual o nível de risco para uma gestão prudente.
Sendo certo que aquele documentário tinha falhas e alguma falta de sustentação cientifica, Jane Orient salienta que, no lado oposto, existe pouca fundamentação para estarmos seguros de que não existem quaisquer problemas. Numa busca no banco de dados PubMed da Biblioteca Nacional de Medicina realizada por esta médica em 17 de abril deste ano, apenas surgiram 20 artigos científicos mencionando a morte súbita e a vacinação contra a covid-19, mas “uma revisão adicional das publicações listadas mostrou que desse conjunto muito pequeno, apenas alguns artigos foram realmente dedicados à descrição de casos de morte súbita após vacinação, ou à discussão dos mecanismos supostos que poderiam vincular a vacinação à morte súbita”.
Destacando um fenómeno que ainda é mais marcante nos Estados Unidos, Orient refere que as agências governamentais norte-americanas, como a FDA e a CDC, ao invés de investigarem as correlações (que diz serem impressionantes) entre a vacinação contra a covid-19 e as mortes súbitas estão e estiveram sobretudo apostadas a “incentivar os ‘verificadores de factos’ da ala esquerda a repreender o público por ‘ceder a medos irracionais’ enquanto não faziam nada para dissipar de maneira crível esses medos”, acrescentando que “os sites de notícias da media mainstream estão inundados de artigos de verificação de factos que são, na verdade, ataques disfarçados de ‘artigos de verificação de factos objetivos’ que se referem [apenas] à autoridade do CDC e de agências semelhantes para desacreditar relatos independentes sobre mortes súbitas após vacinações.”
A médica norte-americana também critica a Academia, que diz “controlada por administradores da ala esquerda e professores adeptos do wokeismo”, afirmando que muitos investigadores “gastam tempo e esforço substanciais para descartar a importância das mortes súbitas”, criando “narrativas elaboradas para explicar os episódios preocupantes consistentes com morte súbita ou quase-morte, alegando que ocorreram como resultado de patologias muito menos comuns e menos prováveis, como a commotio cordis.
Mas, chegados aqui, que fazer, se efectivamente as autoridades não querem estudar?
Na verdade, fazer o que o PÁGINA UM decidiu fazer: pegar numa complexa e exaustiva base de dados da Agência Europeia do Medicamento (EMA) que despeja autenticamente os registos de fármacos num site, sem permitir uma pesquisa fácil, e procurar registo a registo pela expressão “Sudden deaths”.
Pois bem, numa pesquisa realizada intensamente durante três dias, às 914.536 reacções adversas expostas no portal do EudraVigilance, foram inventariadas 1.241 mortes súbitas, em grande parte das quais sem sintomatologia associada.
[Note-se que não se pesquisou, neste caso, devido à morosidade do processo a totalidade das mortes (não súbitas), mas até ao final do ano passado seriam mais de 13.000 na Europa, de acordo com uma busca preliminar do PÁGINA UM. Em Portugal, o Infarmed reportou, até 31 de Dezembro do ano passado, um total de 142 mortes associadas à vacinação contra a covid-19 – um valor que a ser verdadeiro daria uma incidência inferior à da generalidade dos países europeus.]
Extracto de uma das folhas dos registos da EMA para uma das vacinas. Cada registo individual pode depois ser impresso (ver exemplo).
Com o processo de vacinação a ser iniciado ainda em 2020 – mas com poucas doses administradas, daí que nos países do Espaço Económico Europeu estejam somente reportadas 807 reacções adversas consideradas graves –, é no ano de 2021 que contabilizam mais mortes subidas nos registos das diversas vacinas administradas, com um total de 842. Destas 536 foram da Pfizer (Elasomeram), 179 da Astrazeneca, 112 da Moderna (Elasomeran) e 15 da Janssen.
Refira-se que o número absoluto não permite traçar o perfil de segurança, que não é possível de se fazer porque as autoridades nunca revelaram com precisão o número de doses de cada farmacêutica. Contudo, como se registam o número total de casos de reacções adversas sérias, consegue-se estimar um indicador próximo: as mortes súbitas por cada 1.000 efeitos adversos graves.
Assim, em 2021, a vacina da Pfizer contabilizou 2,4 mortes por 1.000 efeitos graves (ou 24 por cada 10.000), enquanto a Moderna registou 1,5 e a Astrazeneca e a Janssen 1,0 cada.
Número de mortes súbitas associadas à vacinação contra a covid-19 (por vacina e por ano). Fonte: EMA / EudraVigilance
No ano passado, em que já houve uma redução do processo de vacinação – e também entrada de outras vacinas, como as bivalentes da Pfizer e da Moderna, bem como as da Novavax e Valneva (a da Sanofi só entrou este ano), estas últimas com fraca adesão –, o número de registos de mortes súbitas diminuiu no registo da Eudravigilance. Foram 330, entre os 376.662 registos de efeitos adversos graves.
A vacina da Pfizer de primeira geração (Tozinameran) manteve o maior número, com 220 mortes súbitas associadas, seguindo-se a primeira vacina da Moderna (Elsaomeran). A Astrazeneca tem, na base de dados da EMA; 37 mortes súbitas associadas, enquanto as duas vacinas bivalentes da Pfizer oito, e a Janssen apenas cinco.
Para 2022, o indicador das mortes súbitas por 1.000 efeitos adversos graves para a globalidade das vacinas contra a covid-19 foi de 1,4, quando no ano anterior fora de 0,9. Se excluirmos as vacinas mais recentes, as vacinas aparentaram um menor risco de morte súbita, embora se desconheça detalhes sobre as circunstâncias da associação dos óbitos às vacinas nem se estas foram confirmadas por autópsia ou se até existe subnotificação. Até porque a maioria dos reportes de efeitos adversos foram enviados pelas próprias farmacêuticas à EMA.
Número de reacções adversas graves associadas à vacinação contra a covid-19 (por vacina e por ano). Fonte: EMA / EudraVigilance
Por fim, este ano, foram contabilizadas apenas 89 mortes súbitas associadas às vacinas contra a covid-19, mas tal deveu-se sobretudo à redução do processo de vacinação. Essa evidência mostra-se numa análise à evolução das doses administradas por país e a nível mundial, bem como na redução do número de reacções adversas graves desde Janeiro: apenas 49.551.
Com efeito, analisando o indicador das mortes súbitas por 1.000 casos de efeitos adversos graves até se observa um ligeiro agravamento face ao ano passado. Globalmente, este indicador situa-se, actualmente, em 1,4 mortes súbitas por 1.000 efeitos adversos graves, subindo mesmo, face a 2022, para a quase generalidade das vacinas.
De notar a estranha situação da vacina da Sanofi e GSK contra a covid-19, que perdeu o comboio contra a Pfizer e as outras três farmacêuticas, só recebendo autorização no final do ano passado, embora a tempo de receber garantias de compra pelos acordos secretos da Comissão von der Leyen.
Número de mortes súbitas por cada 1.000 reacções adversas graves associadas à vacinação contra a covid-19 (por vacina e por ano). Fonte: EMA / EudraVigilance
Mesmo estando a ser pouco usada nos países do Espaço Económico Europeu, sobre esta vacina a EMA tem já dois registos de mortes súbitas entre 349 reacções adversas graves, o que dá uma incidência de 5,7 mortes súbitas 1.000 efeitos adversos graves.
Mas, na verdade, como se deve olhar para estes números?
Com preocupação. Com cautela. E com exigência – não é sensato ouvir um “Houston, we have a problem”, e desligar o rádio. Na verdade, desligá-lo, nessas circunstâncias é criminoso.
Esteve um ano a liderar a informação da Direcção-Geral da Saúde, abandonou o serviço em meados de 2021 para concluir o doutoramento e regressou este mês, como subdirector em regime de substituição, para ganhar currículo e tentar apanhar o lugar de Graça Freitas, cujo concurso decorre. André Peralta-Santos amealhou, entretanto, uns trocos com a Pfizer, enquanto concluía um doutoramento num centro da Universidade de Washington que tem a Organização Mundial de Saúde e a Fundação Bill Gates como clientes. E já está a mostrar serviço: num ofício de anteontem, a pretexto da intimação do PÁGINA UM para acesso aos contratos das vacinas contra a covid-19, que Manuel Pizarro quer manter secretos, Peralta-Santos defendeu que se deve convencer o Tribunal Administrativo de Lisboa a considerar-se incompetente para analisar o processo, por haver cláusulas de confidencialidade nos acordos globais estabelecidos pela Comissão von der Leyen e as farmacêuticas. Se a tese pegar, o acesso a documentos de interesse nacional podem deixar de ser conhecidos se tudo for tratado nas sombras dos gabinetes da Comissão Europeia.
O novo subdirector-geral da Saúde, André Peralta-Santos – um dos principais candidatos a substituir Graça Freitas como Autoridade de Saúde Nacional –, que colaborou no ano passado por quatro vezes com a farmacêutica Pfizer, defendeu ontem que o Ministério da Saúde deveria, “para efeitos de contestação” à intimação do PÁGINA UM para acesso aos contratos de compras de vacinas e outros documentos associado às aquisições, “questionar, mesmo nesta fase do processo, se os Tribunais nacionais serão os competentes para julgar esta matéria”. A Pfizer foi a empresa farmacêutica que mais vendas terá efectuado a Portugal.
A posição de Peralta-Santos – que substituiu este mês Rui Portugal, que se demitiu repentinamente em final de Maio – consta de um ofício entregue ao Tribunal Administrativo de Lisboa, onde a Direcção-Geral da Saúde (DGS) tenta justificar a razão de quatro contratos de aquisição de vacinas contra a covid-19 terem estado durante meses no Portal Base e depois terem sido retirados aquando da intimação do PÁGINA UM para conhecer a totalidade dos contratos, bem como as guias de remessa e a correspondência entre entidades do Ministério da Saúde e as farmacêuticas.
André Peralta-Santos, actual subdirector-geral da Saúde.
O Ministério da Saúde insiste em não facultar os contratos de aquisição de vacinas com as farmacêuticas, solicitados pelo PÁGINA UM em Novembro do ano passado, desconhecendo-se assim as quantidades adquiridas, os compromissos de compras futuras, os montantes pagos e a pagar, os preços unitários dos diversos lotes ao longo do tempo ou mesmo eventuais comissões.
No ofício assinado por André Peralta-Santos – que esteve afastado da DGS durante alguns meses, aproveitando para, entre outras actividades (incluindo a conclusão do doutoramento), desenvolver actividades pagas pela Pfizer –, advoga que os acordos assinados entre a Comissão von der Leyen e as farmacêuticas “contêm cláusulas de confidencialidade que obrigam todos os intervenientes, donde, os contratos nacionais subordinados a elementos legalmente considerados essenciais do contrato, como quantidades e preços, estipulados nos Acordos/Protocolos/Contratos-Quadro, ficam sujeitos às mesmas regras de confidencialidade, porquanto, devem ser considerados como contratos (parciais) integrantes dos Acordos assinados pela Comissão Europeia em representação dos Estados-Membros, que foram interesados [sic], como foi o caso de Portugal”.
Nesta sua temerária interpretação – que advoga que os Estados democráticos perdem o exercício de Justiça independente interna em caso de acordos comerciais por entidades externas e supranacionais não-eleitas (Comissão Europeia) –, o subdirector-geral da Saúde defende ainda que o Vaccine Order Form – cujos primeiros quatro documentos estiveram no Portal Base, para serem depois sonegados pelo Ministério da Saúde – “não se trata, assim, de um qualquer contrato celebrado pelo Estado português, através da Direcção-Geral da Saúde”, mas “apenas da formalização necessária para operacionalização do APA/PA [acordos entre a Comissão Europeia e as farmacêuticas] em território nacional com o pedido de entrega das vacinas respetivas”.
Curiosamente, apesar de o Ministério da Saúde continuar a insistir junto do Tribunal Administrativo de Lisboa, que não tinha autonomia para a aquisição de vacinas contra a covid-19, e que tudo foi tratado pela Comissão Europeia, os factos públicos desmentem-no. Por exemplo, em 21 de Janeiro de 2021, o Governo fez um comunicado em que esclarecia o processo de compra das vacinas contra a covid-19, numa altura de escassez de doses. Nesse comunicado, referia-se que, “para além dos contratos iniciais, Portugal adquiriu ainda quantidades adicionais de outras vacinas, nomeadamente da BioNTech-Pfizer e da Moderna, prevendo também adquirir doses adicionais ao contrato inicial com a AstraZeneca.”
E denunciava o Governo também a sua autonomia de escolha, acrescentando que “relativamente à compra de doses adicionais, a opção de Portugal foi a de escolher as doses adicionais em função dos prazos de entrega, ou seja, escolhendo aquelas que chegariam mais cedo.”
Também no mês passado, o Ministério da Saúde adiantava ao jornal Público, de forma surpreendente, que “Portugal celebrou 14 contratos com seis fornecedores de vacinas e que foram entregues cerca de 40 milhões de um total de 61,7 milhões de doses encomendadas e adquiridas para o período até 2023.”
Manuel Pizarro, ministro da Saúde, tudo tem feito para se furtar a mostrar os documentos relacionados com as compras de vacinas contra a covid-19.
O PÁGINA UM revelou já que, calculando a despesa autorizada por Resoluções do Conselho de Ministros, Portugal gastou 877 milhões de euros em vacinas e consumíveis associados até ao final do ano passado, mas a conta nem sequer terá chegado a metade. Calculando as compras globais estabelecidas pela Comissão estima-se que, no total, Portugal terá de comprar cerca de 106 milhões de doses, o que pode vir a resultar em centenas de milhões de euros pagos às farmacêuticas sem qualquer utilidade, face ao forte decréscimo da adesão aos boosters.
Saliente-se também que a legislação nacional, mormente a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, não condiciona o acesso a documentos na posse de entidades públicas do Estado português por conterem eventualmente cláusulas de confidencialidade.
Além disso, o PÁGINA UM requereu ao Tribunal Administrativo de Lisboa, em 31 de Dezembro do ano passado, que obrigasse o Ministério da Saúde a facultar não apenas os “contratos integrais (incluindo anexos e cadernos de encargos) assinados entre a Direcção-Geral da Saúde (ou outras entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde] e as farmacêuticas que comercializam as vacinas contra a covid-19, desde 2020 até à data”, mas também os “documentos de entrega (guias de transporte), bem como toda a documentação (troca de correspondências) entre as entidades adjudicantes e adjudicatárias ao longo deste período”.
André Peralta-Santos é, aos 38 anos, médico especialista em Saúde Pública desde 2015, ocupou o cargo de director de serviços de Informação e Análise da DGS durante um ano da pandemia, entre Setembro de 2020 e Setembro de 2021. De acordo com o despacho do ministro da Saúde publicado na semana passada em Diário da República, terá concluído o doutoramento este ano em Saúde Global na Universidade de Washington. O centro onde Peralta-Santos estudou tem como clientes diversas farmacêuticas, a Organização Mundial de Saúde e a Fundação Bill & Melinda Gates.
De acordo com a descrição constante na base de dados da Transparência e Publicidade do Infarmed – que há vários anos não faz qualquer fiscalização nos procedimentos de transparência entre farmacêuticas e profissionais de saúde –, André Peralta foi, ao longo de 2022, consultor da Pfizer numa reunião sobre abordagem terapêutica da covid-19, e participou ainda em três palestras financiadas por aquela farmacêutica norte-americana. Sempre, invariavelmente, sobre a pandemia da covid-19.
Por exemplo, num seminário sobre sepsis e infecções, organizado no Porto no início de Junho do ano passado, André Peralta ganhou 1.200 euros por compartilhar as suas opiniões sobre objectivos terapêuticos associados à covid-19 durante 40 minutos acompanhado de um médico espanhol (Alex Soriano). Depois, houve um almoço. No total, terá recebido 4.800 euros, mas a Plataforma da Transparência e Publicidade é, objectivamente, uma base de dados que não está sujeita à verificação regular da veracidade por parte do Infarmed. O PÁGINA UM tem detactado sistemáticas falhas na introdução de registos.
Em Janeiro deste ano, aquando de uma notícia sobre as relações de antigos dirigentes da DGS com o sector farmacêutico, o PÁGINA UM contactou André Peralta-Santos por e-mail, mas não obteve quaisquer comentários sobre se, atendíveis as suas anteriores funções, considerava éticas estas relações com uma das farmacêuticas que mais facturou durante a pandemia, sobretudo com a venda de vacinas.
Na semana passada, a candidatura de Peralta-Santos ao cargo de director-geral da Saúde – num concurso-relâmpago em curso, com as candidaturas já encerradas, que nem admite audiência de interessados nem efeito suspensivo em caso de recurso administrativo – foi anunciada largamente na comunicação social (Público, TVI, O Novo, Sábado, ECO, Observador, TSF e Expresso). No jornal do Grupo Impresa, a jornalista Vera Lúcia Arreigoso escreveu mesmo, sem citar ninguém (ou seja, com fontes anónimas, de existência questionável), que “médicos do setor afirmam que André Peralta Santos é o candidato melhor posicionado para a nomeação para liderar a Direcção-Geral da Saúde”.
São apenas dois dias, e sem aparato demasiado espampanante, mas o primeiro evento de maior dimensão da novel Sociedade Portuguesa de Saúde Pública revela bem como o debate público sobre futuras pandemias está a ser rapidamente enviesado. Instalando-se um nicho criado pela pandemia, esta sociedade científica foi ocupada por altos funcionários públicos de confiança política do actual Governo, e o seu primeiro congresso, em parceria com duas associações, conta apenas com “peritos” escolhidos a dedo. E, claro, mãos de farmacêuticas, que patrocinam talks, que, na verdade, são sessões públicas de lobby descarado. Uma viagem ao programa do Congresso Saúde Pública 23, conduzida pelo PÁGINA UM, sob o mote “Uma Nova Era”.
A Culturgest vai ser hoje e amanhã palco do Congresso Saúde Pública 23, com o mote “Uma Nova Era”. Uma notícia normal diria que, no auditório e diversas salas do edifício da Caixa Geral de Depósitos, passaram as principais figuras que marcaram os anos da pandemia, tanto do quadrante político como de especialistas.
Para debater políticas públicas de Saúde, inovação e ciências e assuntos paralelos, e até equidade para pessoas LGBTQIA+, está prevista a presença, logo pela manhã de hoje, como cabeças de cartaz, a ex-ministra da Saúde Marta Temido, a directora-geral da Saúde Graça Freitas, o seu antecessor e ex-presidente da Cruz Vermelha Portuguesa Francisco George, e ainda Raquel Duarte, ex-secretária de Estado da Saúde e uma das peritas requisitadas nas famosas reuniões do Infarmed.
Em segundo plano, estarão outras figuras bastante mediáticas, classificadas pelo Governo como “peritos” durante a pandemia, como o pneumologista Filipe Froes, o epidemiologista Henrique Barros (marido da actual secretária de Estado da Promoção da Saúde), o imunologista Miguel Prudêncio, o presidente da European Respiratory Society Carlos Robalo Cordeiro, e ainda o novo subdirector-geral da Saúde, André Peralta Santos.
Mais do que debater Saúde Pública, pelos palcos da Culturgest, sobretudo pelo seu auditório, se espraiará, contudo, a promiscuidade entre poder político, sociedades médicas e farmacêuticas, num conluio que, sem encontrar fronteiras, começa a cansar por recorrente. Vejamos.
Organizado por três associações – Sociedade Portuguesa de Saúde Pública, Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública e Associação Portuguesa para Promoção da Saúde Pública –, o congresso conta com o patrocínio oficial da Caixa Geral de Depósitos, que cedeu o espaço e a logística, mas quem abre os cordões à bolsa, até por não haver inscrições pagas, são quatro farmacêuticas – Abbott, GlaxoSmithKline, Pfizer e Sanofi –, que têm ali palcos majestáticos para exporem os seus consultores, grande parte dos quais com um papel mediático durante a pandemia.
Apesar de ainda não serem conhecidos todos os montantes envolvidos – e que apenas serão oficializados quando integralmente inseridos no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed –, alguns detalhes conhecidos já demonstram servir este congresso para falar mais do que de saúde. Pelos sinais – e porque não vale a pena obter reacções, porque todos negariam, horrorizados pela torpe suspeita –, ali se espraia, de forma mais ou menos discreta, lobbies com bypass directo entre Governo, Administração Pública, supostas sociedades científicas e farmacêuticas.
O caso mais paradigmático passa-se com a principal organizadora do congresso, a novel Sociedade Portuguesa de Saúde Pública (SPSP), que tem na Culturgest o seu segundo evento público conhecido, após uma singela apresentação de um livro em Março passado, coordenado por Francisco George, seu presidente.
Anunciada em Maio do ano passado, a SPSP terá 20 fundadores, onde também pontificam, segundo então se revelou na comunicação social, a pneumologista e ex-secretária de Estado da Saúde Raquel Duarte, os epidemiologistas Baltazar Nunes e Andreia Leite, o presidente do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge (INSA), Fernando Almeida, o professor jubilado em Saúde Pública Constantino Sakellarides (e ex-director-geral da Saúde), o psiquiatra Daniel Sampaio, o médico Rui Portugal, na época subdirector-geral da Saúde, o então presidente do Conselho Nacional de Saúde, Henrique Barros; e a ex-bastonária da Ordem dos Farmacêuticos Ana Paula Martins, então na farmacêutica Gilead e que agora preside ao Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte.
Francisco George, depois da passagem pelas funções de director-geral da Saúde e de presidente da Cruz Vermelha Portuguesa, por nomeação governamental, fundou a Sociedade Portuguesa de Saúde Pública com três altos funcionários públicos de confiança política.
No entanto, apenas assinaram a constituição desta associação, em 6 de Maio de 2022, Francisco George, o então subdirector-geral da Saúde Rui Portugal – que se demitiu no final do mês passado, pouco tempo depois de admitir candidatar-se ao lugar de Graça Freitas – e o presidente e a vogal do INSA, Francisco Lopes de Almeida e Cristina Abreu dos Santos. Saliente-se que, conforme referido no seu site, o Conselho Directivo do INSA dirige os seus serviços “em conformidade com a lei e as orientações governamentais”, sendo apenas constituído por duas pessoas.
Diga-se que a SPSP acaba por ser similar à co-organizadora Associação Portuguesa para a Promoção da Saúde Pública (APPSP), mas esta não tem o élan de ter sociedade na denominação. Com efeito, a APPSP é uma associação criada em 1969 por Arnaldo Sampaio, director-geral da Saúde entre 1972 e 1976, sedeada na Escola Nacional de Saúde Pública.
Se o excessivo peso de funcionários públicos de confiança política provoca legítimas dúvidas sobre a independência e isenção deste tipo de organizações, estas também se desvanecem na leitura da localização da sede da SPSP: Centro de Saúde de Sete Rios, em Lisboa. Ou seja, em instalações públicas.
Certo é, de entre as poucas intervenções públicas da SPSP, destacam-se as recentes declarações de Francisco George, em Março passado, que mostraram uma grande sintonia com os interesses governamentais. De facto, o antigo director-geral da Saúde e ex-presidente da Cruz Vermelha defendeu então a aprovação da lei de protecção em emergência de saúde pública para que, em futuras pandemias, se restrinjam administrativamente direitos e liberdades individuais.
Apesar das evidências científicas internacionais sobre os impactes negativos dos confinamentos rígidos, os peritos portugueses associados ao Governo insistem agora em defender medidas administrativas de restrição às liberdades em futuras crises sanitárias.
Nessas declarações à Lusa, Francisco George deu também, como presidente da SPSP, o seu aval aos confinamentos durante a pandemia, considerando-os “uma medida absolutamente essencial” para controlar e prevenir a covid-19. Ora, os Governos costumam agradecer essas opiniões de sociedades científicas independentes na aparência.
No entanto, a nível internacional, e em revistas científicas independentes, já há muito se coloca em causa os confinamentos como solução adequada para a pandemia da covid-19. Por exemplo, no ano passado, John Ioannidis, o mais relevante epidemiologista mundial, destacava, num artigo em co-autoria no International Journal of Forecasting, que “a população em geral foi confinada e colocada em alerta de terror para evitar que os sistemas de saúde entrassem em colapso”, mas “tragicamente, muitos sistemas de saúde enfrentaram grandes consequências adversas, não pela sobrecarga de casos de covid-19, mas por razões muito diferentes”. E apontava para os “pacientes com ataques cardíacos [que] evitaram hospitais para atendimento, tratamentos importantes (por exemplo, para cancro) [que] foram injustificadamente atrasados” , para além de prejuízos na saúde mental.
Ioannidis também salientava que “com operações prejudicadas, muitos hospitais começaram a perder pessoal, reduzindo sua capacidade de enfrentar crises futuras”, como por exemplo uma segunda onda, e que “com o novo desemprego massivo, mais pessoas arriscaram perder o seguro de saúde.”
Ex-ministra Marta Temido fará uma aparição na abertura do congresso, com Francisco George, Paulo Macedo (CEO da Caixa Geral de Depósitos) e Raquel Duarte.
Mas isso foram sempre aspectos nunca admitidos pelos “peritos” governamentais portugueses, alguns dos quais agora com ligações umbilicais à SPSP, como é o caso de Raquel Duarte. Antiga secretária de Estado da Saúde, Raquel Duarte destacou-se no grupo de peritos ad hoc das conhecidas “reuniões do Infarmed” – que validava todas as medidas do Governo de António Costa, substituindo a Comissão Nacional de Saúde Pública, que nunca foi colocada a funcionar – e é co-autora de uma obra apologética sobre a estratégia governativa, apresentada em Maio do ano passado na Universidade do Minho diante de um agradado primeiro-ministro.
Além destas ligações de boa convivência com o Governo, a SPSP também não fugiu ao amplexo com farmacêuticas. Não se conhecendo ainda todos os financiamentos deste congresso, no Portal da Transparência do Infarmed – cuja inserção de registos é voluntária e pouco ou nada fiscalizada pelo regulador dos medicamentos, presidido por Rui Santo Ivo –, já consta o apoio da Pfizer à SPSP. E, oficialmente, não é pequeno: 15.000 euros.
Isto considerando que este dinheiro serve para patrocinar o “sponsor talk by Pfizer”, a moderna designação para 45 minutos da apresentação de Charles Jones, director sénior de inovação e estratégia mRNA da Pfizer, acompanhada pelas palavras de Miguel Prudêncio, investigador do Instituto de Medicina Molecular, e de Gustavo Tato Borges, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública (ANMSP). Desde que assumiu a liderança desta associação de médicos, em finais de 2021, Tato Borges – que tem pretensões a ser o próximo director-geral da Saúde – já recebeu por seis vezes apoios da Pfizer, no valor total de 10.210 euros, incluindo uma viagem a um congresso à cidade canadiana de Toronto.
Tato Borges, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, co-organizadora do congresso. Desde que assumiu funções, este médico começou a dar palestras financiadas pela Pfizer.
Se 15.000 euros valem 45 minutos de “sponsor talk by Pfizer”, similares montantes se deverão praticar nas outras “talks” – assim à inglesa, que se paga melhor. Todas com participantes e moderadores que garantem ausência de surpresas ou vozes dissonantes. Por exemplo, a “sponsor talk by Abbott”, financiada por esta farmacêutica norte-americana, contará com a moderação de Francisco George, e a participação do médico espanhol José María Eiros Bouza e do médico português Gonçalo Órfão.
A Sanofi – que está numa promíscua campanha, através da Sociedade Portuguesa de Pediatria em coligação com a imprensa, para convencer o Governo a administrar anticorpos monoclonais contra o vírus sincicial respiratório (VSR) a todos os recém-nascidos – desembolsará mais, porque pagou duas “sponsor talks”, ambas nesta sexta-feira.
A primeira terá como cabeça-de-cartaz a pediatra Teresa Bandeira para falar… sobre o vírus sincicial respiratório e “novas soluções para um desafio de saúde pública”. Teresa Bandeira foi a principal subscritora do parecer que recomendou a compra massiva de anticorpos monoclonais da Sanofi e AstraZeneca à Direcção-Geral da Saúde. E ainda em Abril passado participou num evento promovido pela Sanofi sugestivamente denominado “Rumo a uma nova era de prevenção do vírus sincicial respiratório“. Desta vez, para a sessão de 20 minutos na Culturgest, a moderação será de… Gustavo Tato Borges, putativo candidato a director-geral da Saúde e presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Público, e co-organizador do evento.
Teresa Bandeira, presidiu à Sociedade Portuguesa de Pediatria entre 2014 e 2016.
Moderada pela jornalista do Expresso Vera Lúcia Arreigoso, a segunda “sponsor talk by Sanofi” tem como tema a nova vacina contra a gripe como “uma prioridade de Saúde Pública”, e conta com três palestrantes: Carlos Aguiar, Sofia Duque e Carlos Robalo Cordeiro. Nem de propósito, ou talvez sim, a Sanofi começou a comercializar recentemente uma vacina quadrivalente contra a gripe, e tem-se multiplicados em eventos de promoção, em parceria com órgãos de comunicação social, como Expresso no âmbito da Flu Summit.
Estes eventos são sempre óptimos momentos de cortesia e lobby, como a que ficou patente na homenagem a Graça Freitas, que entre muitos sorrisos juntou Lacerda Sales, ex-secretário de Estado da Saúde e actual deputado que presidente à comissão parlamentar da TAP, e ainda Helena Freitas, directora-geral da Sanofi Portugal, e Carlos Robalo Cordeiro.
Aliás, este pneumologista e professor da Universidade de Coimbra – um empolgado adepto da vacinação contra a covid-19 de jovens, chegando a integrar um grupo de queixosos que espoletou um torpe processo disciplinar contra Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, por recomendar prudência – é sempre um habituée deste tipo de eventos. Com benefícios: só no ano passado, o actual presidente da European Respiratory Society amealhou quase 25 mil euros das farmacêuticas, dos quais 3.414 euros da Sanofi. Este ano conta, em menos de seis meses, um pouco menos de 11 mil euros. Apesar disso, a declaração de interesses deste médico naquela sociedade internacional está a branco, sem qualquer justificação, apesar de o PÁGINA UM ter pedido esclarecimentos, que não obteve reacção.
Conforme foto da edição do Expresso de 7 de Março passado, no recente Flu Summit, evento organizado pelo Expresso e pago pela Sanofi, Graça Freitas foi homenageada, enquanto se debatia a nova vacina da farmacêutica contra a gripe.
Froes falará, nesta sexta-feira, sobre “a vacinação como um pilar para o envelhecimento saudável”, numa altura em que concentra os seus esforços de consultadoria e de marketing na promoção de uma nova vacina pneumocócica da Merck Sharpe & Dohme (MSD) para bebés, crianças e adolescentes.
Em parte por esse motivo, este ano, e até agora, quase dois terços dos cerca de 20 mil euros daquilo que Froes oficialmente recebeu de farmacêuticas foi a partir da MSD, que já no ano passado, com a Sanofi, fora um dos seus principais “mecenas”. Este ano, este pneumologista ainda só recebeu cerca de 1.600 euros da GSK, mas não estão ainda incluídos os honorários da “sponsor talk by GSK” de amanhã na Culturgest.
Filipe Froes, ao centro, é um dos médicos do Serviço Nacional de Saúde com mais ligações à indústria farmacêutica, apesar de ser consultor da Direcção-Geral da Saúde. Com um processo disciplinar pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) desde Fevereiro de 2022 (e nunca concluído), foi, apesar disso, mandatário do actual bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes (ao seu lado esquerdo).
Depois da palestra de meia hora de Filipe Froes, terminará o Congresso Saúde Pública 23, organizado por associações “associadas” ao Governo, e com “talks” financiadas por farmacêuticas, com um derradeiro evento: a directora-geral da Saúde, Graça Freitas, presidirá ainda à cerimónia de entrega de prémios aos vencedores das PH Innovation Sessions, ou seja, aos melhores trabalhos apresentados nas outras salas.
A organização não informa, no seu site, se os prémios são monetários e financiados por farmacêuticas. Em todo o caso, os funcionários públicos que participem, e recebam diploma, têm dispensa de serviço. Não parece demasiado mau para quem tem de ouvir palestras financiadas por farmacêuticas.
N.D.O Código Deontológico dos Jornalistas determina que “a distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público.” Uma vez que, aparentemente, subsistem dúvidas de certos reguladores sobre a interpretação desta frase, declara-se o óbvio: quando o leitor ler, numa notícia, um qualquer adjectivo, então estará perante uma opinião. Se não for uma notícia e se ler um adjectivo, então será também uma opinião. Em todo o caso, tudo se interpreta com rigor e honestidade. Mesmo quando se escolhem os adjectivos.
A Administração do Hospital de Braga “esqueceu-se” de publicar no Portal Base, durante mais de dois anos, e em alguns casos até mais de três anos, dezenas de contratos de aquisição de equipamentos de protecção individual e de materiais relacionados com a pandemia. O PÁGINA UM identificou 32 contratos acima de 100 mil euros, envolvendo 17 empresas, que tiveram um custo total de 7 milhões de euros para os cofres do Hospital de Braga. A legislação obriga que sejam publicitados na plataforma da contratação pública no prazo máximo de 20 dias úteis, mas detectaram-se sete contratos que demoraram mil ou mais dias até serem conhecidos. O atraso, que curiosamente só atinge aquisições associadas à covid-19, não é um mero pormenor burocrático. Ao fim deste tempo todo, mostra-se agora quase impossível averiguar as condições de aquisição e se as entregas foram mesmo realizadas pelos fornecedores, tanto mais que, como se estava num regime de excepção, tudo foi combinado por ajuste directo e sem redução a escrito.
O Hospital de Braga demorou mais de dois anos, e por vezes até mais de três anos, a disponibilizar pelo menos 32 contratos no Portal Base relacionadas com aquisições de equipamentos de protecção individual e materiais relacionados com a pandemia.
Como a generalidade desses contratos foi feita por ajuste directo, sem sequer serem reduzidos a escrito – beneficiando de um regime de excepção instituído pelo Governo – não existem quaisquer documentos de suporte nem referências, na maior parte dos casos, às quantidades compradas nem comprovativos idóneos que atestem as quantidade efectivamente entregue pelos fornecedores escolhidos a dedo, e sem critério objetivo, pela administração hospitalar.
São 32 contratos acima de 100 mil euros que acabaram “esquecidos” pelo Hospital de Braga durante mais de dois anos, dificultando agora qualquer verificação da sua execução. Todos associados a aquisições no âmbito da pandemia.
De acordo com um levantamento do PÁGINA UM, foram estabelecidos, sem documentação, 32 contratos superiores a 100 mil euros pelo Hospital de Braga durante 2020 – e em grande parte nos primeiros meses da pandemia – e os primeiros meses de 2021 (até Maio) para a compra sobretudo de máscaras, luvas de nitrilo e outros equipamentos de protecção individual, bem como de zaragatoas e testes. Só estes contratos totalizaram 7.013.105 euros. Existem mais contratos com valores abaixo da fasquia dos 100 mil euros, a generalidade por ajuste directo sem redução a escrito.
Cinco destes contratos ascendem aos 400 mil euros, tendo sido estabelecidos por ajuste directo entre Março e Agosto de 2020, embora a informação no Portal Base apenas tenha começado a surgir a partir de Janeiro deste ano. Três destes contratos milionários de 2020, esquecidos nos corredores do Hospital de Braga, só foram introduzidos no mês passado, em Maio deste ano. Segundo a portaria que regula o funcionamento e gestão do portal dos contratos públicos (Portal Base), as entidades públicas têm a obrigatoriedade de entregar informação sobre os contratos, mesmo daqueles que sejam por ajuste directo e sem redução a escrito, até 20 dias úteis após a sua celebração. Atente-se também que sem o regime de excepção seria impossível a aquisição deste tipo de materiais por ajuste directo, sem contrato escrito, envolvendo tão avultados montantes.
Sendo certo que nem sempre as entidades públicas cumprem o prazo de 20 dias, mostra-se, contudo, completamente inaudito a ocorrência de atrasos tão elevados nestes contratos do Hospital de Braga, até porque somente atingem as aquisições relacionadas com a pandemia ao longo de 2020 e dos primeiros meses de 2021. Numa panóplia de outros contratos, para a aquisição de medicamentos para outras doenças, por exemplo, o Hospital de Braga não apresenta atrasos desta ordem de grandeza, nem pouco mais ou menos, mesmo em aquisições feitas no auge da pandemia. O “problema” foi, de facto, exclusivamente, dos contratos relacionados com a covid-19.
Com efeito, dos 32 contratos analisados pelo PÁGINA UM – todos acima de 100 mil euros, dos quais 28 se celebraram em 2020 e quatro em 2021 (até Maio) –, aquele que demorou menos tempo entre a celebração do contrato (sem redução a escrito) e a sua publicação do Portal Base foi para a compra de 4.800 testes PCR à empresa Horiba, em 20 de Maio de 2020, com um custo total de 178 mil euros. Como a sua publicitação ocorreu apenas em 23 de Maio passado, decorreram assim 733 dias até constar no Portal Base.
No extremo oposto, identificaram-se dois contratos que demoraram 1.140 dias a serem publicitados: um da Teprel, para a aquisição de um número indeterminado de humidificadores com gerador de fluxo, no valor de 106.961 euros – adquiridos logo no início da pandemia (26 de Março de 2020), e que apenas foi colocado no Portal Base no mês passado –, e outro da Colunex, que vendeu em Março de 2020 um número indeterminado de máscaras cirúrgicas e FFP2 no valor de 477.500 euros. Ignora-se o valor unitário de cada tipo de máscara e, obviamente, a quantidade adquirida e efectivamente entregue.
Aliás, os contratos envolvendo a Colunex, uma empresa conhecida por vender colchões, já tinha merecido uma notícia do PÁGINA UM em 6 de Novembro do ano passado, quando se detectou que tinha facturado 1,3 milhões de euros numa semana no início da pandemia por vendas de máscaras aos hospitais do Tâmega e Sousa, aos dois centros hospitalares do Porto, à Unidade Local de Saúde de Matosinhos e ao Hospital do Santo Espírito da Ilha Terceira. Neste último caso, existe a informação no Portal Base de que “na 1ª entrega todo o material foi devolvido por não corresponder ao adjudicado”, mas não são registadas anomalias nos outros contratos.
Conselho de Administração do Hospital de Braga, que a partir de 2019 deixou de ser gerido por uma parceria público-privada. Em primeiro plano, o presidente, João Porfírio Oliveira, responsável máximo pelas aquisições e pelos atrasos na publicitação dos contratos no Portal Base.
Como em Novembro do ano passado ainda não constavam as vendas da Colunex ao Hospital de Braga – dois contratos por ajuste directo, um no valor de 477.500 euros e outro de 414.000 euros –, agora sabe-se que a empresa de colchões terá facturado, em contratos sem redução a escrito, cerca de 2,3 milhões de euros. Isto se não houver mais contratos “escondidos” do Portal Base. Note-se que antes da pandemia as vendas da Colunex a entidades públicas foram de zero.
No caso destas compras do Hospital de Braga, a Colunex – que, portanto, facturou nos dois contratos 891.500 euros – nem foi a empresa que mais facturou. O pódio vai para a Alfagene, uma empresa de comercialização de produtos laboratoriais, que conseguiu três chorudos contratos em 2020, que só agora em 2023 acabaram plasmados no Portal Base, embora sem qualquer documento associado, porque também foram por ajuste directo sem redução a escrito.
O mais elevado foi assinado em 6 de Agosto de 2020 para a aquisição de 30.000 testes e custou 573.900 euros. Demorou 900 dias a aparecer no Portal Base. O segundo contrato mais valioso da Alfagene envolveu a compra de “kits de estracção e detecção de SARS-CoV-2”, sem indicação da quantidade. Celebrado em 15 de Janeiro de 2021, com um valor contratual de 426.762 euros, a informação da sua existência apenas surgiu no Portal Base 840 dias depois. O terceiro contrato foi assinado em 12 de Maio de 2021, para mais kits em número indeterminado, tendo o Hospital de Braga desembolsado mais 426.762 euros. A informação sobre este contrato demorou 744 dias a chegar ao Portal Base. No total, a Alfagene facturou ao Hospital de Braga 1.427.424 euros em contratos escondidos durante mais de dois anos. Quantos kits entregou? Não se sabe.
A Colunex, com sede numa freguesia de Paredes, fundada em 1986, vende sobretudo colchões de gama alta, mas facturou 2,3 milhões de euros em equipamentos de protecção individual nos primeiros meses da pandemia, sempre por ajuste directo.
Além da Colunex e da Alfagene, o Hospital de Braga celebrou contratos, “esquecidos” durante mais de dois anos, com a Teprel (quatro contratos no valor total de 697.977 euros), a PTTEX (três contratos no valor total de 569.500 euros), a Interhigiene (dois contratos no valor total de 440.000 euros), a Intehigiene (dois contratos no valor de 397.500 euros), a Bastos Viegas (dois contratos no valor total de 393.646 euros), a A Menarini (dois contratos no valor total de 316.000 euros), a Fapomed (dois contratos no valor de 255.000 euros) e ainda, com um contrato cada, as seguintes empresas: Clinifar, Intersurgical, Roche, Horiba, Quilabam, PHM, Medicinália Cormédica, Batist Medical Escala Braga (para remodelação dos serviços de urgência) e Enerre.
Note-se que fora deste período (a partir de Maio de 2021), e com outros produtos (ao longo de todo o período da pandemia), os prazos entre a celebração dos contratos e a sua publicitação são incomensuravelmente mais curtos. A título de exemplo, um contrato assinado entre o Hospital de Braga e a empresa Raclac para a aquisição de luvas de nitrilo em 22 de Julho do ano passado, no valor de 127.594 euros, demorou apenas cinco dias a surgir no Portal Base. Ou seja, um contrato assinado mais de um ano depois dos primeiros é publicitado em cinco dias; os outros, na primeira fase em que tudo era permitido com o argumento da urgência em salvar vidas demoraram, por vezes, mais de 1.000 dias, ficando esquecidos mesmo quando a calma ressurgiu.
No passado dia 2, o PÁGINA UM contactou à Administração do Hospital de Braga, presidido por João Porfírio de Oliveira, pedindo diversos esclarecimentos e documentos. Questionou-se sobre como se comprovava a verdadeira aquisição dos materiais e a veracidade das entregas dos materiais, quem foi responsável pelas aquisições e quais foram as razões para a demora da publicitação da informação dos contratos no Portal Base. Também se perguntou se o Hospital de Braga informava alguma entidade tutelada pelo Ministério da Saúde sobre as aquisições feitas no âmbito da pandemia.
Também se questionou se ainda existem mais contratos relativos aos anos da pandemia (2020 a 2022) não colocados no Portal Base e quais os montantes efectivamente gastos pelo Hospital de Braga em equipamentos de protecção individual e em testes e outros materiais no âmbito da pandemia.
Solicitava-se, de igual modo, que fossem enviados as facturas e os documentos de entrega (guias de remessa) dos materiais.
Hoje, em nota enviada ao PÁGINA UM, que pode ser lida aqui na íntegra, a Administração do Hospital de Braga nada esclarece de forma considerada plausível sobre os motivos do atraso na publicitação dos contratos escondidos por mais de dois anos – e que, saliente-se, de novo, apenas atinge contratos relacionados com a covid-19 – nem envia qualquer documento.
Hospital de Braga passou de novo para a esfera pública em 2019.
Apesar de ser evidente o tempo em que os contratos e os montantes envolvidos estiveram escondidos, o Conselho de Administração do Hospital de Braga diz que “a priorização dada à situação epidemiológica de Covid-19, bem como as medidas excecionais e temporárias decorrentes, obrigou à aquisição de diverso equipamento de proteção individual e sanitário, tendo sido celebrados para o efeito diversos contratos, todos no cumprimento dos requisitos, procedimentos e transparência exigíveis.” Ou seja, a transparência foi tão grande que, na esmagadora maioria dos contratos, nem sequer se explicita a quantidade adquirida, e portanto nem se sabe o valor unitário e o nível de especulação de preços.
Mais adiante, na sua nota, o Conselho de Administração do Hospital de Braga diz também que “a excecionalidade da situação, associada a dificuldades relacionados com os recursos humanos, conduziram à publicação desfasada de alguns contratos, encontrando-se, atualmente, os procedimentos normalizados e todos os contratos integralmente publicados”, acrescentando ainda que “a missão e o foco de atuação do Hospital de Braga, EPE passam por privilegiar o acesso, a prestação de cuidados de excelência e a melhoria contínua da Qualidade, da Segurança e Sustentabilidade Financeira e Ambiental, desenvolvendo a sua atividade no cumprimento do enquadramento legal que lhe é aplicável.”
Por fim, diz ainda que “anualmente, é elaborado, entre outros, o Relatório e Contas, onde se encontra espelhada informação referente à atividade, ao desempenho e às contas do Hospital de Braga, EPE e onde consta, desde 2020, um capítulo dedicado à Covid-19.”
Transparência e rigor na gestão dos dinheiros públicos continuam a ser atributos menosprezados. Administração do Hospital de Braga apresenta justificações absurdas para atrasos incompreensíveis.
Analisado os relatórios e contas do Hospital de Braga de 2020 e 2021, o PÁGINA UM confirmou que os capítulos dedicados à covid-19 nada esclarecem sobre as aquisições, fornecedores e quantidades entregues. Do ponto de vista contabilístico, no ano de 2020 apenas surge um quadro elencando os custos por grandes itens, com um montante total de 20.439.019,77 euros. Para o ano de 2021, o pouco detalhe é similar, apontando-se um custo global de 38.33.071,93 euros.
Que todo este dinheiro foi gasto, não haverá grande dúvidas. Se correspondeu a material efectivamente entregue e consumido, e a custos justos, aparentemente só com uma investigação policial se encontrará luz. Até porque, face a tantos contratos de elevado montante, por ajuste directo, sem conhecimento de quantidades nem preços unitários, e escondidos durante mais de dois anos do conhecimento público, somente uma instância de investigação policial, ou uma qualquer divindade, conseguirá apurar se estamos perante uma mera negligência ou um esquema ilegal num período onde o dinheiro público era fácil de gastar, aos milhões, sem questionar. Aliás, parecia mesmo mal estar a questionar-se. E houve empresas privadas que agradeceram.
CONTRATOS DO HOSPITAL DE BRAGA NO ÂMBITO DA COVID-19 ACIMA DE 100.00 EUROS ENTRE MARÇO DE 2020 E MAIO DE 2021
Alfagene
Data do contrato: 6/8/2020
Data da publicação: 23/1/2023
Dias entre contrato e publicação: 900 dias
Aquisição de 30.000 testes para SARS-CoV-2 com colocação de equipamentos
Não há uma sem duas, e não houve duas sem três: depois de sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa e de um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, três juízes conselheiros do Supremo Tribunal Administrativo só precisaram de três páginas para recusar as pretensões da Administração Central do Sistema de Saúde para que fosse negado o acesso ao PÁGINA UM de uma das mais importantes bases de dados de saúde do país, que permite avaliar, de uma forma independente, o desempenho do Serviço Nacional de Saúde e identificar anomalias graves nos hospitais. A luta judicial dura há mais de um ano, entre um “David” e um “Golias” que não se importou, durante o processo, em usar mentiras e argumentos falaciosos. A ACSS começou por alegar a impossibilidade de anonimização de dados, mas quando foi demonstrada a mentira, adiantou que, afinal, o pedido era “manifestamente abusivo” porque demoraria muito tempo a retirar dados nominativos dos registos, apesar de estarmos no século XXI e de um sistema informático fazer essa operação enquanto o diabo esfrega um olho. Esta acção do PÁGINA UM (que só em taxas de justiça já ultrapassou mais de 1.000 euros) foi financiada pelos seus leitores através do FUNDO JURÍDICO. A defesa da ACSS, a cargo da sociedade BAS (que costuma cobrar 60 euros por hora), foi financiada através do Orçamento do Estado.
Derrota no Tribunal Administrativo de Lisboa. Derrota no Tribunal Central Administrativo Sul. E, mesmo alegando ser “manifestamente abusivo” o pedido de acesso por parte do PÁGINA UM à base de dados anonimizados dos internamentos – que permitirá uma avaliação verdadeiramente independente do desempenho do Serviço Nacional de Saúde ao longo dos últimos anos –, a Administração Central do Sistema de Saúde recebeu terceira derrota, desta vez do Supremo Tribunal Administrativo.
O Ministério da Saúde, através das entidades tuteladas por Manuel Pizarro, vai ter mesmo de disponibilizar o acesso ao PÁGINA UM da base de dados dos Grupos de Diagnósticos Homogéneos. O acórdão, com data de 1 de Junho, assinada por três conselheiros, com José Veloso como relator, é muito claro e taxativo na análise ao “recurso de revista” apresentado pela ACSS. Em apenas três páginas, os conselheiros do Supremo Tribunal Administrativo decidem “não admitir a revista” das decisões dos outros tribunais.
Supremo Tribunal Administrativo: em três páginas “concede” terceira derrota ao obscurantismo do Ministério da Saúde.
“Constatamos desde logo a ‘unanimidade de decisão dos tribunais de instância’, o que não sendo só por si garantia de acerto não deixa de constituir um relevante sinal de bom direito”, salientam os conselheiros do Supremo, acrescentando que “também se constata que tais ‘decisões’ – mormente a consubstanciada no acórdão recorrido – embora abordem matéria de algum melindre, face à dimensão e à relevância dos direitos com que contende, não se mostra, no caso, de tratamento particularmente complexo, e foi apreciada e decidida pelos tribunais de instância de forma suficientemente consistente, e aparentemente correcta, não se vislumbrando nelas a ocorrência de erros manifestos que imponham a revista em nome da clara necessidade de melhor aplicação do direito”.
Além de tudo isto, seguindo o texto do acórdão exarado pelo conselheiro José Veloso, as alegações da ACSS não imputam qualquer “erro de julgamento de direito”, mas sobretudo “a dificuldade de execução da intimação, mormente no que respeita à concretização dos dados pessoais que devem ser expurgados, facilitando, e esclarecendo, a fase executiva que lhe compete”.
Mas essa alegada dificuldade – uma completa falácia porque a anonimização de dados, num sistema informático do século XXI, é um procedimento que exige ordens muito simples e seguras –, acrescenta o acórdão do Supremo, concordando com o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, “não deverá ser desvirtuado o reconhecimento do direito na fase declarativa mediante a antecipação das dificuldades da fase executiva.”
Em suma, a ACSS – que já defendia, em desespero, que o pedido do PÁGINA UM (um órgão de comunicação social, cujo acesso à informação constitui um direito consignado na Constituição da República) deveria ser recusado por ser “manifestamente abusivo” – terá 10 dias para fornecer finalmente o acesso e cópia digital da BD-GDH
A importância da informação contida nesta base de dados é enorme, podendo revelar mesmo informação com consequências políticas significativas, quer durante a pandemia, quer antes, quer depois.
Esta base de dados (BD-GDH), gerida sem influência governamental, integra todos os doentes internados nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde, identificando o diagnóstico principal (aquele que, após o estudo do doente, revelou ser o responsável pela sua admissão no hospital), os diagnósticos secundários (todos os restantes diagnósticos associados à condição clínica do doente, podendo gerar a existência de complicações ou de comorbilidades), os procedimentos realizados, destino após a alta (transferido, saído contra parecer médico, falecido) e, no caso de recém-nascidos, o peso à nascença.
Embora também constem dados de identificação (nome, idade e sexo), o sistema informático possibilita o expurgo dessa informação – neste caso, como se tratam de milhões de registos, basta substituir o nome do doente por um código – a base de dados é perfeitamente anonimizável.
Em todo o processo judicial, iniciado a 21 de Julho do ano passado, a ACSS – ainda presidida por Victor Herdeiro, um amigo próximo da ex-ministra Marta Temido –, esteve sempre em discussão se a base de dados continha ou não informação nominativa, como defendia o Ministério da Saúde, que é aliás argumento recorrente da estratégia de obscurantismo do Governo em matérias sensíveis politicamente.
Victor Herdeiro, presidente da Administração Central do Sistema de Saúde (quarto a contar da esquerda, ao lado da ex-ministra da Saúde): há quase um ano a tudo fazer para esconder uma base de dados politicamente sensível. O Supremo Tribunal Administrativo é a terceira instituição judicial a dar razão ao PÁGINA UM sobre o direito de acesso a informação anonimizável.
No entanto, no caso da BD-GDH, a falácia dos dados nominativos facilmente caiu por terra e nem os diversos magistrados que tiveram o processo de intimação em mãos – desde a primeira juíza do Tribunal Administrativo até aos três conselheiros do Supremo Tribunal Administrativo, passando pelos três conselheiros do Tribunal Central Administrativo Sul – foram insensíveis às alegações capciosas dos advogados da ACSS, pertencentes à sociedade BAS, que chegaram a afirmar ser tecnicamente impossível a anonimização.
Porém, a mentira tinha a perna curta. A anonimização da BD-GDH é um procedimento corriqueiro e bem conhecido da ACSS, tanto assim que esse expediente administrativo costuma estar expressamente delegado num dos vice-presidentes para conceder acessos a investigadores. Por exemplo, no presente conselho directivo da ACSS, Victor Herdeiro delegou na sua vice-presidente Sandra Brás a competência “para autorizar o fornecimento de dados anonimizados provenientes da Base de Dados Nacional de Grupos de Diagnósticos Homogéneos (BD-GDH)”, através da Deliberação 835/2021 publicado em Diário da República em 9 de Agosto de 2021.
Na verdade, o receio do Ministério da Saúde passa pela possibilidade de se fazer uma análise independente a uma das bases de dados fundamentais de avaliação do desempenho do Serviço Nacional de Saúde, que permitirá detectar situações anómalas nos hospitais, escondidas aos cidadãos e até aos próprios doentes e familiares.
PÁGINA UM quer saber o que se passa nos hospitais públicos. O Ministério da Saúde não quer que o PÁGINA UM tenha acesso a uma base de dados que revela o que se passa nos hospitais públicos.
Por exemplo, através da BD-GDH conseguir-se-á avaliar, por indicadores de internamento, a evolução de doenças e outras afecções, como enfartes ou tumores, ou mesmo a ocorrência de acidentes ou outras falhas médicas em unidades de saúde, uma vez que se mostra possível comparações cronológicas e por hospital. Conseguir-se-á também, por exemplo, esclarecer afinal se a incidência de internamentos durante a pandemia por covid-19 ou com covid-19, e mesmo a sua prevalência como infecção nosocomial (ou seja, “apanhada” durante um internamento por outra causa). Por isso, esta base de dados é politicamente sensível, mas de fundamental acesso para uma sociedade de princípios democráticos.
Aliás, no ano passado, antes de o PÁGINA UM ter solicitado acesso à BD-GDH, a informação tratada e acessível no Portal da Transparência do SNS permitira a revelação de um conjunto de situações escamoteadas pelo Ministério da Saúde durante a pandemia. Com efeito, usando a então base de dados da Morbilidade e Mortalidade – uma simplificação da BD-GDH –, o PÁGINA UM revelara que, até Janeiro de 2022, houvera menos 51 mil hospitalizações de crianças durante a pandemia por todas as doenças; apurara que a variante Ómicron tinha indicadores de letalidade inferiores aos da gripe; identificara problemas graves (com aumento de taxas de letalidade mesmo em alas não-covid); determinara que a taxa de mortalidade da covid-19 foi evoluindo ao longo da pandemia e em função dos hospitais, sendo 30% superior à das doenças respiratórias; desmistificara a alegada elevada pressão durante a pandemia, até porque houve menos 280 mil doentes por outras causas não-covid; e também identificara estranhas descidas na mortalidade por cancros e outras doenças, bem como colocara dúvidas sobre a mortalidade por covid-19 nos hospitais.
No decurso dessa investigação, Victor Herdeiro terá ordenado a suspensão da divulgação daquela base de dados, para a “análise interna”, restaurando passado algumas semanas, mas completamente mutilada. Apenas a repôs depois do PÁGINA UM ter decidido, face às evidentes manipulações, solicitar formalmente o acesso à BD-GDH, a base de dados primitiva, que também serve para determinar os financiamentos a receber pelos hospitais públicos.
Contudo, a prioridade do PÁGINA UM passou a ser o acesso à BD-GDH por ser uma base de dados com elementos em bruto, e que a serem manipulados politicamente já configuram actos criminosos, uma vez que a informação ali constante tem relevância financeira, uma vez que parte do financiamento dos hospitais públicos provêm desses registos.
N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de 18 processos em curso, o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.
De doença banal, com casos clínicos de rara gravidade, e já com imunoprofilaxia existente para bebés de risco, a Sanofi e a AstraZeneca conseguiram, num passe de mágica, que o vírus sincicial respiratório (VSR) ficasse nas bocas do mundo, enquanto aceleravam a aprovação de um novo fármaco. Nos últimos meses, a estratégia é convencer a Direcção-Geral da Saúde e o Infarmed para que a administração do novo fármaco (nirsevimab) abranja todos os bebés (e não apenas os grupos de risco), um negócio que multiplicará em mais de 20 vezes a receita anual do anterior fármaco. Para esse objectivo, as farmacêuticas contam com a “colaboração” da imprensa e também de médicos e da Sociedade Portuguesa de Pediatria, que viu os “cheques” da Sanofi no ano passado superarem o montante recebido nos cinco anos anteriores. Uma investigação do PÁGINA UM aos meandros da promiscuidade entre farmacêuticas, imprensa e médicos.
Esta é a história de mais um novo fármaco – um dos muitos que salvam vidas, evitam sofrimento, concedem melhorias. Mas é também a história de um, mais um, novo fármaco que tem de percorrer a fase seguinte ao sucesso da investigação e ao calvário das aprovações, depois de ensaios clínicos, pelos reguladores. Custe aquilo que custar, muito foi o custo de investigação, e muito dinheiro há para ganhar, não apenas para compensar os encargos dos fracassos de outras investigações, como para gratificar (e bem) os accionistas.
Mas esta é também, na verdade, a história de um novo fármaco no novo mundo da comunicação social onde já campeia, sem escrúpulos, a promiscuidade entre indústria farmacêutica, médicos e sociedades médicas e agora a imprensa, nas barbas do reguladores, que se concertam para um único objectivo: criar um ambiente favorável na opinião pública e convencer os Estados a abrirem os cofres da Fazenda Pública, porque, assim deve aparentar ser, fundamental para a saúde pública ou para a saúde individual dentro de um colectivo, um determinado fármaco, qual Santo Graal.
Esta é, portanto, a história cheia de marketing, de agenda setting, de lobbies, agora com media partners à mistura – esqueçamos o obsoleto advertising, até porque as leis do medicamento proíbem, na generalidade, com poucas excepções, a publicidade.
No corpo da notícia explicava-se que a dita Sociedade Portuguesa de Pediatria defendia “num parecer técnico enviado à Direcção-Geral da Saúde (DGS)” – que, oh! admiração, é “confidencial”, e nem o Público se mostrou interessado em o conhecer, e só depois disso fazer o artigo – que “parecem existir benefícios em introduzir em Portugal um fármaco recentemente aprovado pela Agência Europeia do Medicamento (…) à base de uma nova substância activa que previne a infecção e o desenvolvimento de doenças provocadas” pelo VSR.
Chamada de primeira página do Público da edição de 25 de Maio, anunciando que a Sociedade Portuguesa de Pediatria recomendava junto da DGS a administração universal de um fármaco da AstraZeneca. A notícia omitia então o interesse directo da Sanofi, uma das principais financiadoras daquela sociedade médica, e que tivera um conteúdo pago no Público sobre o vírus sincicial respiratório há cerca de um mês.
E, em seguida, explicitava-se que o dito fármaco é um anticorpo monoclonal denominado nirsevimab, da farmacêutica anglo-sueca AstraZeneca – aliás, a mesma empresa que já produzia um fármaco semelhante administrado a bebés prematuros ou com comorbilidades muito específicas, o palivizumab, usado em Portugal pelo menos desde 2008, de acordo com contratos consultáveis no Portal Base.
Omissão na notícia publicada originalmente: o nirsevimab não é um fármaco da AstraZeneca, aprovado em finais de Outubro do ano passado pela Agência Europeia do Medicamento, sob a forma comercial de Beyfortus. É um fármaco também da francesa Sanofi e, de uma forma mais marginal, da sueca Sobi.
A omissão no Público pode parecer irrelevante, mas não é. Pelo contrário, como sói dizer-se: o diabo está nos detalhes. Tendo sido intencional ou não – já lá iremos, nesse aspecto –, a falta de referência à Sanofi – que foi entretanto acrescentada pela direcção editorial do Público, após o PÁGINA UM a ter questionado – escondeu mais uma vez, aos olhos dos leitores, as emaranhadas relações de promiscuidade entre farmacêuticas, sociedades médicas, médicos e imprensa com o fito de promover fármacos.
A história do nirsevimab e sobretudo da ascensão do RSV como problema de Saúde Pública susceptível de fazer manchetes é um case study. Sendo case study está muito longe de ser caso único – pelo contrário.
Começa então em Março de 2017, quando a MedImmune – a biotecnológica da AstraZeneca – e a Sanofi Pasteur – a divisão de vacinas da Sanofi – anunciaram um acordo para desenvolver e comercializar um anticorpo monoclonal, então baptizado de MEDI8897. O objectivo era desenvolver um fármaco na mesma linha de um outro anticorpo monoclonal – o palivizumab, comercializado sob a forma de Synagis desde 1998 – para prevenção de doenças do trato respiratório inferior causado pelo VSR.
A empresa com a “massa” para desenvolver o MEDIU8897 era a Sanofi: o acordo de 2017 estabeleceu que esta farmacêutica francesa faria um adiantamento de 120 milhões de euros à AstraZeneca, podendo o pagamento total atingir, em função de objectivos, os 495 milhões de euros. De igual modo, entrou também em jogo a farmacêutica sueca Sobi – especializada em doenças raras – que ficou com os direitos de comercialização do Synagis (o anterior anticorpo monoclonal para prevenir o VSR) nos Estados Unidos, e uma parcela futura nos lucros do MEDI8897. Tudo isto envolveu muitos milhões. Na verdade, à cabeça a AstraZeneca recebeu da Sobi 1,5 mil milhões em dinheiro e acções, e ficaram outros montantes a aguardar novas decisões.
Na altura, o fármaco MEDIU8897 ainda estava na fase IIb dos ensaios clínicos, em bebés prematuros não elegíveis para tomar Synagis. E acrescentava então um comunicado da AstraZeneca que estava previsto na fase III dos ensaios clínicos testar-se o medicamento em bebés saudáveis. Em 2017 já estava plenamente definido que a Sanofi seria a responsável pela comercialização do fármaco, quando fosse aprovado pelos reguladores. Dir-se-ia que o novo anticorpo monoclonal tinha grande chances de sucesso comercial, porque substituiria um produto similar mais antigo, a começar por ser de apenas uma dose, ao contrário do palivizumab.
O marketing para promover mediaticamente o tema do vírus sincicial respiratório começou no final de 2021 com um evento pago pela AstraZeneca ao Público. A partir do ano passado, os eventos, também em outros media (como o Expresso) começaram a ser promovidos pela Sanofi, que tem a área comercial de um novo fármaco (com a AstraZeneca e a Sobi) aprovado na Europa. As notícias sobre o VSR e o novo fármaco aumentaram substancialmente a partir do ano passado na generalidade da imprensa.
Esse update – chamemos-lhes assim – permitiria a criação de um novo monopólio, contornando a perda da patente – e a possibilidade de venda como genérico – do palivizumab, um fármaco com duas décadas de existência.
Contudo, o mercado para os anticorpos monoclonais para o VSR era, em 2017 – como antes, e até 2020 –, bastante reduzido, circunscrevendo-se aos bebés prematuros e com determinadas patologias cardíacas e respiratórias.
Embora causando mortalidade relevante em países subdesenvolvidos – mas aí as simples diarreias mostram-se mortíferas –, o RSV sempre foi sobretudo um problema clínico de nicho nos países mais desenvolvidos, pela quase nula letalidade. Além disso, com o surgimento do palivizumab, mesmo os grupos de risco ficaram substancialmente protegidos.
Os bebés saudáveis têm, por regra, virtualmente uma baixa mortalidade e uma baixíssima morbilidade, ou seja, reduzido grau de hospitalização. Tanto assim que, por regra, antigamente eram raros os exames (testes PCR) para identificar se era o VSR o responsável por casos de bronquiolite, traqueobronquite, pneumonia viral, conjuntivite ou otite, mesmo se se sabia que mais de 90% das crianças até aos dois anos são infectadas por este vírus. A razão de não se fazer testes chamava-se pragmatismo: a identificação do VSR em caso das doenças acima referidas “não vai alterar a terapêutica instituída”, como o próprio site da Direcção-Geral da Saúde admite.
Notícia do Público de 25 de Maio omitia referência ao interesse directo da Sanofi. E incluía a opinião da pediatra Teresa Bandeira, que também emitia opinião num conteúdo pago (pela Sanofi) inserido no Estúdio P, uma secção comercial mas com textos de estilo jornalístico deste diário.
Quando se refere que o VSR era um problema clínico de nicho não significa que fosse negócio despiciendo para as farmacêuticas, e em particular para a AstraZeneca e o seu palivizumab. Muito pelo contrário. As farmacêuticas fazem-se pagar bem por medicamentos destinados a poucos clientes, sobretudo se, para salvar a vida a esses poucos clientes, os custos – leia-se, custos hospitalares, além de mortes – são relevantes.
Por exemplo, nos Estados Unidos estima-se que entre 58 mil e 80 mil crianças com menos de cinco anos sejam internadas em cada ano, até porque virtualmente todas acabam mais tarde ou mais cedo por serem infectadas. Pode parecer um valor muito elevado, mas não é: com menos de 5 anos vivem 22,9 milhões de crianças, naquele país, o que o significa uma taxa de internamento que ronda os 3 em cada 1.000 crianças.
Entre 1% e 2% dos menores de seis meses infectados por VSR acabam por necessitar de hospitalização, e uma pequena minoria pode ainda necessitar de oxigénio, fluidos intravenosos e, em casos mais graves, ventilação mecânica. Mas a mortalidade é, em países desenvolvidos, bastante rara. Aliás, o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) nem sequer apontam uma taxa de letalidade e muito menos de mortalidade.
AstraZeneca criou um anticorpo monoclonal em 1998 para imunoprofilaxia de bebés de risco contra o vírus sincicial respiratório. A pandemia da covid-19 “hipersensibilizou” a opinião pública para as infecções respiratórias. Com a investigação de um novo anticorpo monoclonal (niservimab), a AstraZeneca e a sua parceria Sanofi viram na possibilidade de administração universal um negócio fabuloso.
Contactado pelo PÁGINA UM, Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Especialidade da Ordem dos Médicos, recusando debruçar-se sobre a questão das terapêuticas, salienta que as doenças associadas ao VSR são, efectivamente, “muito comuns, embora tenham ocorrido alguns surtos fora de época durante a pandemia” da covid-19. Para este pediatra, tendo em conta que já existe a administração de um anticorpo monoclonal a grupos de risco, o alargamento para o universo dos recém-nascidos terá de ser “uma decisão política”.
Recorde-se que, em entrevista ao PÁGINA UM em Novembro do ano passado, Amil Dias defendia que “o ideal seria que ninguém ficasse doente, e todos gostávamos que nenhum de nós, nem os nossos filhos, ficasse doente, mas isso é simplesmente impossível. Se nós erradicássemos todos os micróbios que causam infecção, provavelmente nós também desaparecíamos. A nossa relação de há milhões de anos com o ambiente em que vivemos, e com os micróbios, foi estabelecendo equilíbrios do sistema imunitário, de convivência e de organização que nos permitiu evoluir. Quando desequilibramos essa relação, acontece o que vemos este ano: com o confinamento nestes últimos dois anos, de repente apareceram doenças que, em algumas crianças, tiveram uma gravidade excessiva. Foi o caso das hepatites.”
Contudo, mesmo causando doenças muito raramente graves, sabe-se que, sobretudo em idades tão tenras, não se olha muito a gastos na hora de pagar facturas às farmacêuticas. Ou melhor, olha-se mas apenas se houver alarme público e os holofotes da imprensa estiverem a pressionarem os poderes políticos. E as farmacêuticas sabem disso – e sabem bem as regras e como devem jogar bem. E definem quase sempre os preços de venda não tanto pelos custos de investigação e de produção, mas pelo estado financeiro do país e pelos custos que supostamente poupam pela eficácia do seu medicamento.
Até agora, a DGS apenas recomenda anticorpos monoclonais em bebés com determinados factores de risco. Sociedade Portuguesa de Pediatria, que recebeu 108 mil euros da Sanofi no ano passado (mais do que nos cinco anos anteriores), considera que a administração deve ser universal a todos os recém-nascidos.
Por mais loas à Humanidade que façam, o objectivo principal de uma farmacêutica é sacar o máximo possível num monopólio antes de se perder a exclusividade da patente ou que surja uma alternativa mais apelativa da concorrência. Resultado: por vezes, o negócio é ruinoso para os Estados sem grandes vantagens em termos de Saúde Pública. Um milhão a salvar uma vida pode significar muitas mais mortes porque não se alocou esse milhão para o tratamento de outra doença com fármacos mais baratos. Não são análises nem decisões fáceis de se fazerem, mas necessárias.
Por exemplo, em 2011, um artigo científico apontava que na Flórida “o custo da imunoprofilaxia com palivizumab excedeu em muito o benefício económico de prevenir hospitalizações, mesmo em lactentes com maior risco de infecção por VSR”. Isto porque o preço por tratamento era extremamente elevado. Por exemplo, em prematuros com menos de seis meses de idades, a imunoprofilaxia com este anticorpo monoclonal da AstraZeneca custava entre 3.092 mil e quase 915 mil euros.
No Canadá, onde o fármaco é comercializado pela AbbVie – devido a um acordo comercial –, o preço de venda atingia há poucos anos os 15.000 dólares por grama, sendo esta farmacêutica acusada de tácticas de vendas agressivas. Segundo uma notícia da CBC, no período de 2015-2016, o Canadá gastou 43,5 milhões de dólares para imunizar 6.392 crianças, o que significa, em média, à cotação actual, um custo de quase 4.700 euros por criança.
Mais de 90% dos bebés são infectados pelo RSV nos seus primeiros anos de vida. Em Portugal, a taxa de letalidade é irrelevante, mesmo havendo algumas centenas de internamentos por ano, porque os grupos de risco já beneficiam de imunoprofilaxia.
Em Maio de 2019, uma revisão sistemática publicada na revista científica Pediatrics, analisando 28 avaliações económicas ao palivizumab, concluiu que os elevados preços e a eficácia do fármaco apenas justificava o seu uso em prematuros – que representam cerca de 8% dos recém-nascidos –, e em lactentes com cardiopatia congénita, displasia broncopulmonar e doença pulmonar crónica. Mesmo que seja aparentemente um lote minoritário de pacientes, os valores são muito significativos.
Por exemplo, nos Estados Unidos, a farmacêutica Sobi – que tem o monopólio do palivizumab nos Estados Unidos, bem como interesses comerciais para o novo anticorpo (nirsevimab) – facturou no ano passado quase 302 milhões de euros apenas para este fármaco, uma subida de 32% face a 2021, de acordo com o seu relatório e contas.
Em Portugal, desconhece-se o número exacto de crianças a quem é administrado o palivizumab nem se sabe o preço médio de cada tratamento, mas a norma da DGS em vigor recomenda o fármaco apenas a bebés com comorbilidades específicas graves. Por agora, o negócio para este medicamento em concreto não é muito chorudo. Pela consulta dos contratos no Portal Base, desde 2008 foram comprados 9,1 milhões de euros deste anticorpo monoclonal, sendo que em 2014 se registou o maior gasto: quase 2,2 milhões de euros. No ano passado despendeu-se 713 mil euros – mesmo se houve supostamente surtos graves – e este ano já se investiu 185 mil euros.
As campanhas de marketing da Sanofi incluem produção de eventos pagos a grupos de media para promoção da prevenção contra o RSV, ou seja, de promoção de um medicamento desta farmacêutica. Os eventos têm cobertura noticiosa (travestida de conteúdo comercial), um deles contando mesmo com a presença do CEO da Impresa.
Mas entretanto, surgiu a pandemia da covid-19 e, embora num a primeira fase a gripe e outras infecções respiratórias tenham ficado em segundo plano por algum tempo – por força de uma menor prevalência dos outros microorganismos, em parte também pelas restrições físicas –, as farmacêuticas viram na hipersensibilização pública uma excelente janela de oportunidades para aumentar o negócio.
Daí que sobretudo a partir de 2021, as infecções causadas pelo VSR tenha sido catapultadas para um patamar de gravidade inimaginável. Assim, sobretudo a partir de finais de 2021 – e também depois de se anunciarem ensaios para vacinas por parte da GlaxoSmithKline, Pfizer e Moderna –, o interesse noticioso pelo VSR aumentou significativamente. E daí até se “falar” da premente necessidade de se fazer imunoprofilaxia a todos os bebés foi um passo.
Para se ter uma melhor percepção dessa mudança, vejam-se as notícias do Público sobre o RSV. Entre os anos de 2010 e 2020 encontram-se apenas três notícias sobre o VSR, sendo que apenas uma aborda especificamente este vírus. No entanto, o foco estava equilibrado: destacava-se um estudo que comprovava ser a síndrome de Down um factor de risco, tal como sucedia “nas crianças potencialmente vulneráveis, isto é, os bebés prematuros ou com doenças crónicas, em especial do foro cardíaco”.
No Expresso, os conteúdos pagos pela Sanofi foram escritos por jornalistas, apesar de ser proibido pelo Estatuto dos Jornalistas. Mas, além do conteúdos pagos, proliferaram, a partir sobretudo do final de 2021, as notícias (com suposta independência editorial) sobre a gravidade do VSR. Uma coincidência.
A esta notícia do longínquo dia 21 de Março de 2010, junta-se outra de 28 de Fevereiro de 2012, sobre as mortes acima do esperado então detectadas. O então director-geral da Saúde, Francisco George garantia, como porta-voz dos “especialistas”, que não havia razões para alarme, informando que, além da estirpe da gripe que estava a circular ser a A (H3N2), mais letal para os idosos e mais vulneráveis, havia ainda outros vírus em circulação, apontando especificamente “o coronavírus [não o SARS-CoV-2, obviamente], o adenovírus, o metapneumovírus e o vírus sincicial respiratório”.
A terceira notícia sobre VSR em 11 anos saiu em 14 de Janeiro de 2020, poucos meses antes do surgimento da covid-19 em Portugal. Porém, o foco era a habitual gripe.
Foi já em finais de 2021, estando a covid-19 ainda omnipresente, mas após um anormal pico fora de época de doenças associadas ao VSR em pleno Verão, disparou uma “epidemia de notícias” sobre o tema na generalidade da imprensa. Por coincidência – ou não – vieram com o surgimento de conteúdos comerciais à boleia de uma conferência na Culturgest, em Lisboa, organizada em 20 de Novembro desse ano pela AstraZeneca sobre, claro, o VSR. Tanto a AstraZeneca como a Sanofi estavam numa corrida contra o tempo para obterem a autorização da Agência Europeia do Medicamento (ENA) antes das vacinas desenvolvidas pela concorrência.
Conteúdo pago pela Sanofi em Abril deste ano, apresentando o VSR como “uma ameaça à saúde dos mais novos”. Não era referido especificamente o niservimab (comercializado pela Sanofi), mas surgia o pediatra Luís Varandas a falar de que “há um novo anticorpo monoclonal, já autorizado pela Agência Europeia de Medicamentos, de administração única, a recém-nascidos e lactentes, no início da estação do VSR”. A Sociedade Portuguesa de Pediatria fez entretanto lobby a favor desse anticorpo monoclonal.
Nos meses seguintes, e ao longo de 2022, a AstraZeneca seria substituída pela sua parceira Sanofi na promoção do debate em redor do VSR, tanto no Público como no Expresso. Esses eventos tiveram sempre a participação de diligentes médicos, membros de sociedades médicas, investigadores e também associações, destacando-se a Associação Portuguesa de Economia da Saúde e a Associação Portuguesa de Apoio ao Bebé Prematuro. Esta segunda associação recebeu no ano passado da AstraZeneca um apoio de 12.000 euros para as suas actividades, conforme se observa no Portal da Transparência do Infarmed.
Em paralelo, a Sanofi criou um think tank com médicos que se destacaram mediaticamente, como é o caso de Ricardo Mexia, antigo presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública e actual presidente da Junta de Freguesia do Lumiar.
O ano de 2022 teve efectivamente um boom de notícias sobre VSR em toda a imprensa portuguesa e mundial. Em Portugal, registam-se 14 no Diário de Notícias, no Observador 12, na CNN Portugal 22, e no Expresso aparecem 25 notícias, se incluirmos os conteúdos comerciais denominados Projetos Expressos – que são escritos por jornalistas isentos de processos disciplinares por esses actos pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista.
Aliás, nesses eventos – apresentados como parcerias – nunca se assume que se trata de uma prestação de serviços do Expresso nem se informa os leitores que a Sanofi pagou todo o evento e que existe a obrigação de acompanhamento mediático. A farmacêutica também não coloca o valor que paga por esta operação de marketing – que indirectamente promove um seu medicamento – no Portal da Transparência do Infarmed. Os reguladores – tanto da imprensa (ERC) como das farmacêuticas (Infarmed) fecham os olhos. Aliás, o presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo, já participou em eventos do Expresso patrocinados por farmacêuticas. E não foi apenas em um, isolado. Nem em dois. Esteve bem presente, pelo menos, em três.
Numa dessas conferências sobre RSV feitas pelo Expresso, em Novembro do ano passado, coberto para a edição semanal em papel do jornal, diz-se que “o Expresso associou-se à Sanofi para promover um debate sobre os principais vírus respiratórios que afetam as crianças, nomeadamente o vírus sincicial respiratório (RSV), que é responsável por 285 internamentos – desde outubro do ano passado até agora – e que pode causar doença respiratória grave nas crianças”.
Note-se que nessa altura já a AstraZeneca e a Sanofi tinham alcançado a aprovação do niservimab pela Agência Europeia do Medicamento, e o evento, grandioso, contou com a presença do próprio CEO da Impresa, Francisco Pedro Balsemão, e a moderação da jornalista da SIC Ana Patrícia Carvalho e até da apresentadora Carolina Patrocínio. A directora-geral da Sanofi prometia então, em declarações ao Expresso, ir “trabalhar com as autoridades portuguesas e com a DGS para que seja possível percebermos a necessidade e a possibilidade de fazermos uma imunização para o RSV”.
Conteúdos comerciais da Sanofi no Público sobre RSV também houve. E também muitas notícias. Só durante o ano passado foram 15 – e para que não se diga que se atirou um número ao calhas, aqui seguem os títulos e ligações:
Helena Freitas, director-geral da Sanofi em Portugal. Eventos pagos a grupos de media têm sido excelentes formas de marketing para estabelecer contactos com a imprensa, médicos e até reguladores, como o Infarmed.
Se considerarmos as notícias que saíram no Público desde a aprovação do niservimab (da AstraZeneca, Sanofi e Sobi) pela Agência Europeia do Medicamento – ou seja, nos últimos sete meses –, contam-se então 19 artigos, considerando os seguintes oito já publicados ao longo dos primeiros cinco meses de 2023:
Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed, tem participado em diversos eventos pagos pelas farmacêuticas ao Expresso, como em Maio do ano passado, numa conferência promovida pela GlaxoSmithKline.
Em abono da verdade, a notícia de primeira página do Público da semana passada era a sequência de um take da Lusa de 27 de Março – disseminado, como convém, pela generalidade de imprensa mainstream –, onde se anunciava que “um grupo de especialistas de diversas áreas alertou esta segunda-feira para a elevada carga em Portugal da infeção por Vírus Sincicial Respiratório (RSV), que provoca bronquiolites, defendendo que é preciso definir um método preventivo universal para todas as crianças.”
Toda esta parafernália noticiosa em redor da RSV foi sendo acompanhada pelos famigerados conteúdos comerciais. Discretos mas eficazes. E sem se ficar a saber os valores envolvidos, e sem também se ficar a saber se os contratos dispõem de cláusulas que obrigam os órgãos de comunicação social a fazer notícias para “manter a chama acesa”. Ou se o jornal mantém com notícias a “chama acesa” na esperança de serem contratados mais conteúdos comerciais da farmacêutica.
Conteúdos pagos do Público (e de outros media mainstream) são classificados como notícias pelo Google News.
Em todo o caso, o conteúdo comercial da Sanofi publicado pelo Público em finais de Abril deste ano merece uma análise cuidada. Primeiro, surge identificada como notícia no Google News. Depois, dá largas ao necessário alarmismo, usando o título: “Vírus sincicial respiratório – uma ameaça à saúde dos mais novos”.
No corpo do texto, num estilo completamente jornalístico – que induz a certeza de ter sido escrito por um actual ou antigo jornalista –, trata-se de se expor os supostos perigos críticos das doenças causadas pelo VSR em todos os bebés, e não apenas os prematuros ou com comorbilidades. Grande parte deste conteúdo comercial serviu também para divulgar os benefícios da rede de vigilância do VSR (VigiRSV), que passou a integrar 20 hospitais.
A divulgação por uma empresa farmacêutica da iniciativa de um instituto público (INSA) e de uma sociedade médica (Sociedade Portuguesa de Pediatria) para medir a incidência do RSV é mais do que óbvia: a Sanofi tinha um interesse directo em manter o tema como assunto, e sobretudo quantificando-o para assim ajudar a criar alarme social. Não por acaso, o INSA passou a divulgar, a partir do ano passado, os dados quantitativos da RSV juntamente com os da gripe – como se o grau de gravidade fosse semelhante. Aliás, muitos “especialistas”, alguns deles cronicamente associados a farmacêuticas, foram mesmo entranhando o VSR no contexto da covid-19.
Capa da edição de 4 de Novembro de 2022 do Diário de Notícias. O pneumologista Filipe Froes e outros médicos “colaram” o VSR à covid-19 e à gripe, tornando-o assim, artificialmente, um problema de Saúde Pública. Grande parte destes médicos têm fortes ligações à indústria farmacêutica.
Depois de Filipe Froes ter introduzido em Portugal a possibilidade de “uma pandemia tripla no Inverno” – covid-19, gripe e VSR, o que jamais ocorreu – , outros “opinion makers” da pandemia se juntaram, sempre colocando a VSR num nível de grave problema de Saúde Pública. Por exemplo, numa notícia da CNN Portugal em 29 de Novembro do ano passado, surgem a falar numa “epidemia tripla”, que incluiria o VSR, o presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, Gustavo Tato Borges, o investigador no Instituto de Medicina Molecular Miguel Castanho, o diretor do Centro Materno Infantil do Norte, Alberto Caldas Afonso, e ainda Bernardo Gomes.
Entre linhas, a publicidade encapotada. A notícia da CNN Portugal, escrita pela jornalista Daniela Costa Teixeira, dizia ainda que “para já, não há nenhum tratamento específico para a doença causada por este vírus, mas a Agência Europeia do Medicamento (EMA, na sigla inglesa) deu luz verde à comercialização na União Europeia (UE) do fármaco Beyfortus para a prevenção da doença do trato respiratório inferior causada pelo vírus sincicial respiratório (VSR).”
Além da publicidade por promoção de um fármaco, ainda por cima um erro crasso e grave: a notícia da CNN Portugal omite que o Beyfortus (o nome comercial do nirsevimab, da AstraZeneca, Sanofi e Sobi) não é o primeiro fármaco para prevenir as doenças associadas ao RSV; existe já o Synagis (o nome comercial do palivizumab).
Não é caso único nem se justifica por ignorância do jornalista – a ignorância no jornalismo não é aceitável. As notícias de “promoção” do VSR como problema grave de Saúde Pública e da “promoção” explícita ou implícita do nirsevimab como solução miraculosa e necessária para todos os bebés estão intimamente ligadas. No marketing farmacêutico não há coincidências. Ou então assistimos a dezenas largas de coincidências.
Notícias “favoráveis” associadas a contratos com os media para a realização de conteúdos comerciais e “eventos em parceria” passaram a ser, na verdade, peças fundamentais de marketing mascarado de publicidade. E melhor ainda se essa publicidade encapotada foi feita por médicos. Por exemplo, no texto da Sanofi de Abril passado inserido no Público como conteúdo comercial, consta o seguinte: “Mas, graças à evolução da ciência, é possível que nos cheguem boas notícias em breve, nomeadamente em termos de soluções para prevenir a doença. Segundo Luís Varandas, ‘há um novo anticorpo monoclonal, já autorizado pela Agência Europeia de Medicamentos, de administração única, a recém-nascidos e lactentes, no início da estação do VSR, e prosseguem estudos com vacinas para grávidas, com o objectivo de transmitir anticorpos ao bebé através da placenta, à semelhança do que já acontece com as vacinas contra a tosse convulsa, gripe e a Covid-19’.
Ora, nem mais: uma das “boas notícias em breve” é, segundo o pediatra Luís Varandas, o anticorpo monoclonal da AstraZeneca… e da própria Sanofi – que é quem paga o conteúdo comercial.
Mas até a chamada de primeira página da semana passada do Público sobre a elaboração de um parecer sobre o nirsevimab da Sociedade Portuguesa de Pediatria – enviado para a DGS aceitar a sua administração universal em bebés – tem água no bico.
Manuel Carvalho, director do Público, declarou por escrito ao PÁGINA UM que “o PÚBLICO e os seus jornalistas não se arrogam no direito de determinar se a administração de um medicamento, seja o nirsevimab ou qualquer outro, é cientificamente recomendada ou economicamente viável”, acrescentando que “na notícia em causa, o que se fez foi apenas noticiar que a Sociedade Portuguesa de Pediatria assumiu uma opção sobre essa questão através do envio de um parecer à DGS, no âmbito de um processo de avaliação que está em curso”. E ainda referiu que “a infecção por VSR tem, como é sabido, causado grande debate pelo elevado número de casos e de hospitalizações e, por isso, o facto de a EMA ter aprovado recentemente uma nova substância que previne a infecção, e de existir um processo de avaliação em Portugal garante a maior pertinência jornalística.”
E concluiu: “havendo posições contrárias proveniente de entidades ou personalidades credíveis, trataremos de as divulgar em nome de um debate público aberto e saudável.”
Ora, mas faltou ao Público – que refira-se, novamente, tem recebido dinheiro da Sanofi para promover o RSV como questão premente de Saúde Pública e em consequência o niservimab – informar os leitores sobre as relações comerciais entre a Sociedade Portuguesa de Pediatria e a Sanofi. E acrescentar que se intensificaram muito. E que isso até se vê numa base de dados pública: o Portal da Transparência.
Vejamos então. Em 2017, por diversos eventos, a Sanofi concedeu 21.500 euros à Sociedade Portuguesa de Pediatria, e suas “subsecções”, valor que desceu cerca de 3.000 euros em cada um dos anos de 2018 e 2019. No ano da pandemia aumentou para 23.520 euros e situou-se nos 19.602 euros em 2021. No ano passado – já em pleno funcionamento da rede de vigilância da infecção pelo RSV (VigiRSV), promovida pela Sociedade Portuguesa de Pediatria e o Instituto Nacional de Saúde (INSA), ferramenta vital para manter mediaticamente o tema em ebulição –, o fluxo financeiro da Sanofi para esta sociedade médica subiu para os 108.461 euros, o valor mais elevado de uma farmacêutica num só ano a esta associação presidida pela pediatra Inês Azevedo.
De uma forma directa, nem a Sanofi (nem a AstraZeneca) financiam a VigiRSV – pelo menos nada consta no Portal da Transparência do Infarmed –, mas a farmacêutica francesa decidiu fazer generosos donativos à SPP para os seus congressos: no de 2021 foram 27.382 euros; no de 2022 mais 58.254 euros.
Neste último caso estamos perante o mais elevado patrocínio individual, desde 2013 (ano em que começaram os registos na plataforma do Infarmed), recebido pela Sociedade Portuguesa de Pediatria, que tem como outros importantes financiadores a Pfizer, que este ano já transferiu cerca de 54 mil euros. A AstraZeneca, que não tem ingerência na comercialização do novo fármaco, deu apenas 6.000 euros à Sociedade Portuguesa de Pediatria para ter um stand no congresso do ano passado.
Inês Azevedo, presidente da Sociedade Portuguesa de Pediatria, em Outubro do ano passado, no congresso desta agremiação de médicos. A Sanofi concedeu um patrocínio directo de 58.254 euros. No total, ao longo de 2022, a farmacêutica francesa deu um apoio total superior a 108 mil euros.
Uma coisa é certa: se estas promiscuidades envolvendo imprensa, sociedades médicas (e médicos) sucedem com todo este esplendor – e sem denúncia pela própria comunicação social que dela agora está a beneficiar –, imagine-se noutros países de maior dimensão e poder económico.
No caso específico do niservimab, e de acordo com a Airfinity, garantir a administração deste fármaco a todas as crianças é um negócio verdadeiramente apetecível. Como o preço estimado será de cerca de 280 euros por criança na Europa (e 600 euros nos Estados Unidos), só em Portugal estamos a falar de mais de 22 milhões de euros por ano, considerando o nascimento de cerca de 80 mil bebés anualmente.
A Airfinity previu, aliás, uma receita potencial para a AstraZeneca e a Sanofi da ordem dos 1,1 mil milhões de dólares por conseguir a aprovação da imunoprofilaxia contra o VSR antes da concorrência.
Sanofi e AstraZeneca procuram vantagem de serem os primeiros a tentar convencer Governos a administrarem imunoprofilaxia contra o VSR a todos os recém-nascidos, e não apenas aos grupos de risco como sucedia com o primeiro anticorpo monoclonal.
No comunicado desta consultora, em vésperas da aprovação do nirsevimab pela Agência Europeia do Medicamento, citava-se mesmo um analista em ciências biológicas, Sam Campbell, que informava das vantagens em ser a primeira empresa a entrar no mercado, e que a concorrência, quando apresentasse os seus fármacos, teriam de apresentar já uma “vantagem significativa em termos de preço, logística ou eficácia”.
Por tudo isto se compreende como a imprensa mainstream não parou de falar de RSV enquanto a Sanofi e a Astrazeneca (e, de uma forma secundária, a Sobi) trabalhavam na aprovação do medicamento e implementavam uma forte campanha de marketing, envolvendo médicos e a Sociedade Portuguesa de Pediatria.
O primeiro que se levanta, abre o cofre. Sempre foi este o lema das farmacêuticas. Mas, agora, com as sociedade médicas e sobretudo a imprensa a escovarem as ditas pantufas…
Esta notícia foi objecto de um direito de resposta publicado a 26 de Outubro de 2023 por determinação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, cujo texto pode ser lido aqui.
Ainda em plena pandemia da covid-19, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou uma nova emergência sanitária em redor do surto de uma doença viral já conhecida desde 1957. Em Portugal, os primeiros casos foram detectados em 18 de Maio do ano passado. Um ano depois, a “montanha pariu um rato”: 953 casos; e apenas uma morte, segundo o Ministério da Saúde, ou nenhuma morte, segundo a OMS.
Foi apresentada como uma ameaça pandémica, ainda longe estava a pandemia da covid-19 da fase de “rescaldo”. Há um ano, no dia 18 de Maio de 2022, o vírus causador de uma doença denominada Monkeypox (varíola-dos-macacos) – entretanto rebaptizada como Mpox – causava apreensão, e a Direcção-Geral da Saúde (DGS) começava a apresentar relatórios diários sobre a evolução dos casos em Portugal, na linha das preocupações transmitidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Por exemplo, nesse dia, a CNN Portugal salientava que os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos afirmava que os relatos chegados de África indicavam que “a varíola dos macacos causou a morte a uma em cada dez pessoas que ficaram doentes”, acrescentando ser “uma taxa alta [10% de letalidade], mas ainda assim bastante abaixo da varíola comum, que antes de ser considerada erradicada, por meio da vacina, matava cerca de 30% dos doentes, segundo dados da Organização Mundial de Saúde”.
Mas, na verdade, a evolução mundial da Mpox – mesmo se apenas há uma semana deixou de ser emergência internacional de saúde pública – ficou muito aquém das previsões mais catastrofistas. De acordo com o mais recente relatório da OMS, foram reportados 87.377 casos positivos de Mpox até 8 de Maio deste ano, envolvendo 111 países, que resultaram em 140 óbitos. Ou seja, uma taxa de letalidade de 0,16%.
Contudo, mesmo sendo globalmente já bastante baixas, as taxas de letalidade foram muito distintas entre continentes e países. Em África registaram-se 18 mortes em 1.587 casos positivos, uma taxa de letalidade de 1,13%, enquanto na Europa essa taxa foi de 0,02%, que correspondeu a seis óbitos decorrentes de 25.891 casos positivos.
Os cinco países com maior número de óbitos foram os Estados Unidos (com 42 óbitos e uma taxa de letalidade de 0,14%), México (com 26 óbitos e uma taxa de letalidade de 0,65%), Peru (com 20 óbitos e uma taxa de letalidade de 0,53%), Brasil (com 16 óbitos e uma taxa de letalidade de 0,15%) e Nigéria (com 9 óbitos e uma taxa de letalidade de 1,08%). Apesar do alarme global, apenas houve registo de mortes em 20 países, dos quais oito contabilizando um óbito.
De acordo com este relatório da OMS, na Europa (incluindo Israel) apenas foram reportadas três mortes em Espanha, duas na Bélgica e uma na República Checa. Sobre Portugal, a OMS aponta zero mortes em 953 casos.
Esta informação não coincide, porém, com a transmitida ao PÁGINA UM por fonte oficial do Ministério da Saúde, que salienta ter ocorrido “em Abril de 2023, um caso fatal num indivíduo com comorbilidade a condicionar imunodepressão grave, que apresentou uma evolução rara da Mpox para uma forma progressiva e disseminada”.
Ontem, o Ministério da Saúde destacou que “o controlo desta epidemia só foi possível pela pronta resposta a nível nacional, nomeadamente em termos de diagnóstico clínico e laboratorial da infeção, reforçando-se a cooperação entre os organismos do Ministério da Saúde e as associações de base comunitária.”
No comunicado do Ministério da Saúde, é apresentada uma citação da secretária de Estado da Promoção da Saúde, Margarida Tavares, que destaca que “o trabalho com as comunidades em maior risco e a rápida partilha de informação e boas práticas entre os países mais afetados foi crucial”, acrescentando que isso “permitiu dar novos passos na preparação dos sistemas de saúde para a vigilância e intervenção face a doenças infeciosas emergentes, realidade que as alterações climáticas e maior circulação de pessoas torna hoje mais premente”.
O Ministério da Saúde diz também que “foi possível interromper as cadeias de transmissão, através do diagnóstico, sensibilização e, posteriormente, através da vacinação”. Segundo o Ministério da Saúde, “numa primeira fase, a vacina foi oferecida a pessoas que tinham tido contacto com alguém infetado, com posterior alargamento a outros indivíduos em maior risco”, abrangendo até ao final da semana passada 3.554 indivíduos, a maioria na região de Lisboa e Vale do Tejo.
Esta operação não terá tido encargos públicos. Fonte do Ministério de Manuel Pizarro informou o PÁGINA UM que “Portugal recebeu até à data um total de 11.460 doses da vacina, todas doadas no âmbito da aquisição conjunta por parte da Autoridade Europeia de Preparação e Resposta a Emergências Sanitárias”.