Categoria: Saúde

  • Gastos da pandemia: ‘Truque jurídico’ e completo descontrolo escondem compras milionárias (e algumas ilegais)

    Gastos da pandemia: ‘Truque jurídico’ e completo descontrolo escondem compras milionárias (e algumas ilegais)

    Durante a pandemia, para agilizar procedimentos – e ‘salvar vidas’ – foi criado um regime de excepção para as compras urgentes por entidades públicas no sector da Saúde: bastava uma factura e pagava-se sem haver um tecto. Ficou, porém, prometida a publicação de todos os contratos no Portal Base – algo que não é garantido ter acontecido – e a realização de um relatório a publicar no site da empresa pública Serviços Partilhados do Ministério da Saúde. Mas o relatório acabou por não ser feito, até agora, graças a um ‘truque jurídico’. Apesar de a SPMS prometer que o vai fazer, adianta já que só tem conhecimento de um ajuste directo em regime simplificado… Um caso anedótico, se não fosse grave, pois, na verdade, um levantamento do PÁGINA UM aos contratos em regime de excepção inscritos no Portal Base revelam – e podem faltar muitos – largos milhares de compras por ajuste directo em regime simplificado, totalizando mais de 90 milhões de euros. Só em quase mil ventiladores comprados gastou-se cerca de 27 milhões de euros. Alguns destes contratos estão feridos de evidentes ilegalidades, incluindo o maior: quase 20 milhões de euros do polémico antiviral Paxlovid foram comprados pela Direcção-Geral da Saúde à Pfizer quando este regime de excepção já não podia ser usado por o Governo o ter revogado há três meses. Esse contrato esteve escondido do Portal Base durante cerca de 11 meses. Mas há mais… para daqui a uns tempos o Tribunal de Contas se entreter depois a fazer um relatório crítico que dará em nada.


    Milhões e milhões de euros gastos sem controlo. Ou descontrolo absoluto. Quase um ano depois da declaração sobre o fim da pandemia (como emergência global) pela Organização Mundial da Saúde, em Portugal ninguém sabe quanto se gastou e quem gastou em aquisições de bens e serviços usando um regime simplificado de ajuste directo, porque nunca foi elaborado e publicado um relatório conjunto a ser elaborado por entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde por via de um ‘truque legislativo’.

    A obrigação deste relatório estava consignada num diploma inicialmente publicado em Março de 2020 – e sistematicamente alterado nos meses seguintes – que possibilitava a aquisição de ajuste directos independentemente do montante sem necessidade de quaisquer procedimentos formais, ou seja, sem contrato escrito e com uma simples factura e ordem de pagamento, sem sequer especificar em concreto, em diversos casos, os bens e serviços adquiridos. E sobretudo sem fiscalização prévia do Tribunal de Contas. Foi enquadrado nesta simplificação que se compraram, sobretudo nas primeiras fases da pandemia, os famigerados ventiladores a empresas chinesas – alguns que nunca funcionaram –, e também muito equipamentos de protecção individual e alguns fármacos.

    woman in black jacket holding white paper

    Independentemente da obrigação de colocar estas compras no Portal Base, as entidades autorizadas a fazerem estas compras – entre as quais a Direção-Geral da Saúde, a Administração Central do Sistema de Saúde, o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge e a Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) – tinham também de comunicar estas adjudicações aos ministros das Finanças e da Saúde. E mais: ficou expressamente estabelecido que estas entidades deveriam elaborar um relatório conjunto a ser publicado no prazo de 60 dias após o período de vigência do decreto-lei.

    E é aqui que começa o imbróglio legislativo que, na verdade, implica, na interpretação da SPMS, a desobrigação legal de elaboração e conhecimento público cabal destes gastos sem controlo.

    Com efeito, apesar de 83 dos 91 artigos desse diploma terem sido revogados, grande parte dos quais a partir de Setembro de 2022, significa assim que algumas normas de pormenor ainda o colocam como estando em vigor. De entre os poucos artigos que ainda se aplicam está a prorrogação dos vistos de permanência em território nacional que tenham perdido a validade desde Março de 20200, que se genericamente se manterá até 30 de Junho deste ano. Ou seja, em concreto, estando-se em Abril de 2024, não se poderia sequer dizer que havia legalmente um atraso na elaboração do relatório e a sua publicação no site da SPMS, como previsto na primeira metade de 2020.

    Porém, houve um ‘truque jurídico’ cometido pelo anterior Governo, e mesmo que entretanto o Governo Montenegro ‘encerre’ a vigência da totalidade do diploma – ou seja, que o revogue na íntegra –, a exigência da elaboração do relatório deixou de ter cabimento legal, porque o artigo que o previa foi primeiro, deixando de estar em vigor desde 1 de Outubro de 2022. Ou seja, a norma que exigia a elaboração do relatório já não existe quando o diploma onde essa norma esteve inicialmente integrada for ‘eliminado’. Uma ‘eficácia jurídica’ absoluta.

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    Esta é, aliás, a interpretação da presidente da SPMS, Sandra Cavaca, que em resposta a um pedido de documentação administrativa pelo PAGINA UM diz que “a elaboração e a publicação daquele relatório conjunto inicia a sua contagem apenas após o período de vigência do decreto-Lei nº 10-A/2020”, mas tal prazo ainda não se aplica porque “o diploma globalmente considerado permanece vigente”. Mas acrescenta que como o artigo 2º-A, aquele que previa o relatório, foi expressamente revogado, “verdadeiramente não se mantém essa obrigação”.

    Em todo o caso, Sandra Cavaca diz que a SPMS “encetou antecipadamente  diligências no sentido da elaboração do relatório em questão, cuja preparação já se encontra em curso”, não revelando a datada sua conclusão. Porém, esta responsável adianta, desde já, que se “apurou apenas uma adjudicação ao abrigo do procedimento de ajuste directo simplificado”.

    Ora, é aqui que surge mais uma estranheza – ou estupefacção – neste processo de ‘compras à Lagardère’, porque no Portal Base encontram-se alguns milhares de contratos por ajuste directo simplificado celebrados ao abrigo do diploma de excepção – e podem estar muitos casos em falta. Num rápido levantamento do PÁGINA UM, contabilizam-se 1.436 contratos desta natureza com valor superior a 18.000 euros. Note-se que, em situações normais, o regime simplificado para aquisição de bens e serviços só é possível em aquisições até 5.000 euros.

    Sandra Cavaca, presidente da Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS).

    De acordo com este levantamento, o montante destas compras durante a pandemia acima de 18.000 euros totalizam mais de 91 milhões de euros, destacando-se nove compras acima de um milhão de euros e mais 15 ajustes directos em regime simplificado com montantes entre 250 mil e um milhão de euros.

    No topo dos contratos está, na verdade, um contrato ferido de ilegalidade, já desvendado pelo PÁGINA UM em Novembro passado: a Direcção-Geral da Saúde celebrou um contrato no valor de 19,95 milhões de euros do antiviral Paxlovid em 31 de Dezembro de 2022, ou seja, quase três meses após a revogação da possibilidade de fazer uma compra desta ordem de grandeza através de regime simplificado. Ainda por cima, a DGS escondeu esse contrato do Portal Base durante cerca de 11 meses. O Tribunal de Contas ainda não se pronunciou sobre esta evidente ilegalidade.

    Outra compra polémica no sector da farmacologia, feita ao abrigo deste regime de excepção, beneficiou a farmacêutica Merck Sharpe & Dohme que conseguiu convencer a Direcção-Geral da Saúde gastar 3,05 milhões de euros de mulnopiravir em 22 de Setembro de 2022, poucos dias antes da revogação da norma que permitia ajustes directos em regime simplificado, daí que nem sequer se saiba o número de unidades adquiridas. Relembre-se que o molnupiravir, sob a marca comercial Lagevrio, obteve autorização em finais de 2021 na Europa e foi logo bastante elogiado por vários especialistas, estando à cabeça, em Portugal, o actual bastonário da Ordem do Farmacêuticos, Hélder Mota Filipe, e o pneumologista Filipe Froes, um médico do SNS, consultor da Direcção-Geral da Saúde e um dos mais promíscuos consultores de farmacêuticas.

    Porém, o molnupiravir acabou ingloriamente os seus dias em Julho do ano passado, depois de evidência da sua completa ineficácia. Mas antes da retirada do mercado, confirmada pelo Infarmed em 17 de Julho, a Merck embolsou com este “embuste”, e com a conivência de reguladores e o apoio de influencers de Medicina, um total de 5,7 mil milhões de dólares em receitas só em 2022. Recentemente, este fármaco foi mesmo considerado, num artigo científico, como promotor de mutações do SARS-CoV-2

    O segundo maior contrato por ajuste directo simplificado ultrapassou os 10,8 milhões de euros para aquisição de 243 ventiladores à empresa chinesa Guangdong H&P. Comprados em Agosto de 2020, casa unidade ficou a 44.500 euros. O terceiro maior foi também para comprar mais ventiladores: neste caso em Maio de 2020 à empresa chinesa WinWin Machinery no valor de quase 5,2 milhõe4s de euros. Como a compra foi de 300 unidades, o custo unitário pouco ultrapassou os 17 mil euros. Os preços especulativos dos ventiladores foram uma imagem de marca nos primórdios da pandemia: houve um contrato de Março de 2020 com um preço unitário de apenas 10 mil euros.

    Os ventiladores foram, na verdade, os itens mais ‘valiosos’: de entre os 25 maiores contratos por ajuste directo em regime simplificado, 11 estão associados a ventiladores. Somando os contratos que discriminam o número de ventiladores, Portugal terá adquirido através de uma simples factura pelo menos 976 ventiladores que custaram quase 27 milhões de euros, com um preço médio unitário de cerca de 27.570 euros.

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    Nesta análise preliminar do PÁGINA UM também se mostra evidente que houve abusos no uso do regime de excepção, não controlados sequer pelo Tribunal de Contas. Com efeito, este procedimento “só pode[ria] ser promovido pela Direção-Geral da Saúde, pela Administração Central do Sistema de Saúde, I. P., pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, I. P., e pela Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, E. P. E. (SPMS, E. P. E.), relativamente a bens que se destinem a entidades sob tutela do membro do Governo responsável pela área da saúde”.

    No entanto, houve outras entidades de âmbito público que o usaram sem sequer deterem competências específicas no sector da saúde. Por exemplo, em Agosto de 2020 o município de Cascais vendeu ao município de Mafra “equipamento (vestuário) de protecção, no âmbito do COVID [sic]” no valor de 400.842 euros. Não existe informação sobre qual o equipamento e quantas unidades.

    Mais estranho ainda foi o contrato por ajuste directo em regime simplificado no valor de 158.800 euros entre a Leque – Associação de Pais e Amigos com Necessidades Especiais e a Casa da Música. Sem prejuízo de se poder considerar necessária, durante a pandemia, a “aquisição de serviços de componente artística de inclusão social”, não se consegue entender como este contrato pôde beneficiar de uma norma de um diploma de Março de 2020 quando, de acordo com a informação no Portal Base, foi celebrado em 5 de Setembro de 2019, ou seja, seis meses antes da chegada oficial do SARS-CoV-2 em território português. Note-se que este contrato irregular seria divulgado apenas em Setembro de 2021, isto é, dois anos após a data do contrato. Como se está perante um ajuste directo em regime simplificado nem sequer se sabe qual foi o prazo de execução.

    Ofício da presidente da SPMS adianta ter conhecimento de apenas “uma adjudicação ao abrigo do procedimento de ajuste directo simplificado” previsto no Decreto-Lei nº 10-A/2020. Numa consulta no Portal Base, podendo faltar muitos, listam-se vários milhares.

    Há ainda outros dois contratos em regime simplificado um pouco acima dos 100 mil euros, ambos a beneficiarem a MEO, que foram celebrados por entidades não ligadas ao sector da saúde: a autarquia de Odivelas e a Autoridade para as Condições do Trabalho. Neste caso, o abuso é duplo, porque estas duas entidades recorreram ao regime de excepção para a aquisição de computadores.

    Ora, o diploma, saliente-se, somente era permitido para a “aquisição de equipamentos, bens e serviços necessários à prevenção, contenção, mitigação e tratamento de infeção por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, ou com estas relacionados, designadamente equipamentos de proteção individual; bens necessários à realização de testes à covid-19; equipamentos e material para unidades de cuidados intensivos; medicamentos, incluindo gases medicinais; outros dispositivos médicos; [e] serviços de logística e transporte, incluindo aéreo, relacionados com as aquisições, a título oneroso ou gratuito, dos bens referidos” anteriormente, “bem como com a sua distribuição a entidades sob tutela do membro do Governo responsável pela área da saúde ou a outras entidades públicas ou de interesse público às quais se destinem”.


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  • Pandemia em Cascais: Conheça os felizes contemplados com o ‘rico bodo’ de 24,6 milhões de euros

    Pandemia em Cascais: Conheça os felizes contemplados com o ‘rico bodo’ de 24,6 milhões de euros

    Durante a pandemia, a Câmara de Cascais não fez apenas estranhos negócios com uma empresária chinesa que envolveu a produção de máscaras e transação de propriedades. Destacou-se também como a autarquia que mais contratos celebrou para comprar máscaras e testes, pagar pessoal de enfermagem e reabilitar edifícios e o mais que houvesse associado à pandemia. Dinheiro não faltou e 58 empresas esfregaram as mãos com a distribuição de mais de 24,6 milhões de euros, sobretudo uma, a Enerre, cujo dono lucrou tanto com a pandemia que até foi correr o Rally Dakar. No meio deste ‘bodo’, mas para ricos, até uma cidadã da Letónia conseguiu impingir equipamento para alegadamente eliminar o SARS-CoV-2 por 277 mil euros, através de uma empresa criada poucos meses antes e que se ‘esfumou’ entretanto.


    Além de ter encetado um estranho negócio para a produção de máscaras de protecção facial – que também envolveu transação de propriedades, alvo ontem de buscas pela Polícia Judiciária –, a autarquia de Cascais destacou-se durante a pandemia a nunca olha a custos. Quase sempre através de ajustes directos.

    De acordo com um levantamento exaustivo do PÁGINA UM no Portal Base, a Câmara Municipal de Cascais, liderada por Carlos Carreira – que era ‘coadjuvado’ por Miguel Pinto Luz, actual ministro das Infraestruturas –, gastou em pouco mais de dois anos cerca de 24,6 milhões de euros em equipamentos e serviços associados ao combate à pandemia, envolvendo um total de 98 contratos que beneficiaram 58 empresas. Apenas cinco contratos, de pequena dimensão, foram realizados após consulta prévia. A autarquia usou e abusou da faculdade de escolher a dedo os fornecedores.

    E há uma em especial que não se pode jamais queixar: a Enerre. Para esta empresa lisboeta, que antes da pandemia fazia brindes e estampagem de t-shirts, a covid-19 foi a sorte grande. Tanto assim que o seu proprietário deu-se logo em finais de 2020 em fazer o Rally Dakar. Pudera: nesse ano registou lucros de quase 18,2 milhões de euros, cerca de 60 vezes mais do que no ano anterior à pandemia.

    Carlos Carreiras tornou-se, como edil de Cascais, o principal ‘cliente pandémico’ da Enerre, que ainda criaria em 2021 a Enerre Pharma. Antes do surgimento do SARS-CoV-2, a Enerre apenas tivera um contrato com a autarquia cascalense de cerca de 59 mil euros em 2019 para a produção de brindes. Mas depois, foi um fartote. Incluindo a sua subsidiária, a Enerre facturou mais de 14,8 milhões de euros, dos quais quase 12 milhões logo no primeiro da pandemia. Sempre sem competição.

    Os cinco maiores contratos associados à pandemia celebrados por Carlos Carreiras foram todos para a Enerre, sendo que o maior foi assinado em 7 de Abril de 2020. Pela ‘módica quantia’ de 4.857.500 euros foram adquiridas 1,2 milhões de luvas, 2 milhões de máscaras cirúrgicas, 250 mil máscaras FFP2, 200 mil batas e 50 mil viseiras. No caderno de encargos não foi sequer discriminado o preço unitário, sendo certo que o preço médio por cada item adquirido chega a quase 1,3 euros. Foi o tempo da especulação. Mas esse contrato até foi apenas um ‘reforço’ de um outro ajuste directo em 20 de Março, pelo preço de quase 1,2 milhões de euros para adquirir 1,7 milhões de máscaras cirúrgicas, 50 termómetros, dois mil viseiras e dois fatos macacos.

    Não foi apenas a vender equipamentos de protecção individual que a Enerre ganhou dinheiro. De entre os contratos desta empresa, dos quais 12 acima dos 400 mil euros (ou de valor igual), sempre por ajuste directo, estão também vendas de testes e de máquinas dispensadoras de máscaras, bem como de consumíveis para a produção de máscaras. Os dispensadores de máscaras, que acabaram vandalizados, custaram 800 mil euros.

    Carlos Carreiras, edil de Cascais, ostentando um galardão entregue pelo ISCTE como reconhecimento pelo Programa Máscaras Acessíveis e Fábrica de Máscaras em Novembro de 2020.

    Bastante afastada da Enerre, o segundo maior beneficiário das compras de Carlos Carreiras foi uma empresa de segurança, a PSG. Entre 2020 e 2022, esta empresa obteve sete ajustes directos no valor total de mais de 1,4 milhões de euros, o primeiro dos quais em Abril de 2020. O grosso da facturação foi para vigilância dos centros de rastreio e de apoio à vacinação. O último foi assinado em Setembro de 2022, no valor de 212 mil euros, embora fosse também para vigilância de centros de acolhimento.

    Também com facturação acima de um milhão de euros associados à pandemia encontram-se mais duas empresas, a Briticasa (com quase 1,2 milhões de euros) e a Blue Ocean Medical (com 1,15 milhões de euros). A primeira empresa foi escolhida por Carreiras para quatro empreitadas por ajuste directa. Em Junho de 2020 pelas obras de reconversão de um armazém pagou-se mais de 342 mil euros; depois em Janeiro do ano seguinte foi mais uma empreitada para criação de sete gabinetes médicos no Centro de Congressos do Estoril (com um custo de 72 mil euros) e até ao meio de 2021 dois ajustes directos para empreitadas de reabilitação destinadas a centros de vacinação, que totalizaram 780 mil euros.

    Quanto à segunda empresa, trata-se de uma prestadora de trabalho temporária, neste caso de pessoal de enfermagem para os centros de vacinação. Por quatro ajustes directos, a autarquia de Cascais celebrou sem pestanejar – ou seja, nem sequer fez consulta de mercado – quatro contratos por ajuste directo entre Março de 2021 e Março de 2022. O primeiro contrato, no valor de 150 mil euros, celebrado em Março de 2021 deveria ter tido uma duração de 304 dias, mas acabaria por ser ‘reforçado’ por mais três, dois de 350 mil euros e outro de 300 mil.

    A pandemia permitiu ao dono da Enerre, Lourenço Rosa, aumentar em 60 vezes o lucro de 2020 face ao ano anterior. Como ‘prémio pessoal’, foi participar no Rally Dakar. A autarquia de Cascais foi o seu melhor cliente, facturando 14,8 milhões de euros.

    Excluindo um ‘contrato interno’ – em Julho de 2020, a autarquia pagou 540 mil euros à sua empresa municipal Cascais Dinâmica pelo aluguer de 60 dias do Centro de Congressos do Estoril –, também se destaca nesta distribuição de dinheiros públicos a celebração de dois contratos no valor de um milhão de euros com dois importantes laboratórios de análises: os de Joaquim Chaves e os de Germano de Sousa. O primeiro contrato, porém, só resultou no pagamento de pouco mais de 28 mil euros, enquanto o segundo acabou por dar uma despesa de pouco mais de 65 mil euros. Estes testes serviam para detectar a presença de anticorpos após a infecção pelo SARS-CoV-2, mas a autarquia não se mostrou interessada em monitorizar a eficácia protectora da vacina e da imunidade natural.

    No meio dos contratos com valor mais elevado destaca-se ainda um completamente estapafúrdio. A empresa municipal Cascais Próxima decidiu comprar a uma empresária da Letónia, a morar no Porto, de seu nome Liene Strode, um “equipamento de purificação e desinfecção de ar com eficácia contra o SARS-COVID 19 [sic], incluindo o transporte, descarga e entrega”. O caderno de encargos está ausente no Portal Base, sabendo-se apenas que foi pago 277.200 euros em Fevereiro de 2021.

    A empresa, denominada Real Amplitude, foi criada apenas em 2 de Junho de 2020, mas só conseguiu convencer mais uma entidade pública dos seus ‘magníficos’ equipamentos, que a Agência de Protecção Ambiental norte-americana (EPA) diz “não ser suficiente para proteger as pessoas da covid-19” –, tendo vendido em Março de 2021 por 4.466 euros um outro equipamento de purificação e desinfecção para a covid-19 ao município de Torre de Moncorvo. Como foi celebrado por ajuste directo simplificado nem sequer houve contrato escrito.

    Miguel Pinto Luz, actual ministro das Infraestruras e Habitação, ocupou até Janeiro deste ano a vice-presidência da autarquia de Cascais.

    A empresa da cidadã letã não apresentou contas em 2022 e não tem sequer um site se encontra qualquer site, o que é estranho para quem, no objecto social, se apresenta como “agentes do comércio por grosso de máquinas, equipamento industrial, embarcações e aeronaves; agentes do comércio por grosso misto sem predominância como por exemplo, produtos médicos e de higiene; comércio por grosso de produtos químicos; comércio por grosso de outros bens intermédios”.

    Mas, afinal, a venda deste ‘equipamento’ a Cascais só custou 277.200 euros, pouco mais de 1% daquilo que o município de Carlos Carreiras distribuiu a dezenas de empresas sem qualquer controlo.

    Saliente-se ainda que, ao contrário do que disse Carlos Carreiras, o actual ministro das Infraestruturas, Miguel Pinto Luz, não esteve alheado dos contratos associados à pandemia. Foi ele que em Junho de 2020 se destacou na promoção da unidade de produção de máscaras na tal unidade com equipamentos vindos da China, e que prometiam tornar o município auto-suficiente e até vender para outras autarquias. Acabou tudo em logro, até porque a sua maquinaria rapidamente avariou.


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  • Pandemia: Suicídios bem para cima em Espanha, mas para baixo em Portugal

    Pandemia: Suicídios bem para cima em Espanha, mas para baixo em Portugal

    Dados actualizados no início deste mês pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) mostram que se contabilizaram em Portugal menos suicídios em 2020 e 2021, face aos anos anteriores, embora informações do Eurostat mostrem que houve um aumento relevante nos menores de 25 anos. Porém, na Espanha a gestão da pandemia ‘bateu forte’, com um aumento de 28% no total das mortes auto-infligidas no biénio de 2020-2021 quando comparado com os dois anos anteriores à pandemia. Um estudo agora divulgado numa revista científica sobre a realidade espanhola disseca as causas e os grupos de risco, expondo os fortes danos causados por medidas que levaram ao isolamento social. Também uma recente revisão sistemática que analisou 34 estudos científicos recomenda uma análise mais aprofundada aos anos pós-pandemia para se avaliar os verdadeiros impactes das restrições impostas durante a pandemia, com perda de laços sociais e degradação da situação económica.


    Afinal, Portugal registou menos suicídios nos dois primeiros anos da pandemia, mantendo inalterada a tendência decrescente da última década, mas na vizinha Espanha – que foi alvo de um exaustivo estudo sociodemográfico agora publicado numa prestigiada revista científica – os números aumentaram, ultrapassando a fasquia das 4.000 mortes em 2021.

    Os dados portugueses foram agora actualizados pelo Instituto Nacional de Estatística, no passado sábado com a divulgação da causa de morte em 2021, e indicam que afinal foram 934 as pessoas que tiraram a sua própria vida. Estes números são ligeiramente mais baixos (menos 18 óbitos) do que os avançados pelo Instituto de Medicina Legal para o mesmo período, que em 2022 divulgou que, no ano anterior, se tinham registado 952 suicídios. Certo é que os números agora indicados pelo INE são os mesmo que constam no Eurostat. Os números de 2021 são também inferiores aos de 2020, que contabiliza 945. Comparando este biénio com o de 2018-2019, observa-se um decréscimo de 5,5%.

    angel statue

    Esta descida nos suicídios em território nacional ocorreu num período de confinamentos, encerrament0 de escolas e outras medidas políticas geraram um forte impacto negativo na saúde mental da população. Embora os dados do INE não mostrem informação por grupo etário, a base de dados do Eurostat revela que em Portugal tiraram a vida 80 jovens com menos de 25 anos no biénio 2020-2021, quando esse número se situou nos 66 no biénio 2018-2019. Recorde-se que Portugal optou por seguir a maior parte dos países europeus e impor fortes medidas restritivas, enquanto a Suécia manteve a sua economia a funcionar e, em geral, com ligeiras excepções, não impôs confinamentos, nem fechou escolas nem comércio e não recomendou o uso de máscara facial. Note-se que no caso da Suécia, o suicídio jovem (menos de 25 anos) diminuiu durante a pandemia, embora este seja um país tradicionalmente com uma muito elevada prevalência mortes auto-infligidas (oficialmente, cerca de três vezes superior à portuguesa=.

    A tendência observada pelos dados do INE está também em forte contraciclo com os suicídios registados em Espanha durante a pandemia. Segundo um estudo científico da edição do próximo mês de Maio, mas já online, da revista revista European Neuropsychopharmacology as mortes por suicídio em Espanha nos dois primeiros anos da pandemia foram de 3.941 em 2020 e de 4.003 em 2021. Estes são os números mais elevados pelo menos desde 2013, de acordo com a base de dados do Eurostat. Comparando 2020-2021 com os dois anos anteriores à pandemia, a subida é de 28%.

    O estudo sociodemográfico elaborado por uma equipa multidisciplinar de Espanha, Estados Unidos e México confirma “um número crescente de vítimas de suicídio na Espanha durante a pandemia”, concluindo que “a influência da covid-19 nos factores de risco de suicídio [por exemplo, falta de redes de apoio social] desempenha[ram} um papel crítico na tendência crescente de grupos sociodemográficos específicos”.

    Evolução do número de suicídios na Espanha (esquerda) e em Portugal (direita) entre 2013 e 2022. Fonte: Eurostat. Nota: A população espanhola é 4,59 vezes a portuguesa.

    Apesar de os investigadores terem observado “um aumento global, independentemente dos principais grupos sociodemográficos”, concluíram que se registou “um número significativamente maior de suicídios também foi observado para adultos de meia-idade, grandes áreas urbanas e pessoas solteiras”.

    Os investigadores destacaram ainda que, “as medidas de distanciamento social permitiram reduzir as oportunidades de fazer e fortalecer as redes sociais em pessoas solteiras”. Recordaram que “as medidas de distanciamento social foram mais rigorosas nas capitais de província e nas grandes áreas urbanas, aquelas com acesso limitado a espaços verdes ao ar livre”. Assim, “a implementação de medidas de distanciamento social levou definitivamente a uma redução drástica dos contactos sociais através do distanciamento físico, confinamentos domiciliários e o encerramento temporário de muitas atividades sociais nas grandes áreas urbanas (restaurantes, bares, ginásios,…)”.

    O impacte da gestão da pandemia nas doenças mentais e na promoção de factores de risco do suicídio tem vindo a merecer uma reforçada atenção da investigação científica. Por exemplo, uma recente revisão sistemática, publicada em Fevereiro passado na revista Social Psychiatry and Psychiatric Epidemiology concluiu, após analisar 34 estudos realizados em mais de 40 países e regiões, que “nenhuma mudança significativa nas taxas de suicídio foi observada durante a pandemia de covid-19 de uma perspectiva global para os períodos examinados”. Mas os autores do estudo intitulado sugeriram que fosse realizado “um acompanhamento mais longo pode fornecer informações adicionais sobre essas tendências de suicídio globalmente”.

    Para a psicóloga Joana Amaral Dias, ainda é prematuro tirar conclusões destes dados divulgados pelo INE relativos a Portugal. “Como investigadora e especialista, não confio nos novos dados. Por um lado, sabemos que foram baralhadas as mortes por covid-19 com as mortes por outras causas. Por outro lado, os dados estiveram escondidos e demoraram tempo a ser divulgados”, afirmou em declarações ao PÁGINA UM.

    Primeira página do artigo científico da edição de Maio da revista European Neuropsychopharmacology, já disponível online desde o mês passado, aborda em detalhe o forte impacte da pandemia nos suicídios em Espanha durante a pandemia.

    Salientando que a aparente tendência de descida dos suicídios em Portugal na pandemia, indicada pelos números oficiais, não batem certo com a epidemia de doenças do foro mental, a psicóloga relembra que “as pessoas foram sujeitas a pressão sobre a sua saúde mental devido às restrições impostas”. “Houve um acréscimo brutal de casos de ansiedade e depressão na população, que é a base que leva aos suicídios”, salientou.

    Para Joana Amaral Dias defende a necessidade de aguardar pelos dados de 2022 e 2023 para se poder tirar alguma conclusão, referindo que em 2020 e 2021 a população entrou em “modo de sobrevivência devido ao medo imposto, nomeadamente através da comunicação social”, havendo consequências que demoram a surgir. “É como quando estamos a correr e caímos e magoamos o joelho. Inicialmente, porque o corpo está quente, conseguimos levantar e andar e quase não sentimos dores. Mas, quando ficamos frios, aí as dores surgem e vamos dar-nos conta dos reais danos”. No caso dos suicídios em Portugal, “temos de esperar pelos dados de 2022 e 2023 para ver o que realmente aconteceu na pandemia”. Para a psicóloga, os dados divulgados pelo INE “são insuficientes para se traçar um perfil” do que sucedeu na pandemia em matéria de evolução dos suicídios.

    Por outro lado, Joana Amaral Dias recordou que muitos portugueses recorreram ao consumo de álcool ou de estupefacientes para lidar com os confinamentos e as fortes restrições impostas à população. “Disparou o consumo de antidepressivos e ansiolíticos e somos campeões no consumo de benzodiazepinas”, lembrou.

    Com efeito, um relatório do Conselho Internacional de Controlo de Narcóticos colocou Portugal no grupo de países com maior consumo de psicotrópicos, como o diazepam, que começou a ser comercializado sob a marca Valium. Já o relatório anual deste organismo da Nações Unidas refere que, em 2022, o Uruguai registou o maior nível de consumo de zolpidem (um fármaco hipnótico) a nível mundial, seguido de Portugal. O mesmo relatório aponta que de acordo com dados sobre a cetamina (um anestésico não barbitúrico) detectada nas águas residuais, as quantidades mais elevadas foram encontradas em cidades da Dinamarca, Itália, Portugal e Espanha.

    Joana Amaral Dias (Foto: Júlia Oliveira/PÁGINA UM)

    Quanto ao consumo de estupefacientes, o relatório anual de 2022 sobre ‘A Situação do País em Matéria de Drogas e Toxicodependência‘, o número de casos de overdoses em 2021 atingiu o valor mais alto deste 2009, tendo ocorrido 81 mortes em 2021, mais 29% do que em 2020, o valor mais elevado dos últimos sete anos. E destacou ainda que, “em relação aos 339 óbitos registados em 2021 com a presença de substância ilícita ou seu metabolito e atribuídos 119 a outras causas de morte (acidente, morte natural, homicídio e suicídio), a cannabis foi predominante, tendo sido detectada em 159 casos (47%)”.

    Já os dados referentes a 2022, referem que as outras mortes com a presença de drogas (367) – atribuídas a morte natural (41%), acidentes (26%), suicídio (15%) e homicídio (6%) – têm vindo a aumentar desde 2016, atingindo em 2022 o valor mais alto desde 2008.

    Também no consumo de álcool, as medidas impostas acabaram por ter consequências na saúde mental e comportamentos aditivos. Segundo o relatório anual de 2022 sobre ‘A Situação do País em Matéria de Álcool‘, “vários indicadores ultrapassaram já em 2021 os níveis pré-pandémicos, entre eles, os readmitidos em tratamento por problemas relacionados com o uso de álcool (o valor mais elevado desde 2012), os internamentos hospitalares com diagnóstico principal ou secundário atribuíveis ao consumo de álcool e as sinalizações e diagnósticos de exposição de crianças/jovens a comportamentos relacionados com o consumo de bebidas alcoólicas que afetam o seu bem-estar e desenvolvimento (ambos com os valores mais altos dos últimos cinco anos)”.

    orange and white medication pill
    (Foto: D.R.)

    Para Joana Amaral Dias, além de ser relevante uma maior transparência nos dados sobre suicídios divulgados em Portugal, também sublinha a importância de se debater publicamente o tema para melhorar o nível de literacia da população e melhor prevenir os suicídios. A psicóloga classifica de “completamente idiota a posição de não se divulgarem os casos de suicídio na comunicação social por receio de serem copiados”. “Tudo é contágio social! É preciso perceber que o próprio temor induzido pelos media na covid-19 causa contágio social”, alertou.

    Segundo a psicóloga, “não se noticiar e não se falar no tema causa mais prejuízo, porque é preciso desmistificar” e também defende a “criação de uma política pública mais responsável de abordar o tema de forma séria”.


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  • Autoridade de segurança alimentar em França põe em xeque águas minerais da Nestlé

    Autoridade de segurança alimentar em França põe em xeque águas minerais da Nestlé

    É um ‘escândalo das águas minerais’ por agora apenas em França, mas que poderá vir a ter repercussões em todas as marcas. A Agência Francesa para a Segurança Alimentar, Ambiental e da Saúde no Trabalho (ANSES) concluiu, num relatório oficial confidencial divulgado ontem pelo jornal Le Monde, que as nascentes da Nestlé Waters, líder mundial do mercado de águas minerais, apresentam problemas de poluição bacteriológica e de contaminantes persistentes, e acusa o grupo suíço de recorrer a técnicas não autorizadas de purificação. Em declarações ao PÁGINA UM, a directora de comunicação da Nestlé Waters na França defende que as águas comercializadas pelo grupo suíço são “regularmente” testadas pelas autoridades, mas não quis comentar o relatório, alegando desconhecer o seu conteúdo. Apesar de uma presença residual da Nestlé Waters no mercado nacional, onde comercializa sobretudo a marca Aquarel (engarrafada em Espanha), na França este caso está a causar grande polémica, e a eurodeputada Marie Toussaint, do partido Les Écologistes, já exigiu que sejam retiradas das prateleiras dos supermercados as garrafas de águas minerais deste grupo suíço, como a Hépar, Contrex, Vittel e Perrier, que provêm de nascentes de Vosges e Vergèze.


    A multinacional Nestlé, líder mundial no sector das águas minerais, está sob a mira das autoridades francesas depois de ser revelado um relatório oficial que alerta para a “qualidade sanitária” das águas minerais engarrafadas pelo grupo suíço. Apesar de ser um segmento residual, com 3,5% do total das vendas do grupo, as águas da Nestlé representaram vendas de 3,4 mil milhões de euros em 2023 a nível mundial, embora a quota em Portugal seja marginal, vendendo sobretudo as marcas Aquarel e Perrier.

    O jornal Le Monde e a France Info revelaram ontem que um relatório da Agência Francesa para a Segurança Alimentar, Ambiental e da Saúde no Trabalho (ANSES) afirma que as águas minerais do Nestlé Waters não têm garantida de qualidade sanitária. Esta conclusão surge depois de um outro relatório desta entidade enviado ao Ministério da Saúde em Outubro do ano passado recomendar uma monitorização mais intensa aos procedimentos de captação e engarrafamento das águas minerais. Apesar de ter outras nascentes, em diversas países, as principais fontes da Nestlé Water, que comercializa sobre as marcas Hépar, Contrex, Vittel e Perrier, entre outras, localizam-se em Vosges e Vergèze, em território francês. Em Portugal, a Nestlé comercializa a Aquarel, proveniente de nascentes em Herrera del Duque, na Extremadura, e no Parque Natural de Montesny, na Catalunha.

    Foto de uma garrafa de água mineral da marca ‘Vittel’, da Nestlé. (Foto: D.R.)

    As aguas minerais naturais (AMN) são águas de circulação subterrânea, consideradas bacteriologicamente próprias, com características físico-químicas estáveis na origem, distinguindo-se das águas de nascentes que, para serem comercializadas apenas necessitam de ser bacteriologicamente puras. Por lei, com excepção de alguns tratamentos físicos específicos, nenhuma destas águas pode ter qualquer adição de produtos de purificação ou de alteração das características organolépticas, como cor e sabor.

    As suspeitas sobre a qualidade das águas da Nestlé surgiram depois de um denunciante do Grupo Alma em 2021 ter desencadeado sucessivas investigações por parte da agência de controlo do consumidor francesa (DGCCRF) sobre as práticas dos produtores franceses de água engarrafada. Da investigação, saiu a descoberta de que a Nestlé Waters utilizaria métodos de desinfecção proibidos, como purificação por luz ultravioleta, tratamentos com carvão activado e microfiltração inadequada. Esses métodos são geralmente usados em tratamento de água para torneira, vendida obviamente a preços mais muitíssimo mais baixos.

    De acordo com o Le Monde, as autoridades públicas francesas passaram meses a desvendar gradualmente até que ponto os fabricantes de águas minerais engarrafadas estavam a usar tratamentos proibidos para lidar com a deterioração da qualidade das nascentes. Em teoria, o interesse comercial, e de marketing, das águas minerais é de serem provenientes de zonas isentas de poluição bacteriana ou química.

    (Foto: D.R.)

    No documento da ANSES, ontem citado pela imprensa francesa, confirmava-se a contaminação generalizada com bactérias, pesticidas, produtos perfluoroalquiladas (PFAS) – considerados contaminantes sintéticos de longa duração – das fontes naturais de água mineral exploradas pelo grupo Nestlé em França. Os especialistas apontam também um “nível de confiança insuficiente” para garantir “a qualidade sanitária” das águas minerais naturais engarrafadas das marcas Perrier, Contrex, Vittel e Hépar, entre outras, propriedade do grupo. 

    Perante um caso que já é considerado como o “escândalo da água”, o partido francês Les Écologistes, onde se destaca a eurodeputada Marie Toussaint, exigiu hoje a retirada das águas da Nestlé dos supermercados.

    Já no final de Janeiro deste ano, a Radio France e o Le Monde revelaram que um relatório da Inspeção-Geral dos Assuntos Sociais, apresentado ao Governo em Julho de 2022, que estimava que pelo menos 30% das marcas de água engarrafada utilizavam tratamentos proibidos por regulamentos, incluindo todas as marcas operadas pela Nestlé.

    O PÁGINA UM colocou questões à Nestlé Portugal sobre estas revelações e sobre os impacte no mercado nacional. As respostas vieram, porém, da própria directora de comunicação da Nestlé Waters em França, Elodie Lemeunier, não esclarecendo as questões concretas sobre as águas comercializadas em Portugal. Segundo esta responsável, “nos últimos três anos, a Nestlé Waters France empreendeu um plano de transformação com total transparência e sob o controlo das autoridades, partilhando com elas todos os
    dados relativos às nossas águas minerais naturais nas nossas duas unidades de produção em Vosges e Vergeze”, acrescentando que ainda não tiveram acesso ao relatório da ANSES “referenciado nos meios de comunicação social, pelo que não estamos em posição de comentá-lo”.

    Partido Les Ecologistes exige retirada das águas da Nestlé.

    E reitera que “a Nestlé Waters France sempre operou sob um sistema integrado de gestão da qualidade”, baseando-se “num sistema de filtragem combinado com um programa rigoroso de limpeza das tubagens de água e na análise de mais de 1.500 parâmetro, incluindo parâmetros físico-químicos, microbiológicos e sensoriais, para garantir a segurança das águas minerais naturais durante todo o processo produtivo”.

    Elodie Lemeunier garante também que houve reforços no controlo através de análises que “são constantemente partilhados com as autoridades que testam regularmente as nossas águas minerais, tanto na origem como no produto acabado, para confirmar a conformidade com os requisitos regulamentares aplicáveis, incluindo padrões de segurança e qualidade alimentar”.


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  • Ministra da Saúde geriu em conta pessoal 1,3 milhões de euros dados por farmacêuticas sem pagar imposto de selo

    Ministra da Saúde geriu em conta pessoal 1,3 milhões de euros dados por farmacêuticas sem pagar imposto de selo

    Ana Paula Martins, a nova ministra da Saúde, teve um papel determinante numa campanha solidária durante a pandemia em parceria com a Ordem dos Médicos e o seu bastonário Miguel Guimarães, actual deputado do PSD, que angariou mais de 1,4 milhões de euros; destes cerca de 1,3 milhões vieram de farmacêuticas. Mas apesar das boas intenções, as irregularidades e ilegalidades marcaram a gestão dos dinheiros. Em vez de uma conta institucional, foi criada uma conta pessoal, tendo Ana Paula Martins como um dos três co-titulares, e não foi pago um imposto de selo devido de mais de 125 mil euros. Além disso, embora os pagamentos de géneros se realizassem através dessa conta pessoal, as facturas foram emitidas em nome da Ordem dos Médicos, podendo dar azo a um ‘saco azul’. Para as farmacêuticas terem benefícios fiscais, também foram promovidas centenas de falsas declarações, incluindo até de hospitais e da Associação Nacional de Farmácias e da Liga dos Bombeiros. Esta é uma investigação do PÁGINA UM iniciada ainda em 2022, e ainda não concluída; tal como não concluída parece estar uma auditoria externa prometida há dois anos.


    A nova ministra da Saúde vai entrar em funções com um ‘elefante na sala’ que muitos tentam negar a existência, apesar do seu volume. Durante a pandemia, em colaboração com a Ordem dos Médicos, Ana Paula Martins foi, enquanto bastonária da Ordem dos Farmacêuticos, co-gestora de uma campanha de solidariedade que amealhou, entre outros pequenos donativos, mais de 1,3 milhões de euros da indústria farmacêuticas, mas a contrário daquilo que seria expectável, a entrada e saída de dinheiro vivo foi feita através de uma conta por si titulada, em nome pessoal, em parceria com Miguel Guimarães – antigo bastonário dos médicos e actual deputado do PSD – e Eurico Castro Alves, ex-secretário de Estado da Saúde no curto segundo mandato de Passos Coelho.

    Apesar da suposta bondade desta campanha – atribuir sobretudo material e equipamentos de protecção contra a covid-19 a instituições de solidariedade social e unidades hospitalares –, de entre as irregularidades e ilegalidades detectadas pelo PÁGINA UM – que investiga a gestão do fundo “Todos por uma causa” desde 2022, estando ainda a aguardar-se o cumprimento de uma sentença do Tribunal Administrativo por parte da Ordem dos Médicos –  incluem-se contabilidade paralela, fuga ao fisco e falsas declarações para obtenção de benefícios fiscais e facturas falsas.

    Ana Paula Martins e Miguel Guimarães foram protagonistas de uma campanha solidária cheia de irregularidades e ilegalidades (D.R./Ordem dos Médicos)

    Criada logo no início da pandemia em Portugal, a campanha “Todos por Quem Cuida” teve por base um protocolo assinado em 26 de Março de 2020 entre as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos e a Apifarma, que apresentava toda a aparência de um fundo solidário com bons propósitos, e que serviria numa primeira fase apenas para canalizar “contributos monetários (…) ou em espécie” de farmacêuticas para “o apoio à aquisição de equipamentos hospitalares, equipamentos de protecção individual e outros materiais necessários aos profissionais de saúde que se encontra[ssem] a trabalhar nas instituições de saúde”.

    Porém, no início do mês de Abril de 2020 – e também por via de um despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que alargava a possibilidade de benefícios fiscais por donativos aos hospitais –, as três entidades decidiram alargar o âmbito da campanha para um “fundo solidário” público, nomeando, de acordo com os documentos consultados pelo PÁGINA UM, Manuel Luís Goucha como “embaixador da iniciativa”.

    E foi aqui que começaram as irregularidades. Ao invés da conta solidária ser assumida pelas duas ordens profissionais – ou apenas por aquela com maior protagonismo, a Ordem dos Médicos – foi decidido que a conta com o NIB 003506460001766293021, aberta no balcão da Caixa Geral de Depósitos na Portela de Sacavém seria titulada por três pessoas: José Miguel Castro Guimarães, Ana Paula Martins Silvestre Correia e Eurico Castro Alves.

    Ana Paula Martins, ontem, na tomada de posse como ministra da Saúde.

    A partir daqui as irregularidades surgiram em catadupa. Sendo que a conta não era institucional – mas sim de três pessoas, independentemente dos cargos ocupados –, o pedido de autorização ao Ministério da Administração Interna para a angariação de fundo omite o facto de que o NIB em causa não era das entidades promotoras: a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticas. Aliás, são indicadas no final do pedido duas contas que nunca foram usadas na angariação. Ou seja, os donativos em vez de segurem para uma conta institucional das entidades anunciadas como promotoras destinaram-se afinal para uma conta de três pessoas.

    Por outro lado, o pedido de autorização apenas foi feito em 27 de Julho de 2020, quando a angariação de donativos se iniciou em 6 de Abril daquele ano, ou seja, mais de três meses antes. À data do pedido de autorização ao Ministério da Administração Interna já a conta titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves tinha um saldo de 716.501,51 euros. Por lei, a angariação deve ser precedida da autorização ministerial.

    Por outro lado, nessas circunstâncias jamais se poderia aplicar a lei do mecenato ou outro tipo de benefício na obtenção de donativos, porque em termos formais estava-se perante uma recolha de donativos para uma conta de três pessoas. Nessa medida, Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves deveriam ter pago solidariamente o imposto de selo no valor de 10% de todos os donativos recebidos acima dos 500 euros.

    Pedido de autorização para angariação de donativos omite que a conta solidária não era titulada pela Ordem dos Médicos e Ordem dos Farmacêuticos.

    Ora, face aos montantes das diversas transferências da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma), todas individualmente acima dos 500 euros, a actual ministra da Saúde e os seus parceiros deveriam ter declarado à Autoridade Tributária e Aduaneira o recebimento de 1.2561.251 euros, o que implicaria o pagamento de 125.125,10 euros de imposto de selo. Na documentação consultada pelo PÁGINA UM, nomeadamente extractos bancários, não existe qualquer saída de dinheiro para esse cumprimento fiscal.

    Existiram pelo menos mais 13 transferências bem acima de 500 euros que também não terão sido declaradas às Finanças nem pago o imposto de selo, a saber: ASPAC (35.000 euros), Bial (20.000 euros), Bene (20.000 euros). Ipsen (12.000 euros), Atral (10.000 euros), Falinhas Mansas (10.000 euros), Angelini (10.000 euros), Apormed (5.000 euros), Rial Engenharia (5.000 euros), Medicina G Medeiros Marques (1.500 euros), Forex ACI (1.500 euros), Gin Lovers (1.080 euros) e Multiclínicas Far (1.000 euros).

    Contas feitas, segundo os cálculos do PÁGINA UM com base nos extractos bancários, Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves receberam 41 donativos superiores a 500 euros e deveriam ter pagado 138.333,10 euros de imposto de selo. E nunca o fizeram.

    Confirmação de que a conta solidária tinha como titulares Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, ou seja, não era uma conta institucional.

    Além desta grave falha fiscal – independentemente dos objectivos da da campanha –, os três titulares da conta solidária deveriam ter declarado no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed, por serem profissionais de saúde, todos os donativos de farmacêuticas, incluindo da Apifarma, que ultrapassaram mais de 1,3 milhões de euros. Ana Paula Martins – que, depois de abandonar a liderança da Ordem dos Farmacêuticos, ainda passou vários meses na Gilead –, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves nunca fizeram essa declaração obrigatória. Saliente-se que Ana Paula Martins terá a partir de agora a tutela do Infarmed.

    Além destas irregularidades e incumprimentos fiscais, o uso da conta solidária em nome de três pessoas permitiu uma estranha e ilegal contabilidade paralela de todas as operações de aquisição, designadamente de facturação e pagamentos, dos equipamentos e materiais a serem doados.

    Na consulta à documentação contabilística da campanha “Todos por Quem Cuida”, o PÁGINA UM identificou 34 facturas no valor total de 978.167,15 euros que entraram na contabilidade da Ordem dos Médicos (pela aquisição de equipamento de protecção individual, câmaras de entubamento e ventiladores), mas sem que esta entidade tenha alguma vez feito qualquer pagamento. Na verdade, quem pagou foi a conta titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves. As facturas assumidas pela Ordem dos Médicos, mas que foram afinal pagas com a conta solidária (à margem da Ordem dos Médicos) podem ser consultadas AQUI.

    Uma das ordem de pagamento assinadas por Ana Paula Martins foi para transferir 27.365,20 euros ao Hospital das Forças Armadas como contrapartida pela disponibilização de locais e pessoal de enfermagem para vacinar, contra as regras da Direcção-Geral da Saúde, médicos considerados não-prioritários em Fevereiro de 2021, uma iniciativa pessoal de Miguel. Esta decisão, com a concordância do então coordenador da task force Gouveia e Melo, após diversas reuniões, continua a ser analisada (há mais de um ano) pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS). A factura das Forças Armadas foi, contudo, emitida em nome da Ordem dos Médicos. E a Ordem dos Médicos viria depois a emitir declaração (falsas) de recepção de donativos por parte de quatro farmacêuticas. Uma dessas falsas declarações de donativo, no valor de 3.725,20 foi passada em Março de 2022 à Gilead. Nesta altura, Ana Paula Martins – que terminara o mandato em Fevereiro na Ordem dos Farmacêuticos – já ocupava o cargo de directora dos negócios governamentais desta farmacêutica norte-americana.

    Sendo legal que um terceiro possa proceder ao pagamento de facturas de uma determinada entidade – ou seja, era legítimo que Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves usassem a sua conta solidária para saldar as compras dos géneros a doar –, essa informação teria, porém, de constar na contabilidade da Ordem dos Médicos. Como tal não sucedeu – ou pelo menos, nunca foi apresentado ao PÁGINA UM qualquer documento comprovativo –, na prática significa que a Ordem dos Médicos foi acumulando despesas – até chegar aos 978.167,15 euros – sem ter saído qualquer verba dos seus cofres.

    Esse ‘crédito informal’ criou condições, pelo menos em teoria, para se formar um ‘saco azul, ou mesmo um desvio de verbas. Para tal, bastaria que responsáveis da Ordem dos Médicos com acesso às contas oficiais fossem retirando os valores exactos das facturas que iam recebendo dos fornecedores dos bens comprados no âmbito da campanha “Todos por Quem Cuida”.

    Através da conta pessoal de que era co-titular, Ana Paula Martins assinou uma ordem de transferência bancária ao Hospital das Forças Armadas num acordo com a task force liderada por Gouveia e Melo para pagar a vacinação contra a covid-19 de médicos não-prioritários numa altura de escassez de vacinas. Mas a factura das Forças Armadas foi emitida em nome da Ordem dos Médicos.

    Vejamos um exemplo. A factura nº 551 passada pela Clotheup em 2 de Outubro de 2020 pela aquisição de batas descartáveis no valor de 110.700 euros foi emitida à Ordem dos Médicos. Tendo sido uma aquisição a pronto de pagamento, não houve saída de dinheiro da Ordem dos Médicos, porque quem a pagou foi a conta solidária de Ana Paula Martins e dos outros dois co-titulares. Ora, nesse dia, poderia ter sido “desviada” a verba de 110.700 euros da conta bancária oficial da Ordem dos Médicos, não havendo assim o mínimo sinal de qualquer desfalque, uma vez que existia uma factura a suportar essa saída. Esse expediente pode aplicar-se a qualquer outra das 31 aquisições identificadas pelo PÁGINA UM.

    Houve, porém, mais irregularidades fiscais. Apesar de todos os donativos terem tido como destinatário a conta solidária – titulada, repita-se, por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves –, as farmacêuticas quiseram aproveitar os benefícios fiscais da Lei do Mecenato, que um despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais alargou, em Abril de 2020, também para os hospitais públicos.

    Nessa medida, os serviços operacionais da Ordem dos Médicos instruíram as largas dezenas de IPSS e outras entidades – que incluíram mesmo a PSP, a Liga dos Bombeiros, a Associação Nacional de Farmácias e até hospitais públicos e privados – a passarem declarações atestando que, afinal, receberam donativos em géneros das farmacêuticas, que lhe eram especificamente indicadas.

    Deste modo, um dos trabalhos (mais meticulosos) da equipa da Ordem dos Médicos, que Miguel Guimarães colocou na gestão operacional da “sua campanha”, passou por preencher intrincados “puzzles” entre os donativos em dinheiro fornecidos à conta solidária e os valores dos géneros recebidos pelas instituições. Assim, em vez das declarações de recepção dos donativos pelas diversas entidades beneficiadas serem passadas à conta solidária – em termos formais, aos três titulares da conta – ou à Ordem dos Médicos, foram encaminhadas para determinadas farmacêuticas.

    Ana Paula Martins, actual ministra da Saúde, e Miguel Guimarães, actual deputado do PSD, ganharam protagonismo com a pandemia. A gestão de um ‘bolo’ de 1,4 milhões de euros numa campanha solidária, financiada sobretudo pelas farmacêuticas, deu uma ajuda.

    Logo, a título de exemplo – e é mesmo um só exemplo, porque existem largas centenas de casos, reportados e fotografados pelo PÁGINA UM durante a consulta dos dossiers contabilísticos e operacionais da campanha “Todos por Quem Cuida” –, é falsa a declaração de 23 de Março de 2021 da Liga dos Bombeiros Portugueses, bem como a competente carta de agradecimento do então presidente Jaime Marta Soares, de que foi a farmacêutica Gilead que lhes entregou 4.984 batas cirúrgicas, 1.661 litros de álcool gel, 831 máscaras cirúrgicas, 2.492 óculos reutilizáveis, 664 fatos integrais tamanho M e 664 tamanho L, e ainda 4.153 viseiras, tudo no valor de 103.400,60 euros.

    Neste caso particular – que é extensível a todas as outras farmacêuticas envolvidas nesta campanha –, a Gilead terá sim apenas entregado, através da Apifarma, um donativo de valor desconhecido, para uma campanha solidária, titulada por três pessoas. Formalmente, teriam de ser as três titulares dessa conta (Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves), e não as entidades beneficiadas com os géneros doados, a passar uma declaração de recepção desse donativo à Gilead (e às outras farmacêuticas). Porém, se assim fosse, as farmacêuticas não teriam hipóteses de usufruir de qualquer benefício fiscal, uma vez que o Estatuto do Mecenato não abrange donativos a pessoas singulares – e nem a Ordens profissionais, acrescente-se.

    Outro caso paradigmático passou-se com a Associação Nacional de Farmácias que em 10 de Fevereiro de 2021 declarou que a Merck Sharpe & Dohme lhe doou 107.574 máscaras cirúrgicas no valor total de 50.000 euros. Nada poderia ser mais falso. Aquilo que sucedeu foi a Merck Sharpe & Dohme ter doado 50.000 euros a Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves que, depois aproveitaram para usar esse dinheiro para pagar máscaras a uma empresa – que emitira uma factura à Ordem dos Médicos –, sendo esses equipamentos de protecção individual entregues então à Associação Nacional de Farmácias.

    Documento na posse da Ordem dos Médicos, consultado pelo PÁGINA UM após uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, com a lista de entidade que concederam donativos à conta solidária titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves.

    A emissão de centenas de declarações falsas – trata-se mesmo de centenas, que englobam muitas pequenas IPSS – configura até fraude fiscal, porque as entidades beneficiadas assumiram que os donativos em géneros vieram directamente de farmacêuticas, algo que não é verdade, nem as farmacêuticas conseguirão comprovar qualquer compra através de facturas. Certo é que, com este estratagema, as farmacêuticas conseguiram enquadrar os seus donativos no mecenato social – e, em casos específicos, no mecenato ao Estado – para levar a custos um valor correspondente a 130% ou 140% do valor entregue. Algo que não sucederia se tivesse sido tudo feito como sucedeu: os donativos foram entregues a três pessoas (Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves), foram feitas compras e entregues os géneros às IPSS, associações e unidades hospitalares.

    Assim, com este esquema falso as farmacêuticas terão conseguido declarações num montante total de cerca de 1,3 milhões de euros, e terão acabado por assumir, em termos contabilísticos, custos da ordem dos 1,82 milhões de euros, Em conclusão, este expediente – a utilização abusiva de um benefício fiscal – terá lesado o Estado, segundo estimativas do PÁGINA UM, em cerca de 145 mil euros. Note-se que este esquema, profundamente à margem da lei, envolveu também hospitais públicos, conforme o PÁGINA UM revelou detalhadamente no final de 2022.

    Apesar da logística desta campanha ter sido protagonizada sobretudo pela Ordem dos Médicos, e pelo então seu bastonário Miguel Guimarães, a actual ministra teve um papel bastante activo, e não apenas como co-titular da conta. Ana Paula Martins procedeu a várias ordens de pagamento de géneros – cujas facturas foram encaminhadas para a Ordem dos Médicos – e também participou em diversas reuniões específicas da campanha. De acordo com as actas consultadas pelo PÁGINA UM, a actual ministra da Saúde participou em pelo menos oito reuniões da comissão de acompanhamento entre 11 Maio de 2020 e 5 de Maio de 2021. Mesmo depois da sua saída da liderança da Ordem dos Farmacêuticos em Fevereiro de 2022, manteve-se como titular da polémica conta solidária.

    Além de ser co-titular e co-gestora da conta solidária, e autorizar transferências de dinheiro para pagamento de facturas que, afinal, eram emitidas à Ordem dos Médicos, Ana Paula Martins acompanhou pelo menos durante um anos as operações logísticas da campanha ‘Todos por Quem Cuida’.

    Aquando da primeira notícia desta investigação do PÁGINA UM, em Dezembro de 2022 – após uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa que obrigou as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos a disponibilizar os documentos integrais da campanha solidária –, Ana Paula Martins não responder a um conjunto de 11 perguntas a si dirigidas, optando por uma resposta conjunta com Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves através de advogada.

    Nessa resposta são omissas quaisquer justificações para a não abertura de uma conta institucional nem qualquer argumento para o não-pagamento de impostos de selo nem sobre as declarações falsas nem sobre as facturas assumidas pela Ordem dos Médicos quando não foi esta a entidade que pagou os géneros.


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  • Vacinas: Governo cessante autoriza despesa de 210 milhões de euros em mais doses que acabarão no lixo

    Vacinas: Governo cessante autoriza despesa de 210 milhões de euros em mais doses que acabarão no lixo

    Antes de sair, António Costa manteve as ordens recebidas de Bruxelas, através de uma Resolução de Conselho de Ministros de última hora publicada hoje em Diário da República: Portugal vai continuar a comprar vacinas contra a covid-19 como se estivéssemos no auge da pandemia. Este ano ficou garantida uma despesa de 103,3 milhões de euros, mantendo prevista a compra de mais 107 milhões de euros em 2025 e 2026. Desde Outubro do ano passado, já só foram administradas menos de dois milhões de doses, e se se mantiver o ritmo dos reforços até ao Inverno de 2026-2027, o desperdício financeiro (em benefício das farmacêuticas) atingirá os 550 milhões de euros, porque haverá cerca de 35 milhões de doses literalmente deitadas ao lixo por perda de validade. Quando a covid-19 deixou de ser um problema de Saúde Pública – este mês representa 0,17% das mortes –, e sabendo-se que há 1,7 milhões de cidadãos sem médico de família, esta estratégia mostra os paradoxos das políticas de Saúde Pública em Portugal.


    Preso pelos acordos secretos da Comissão von der Leyen com as farmacêuticas, o Governo cessante de António Costa decidiu no domingo passado, em Conselho de Ministros extraordinário, reprogramar as despesas pelas compras de vacinas contra a covid-19, autorizando para o ano de 2024 gastos da ordem dos 103,3 milhões de euros. Uma parte desta verba será para suportar encargos feitos no ano passado, mas apenas a serem pagos agora por causa de alegados atrasos de visto no Tribunal de Contas.

    Com a reprogramação desta despesa – a que acrescerão mais quase 107 milhões de euros em 2025 e 2026 –, confirma-se um desastre financeiro e de Saúde Pública: num país com mais de 1,6 milhões de cidadãos sem médico de família, vai continuar a haver dinheiro para comprar doses de vacinas contra a covid-19 que serão enviadas literalmente para o lixo, face à cada vez mais diminuta procura. Com efeito, estando a covid-19 endémica e com uma baixíssima mortalidade – este ano causou 197 óbitos, representando 0,6% dos óbitos totais, mas este mês de Março encontra-se abaixo dos 0,2% –, a procura tem sido bastante baixa.

    De acordo com os dados da Direcção-Geral da Saúde, entre Outubro do ano passado e o domingo passado, 24 de Março, foram administradas um total de 1.990.226 doses de reforço. Considerando o preço médio unitário de 15,5 euros, indicado num relatório do Tribunal de Contas, a despesa total terá ascendido a 30,8 milhões de euros, caso não existissem compromissos assumidos pela Comissão von der Leyen com a concordância dos diversos Governos da União Europeia de se comprar mais do que o necessário.

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    Vacinas desperdiçadas: não serão enviadas para o lixo urbano, obviamente, mas serão inutilizadas cerca de metade das doses que serão adquiridas por Portugal desde 2020 até 2026.

    O Tribunal de Contas, num relatório de Setembro do ano passado, já apontava para um elevado desperdício financeiro pela inutilização de doses não administradas. O valor provisório então indicado, referente ao final de Dezembro de 2022, era de um desperdício de 3,5 milhões de doses com um valor de 54,5 milhões de euros. Porém, esse montante pecava já por defeito.

    Uma análise do PÁGINA UM, com base em informação oficial, mostrava que apesar de Portugal ter encomendado 61.19.803 doses de vacinas até 2022 somente tinha administrado, até então, 28.200.460 doses, considerando os dados do European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC). Ou seja, como a partir dessa altura até agora acresceram cerca de dois milhões de doses, administradas, chega-se a um desperdício de mais de 40 milhões de doses.

    Mas entretanto, ainda se comprou muitas mais doses, e mais se comprarão, atendendo à cativação das verbas desde 2020 pelo Governo de António Costa. Apesar de os contratos celebrados pela DGS continuarem escondidos – o PÁGINA UM tem um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa que corre há quase 15 meses, embora seja considerado urgente –, fica-se a saber, através de sucessivas Resoluções de Conselho de Ministros quanto se gastou e se continuará a gastar em vacinas contra a covid-19 até, pelo menos, 2026.

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    A primeira compra foi autorizada em 20 de Agosto de 2020, antes mesmo da aprovação das vacinas. Montante: 20 milhões de euros. Ainda nesse ano, em 17 de Dezembro, em vésperas da administração da primeira dose, o Governo de António Costa autorizou, para o ano seguinte, a realização de despesas de aquisição de vacinas e de logística no total de 195,5 milhões de euros.

    Menos de cinco meses depois, em 6 de Maio de 2021, uma nova autorização para realização de despesa adicional: mais 241.537.472 euros. Em 23 de Dezembro desse ano, autorizou-se mais compras de vacinas contra a covid-19 para 2022: e assim se concedeu liberdade para se gastar mais 291,4 milhões de euros. Mas não acabou por aí: em 17 de Novembro de 2022, o Governo Costa autorizou mais compras no valor de quase 70,6 milhões de euros. E menos de um mês depois, em 15 de Dezembro, ainda se adicionou mais uma autorização no valor máximo de mais de 57,8 milhões de euros.

    Nesta lógica de dividir uma factura cada vez mais crescente, em 7 de Setembro do ano passado, o Conselho de Ministros determinou que em 2023, apesar de a covid-19 deixar de ser uma preocupação pública relevante, se gastariam ainda mais 65,4 milhões de euros em 2023, mais cerca de 50 milhões de euros em 2024, mais 53,5 milhões de euros em 2025 e outro tanto em 2026.

    A decisão do passada domingo de um Governo em gestão altera os montantes de 2023 e 2024 – sem afectar a despesa previamente definida, e assegura a despesa pré-determinada para os anos de 2025 e 2026 – mostra sobretudo que Portugal, tal como os outros parcerias comunitários, está completamente preso aos negócios secretos assumidos secretamente por Ursula von der Leyen.

    António Costa e Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, que negociou contratos secretos com as farmacêuticas que resultarão seguramente, apenas em Portugal, no desperdício de 35 milhões de doses e quase 550 milhões de euros

    Somando toda a despesa feita e assumida desde 2020 pelo Governo português, Portugal deverá assumir encargos de 1,1 mil milhões de euros associadas à compra e armazenamento de vacinas contra a covid-19, dos quais 210 milhões de euros entre 2024 e 2026. Se o preço unitário rondar os 15,5 euros por dose, o valor indicado pelo Tribunal de Contas, então estará garantida a compra de quase 71 milhões doses.

    Contudo, contabilizando as doses já administradas (cerca de 30 milhões) e se o processo de reforço nos Invernos de 2024-2025, 2025-2026 e 2026-2027 for similar ao do mais recente, o nosso país apenas administrará 36 milhões de doses, o que significará que desperdiçará praticamente metade das doses adquiridas. Contas feitas, o processo de aquisição sob a batuta da Comissão Europeia entregará cerca de 550 milhões de euros aos cofres das farmacêuticas beneficiadas sem qualquer préstimo, uma vez que aproximadamente 35 milhões de doses serão deitadas para o lixo por nem sequer haver quem as queira receber de borla.


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  • Ivermectina: Acordo judicial obriga autoridade do medicamento dos Estados Unidos a ‘tirar o cavalinho da… Internet’

    Ivermectina: Acordo judicial obriga autoridade do medicamento dos Estados Unidos a ‘tirar o cavalinho da… Internet’

    Numa das campanhas mediáticas ‘mais sujas’ contra um fármaco comercialmente pouco interessante para a Big Pharma, por já não ter patente, a ivermectina chegou a ser apodada como um mero desparasitante para cavalos ou vacas durante a pandemia da covid-19, quando alguns resultados se mostravam auspiciosos. A Food & Drug Administration ‘ajudou ao festim’ com um comunicado e posts nas redes sociais em que apelava de forma sensacionalista ao não uso de fórmulas veterinárias, sem relevar o potencial interesse na prescrição por médicos de fórmulas humanas. Numa acção judicial intentada por três médicos, a FDA acabou esta semana por aceitar eliminar o comunicado e todos os textos nas redes sociais, entre os quais um que se intitulava “Tu não és um cavalo. Tu não és uma vaca. A sério, pessoal. Parem de tomar ivermictina para a covid.” A autoridade norte-americana do medicamento tem agora um prazo de três semanas para “tirar o cavalinho da chuva”; neste caso, os seus polémicos conteúdos da Internet.


    Em situações normais, um fármaco demora anos a fio, por vezes diversas décadas, até estabelecer um consenso entre os investigadores, e as decisões das autoridades do medicamento em manter ou não a sua comercialização depende de um contínuo avolumar de ensaios clínicos e de acompanhamento da sua aplicação pelos médicos em doentes reais.

    Mas durante a pandemia, esse ‘circuito natural’ da Ciência foi modificadode forma drástica. Enquanto novos fármacos foram rapidamente aprovados e quase ‘endeusados’, resultando em negócios chorudos – como sucedeu com o remdesivir, o Paxlovid e molnupiravir, este último já retirado do mercado, por ser ineficaz e até promover mutações do SARS-CoV-2 –, outros foram metidos foram difamados em três tempos, mesmo se vários médicos os foram prescrevendo quase às escondidas, temendo represálias.

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    O caso mais conhecido sucedeu com a ivermectina, que, até ao início de 2020, era um dos fármacos mundiais mais amado pela Organização Mundial de Saúde, elogiada por médicos e investigadores. Os louvores vinham de todos os lados, sobretudo da comunidade de farmacologia, e logo no título de artigos científicos, que a consideravam uma wonder drug, um fármaco maravilhoso, ao lado da penicilina e da aspirina.

    Entre 1990 e 2019, o Google Scholar contabiliza cerca de 16.400 artigos sobre a ivermectina. Nenhum a maldiz. Pudera: o seu descobridor, o japonês Satoshi Omura e o irlandês William Campbell – que a “purificou” – foram galardoados com o Prémio Nobel da Medicina em 2015, pelas maravilhas produzidas por este “milagre da terra”.

    Mas, no decurso da pandemia, quando vários médicos começaram a testar diversos fármacos já existentes para outras doenças, a ivermectina foi estranhamente amaldiçoada, e metida no mesmo ‘saco’ da cloroquina e da hidrocloroquina.

    Apesar de vários médicos a nível mundial continuarem, durante os anos da pandemia, a prescreverem a ivermectina – e em alguns países, como no Peru, chegou-se a usar de forma preventiva, embora fosse depois abandonada, com efeitos que não foram os melhores –, muitas autoridades e ‘peritos’ associados a farmacêuticas montaram, com o apoio da imprensa mainstream, uma das mais eficazes campanha de difamação de um fármaco.

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    Um dos eventos mais relevantes sucedeu em Agosto de 2021, quando a Food & Drug Administration decidiu lançar um comunicado para recomendar que não fosse feita auto-medicação com ivermectina, sobretudo através de fórmulas usadas para tratamento veterinário.

    A autoridade norte-americana destacava o “interesse crescente num medicamento chamado ivermectina para a prevenção ou tratamento da covid-19 em humanos”, referindo que, além de “certas formulações para animais”, e acrescentava que, no caso de uso humano, “os comprimidos de ivermectina são aprovados em doses muito específicas para tratar alguns vermes parasitas, e existem formulações tópicas (na pele) para piolhos e doenças de pele como rosácea”. E a FDA alertava que tinha recebido “vários relatos de pacientes que necessitaram de cuidados médicos, incluindo hospitalização, após automedicação com ivermectina destinada a gado”.

    Salientando então não haver ainda conclusões sobre a eficácia do fármaco, a FDA fazia recomendações sobre os perigoso de tomar “grandes doses de ivermectina”, remetendo para a necessidade de ser um médico a prescrever uma receita, se assim fosse por ele determinado, e a toma ser “exactamente como prescrito”.  E concluía: “nunca use medicamentos destinados a animais em si ou em outras pessoas. Os produtos de ivermectina para animais são muito diferentes daqueles aprovados para humanos. O uso de ivermectina animal para prevenção ou tratamento de covid-19 em humanos é perigoso”.

    Mas aquilo que seria uma recomendação óbvia para a generalidade dos fármacos com uso humano e veterinário – ou seja, uma pessoa não deve automedicar-se e ainda menos com fórmulas ou doses usadas em animais – acabou por ser um ‘ferrete’ na ivermectina que passou a ser usado pela imprensa e pelos promotores de medicamentos novos. E a a culpa foi inteiramente da FDA, que usou a mensagem do seu comunicado nas redes sociais de modo enviesado.

    Tanto no Facebook como no Twitter (actual X) e no LinkedIn, a FDA apelava ao não uso de ivermectina veterinária de forma sensacionalista: “Tu não és um cavalo. Tu não és uma vaca. A sério, pessoal. Parem de tomar ivermictina para a covid.” E assim foram lançados os dados para continuamente maldizer a ivermectina, confundindo-se uso veterinário com uso humano.

    Em pleno ano de 2024, ainda se está longe de um consenso sobre a eficácia da ivermevtina no combate ao SARS-CoV-2, mas o seu interesse científico é por demais evidente. Só desde Janeiro deste ano, o Google Scholar regista a publicação de 719 artigos científicos; alguns não encontrando eficácia, outros apontando vantagens. O mais recente foi publicado há duas semanas na revista científica Heliyon, da conceituada Elsevier, da autoria de três investigadores chineses que, numa meta-análise envolvendo 33 outros artigos com dados quantitativos sobre a ivermectina, concluíram que este fármaco “pode reduzi o risco de necessidade de ventilação mecânica e de efeitos adversos em doentes com covid-19 sem aumento de outros riscos”, acrescentando que “na ausência de melhor alternativa, os médicos podem usá-la com precaução”.

    Ora, mas do ponto de vista mediático a ivermectina continuava ‘conspurcada’ pelo comunicado e posts de Agosto de 2021 da FDA, algo não foi suportado de forma indiferente por alguns médicos. Três deles – Mary Talley Bowden, Paul Marik and Robert Apter, medicos no Estado norte-americano de Louisiana – interpuseram uma acção contra a FDA por extravasar as suas atribuições.

    Anteontem, numa decisão histórica, num acordo firmado em tribunal, a FDA aceitou retirar no prazo de 21 dias – e nunca mais republicar – os controversos conteúdos colocados nas redes sociais sobre a ivermectina em 21 de Agosto de 2021, bem como a apagar o seu comunicado de imprensa daquele mês, cuja primeira versão é de 5 de Março de 2021.

    Comunicados e posts nas redes sociais da FDA ajudaram a criar a ideia de a ivermectina ser um mero medicamento de uso veterinário.

    De igual modo, também será apagado um post do Twitter de 26 de Abril de 2022 com o sugestivo título: “Hold your horses, y’all. Ivermectin may be trending, but it still isn’t authorized or approval to treat covid-19”, onde a autoridade norte-americano do medicamento não escondia o entusiasmo em manter a artificial má-fama de um fármaco de já não tem patente e é, por isso, bastante barato, ao contrário do remdesivir, comercializado pela Gilead, e do Paxlovid, comercializado pela Pfizer.

    Em declarações ontem à revista norte-americana Newsweek, fonte oficial da FDA defendeu que “a agência optou por resolver este processo em vez de continuar a litigar sobre declarações com entre dois e quase quatro anos”, mas acrescentou que “não admitiu qualquer violação da lei ou qualquer irregularidade, discordando de que “excedeu a sua autoridade ao emitir as declarações contestadas no processo”, e dessa forma, mantém “autoridade para comunicar com o público sobre os produtos regula.”

    Em Agosto do ano passado, uma análise revista pelos pares (peer review) publicada na revista científica Cureus – que integra a editora Springer Nature, a dona da Nature – concluiu que a decisão do antigo presidente peruano Francisco Sagasti de suspender em Novembro de 2020 o uso de ivermectina como terapêutica preventiva contra a covid-19 terá causado uma escalada de mortes naquele país sul-americano.

    Trecho do acordo judicial onde a FDA aceita retirar o seu comunicado e os posts das redes sociais sobre a ivermectina.

    O Peru destacou-se nas estatísticas internacionais como o país com maior taxa de mortalidade atribuída à covid-19 com um espantoso rácio de 6.572 óbitos por milhão de habitantes – que corresponde a 0,65% da população –, quase duas vezes mais do que o valor registado em Portugal.

    Os autores daquele estudo relataram também os bons resultados do uso de ivermectina na província indiana de Uttar Pradesh, e denunciam também a manipulação e erros em ensaios clínicos que acabaram por afectar a reputação deste fármaco de baixo custo.

    “Nas últimas décadas, os medicamentos genéricos geralmente se saíram mal perante a concorrência com ofertas patenteadas, com base na infeliz vulnerabilidade da Ciência à mercantilização e à captura regulatória”, alertaram os autores, exemplificando com o caso de uma terapia tripla para úlceras pépticas, que apresenta uma eficácia de 96%, e que agora é o padrão terapêutico, mas cujo uso foi sendo adiado até que as patentes de dois medicamentos paliativos mais vendidos para esse problema gástrico expirassem.

    E apontam ainda que “tal viés potencial contra a ivermectina foi sugerido por um comunicado de imprensa de 4 de Fevereiro de 2021 da Merck, de que estava desenvolvendo sua própria terapêutica patenteada para covid-19”, alegando que havia “uma relativa falta de dados de segurança” para a ivermectina.

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    Peru foi um dos países que começou a usar ivermectina como prevenção da covid-19, mas uma posterior decisão política abandonou a campanha de medicação. Resultado: a mortalidade total aiumentou.

    Com efeito, a norte-americana Merck – que oferecera a patente da ivermectina para o Programa Africano de Controle da Oncocercose (cegueira dos rios) – haveria de conceber um fármaco, o molnupiravir, sob a marca comercial Lagevrio, que obteve autorização em finais de 2021 na Europa e foi logo bastante elogiado por vários especialistas, estando à cabeça, em Portugal, o actual bastonário da Ordem do Farmacêuticos, Hélder Mota Filipe, e o pneumologista Filipe Froes, um médico do SNS, consultor da Direcção-Geral da Saúde e um dos mais promíscuos consultores de farmacêuticas.

    Recorde-se, porém, que o molnupiravir acabou ingloriamente os seus dias em Julho passado, depois de evidência da sua completa ineficácia. Mas antes da retirada do mercado, confirmada pelo Infarmed em 17 de Julho, a Merck embolsou com este “embuste”, e com a conivência de reguladores e o apoio de influencers de Medicina, um total de 5,7 mil milhões de dólares em receitas só no ano passado.


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  • Artigo científico com ‘peer review’ diz que vacinas contra a covid-19 matam 14 vezes mais do que salvam

    Artigo científico com ‘peer review’ diz que vacinas contra a covid-19 matam 14 vezes mais do que salvam

    Apesar de integrar, como co-autores, duas pessoas com posições polémicas durante a pandemia (Steve Kirsch e Peter A. McCullough), um artigo científico que passou a revisão por pares (‘peer review’), publicado na revista Cureus, revela números aterradores sobre as vacinas contra a covid-19. Na análise de 38 páginas – que está a desencadear um elevado interesse na comunidade científica (com quase 250 mil leituras) – critica-se a falta de controlo da segurança das vacinas mRNA e a subavaliação dos números reais dos efeitos adversos. Pedindo uma moratória, os sete autores, que incluem uma investigadora do Massachusetts Institute of Technology (MIT), asseguram que a eficácia das vacinas foi exagerada, e que para se salvarem vidas pela diminuição da mortalidade por covid-19 se está a causar 14 vezes mais mortes por causa de efeitos adversos. Aplicado o factor de risco em Portugal, onde foram administradas mais de 28,3 milhões de doses, a mortalidade causada por reacções adversas superaria os 7.600 óbitos.


    Um artigo científico revisto pelos pares (peer review) da conceituada revista Cureus – editado pela Springer Nature –, publicado no final do mês passado, recomenda fortemente uma moratória (suspensão) dos reforços vacinais contra a covid-19. Os autores desse artigo – que integram epidemiologistas, bioestatísticos, cientistas computacionais e cardiologistas, mas também Steve Kirsch, um polémico filantropo –, além de tecerem várias críticas ao processo demasiado apressado de autorização, apontam um balanço aterrador entre as vantagens das vacinas com tecnologia mRNA para salvar vidas contra a covid-19 e os seus efeitos adversos. O artigo foi sujeito a verificação científica (peer review) para validação antes da publicação, um processo que demorou cerca de dois meses.

    Na extensa análise de 38 páginas, os autores do artigo, intitulado “COVID-19 mRNA Vaccines: Lessons Learned from the Registrational Trials and Global Vaccination Campaign“, destacam que, para “uma estimativa generosa”, a vacina da Pfizer (BNT162b2) conseguiria salvar duas vidas por cada 100.000 doses, mas que “dadas as evidências de má conduta no julgamento e problemas de integridade de dados” durante os ensaios, “o verdadeiro benefício será provavelmente muito menor”.

    3 clear glass bottles on table

    Os investigadores dizem que, considerando falsos positivos e as subnotificações dos efeitos adversos, as vacinas com essa tecnologia apresentam “um risco de 27 mortes por 100.000 doses de BNT162b2”, concluindo que “aplicando estes pressupostos razoáveis ​​e conservadores, os danos estimados das vacinas de mRNA contra a covid-19 superam em muito os benefícios”, ou seja, “para cada vida salva, houve quase 14 vezes mais mortes causadas pelas injeções de mRNA”.

    Aplicando estes números ao território nacional – até Setembro do ano passado foram administradas 28,3 milhões de doses –, as vacinas contra a covid-19 teriam salvado 566 portugueses de morreram pela infecção causada pelo SARS-CoV-2; mas, em contrapartida negativa, provocaram 7.641 mortes por efeitos adversos.

    Esta é a primeira vez que um artigo publicado numa revista científica internacional com peer review – que integra um conselho editorial de 39 especialistas de ciências médicas – detalha um vasto conjunto de falhas nos ensaios das farmacêuticas que permitiram uma autorização acelerada num ritmo sem precedentes. “Antes do rápido processo de autorização, nenhuma vacina tinha sido autorizada para lançamento no mercado sem passar por um período de testes de pelo menos quatro anos, o recorde estabelecido pela Merck & Co. […] em 1967 com o desenvolvimento da primeira vacina do Mundo contra papeira”, referem os autores, que salientam ter “a vacina da Pfizer (BNT162b2) complet[ado] o processo em sete meses”.

    Trecho do artigo científico (pg. 5) que destaca o elevado risco de morte por reacções adversas face às vidas salvas pela vacina contra a covid-19.

    O prazo normal de avaliação da segurança de uma vacina, para garantir a inexistência de problemas relevantes a médio e longo prazo, costuma ser entre os 10 e os 15 anos. E, por esse motivo, indicam que “com as vacinas contra a covid-19, a segurança nunca foi avaliada de uma forma compatível com os padrões científicos previamente estabelecidos, uma vez que numerosos testes de segurança e protocolos toxicológicos normalmente seguidos pela FDA [Food & Drugs Administration] foram evitados”. Os autores apontam também “os interesses políticos e financeiros” para as vacinas avançarem.

    Com efeito, de acordo com o artigo científico – que já conta com quase 250 mil leituras –, “o financiamento público [norte-americano] fornecido para o desenvolvimento das vacinas através da Operação Warp Speed ​​superou os investimentos em qualquer iniciativa pública anterior”: assim que a pandemia começou, em 2020, foram disponibilizados 29,2 mil milhões de dólares (92% dos quais provenientes de fundos públicos) para a compra de vacinas, outros 2,2 mil milhões para ensaios clínicos e 108 milhões de dólares para a produção e investigação básica. Por outro lado, o Biomedical Advanced Research and Development Authority (BARDA) gastou 40 mil milhões de dólares só em 2021.

    Além de apontarem erros e enviesamentos nos ensaios, que terão diminuído o número de efeitos adversos, os investigadores apontam como excessiva a alegada eficácia de 95%, mesmo assim um valor mais baixo do que a resposta imunitária obtida após uma infecção natural. Refira-se que, a nível mundial, incluindo Portugal, e em especial com a variante Omicron, não há praticamente ninguém, desde 2020, sem ter tido contacto com o SARS-CoV-2 pelo menos uma vez.

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    No caso dos efeitos adversos, não são apontadas ‘culpas’ à tecnologia mRNA, mas também ao processo de produção que terá implicado, pelo menos numa primeira fase, uma “contaminação” com plasmídeos de DNA residuais com implicações na saúde, nomeadamente no aumento de cancros, mutações e defeitos congénitos.

    No entanto, de acordo com os autores do artigo científico, a vacina concedeu uma “ilusão de segurança”, citando dois estudos do Cleveland Clinic Health System, sobretudo com o surgimento das variantes Omicron e XBB. Na verdade, constataram mesmo que “o risco de [nova] infecção foi significativamente maior entre aqueles que antes tinham sido vacinados”, observando-se também “que uma maior frequência de vacinações [boosters] resultou num maior risco de covid-19”.

    Sobre as reacções adversas, os autores do artigo da Cureus salientam que os efeitos adversos estão associados, em grande parte, ao facto de “as vacinas de mRNA oferece[re]m mecanismos únicos de activação imunológica que são bastante distintos da resposta a uma infecção viral”, afectando de forma maior “tecidos como o músculo cardíaco e os tecidos neuronais”. Mas indicam, de igual modo, alguns componentes das vacinas, que incluem lípidos catiólicos ionizáveis, polietilenoglicol e diversas impurezas.

    black and gray stethoscope

    Os investigadores também defendem, com base em literatura científica – são feitas citações de 294 artigos em revistas científicas – que são os reforços [boosters] que estão, “de forma irónica […], a perpetuar o surgimento de novas variantes”, uma vez que, além da evolução viral natural, existe uma “pressão selectiva induzida pela vacina sobre o sistema imunitário”.

    Ora, para os autores são as inoculações em massa de mRNA que causam uma “seleção natural de variantes altamente infecciosas do SARS-CoV-2 – que evitam o sistema imunológico, e que contornam com sucesso a imunidade induzida pela vacina, levando a um aumento dramático na prevalência dessas variantes”. Por todos esses motivos, e pelas reacções adversas, consideram ser necessária uma moratória até avaliação correcta desta nova tecnologia vacinal.


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  • Apelo da Direcção-Geral da Saúde para reforço vacinal em Janeiro foi um ‘flop’

    Apelo da Direcção-Geral da Saúde para reforço vacinal em Janeiro foi um ‘flop’


    Desde o dia 19, a mortalidade total decaiu para números normais para um ‘normal’ mês de Janeiro. estando já abaixo da fasquia dos 400 óbitos por dia, quando nos primeiros 10 dias de 2023 ultrapassaram os 500. Será que se deveu ao apelo da Direcção-Geral da Saúde (DGS) para os mais ‘incautos’ se irem vacinar contra a covid-19 e a gripe, alargando-se mesmo as faixas etárias a cobrir? A resposta é não. Uma análise do PÁGINA UM aos relatórios oficiais mostra que a taxa de ‘convencimento’ das pessoas que não se tinham vacinado em Dezembro foi bastante baixo ao longo de Janeiro, e mesmo irrelevante para os menores de 60 anos. Aliás, os números da DGS (que nos relatórios ‘inflacionam’ as taxas de cobertura vacinal) mostram mesmo existir uma crise de credibilidade nas vacinas contra a covid-19: mais de meio milhão de pessoas que se foram vacinar contra a gripe rejeitaram o ‘booster’ para reforçar a imunidade contra o SARS-CoV-2.


    A elevada mortalidade no final de Dezembro e nos primeiros dias de Janeiro, sem que a situação epidemiológica da covid-19 e da gripe se mostrasse preocupante, levou a Direcção-Geral da Saúde (DGS) a alterar as normas de vacinação contra estas doenças no passado dia 12. No caso da vacinação sazonal contra a covid19 alargou o acesso aos maiores de 18 anos, e na vacinação contra a gripe para a faixa etária dos 50 aos 59 anos. Dias depois, a imprensa relatava uma aparente ‘corrida `s vacinas da gripe e covid’, mas, na verdade, o apelo das autoridades de Saúde e dos habituais ‘peritos’ caiu praticamente em saco roto. Foi um flop.

    Com efeito, numa análise do PÁGINA UM às quantidades administradas das duas vacinas entre os dias 1 e 21 de Janeiro – incluindo assim um período anterior ao apelo da DGS – apenas foram administradas, nestas três primeiras semanas do ano – um total de 78.874 doses de vacina contra a covid-19 e 119.672 contra a gripe.

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    Esta diferença de quase 41 mil vacinas confirma uma tendência de maior adesão à vacina contra a gripe e uma crescente desconfiança face à vacina contra a covid-19, numa altura em que o Infarmed continua a recusar a disponibilização da base de dados das reacções adversas (Portal RAM), num caso que aguarda ainda recurso no PÁGINA UM no Tribunal Central Administrativo Sul.

    De acordo com o mais recente relatório da DGS, foram administradas no programa de vacinação sazonal em curso, até 21 de Janeiro, um total de 1.890.126 doses de vacina contra a covid-19, enquanto 2.407.492 quiseram a vacina contra a gripe. Sendo certo que pode suceder haver pessoas que se vacinaram contra a covid-19 e recusaram a da gripe, estes números revelam, contudo, uma quantidade apreciável de pessoas – pelo menos mais de 500 mil – que recusaram a prometida protecção contra os efeitos do SARS-CoV-2 quando foram receber a vacina contra a gripe.

    Contudo, o dado mais relevante, analisando em detalhe os grupos etários, e os números da vacinação de Janeiro até ao dia 21, é a fraquíssima adesão ao apelo das autoridades de Saúde, mesmo nos grupos idosos, sobretudo no caso da covid-19. E quanto aos menores de 60 anos, o apelo foi praticamente ignorado para ambas as vacinas.

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    Considerando as mais recentes estimativas populacionais por grupo etário do Instituto Nacional de Estatística – que, aliás, permitem detectar excessos na cobertura vacinal apresentada nos relatórios da DGS –, e o número de vacinas administradas até finais de Dezembro do ano passado, conclui-se que não se tinham vacinado contra a covid-19 cerca de 38% dos maiores de 80 anos, 43% do grupo dos 70 aos 79 anos, 59% do grupo dos 60 aos 69 anos e quase 96% do grupo dos 18 aos 65 anos. No caso da vacina contra a gripe, a opção pela não vacinação era ligeiramente menor: 26% para os maiores de 80 anos, 31% para o grupo dos 70 aos 79 anos, 53% para o grupo dos 60 aos 69 anos e quase 92% do grupo dos 18 aos 65 anos.

    Significa assim que, estando em causa o ‘convencimento’ dos não-vacinados, os apelos não tiveram grande eco, sendo, aliás, bastante notório a existência de uma crescente desconfiança na vacina contra a covid-19, mesmo numa situação em que as autoridades de Saúde ‘abanaram’ com o espectro de um corrente excesso de mortalidade associado a infecções respiratórias.

    Assim, segundo os cálculos do PÁGINA UM, de entre os ainda não-vacinados contra a covid-19 em Dezembro com mais de 80 anos apenas 3,4% se convenceram a pedir a vacina contra esta doença nas primeiras três semanas de Janeiro. Para a gripe, esse número quase duplicou, mas manteve-se bastante baixo: 6,4%. A adesão à vacinação durante Janeiro pelos não-vacinados em Dezembro) para o grupo dos 70 aos 79 anos foi quase similar: 3,7% e 7,4%, respectivamente, acabaram por receber as doses para a covid-19 e para a gripe. Já quanto ao grupo dos 60 aos 69 anos, essa adesão quedou-se nos 3,0% e 4,9% para a covid-19 e a gripe, respectivamente.

    Ministério da Saúde exagera na taxa de cobertura, usando dados errados na população por grupos etários.

    No caso dos menores de 60 anos, e incluindo somente os maiores de idade), a adesão foi paupérrima: somente um em cada 200 pessoas (0,5%) que não se tinham vacinado contra a covid-19 em Dezembro quiserem receber uma dose de vacina ao longo de Janeiro (até dia 21), aumentando esse valor para menos de um em cada 100 (0,9%) para a vacina contra a gripe.

    Recorde-se que no início de Janeiro foi destacado um aumento dos internamentos nos cuidados intensivos por pessoas ‘não vacinadas’ contra a covid-19 e a gripe – apesar de, como o PÁGINA UM mostrou no passado dia 9, a cobertura vacinal contra a gripe não estivesse assim tão baixa. Contudo, a realidade mostra que este género de campanhas alimentadas pelo medo – que levou a maior parte da população a vacinar-se durante a pandemia – já não está a surtir o mesmo efeito.

    Em todo o caso, a faixa etária dos maiores de 80 anos continua a ‘jogar pelo seguro’. Assumindo a população estimada pelo INE, dos cerca de 724 mil portugueses com mais de 80 anos, um total de 449.310 receberam reforço sazonal contra a covid-19 até 21 de Janeiro, ou seja, 62,04%. Saliente-se que, para este número de vacinas (449.310), a DGS indica uma cobertura vacinal de 65,11%, que se deve ao facto de considerar, erradamente, uma população menor do que a estimada pelo INE, erro que se verifica com a generalidade dos outros grupos etários. No caso da gripe, considerando as doses indicadas no mais recente relatório da DGS (537.010), 74,15% dos maiores de 80 anos vacinaram-se contra a gripe.

    Situação do programa de vacinação sazonal em Portugal para a covid-19 e gripe e taxa de adesão de não-vacinados em finais de Dezembro às vacinas em Janeiro (até dia 21). Fonte: DGS (doses) e INE (para população). Análise: PÁGINA UM.

    Estes valores baixam significativamente para as faixas etárias mais novas, sendo que no grupo etário dos 60 aos 69 anos se observa que quem se vacina contra a covid-19 e contra a gripe é já uma minoria: 40,85%, no primeiro caso, e 47,30%, no segundo. Para o grupo dos 18 aos 59 anos, apenas 4,50% quiseram receber o ‘booster’ sazonal para a covid-19, aumentando para os 8,23% para a gripe.

    Saliente-se que este mês, depois de se ter observado uma mortalidade média diária acima de 500 óbitos até ao dia 11, os registos desceram com a melhoria das condições meteorológicas. Desde o dia 19, o número de óbitos contabilizado pelo Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) estão abaixo da fasquia dos 400, indiciando uma ‘normalização’. Haverá sempre, por certo, quem possa sugerir que foi resultado do apelo de vacinação contra a covid-19, mas, na verdade, a mortalidade para esta doença mantém-se estável desde Agosto de 2022. E se olharmos para os valores deste mês, nada se alterou de forma relevante: entre 1 e 11 de Janeiro, a covid-19 foi responsável por uma média diária de 6,5 óbitos, e entre 12 e 23 de Janeiro situou-se nos 5,8.


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  • Mortalidade elevada com actividade gripal em pico (nunca visto), mas vacinação nem é baixa

    Mortalidade elevada com actividade gripal em pico (nunca visto), mas vacinação nem é baixa


    A base de dados Flunet, da Organização Mundial da Saúde, analisados pelo PÁGINA UM, revelam que a actividade gripal em Portugal nunca esteve tão elevada desde os primeiros registos em 1995, após dois anos sem ‘sombra’ de vírus influenza, durante o auge da covid-19. Apesar dos espécimes detectados nas últimas semanas se deverem, em parte, à maior cobertura laboratorial, mostra-se evidente uma coincidência temporal entre a crescente maior actividade viral e uma maior mortalidade, que está em valores bastante elevados. A culpa será da fraca vacinação? Não será assim tanto, como se comprova com dados oficiais.


    A actual actividade gripal em Portugal está em níveis nunca registados, e uma das consequências imediatas tem sido o caos nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a subida da mortalidade para níveis muito mais elevados do que no período pré-pandemia.

    De acordo com os dados recolhidos pelo Flunet – um sistema mundial de informação de vigilância laboratorial da Organização Mundial da Saúde (OMS) –, desde 1995 nunca houvera registo tão elevado de espécimes de vírus influenza em Portugal como nas últimas duas semanas do mês passado.

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    O recorde foi atingido na semana 51 de 2023, entre 18 e 24 de Dezembro, com o registo de 1.694 espécimes, com a esmagadora maioria (1526, ou seja, 90,1% do total) identificadas como pertencendo ao tipo A, mas de subtipo indeterminado. Os restantes espécimes eram de influenza A do subtipo H1N1 (159) – originário do surto de gripe suína de 2009 – e do subtipo H3 (apenas duas), além de constarem sete do tipo B de linhagem indeterminada.

    O anterior máximo, desde 1995, observara-se ‘fora de época’, entre 28 de Março e 3 de Abril de 2022, quando se contabilizaram, após cerca de dois anos sem sinal de vírus influenza – quando o SARS-CoV-2 dominou e fez ‘desaparecer’ a gripe’ –, 1.224 espécimes, também quase todas de influenza do tipo A (apenas 10 do tipo B), embora a esmagadora maioria sem determinação do subtipo. No entanto, nessa altura não foi registada nenhum espécime do subtipo H1N1.

    No período anterior à pandemia da covid-19, a quantidade de espécimes identificadas era muito menor, que também se pode explicar por uma menor cobertura laboratorial. Em todo o caso, nesse período, a semana com registo de maior número de espécimes ocorreu entre 4 e 10 de Fevereiro de 2019 com um total de 700, sendo que, neste caso, se destacava uma relevante presença de influenza A do subtipo H1N1, com 17% do total.

    Registo da Flunet relativo a Portugal no período 1995-2023. Fonte: OMS.

    Em anos anteriores apenas por uma vez se registou uma semana com mais de 500 espécimes identificados: entre 16 e 22 de Novembro de 2009, exactamente no pico da gripe suína. Nesse período foram contabilizados 511 espécimes, dos quais 489 de influenza do tipo A subtipo H1N1. Note-se, contudo, que a mortalidade então registada nesse mês (e no Inverno de 2009-2010) esteve bem abaixo dos valores registados em período homólogo do ano anterior, e dentro de valores expectáveis.  

    Independentemente dos factores extra-actividade viral, designadamente a maior cobertura laboratorial desde 2020 para a detecção do vírus influenza, mostra-se evidente que a gripe ‘bateu forte’, embora já começasse a dar mostras de evolução desfavorável. Na semana de 11 a 17 de Dezembro, já se observava um crescimento avassalador da actividade viral, contabilizando 1.039 espécimes, mais do dobro contabilizado na semana anterior. Na última semana de Dezembro, os valores foram inferiores aos da semana 51, mas mesmo assim registaram-se 769 espécimes, com um ligeiro declínio do subtipo H1N1.

    Em todo o caso, com ou sem responsabilidades exclusivas do surto gripal, a mortalidade total em Portugal começou a disparar a partir do dia 20 de Dezembro, passando pela primeira vez, desde o Inverno de 2022-2023, a fasquia dos 400 óbitos. No dia 28 atingir-se-ia os 512 óbitos, o valor mais elevado desde 9 de Fevereiro de 2021 – ou seja, desde o fim do período de maior mortandade da pandemia da covid-19.

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    A situação ainda pioraria nos primeiros dias do presente ano: dia 1 com 508 óbitos; dia 2 com 546; e dia 3 com 530. Entre a véspera do mais recente Natal (24 de Dezembro) e 6 de Janeiro deste ano, a média diária de mortes cifra-se em 487, um valor considerado bastante elevado para o período invernal. Neste período, a mortalidade causada pela covid-19 rondou cerca de 1,2% do total, ou seja, do ponto de vista de Saúde Pública um valor praticamente insignificante.

    Confrontando a mortalidade entre 1 de Outubro e 6 de Janeiro a partir de 2013, o período correspondente a 2023-2024 foi o terceiro pior, com 34.032 óbitos, pouco atrás de 2022-2023 (que já tivera uma actividade gripal relevante), mas mesmo assim com quase 2.900 mortes a menos do que os registados no período 2020-2021. A letalidade do período mais recente é, mesmo assim, significativamente superior aos anos anteriores à pandemia, não ‘beneficiando’ da ‘compensação demográfica’ decorrente da elevada mortalidade nos anos de 2020 a 2022. Saliente-se que a mortalidade tem atingido sobretudo os maiores de 85 anos, com sistemáticos dias com mais de duas centenas de óbitos.

    Mesmo os médicos considerados ‘peritos’ durante a pandemia da covid-19 têm defendido agora que o maior impacte do habitual surto gripal de Inverno se deve a uma menor protecção vacinal contra o vírus influenza por causa de “alguma fadiga pandémica”. É o caso do pneumologista Filipe Froes que ontem, em declarações à CNN Portugal, admite uma “menor taxa de cobertura vacinal [para protecção contra a gripe] na população de risco” face ao período anterior à pandemia.

    Mortalidade entre 1 de Outubro e 6 de Janeiro desde o período 2014-2015 até 2023-2024. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    O médico que se destaca por ser uma das figuras da Medicina portuguesa com mais relações comerciais com farmacêuticas disse ao canal televisivo que “temos 2,2 milhões de pessoas vacinadas, [e que] antes da pandemia eram mais de três milhões”, acrescentando ainda que “um em cada quatro idosos com mais de 75 anos não está [agora] vacinado”.

    Na verdade, foi a massificação da vacinação contra a covid-19 – e a não assumpção dos efeitos adversos por parte do Infarmed, que continua a ocultar, por decisão do seu presidente Rui Santos Ivo, os dados do Portal RAM, apesar dos esforços do PÁGINA UM – que têm afastado a população em idade de reforma de procurar neste Inverno a vacina contra a gripe, sobretudo na faixa entre os 60 e 80 anos.

    De acordo com os mais recentes dados da Direcção-Geral da Saúde, reportados a 19 de Dezembro de 2023, apenas 47% das pessoas deste grupo etário tinham recebido a vacina contra a gripe, quando em período homólogo de 2022 a cobertura era de 60%. No caso do grupo dos 70 aos 79 anos, a queda entre 2022 e 2023 é de cerca de 5 pontos percentuais (77% vs. 71,6%) e na faixa etária dos maiores de 80 anos é de um pouco menos de 4 pontos percentuais (79% vs. 75,6%).

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    Ora, segundo dados oficiais, provenientes do Vacinómetro, a cobertura vacinal contra a gripe foi de 83,9% na população com 65 e mais anos na época invernal de 2021-2022, por via da forte campanha que incluía a covid-19, o que representou um acréscimo de 13,5 pontos percentuais em comparação com o período homólogo de 2020-2021. Ou seja, a pandemia da covid-19 incrementou também a vacinação contra a gripe, mas foi a gestão dos programas que causou uma “fadiga”, embora os níveis actuais até ainda estejam ligeiramente acima do que se observava antes de 2020.

    De facto, por ironia, é um artigo científico de 2022 que tem Filipe Froes como primeiro autor que nega as declarações de… Filipe Froes à CNN Portugal. Com efeito, antes da pandemia, entre a população com idade entre os 60 e 64 anos apenas 42,8% se tinha vacinado, havendo anos anteriores em que estava abaixo dos 40%. No caso dos maiores de 65 anos, na época de 2019-2020, imediatamente antes da pandemia da covid-19, apenas 76% se tinham vacinado contra a gripe, enquanto a média no quinquénio anterior rondava os 65%.