Categoria: Saúde

  • Excesso de mortalidade a longo prazo em Portugal é quatro vezes superior ao da Suécia

    Excesso de mortalidade a longo prazo em Portugal é quatro vezes superior ao da Suécia


    O PÁGINA UM pegou nos dados das autoridades estatísticas e de saúde de Portugal e da Suécia, e analisou a evolução da mortalidade desde 2020 até Setembro do presente ano, e comparou com o período de 2015-2019. O sueco ‘patinho feio’ da pandemia, afinal mostrou ser um cisne, enquanto o ‘sucesso lusitano’ repetido pelo Governo de António Costa e ovacionado pelo Presidente da República acaba por se mostrar um desastre. Mostramos aqui os gráficos comparativos para um ‘tira-teimas’ sobre gestão de crise sanitária, onde se demonstra que em Portugal ainda estamos numa. E na Suécia não.


    Considerado sistematicamente como o irresponsável ‘patinho feio’ do Mundo Ocidental, um país promotor do ‘negacionismo’ – por não seguir as fortes restrições dos parceiros comunitários e o uso de máscara –, acusado de ter deixado ‘morrer velhinhos’, a Suécia foi ostracizada como ‘ovelha negra’ da gestão supostamente responsável da pandemia da covid-19.

    Nos primeiros meses da pandemia, em Março de 2020, com o choque das primeiras mortes causadas pelo SARS-CoV-2 a ecoarem numa imprensa histérica e governantes titubeantes, a gestão da Agência de Saúde Pública da Suécia, então liderada por Anders Tegnell, manteve-se firme ao não impor regras que afectassem em demasia o quotidiano dos cidadãos, incluindo os cuidados de saúde para outro tipo de afecções. No mês de Maio do primeiro ano da pandemia, a então ministra dos Negócios Estrangeiros daquele país nórdico, Ann Linde, garantia: “Isto não é um sprint; é uma maratona”.

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    E assim o demonstra uma análise de médio prazo quando se confronta o impacte da pandemia na Saúde Pública de Portugal face à Suécia: desde Março de 2020 até finais de Setembro deste ano, o excesso de mortalidade no nosso país é um pouco superior a quatro vezes a daquele país nórdico. Nesse período, registaram-se em Portugal mais 46.827 óbitos do que a média, correspondendo a um incremento de 12,0%, enquanto na Suécia o aumento foi de 8.849 mortes, ou seja, mais 2,8% do que a média.

    E a situação ainda piora quando se analisa os três últimos anos. Por exemplo, em 2023, até finais de Setembro, a Suécia até apresenta um ‘défice’ de mortalidade, estando com valores mais baixos do que no quinquénio anterior à pandemia, enquanto Portugal, face ao mesmo período de referência, ainda apresenta um acréscimo de 5,7%.

    A análise do PÁGINA UM – que se baseia nos dados estatísticos da mortalidade total por semana em cada um dos países, em que se confronta a mortalidade semanal desde 2020 com a média registada no período de 2015-2019 – permite revelar que foi sobretudo em 2021, no segundo ano da pandemia, que a gestão sueca mostrou ser a mais correcta.

    Com efeito, no ano de 2020, sobretudo por causa do incremento repentino de óbitos entre Março e Junho – com um pico a atingir quase mais 50% do que o normal, que se deveu sobretudo a erros assumidos nos cuidados dos idosos em lares –, a Suécia ainda registou um excesso de mortalidade de 7,1% face ao quinquénio pré-pandemia. Porém, mesmo assim já abaixo do excesso contabilizado em Portugal (11,4%). Em termos absolutos, a Suécia teve nesse ano mais 6.443 mortes do que a média do quinquénio anterior, enquanto Portugal contou mais 12.846 óbitos.

    Mortalidade em PORTUGAL entre a primeira semana de 2020 e semana 38 de 2023, e comparação com a média do quinquénio 2015-2019. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Apesar de Portugal ter supostamente aguentado melhor a denominada primeira vaga, na Primavera de 2020, os aumentos da mortalidade fizeram-se sentir a partir de Agosto, muito associado também à decisão política de adiar ou suspender consultas, diagnósticos, exames e cirurgias, inculcando também medo à população no acesso às urgências hospitalares.

    Aliás, o crescente incremento da mortalidade em Portugal atingiria o seu auge nas primeiras semanas de 2021, que coincidiu com uma vaga de frio e o colapso do Serviço Nacional de Saúde. Na terceira semana de Janeiro desse ano, o excesso de mortalidade superou os 70%.

    O intenso programa de vacinação contra a covid-19 em Portugal, não teve a prometida redução da mortalidade. Pelo contrário. Sobretudo a partir de Julho desse ano, o excesso de mortalidade semanal esteve quase sempre bem acima dos 10%, chegando a ultrapassar os 20% no final de Novembro. Ao invés, na Suécia registaram-se várias semanas com mortalidade abaixo da média pré-pandemia, e no cômputo de 2021 este país nórdico até apresentou um ligeiro decréscimo (menos 27 óbitos). E quanto a Portugal, a desgraça revelou-se: mais 14.006 mortes do que no quinquénio 2015-2019, representando um excesso de óbitos da ordem dos 12,7%.

    Mortalidade na SUÉCIA entre a primeira semana de 2020 e semana 38 de 2023, e comparação com a média do quinquénio 2015-2019. Fonte: Statistiska centralbyrån (SCB). Análise: PÁGINA UM.

    Com o surgimento da menos agressiva variante Ómicron – e com a covid-19 a deixar de ser uma preocupação de Saúde Pública –, a Suécia recuperou a sua ‘vida habitual’, em função dos ciclos habituais da mortalidade, apenas com um acréscimo relevante num curto período do Inverno de 2022-2023, mas compensado por posteriores períodos de menor letalidade. Assim, no ano de 2022, a Suécia contabilizou um acréscimo de apenas 2,6% face ao quinquénio pré-pandemia, e este ano (até finais de Setembro) apresenta uma redução de 1,7%. Ou seja, desde o início de 2021, a Suécia conta apenas mais 1.164 mortes do no período pré-pandemia, ou seja, somente mais 0,5%.

    Ao contrário deste cenário sueco, o panorama da Saúde Pública em Portugal agravou-se, enquanto as autoridades governamentais se mantiveram zelosamente obscurantistas, adiando as avaliações das causas do excesso de mortalidade.

    Com efeito, se o ano de 2021 teve a ‘desculpa’ de um Inverno calamitoso – em particular em Janeiro, com o recorde mensal de óbitos no século XXI –, não se encontra ainda explicação capaz (e científica) de desvendar o que sucedeu em 2022 com sucessivos meses de excesso de mortalidade total, incluindo Inverno, Primavera, Verão e Outono. Em 2002, enquanto a Suécia apresentava uma ligeira subida de 2,6%, Portugal teve um acréscimo de 12,7%, semelhante ao ano anterior, mas mais grave porque mostrou uma situação mais alargada no tempo, e portanto indiciadora de ser um ‘mal estrutural’ – e não conjuntural, num curto período, como um surto gripal.

    Evolução da variação da mortalidade total em Portugal e na Suécia desde a semana 1 de 2020 até à semana 38 de 2023. Base: 100 (média do quinquénio pré-pandemia). Fonte: SICO e SCB. Análise: PÁGINA UM.

    O presente ano não atinge em Portugal um acréscimo tão elevado (5,8% acima da média, resultando em mais 4.644 óbitos), mas é revelador de uma gravidade elevada, porque 2023 será o quarto ano consecutivo de excesso, uma situação inédita nos tempos modernos em situações de crise sanitária. E observando a tendência das semanas mais recentes – com excesso de mortalidade acima dos 10% –, não se augura um Inverno dócil.  

    As estimativas do PÁGINA UM – numa altura em que o Sistema de Informação dos Certificados de Óbito regista já 103.541 mortes em Portugal até 20 de Novembro – é que até ao final de Dezembro se atinjam valores acima dos 117 mil óbitos. Será um valor abaixo dos 120 mil – que foram sempre ultrapassados em 2020, 2021 e 2022 –, mas mesmo assim 5% acima da média do quinquénio pré-pandemia. Ou seja, depois de três anos de ‘sangria’ de vulneráveis, a Ceifeira continua impávida em Portugal. E na Suécia não.

  • Infarmed diz que contratos dos 33 tratamentos ‘milionários’ para atrofia muscular espinhal são confidenciais

    Infarmed diz que contratos dos 33 tratamentos ‘milionários’ para atrofia muscular espinhal são confidenciais


    Desde 2019, o Infarmed terá autorizado 33 tratamentos para a atrofia muscular espinhal, através da compra de um fármaco da Novartis, conhecido por ser ‘o mais caro do Mundo’, apesar de o Portal Base só registar sete aquisições por hospitais. Quando o PÁGINA UM perguntou as causas, o regulador disse que as compras foram contratualizadas com a Novartis no âmbito de um sistema específico para medicamentos inovadores, e o custo por toma será inferior a dois milhões de euros. Mas o Infarmed não quer mostrar os contratos, apesar do diploma legal, que enquadra a compra deste tipo de medicamentos, não prever a existência de qualquer cláusula de confidencialidade. O PÁGINA UM vai recorrer à Lei do Acesso aos Documentos Administrativos para ver os contratos e as avaliações, podendo avançar também para uma intimação no Tribunal Adminsitrativo.


    No segredo dos deuses – isto é, nos corredores do Infarmed, das administrações hospitalares, do Ministério da Saúde e da farmacêutica Novartis – é como estão as condições contratuais e o valor já gasto pelo Estado português no tratamento de 33 bebés afectados com atrofia muscular espinhal através do recurso ao Zogensma, considerado o medicamento mais caro do Mundo.

    O fármaco da Novartis esteve recentemente envolvido num escândalo que envolveu suspeita de influências ilegais do Presidente da República, que terá, de acordo com uma investigação da TVI, influenciado a sua aplicação em gémeas luso-brasileiras em 2019, no Hospital de Santa Maria, que, além disso, conseguiram nacionalidade portuguesa em tempo recorde.

    Mas mais grave ainda é o secretismo que envolve a aquisição de medicamentos ‘milionários’, que podem atingir os dois milhões de euros, uma vez que as negociações, contratos e avaliações são mantidos secretos pelo Infarmed. E isto quando um diploma legal de 2015, que define e regula o Sistema Nacional de Avaliação de Tecnologias em Saúde, não prevê qualquer confidencialidade; ao invés, estipula explicitamente uma dezena de condições a cumprir nos contratos entre o Infarmed e as farmacêuticas com medicamentos ou intervenções inovadoras e ainda em fase experimental, como é o caso do Zogensma para tratamento da atrofia muscular espinhal.

    O secretismo ainda é maior porque os centros hospitalares nem sequer estão a reportar fielmente no Portal Base as compras estabelecidas através dos contratos entre a Novartis e o Infarmed. Com efeito, há duas semanas, o PÁGINA UM revelara que constava no Portal Base a aquisição de sete compras de Zogensma, com cada dose a rondar os dois milhões de euros: uma em 2020 pelo Centro Hospitalar de Lisboa Central; uma em 2021 no Centro Hospitalar de São João; quatro em 2022 (três no Centro Hospitalar do Porto e uma no Centro Hospitalar de Gaia-Espinho); e uma este ano (Centro Hospitalar de Coimbra).

    Mas, na verdade, terão sido já adquiridas 33 doses, pelo que assim a esmagadora maioria nem sequer foi colocada no Portal Base. E pior: ignora-se quanto já se gastou, uma vez que o Infarmed diz ser informação confidencial.

    Rui Santos Ivo; presidente do Infarmed: o secretismo de um regulador como forma de estar na Administração Pública, onde a protecção dos negócios das farmacêuticas se sobrepõe à transparência.

    De acordo com as informações detalhadas fornecidas pelo Infarmed a pedido do PÁGINA UM, as compras pelo SNS contabilizam quatros doses em 2019 – duas para o Centro Hospitalar de Lisboa Norte (ambas em Julho) e duas para o Centro Hospitalar de Coimbra (ambas em Outubro) –, seis doses em 2020 – quatro para o Centro Hospitalar de Lisboa Norte (duas em Fevereiro, uma em Março e outra em Julho), uma para o Centro Hospitalar de Coimbra (em Julho) e uma para o Centro Hospitalar do Porto (em Novembro) –, nove doses em 2021 – duas para o Centro Hospitalar do Porto (em Fevereiro e Julho), para o Centro Hospitalar de Lisboa Norte (em Março, Abril e Julho), outras três para o Centro Hospitalar de Lisboa Central (em Março, Abril e Dezembro) e uma para o Centro Hospitalar de São João (em Abril) – 11 doses em 2022 – cinco para o Centro Hospitalar do Porto (duas em Abril, uma em Fevereiro, uma em Março e uma em Junho), uma para o Centro Hospitalar de Lisboa Central (Março), uma para o Centro Hospitalar de Espinho-Gaia (em Abril) e duas para o Centro Hospitalar de Lisboa Norte (em Outubro e Dezembro) e duas para o Centro Hospitalar de Coimbra (ambas em Novembro – e três doses este ano – duas para o Centro Hospitalar de Lisboa Central (ambas em Janeiro) e uma para o Centro Hospitalar de Coimbra (em Abril).

    Numa primeira fase, o PÁGINA UM confrontou o Infarmed sobre os custos destas terapêuticas – com um preço de referência a rondar os dois milhões de euros – e as razões pelas quais nem todos os contratos estavam publicados no Portal Base. O Conselho Directivo do regulador começou por afirmar que, “para efeitos de aquisição por parte das entidades do Serviço Nacional de Saúde foram negociadas condições de aquisição mais favoráveis, em contrato celebrado com a empresa titular de Autorização de Introdução de Mercado, que estão abrangidas por cláusulas de confidencialidade”, acrescentando que no caso da terapêutica para a atrofia muscular espinhal “o pagamento é feito através de um contrato de partilha de risco assente no tipo de doente e no resultado clínico, e é feito num prazo de quatro anos”.

    Hospital de Santa Maria adquiriu doses que não declarou no Portal Base, tal como muitos outras unidades de saúde.

    Ou seja, segundo o Infarmed, “após o pagamento de uma primeira percentagem (anual), se o tratamento não apresentar as melhorias expectáveis, não existirá lugar à continuação do pagamento do medicamento por parte das unidades hospitalares”, referindo ainda que “o valor negociado e aprovado com a decisão de financiamento foi aplicado aos doentes que já tinham utilizado o medicamento até esse momento”. O Infarmed informou ainda o PÁGINA UM de que “existiu ainda um Plano de Acesso Precoce, colocado em prática antes da conclusão do processo de financiamento, onde foi incluído um tratamento sem custos”, que terá sido o da bebé Matilde.

    Atendível o facto de o enquadramento destes contratos não prever qualquer confidencialidade – pelo contrário, o diploma de 2015 estipula aspectos que devem ser incluídos, o que implica que possa ser confirmado por terceiros, incluindo jornalistas –, o PÁGINA UM voltou a questionar o Infarmed sobre a justificação legal para o secretismo.

    O Conselho Directivo do regulador liderado por Rui Santos Ivo, não fazendo referência ao diploma específico de 2015 – porque não prevê, de facto, qualquer secretismo – garante existir “enquadramento no regime legal aplicável, dentro do objetivo central de viabilizar um compromisso bilateral em sede de contrato de partilha de risco”. E acrescenta ainda que “este tipo de contrato é essencialmente regulatório, tendo um conteúdo normativo próprio que enquadra, nomeadamente, ‘as condições de comparticipação ou da decisão de aquisição mediante avaliação prévia da tecnologia de saúde, comprometendo de modo efetivo o titular dessas tecnologias com os objetivos do sistema de saúde’”.

    Zolgensma é considerado o fármaco mais caro do Mundo, mas apresentou-se como uma terapia de uso único para substituir um medicamento da Biogen que custa 200 mil por cada ano de tratamento contínuo. Quantas vidas já salvou e quanto já custou? Não se sabe porque é segredo.

    Mesmo sabendo-se que a transparência é um preceito não apenas legal mas também um princípio democrático, sobretudo quando estão em causa dinheiros públicos – e ainda mais numa situação de défice em termos de Saúde Pública –, o Infarmed diz ser aceitável este secretismo porque “em Portugal vigora o princípio da liberdade contratual e o princípio da legalidade (…) sem que exista qualquer proibição das partes contratantes estabelecerem por acordo entre si a confidencialidade de determinadas condições contratuais, na medida em que a lei lhes concede a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, desde que em obediência à lei e ao direito e dentro dos limites dos poderes conferidos e em conformidade com os respetivos fins”.

    E ainda, considera o Infarmed, que pela conjugação do regime do SINATS e de directivas comunitárias de transparência e de proteção de segredos comerciais, nada impede que “os preços finais pós-negociação não possam ser sujeitos a cláusulas de confidencialidade”.

    Ou seja, tal como sucedeu com as vacinas contra a covid-19, o Infarmed defende um segredo absoluto sobre quanto se pagou, e em que condições, quanto se devia pagar e quanto não se deveria pagar e pagou, e quanto se pagou a mais. E isto tudo, aos milhões de euros, sem sequer se saber se tudo o que se gastou dos impostos dos portugueses conseguiu salvar qualquer vida ou se apenas serviu para cumprir os objectivos dos accionistas das farmacêuticas.


    N.D. O PÁGINA UM considera inadmissível que, mesmo sabendo da bondade de medicamentos que podem salvar vidas, se pactue com secretismos. Vai por esse motivo solicitar formalmente os contratos e avaliações ao Infarmed deste e de outros medicamentos similares, podendo, em caso de recusar, apresentar uma intimação ao Tribunal Administrativo de Lisboa, com o apoio do FUNDO JURÍDICO.

  • Hospital de Santa Maria: Contratos do fármaco para tratar gémeas luso-brasileiras escondidos do Portal Base

    Hospital de Santa Maria: Contratos do fármaco para tratar gémeas luso-brasileiras escondidos do Portal Base


    A administração do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte nunca registou as compras das duas doses de Zolgensma usadas para o tratamento das gémeas luso-brasileiras, que terão beneficiado de ‘cunhas’, conforme revelou na sexta-feira passada uma reportagem da TVI. Também a compra de outra dose, administrada num outro caso mediático em 2019, não se encontra referenciada no Portal Base. De acordo com uma análise do PÁGINA UM, o Estado já terá gastado 20,7 milhões de euros em 10 doses deste fármaco, mas os custos de terapias inovadoras já vão nos 46,7 milhões desde 2018, com a introdução de outro fármaco, produzido pela Biogen. Os dois fármacos estão, contudo, longe de se mostrarem milagrosos, somando já inúmeros efeitos secundários graves, incluindo mortes, que estarão a abrandar o entusiasmo no seu uso, ainda mais tendo em conta os preços milionários praticados.


    O Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte – a empresa pública que gere o Hospital de Santa Maria – nunca registou no Portal Base as compras do fármaco onasemnogene para tratar em 2019 as duas gémeas luso-brasileiras e também a bebé Matilde, cujo caso espoletou uma enorme onda de solidariedade. O fármaco, comercializado sob a marca Zolgensma, tem vindo a ser usado como terapia genética para a atrofia muscular espinhal, sendo considerado um dos mais caros do Mundo. O custo por toma (única) ronda os 2 milhões de euros. O Conselho de Administração era então presidido por Daniel Ferro, que foi substituído em Fevereiro passado por Ana Paula Martins.

    De acordo com a consulta do PÁGINA UM ao Portal Base, a primeira compra registada por um hospital português ocorreu apenas em 28 de Julho de 2020, ou seja, largos meses após o tratamento das duas gémeas e da bebé Matilde. Esta compra, realizada pelo Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte, não teve contrato escrito, mas terá sido para apenas uma criança, uma vez que o preço foi de 1.945.000 euros (sem IVA incluído). A justificação para a inexistência de contrato escrito, tendo a farmacêutica Avexis como adjudicatária, foi a “urgência imperiosa”. O prazo para a execução do contrato foi 157 dias, o que significa que a entrega do fármaco foi posterior a Julho de 2020.

    As gémeas luso-brasileiras Lorena e Maitê, agora com quatro anos, receberam terapia genética em 2019 num processo polémico. Contratos de aquisição não foram sequer registados no Portal Base. Foto retirada do Instagram dos pais, denominado ameemdobro.

    Tanto esta compra como uma outra realizada pelo Centro Hospitalar Universitário de São João – pelo mesmo valor em Abril de 2021 – ocorreram antes da conclusão da avaliação do financiamento por parte do Infarmed ao fármaco inventado pela Avexis, que viria a ser comprada em 2018 pelo gigante farmacêutico suíço Novartis, e actualmente denomina-se Novartis Gene Therapies.

    Com efeito, somente em 14 de Outubro de 2021, o regulador liderado por Rui Ivo Santos concluiu, apesar de reconhecer “o efeito benéfico” do onasemnogene, que “não existe demonstração de valor terapêutico em relação a um outro fármaco já no mercado, o nusinersen, comercializado sob a marca Spinraza. Este medicamento, produzido pela farmacêutica Biogen, foi o primeiro a obter autorização da Agência Europeia do Medicamento, em 2017, mas a frequência das tomas, depois das administrações iniciais, é de quatro em quatro meses.

    Como cada dose de nusinersen tem um custo de cerca de 67 mil euros, o custo anual ronda os 200 mil euros, donde a médio prazo o Zolgensma acaba por ser mais económico. Aliás, na generalidade dos novos fármacos, o preço colocado pelas farmacêuticas é definido muito em função dos custos das alternativas terapêuticas ou nas poupanças em internamentos. Daí que o Infarmed tenha salientado que “o custo da terapêutica com Zolgensma (onasemnogene abeparvovec) é inferior ao custo da terapêutica com nusinersen”.

    Hospital de Santa Maria lidera custos com terapias genéticas para a atrofia muscular espinhal.

    Em todo o caso, já depois dessa decisão, que teve como consequência a possibilidade de o Estado comparticipar a terapia com o Zolgensma, de acordo com o Portal Base apenas foram adquiridas cinco doses deste fármaco, todas pela valor unitário de 2.069.947 euros (IVA incluído): três pelo Centro Hospitalar Universitário do Porto (duas em Maio e outra em Junho de 2022), outra pelo Centro Hospitalar de Gaia-Espinho (em Maio de 2022) e outra pelo Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (em Maio deste ano). Esta última compra de Zolgensma foi a única, até agora que teve contrato escrito.

    Considerando as compras registadas por agora no Portal Base, o Estado português já gastou assim cerca de 14,5 milhões de euros na aquisição de sete doses de Zogensma, valor que sobe para quase 20,7 milhões de euros se se incluírem as duas doses administradas às gémeas luso-brasileiras e outra à conhecida bebé Matilde, agora com quatro anos.

    Os custos nas terapêuticas para a atrofia muscular espinhal são, contudo, muito superiores, porque os gastos com a aquisição do primeiro fármaco (Spinraza, da Biogen), têm estado a aumentar. De acordo com o Portal Base, desde 2018 foram feitas 67 compras por diversas unidades hospitalares, com um custo total de um pouco mais de 26 milhões de euros. O Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte é aquele que mais compras tem feito com 11,7 milhões de euros. Segue-se o hospital de Coimbra com quase 6,1 milhões de euros.

    Registo dos contratos no Portal Base para aquisição do fármaco Zolgensma, onde não constam as compras de 2019 feitas para três tratamentos em 2019.

    Este medicamento da Biogen tem sido, porém, usado por muitos mais hospitais em comparação com o fármaco da Novartis: além dos já referidos, também os centros hospitalares de São João (Porto), do Porto, de Lisboa Central, de Garcia de Orta e do Algarve já adquiriram doses de Spinraza. Deste modo, no total, o tratamento da atrofia muscular espinhal atinge já os 46,7 milhões de euros.

    E diga-se que os gastos têm tendência a aumentar, até porque Biogen e Novartis até aparentam não estar em concorrência. Ainda recentemente, em Junho deste ano, a própria Biogen divulgou aos investidores um estudo que supostamente comprovava a melhoria da eficácia do medicamento da Novartis (Zolgensma) se fosse posteriormente adicionados os tratamentos com o seu fármaco Spinraza. Saliente-se que, por ambos serem fármacos muito recentes, a sua eficácia e os perfis de segurança a longo prazo ainda não estão completamente definidos.

    Embora se tenha de considerar que as crianças em tratamento se encontram bastante vulneráveis aquando do tratamento, certo é que no portal EudraVigilance, gerido pela Agência Europeia do Medicamento, já foram notificados quatro casos fatais associados ao uso do Spinraza. Em Outubro do ano passado, após duas destas mortes, o CEO da Novartis veio a público assegurar que a falha nas estimativas de receitas daquele medicamento não se deviam a esses casos.

    Zolgensma é considerado o fármaco mais caro do Mundo, mas apresentou-se como uma terapia de uso único para substituir um medicamento da Biogen que custa 200 mil por cada ano de tratamento contínuo.

    Em relação ao fármaco da Biogen, apesar de também se dever a um maior uso em comparação com o medicamento da Novartis, os efeitos adversos também não são nada negligenciáveis. Também de acordo com o portal EudraVigilance, associado ao uso de Spinraza (nusinersen) estão notificados 173 casos fatais só no último triénio, dos quais 55 já este ano, 51 no ano passado e 67 em 2020.

    Por estas ou outras razões, as receitas deste fármaco da Biogen têm estado em declínio: em 2017 começou com uma facturação de 362,5 milhões de dólares e atingiu o seu máximo em 2019, com receitas de 543,2 milhões de dólares. No ano passado situaram-se nos 458,8 milhões de dólares, uma queda de cerca de 15% face ao máximo, algo que não constitui um bom desempenho económico para uma terapia para uma afecção crónica.

  • Elefante na sala: excesso de mortalidade total pelo quarto ano consecutivo

    Elefante na sala: excesso de mortalidade total pelo quarto ano consecutivo


    Nem depois de um morticínio sem precedentes nas últimas décadas, o número de óbitos regressa a valores normais. Nos 10 primeiros meses deste ano, a mortalidade total continua anormalmente elevada, mesmo após pandemia e considerando o envelhecimento populacional. Análise do PÁGINA UM mostra que até finais de Outubro registaram-se 3.476 óbitos a mais. São 11 mortes por dia. Mas este valor ainda se mostra mais dramático porque calculado num cenário sem ocorrência da pandemia. O Governo continua sem apresentar um relatório prometido em Agosto do ano passado sobre o excesso de mortes em 2020 e 2021. E a situação actual mostra que é preciso saber o que aconteceu em 2022 e agora em 2023.


    Até final de Outubro tinham sido contabilizados 97.199 óbitos por todas as causas e será provável que dentro de uma semana se atinja a fasquia das 100 mil mortes este ano. Dito assim, sem contexto, pode significar pouco.

    Mas numa análise estatística do PÁGINA UM, adiante-se já, estamos perante a confirmação da existência de um enorme elefante na sala: pelo quarto ano consecutivo, e apesar da já elevadíssima mortalidade de 2020 e 2021 – no decurso da pandemia da covid-19, em que se abandonou à sorte todas as outras maleitas, e antes do programa de vacinação –, o ano de 2023 continua a ser demasiado funesto. Tal como já fora o ano passado. E agora não há já o SARS-CoV-2 para culpar. Em quanto? Mais 3.476 óbitos. São mais de 11 mortes a mais por dia.

    Sendo certo que, comparando com os três anos anteriores, o período compreendido entre 1 de Janeiro e 31 de Outubro do presente ano apresenta já menor mortalidade (98.947, em 2020; 103.048, em 2021; e 101.861, em 2022), seria mais do que expectável que o número de óbitos fosse muitíssimo menor, por força da ‘redução’ dos mais vulneráveis. Na verdade, Portugal deveria estar a ‘beneficiar’ do morticínio de 2020, 2021 e 2022, pelo que, a não ser por um gravíssimo problema de saúde pública que está a ser escondido, numa situação normal seria expectável que o presente ano registasse um número de óbitos até inferior ao período pré-pandémico. Até porque a ‘razia’ causada pela pandemia incidiu na população mais idosa.

    Refira-se que este incremento não se pode justificar por causas demográficas, por via do aumento dos idosos na população portuguesa, porque esse acréscimo, embora evidente, não suporta o excesso de mortalidade do último quadriénio. Se analisarmos os últimos 20 anos, é expectável um acréscimo de mortalidade de apenas 525 pessoas por causa do envelhecimento populacional.

    Ora, se não houvesse pandemia nem desnorte do Serviço Nacional de Saúde (SNS) – teria sido expectável que, nos primeiros 10 meses de 2020 tivessem morrido 92.148 pessoas, mas acabou por se registar um acréscimo de 6.799 óbitos. A culpa, apontou-se então, foi toda do SARS-CoV-2. O desvio em 2021 foi ainda superior: morreram 103.048 pessoas em vez das expectáveis 92.673, ou seja, mais 10.375 óbitos. A culpa foi do SARS-CoV-2 e de não estar muita gente vacinada, assim justificaram as autoridades e dos ditos peritos.

    Mortalidade expectável (série 2004-2019) e mortalidade efectiva entre 2004 e 2023 nos 10 primeiros meses do ano. Fonte: INE e SICO. Análise: PÁGINA UM. Nota: valor de base comum do gráfico é 60.000 óbitos.

    Mas em 2022, com uma significativa redução da letalidade do SARS-CoV-2 – por via do surgimento da variante Omicron e supostamente da vacinação massiva –, o excesso de mortalidade em Portugal manteve-se ainda em valores elevados. De acordo com a análise do PÁGINA UM, o desvio nos primeiros 10 meses, face ao valor expectável, foi de mais 8.663 óbitos.

    No presente ano, e nem sequer considerando a mortalidade excessiva do triénio anterior, seria expectável que entre Janeiro e Outubro houvesse menos 3.476 óbitos do que os que efectivamente foram registados pelo Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO).

    Em suma, considerando os quatro anos (2020, 2021, 2022 e 2023) houve 29.313 óbitos a mais. Estes valores já incorporam o acréscimo expectável de 5.250 mortes devido ao envelhecimento populacional, o que dramatiza mais a situação actual e dos três anos anteriores.

    Saliente-se, no entanto, que numa situação normal, após um ou mais anos de mortalidade acima da média, por via de uma crise sanitária, seria praticamente certo observar-se uma redução bastante relevante no período seguinte. Por exemplo, entre 2004 e 2019 somente em quatro anos se observou uma mortalidade muito próximo valor previsto, mas nunca houve mais do que um ano acima do valor da linha de tendência. Significa então que continuam existir causas, mesmo se desconhecidas ou escondidas, para o excesso de mortalidade.

    Excesso (vermelho) e défice (verde) de óbitos face ao valor expectável de mortalidade nos primeiros 10 meses de cada ano, tendo como referência a série 2004-2019. Fonte: INE e SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Convém referir que o PÁGINA UM continua ainda a aguardar a decisão de um recurso no Tribunal Central Administrativo Sul para aceder à base de dados integral do Sistema de Informação dos Certificados de Óbitos (SICO) para analisar as causas de morte nos últimos anos, para assim identificar os desvios mais relevantes.

    Embora esta análise estatística deva ser complementada com os dois próximos meses (Novembro e Dezembro), o inexplicado excesso de óbitos pelo quarto ano consecutivo nos primeiros 10 meses, com desvios tão elevados, atinge dimensões escandalosas, só ultrapassado, talvez, pelo silêncio da imprensa mainstream (que durante a pandemia matraqueou sem ceder com número de mortes por covid-19) e pelo desinteresse cúmplice do Ministério da Saúde.

    Recorde-se que, em Agosto de 2022, a então ministra da Saúde prometeu um “estudo aprofundado” sobre o excesso de mortalidade. Tanto a elaboração do estudo como o excesso de mortalidade continuam, embora sem confirmação no primeiro caso, face ao número de meses que já leva. E ambos, tanto o estudo como o excesso de mortalidade, não têm data para terminar.  

  • Covid-19: Governo socialista paga à Sanofi e GSK 90.823 euros por cada dose injectada

    Covid-19: Governo socialista paga à Sanofi e GSK 90.823 euros por cada dose injectada


    Os polémicos acordos de aquisição prévia (APA) de vacinas contra a covid-19 concederam milhões e milhões às farmacêuticas através de contratos leoninos. Mas quem se atrasou nos ensaios clínicos deveria ficar sem nada, porque os APA deixavam de vigorar. Seria o caso do consórcio da francesa Sanofi e da britânica GlaxoSmithKline que produziram a vacina VidPrevtyn. Mas o Governo português quis ser benevolente e, sem qualquer obrigação e em cenário de excesso de oferta, comprou-lhes mais de 830 mil doses. Para nada, a não ser desviar 7,2 milhões de euros dos contribuintes portugueses para os bolsos dos accionistas das duas farmacêuticas. Segundo um organismo da União Europeia, até ao mês passado, foram administradas em Portugal apenas 79 doses da VidPrevtyn. Ou seja, 0,0095% do total comprado. E a probabilidade de um português vacinado ter recebido uma dose desta vacina é de 0.0003%.


    Os acordos de aquisição prévia (APA) de vacinas contra a covid-19 concederam milhões e milhões às farmacêuticas em contratos leoninos com compras garantidas. Mas, sabe-se agora, que até quem se atrasou nas aprovações dos ensaios clínicos, e que deixou de estar abrangido pelos APA, teve direito ao seu quinhão graças à ‘benevolência’ do Governo português. Foi o caso da francesa Sanofi e a britânica GlaxoSmithKline (GSK).

    Como vincou recentemente o próprio Tribunal de Contas numa auditoria à gestão das vacinas contra a covid-19 , não havia obrigatoriedade de qualquer compra da vacina da Sanofi e da GSK, baptizada de VidPrevtyn. Mas o Governo português, mesmo já num cenário de excesso de oferta, em finais de 2022, comprou-lhes 830.440 doses. Para nada, adiante-se já, a não ser o benefício para os accionistas da Sanofi e GSK que receberam 7,2 milhões de euros dos contribuintes portugueses.

    E diz-se para nada, em temos de eventual benefício de imunização, porque, segundo um organismo oficial da União Europeia, em Portugal, até ao mês passado, foram administradas apenas 79 doses da VidPrevtyn. Ou seja, 0,0095% do total comprado. Como a validade é curta, o lixo é o destino final.

    Inicialmente, em 2020, a Sanofi e a GSK até estavam optimistas na ‘corrida às vacinas’, tendo sido das primeiras farmacêuticas a assinarem os polémicos contratos com a Comissão von der Leyen. O acordo – do qual apenas se conhece uma versão cheia de rasuras – foi celebrado em 18 de Setembro de 2020, mesmo antes dos contratos assinados com a Pfizer e com a Janssen, respectivamente, em Outubro e Novembro desse ano.

    Mas enquanto a Pfizer, Moderna, AstraZeneca e Janssen conseguiram acelerar os ensaios e obter autorizações da Agência Europeia do Medicamento (EMAS) ainda em 2020 ou início de 2021, a vacina da Sanofi e a GSK foi sofrendo atrasos sucessivos. E só conseguiu aprovação em 10 de Novembro de 2022, ou seja, já com a procura de vacinas em forte declínio e com os países europeus inundados de doses adquiridas ao abrigo dos APA, mas que já não conseguiam escoar.

    Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, celebrou contratos secretos com as farmacêuticas.

    O enorme atraso face à concorrência teve assim também uma consequência nefasta para a Sanofi e a GSK. Conforme uma recente auditoria do Tribunal de Contas salienta, “existia uma garantia de compra, por parte dos Estados-Membros, de todas as doses iniciais a eles alocadas, salvo quanto à vacina Vidprevtyn [Sanofi e GSK)], cuja compra era facultativa”.

    Contudo, mesmo havendo excesso, e não sendo assim obrigatória nem necessária qualquer aquisição, o Governo decidiu comprar à mesma as vacinas Vidprevtyn. De acordo com referências que surgem no relatório do Tribunal de Contas, numa nota de rodapé da página 51, numa primeira fase o Governo português até decidiu cancelar uma encomenda à Sanofi e GSK de 19.200 doses, mas acabou por pagar-lhes 165.888 euros a título de “indemnização”, ou seja, 8,64 euros por dose não entregue.

    No entanto, depois disso o Governo acabou mesmo assim por comprar, a partir de Novembro do ano passado, um total de 830.440 doses, conforme consta de um quadro do relatório do Tribunal de Contas. Considerando o custo unitário de 8,64 euros, o preço destas vacinas atingiu assim quase 7,2 milhões de euros.

    Quadro retirado da página 51 do Relatório n.º 13/2023 do Tribunal de Contas intitulado “Auditoria à vacinação contra a COVID-19“, com data de Setembro de 2023, que lista as vacinas por marca efectivamente encomendadas.

    Poder-se-ia defender que a aquisição da vacina Vidprevtyn fazia sentido se alguma vantagem clínica houvesse sobre a concorrência. Não foi o caso. Na altura da aquisição, em finais de 2022 e já no início deste ano, decorria então o terceiro reforço (booster), estando já vacinada praticamente toda população mais idosa. Os menores de 50 anos manifestaram uma procura diminuta. E as novas vacinas da Sanofi e GSK foram colocadas não nos braços dos portugueses, mas no canto dos armazéns frigoríficos.

    Com efeito, as doses da vacina Vidprevtyn – que, repita-se, não eram de compra obrigatória, ao contrário das da Pfizer, Moderna, Janssen e AstraZeneca – praticamente não saíram das embalagens. Embora o Tribunal de Contas não chegue a debruçar-se sobre o desperdício em concreto das doses da vacina Vidprevtyn – mas refere, por exemplo, que na vacina da Novavax “o desperdício foi de quase 100% das doses encomendadas –, sabe-se, na verdade, quantas foram efectivamente administradas até ao passado dia 5 de Outubro.

    Assim, com registo obtido hoje a partir do site do European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC) – um organismo oficial da União Europeia –, verifica-se que, de um total de 28.3 milhões de doses administradas em Portugal, a vacina Comirnaty (Pfizer) foi a mais usada, com quase 18 milhões de doses (63,5% do total), a que acrescem mais 2,9 milhões da ‘versão’ bivalente (10,3%). Ou seja, em cada 10 doses administradas em portugueses, mais de sete foram produzidas pela Pfizer. As receitas da venda das vacinas contra a covid-19 por esta farmacêutica norte-americana totalizaram cerca de 74,6 mil milhões de dólares em 2021 e 2022 a nível mundial. Muito mais atrás surge a Spikevax, da farmacêutica Moderna, com 3,9 milhões de doses em Portugal, se incluirmos a bivalente, representando assim 13,9% do total administrado.

    Quantidade de doses de vacina contra a covid-19 administradas em Portugal por marca até 5 de Outubro de 2023. Fonte: ECDC.

    Já com pouca expressão, muito decorrente dos efeitos secundários detectados, surgem as vacinas da AstraZeneca (Vaxzevria) e da Janssen, com 2,3 milhões (8%) e 1,1 milhões (4%) de doses, respectivamente.

    E depois destas, surgem então mais cinco vacinas sem qualquer expressão: as duas vacinas de origem chinesa – Sinovac e Beijing CNBG – tiveram administradas 12.864 e 5.619 doses, respectivamente; a vacina Nuvaxovid foi dada a 338 pessoas, a Covaxin a 244 pessoas e, por fim, a VidPrevtyn foi administrada a… 79 pessoas. Exacto: 79 pessoas, o que significa 0.0003% do total das doses administradas.

    Ou seja, o Governo português, podendo optar por não comprar as 830.440 doses à Sanofi e GSK, porque nem sequer faziam falta, poupando assim cerca de 7,2 milhões de euros às finanças públicas, acabou por gastar esse dinheiro para injectar 79 pessoas. Perante o excesso de oferta de outras vacinas, de compra obrigatória, significa assim que o Governo pagou, por cada dose efectivamente administrada da vacina VidPrevtyn, um total de 90.823 euros.

    O PÁGINA UM tentou obter um comentário sobre esta matéria do Ministério da Saúde, mas como habitualmente sem sucesso.

    Manuel Pizarro, ministro da Saúde, recusa mostrar contratos das compras de vacinas. Mesmo daquele contrato que resultou num custo efectivo de 90.823 euros por dose administrada.

    Recorde-se que o PÁGINA UM tem, desde 31 de Dezembro do ano passado, uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa para obrigar o Ministério do Manuel Pizarro a entregar os contratos das vacinas contra a covid-19, mas expedientes dilatórios e tentativas de ludibriar a juíza do processo estão a adiar uma decisão.

    Recentemente, o Ministério da Saúde conseguiu convencer a juíza do processo no Tribunal Administrativo de Lisboa de que os contratos entre a Direcção-Geral da Saúde e as farmacêuticas estariam no site da Comissão Europeia, o que é falso. Certo é que a juíza solicitou então a tradução desses alegados documentos, dando cinco dias para entrega. Mas o Ministério da Saúde conseguiu uma prorrogação de 30 dias e, na semana passada, mais uma segunda prorrogação de mais 20 dias, concedida pela juíza em novo despacho, fazendo com que uma intimação urgente esteja ao fim de 10 meses no mesmo sítio que começou.


    N.D. Caso queira fazer um donativo dirigido em exclusivo ao FUNDO JURÍDICO, para suportar as despesas com os processos de intimação do PÁGINA UM, utilize preferencialmente a plataforma do MIGHTYCAUSE. Se preferir usar outros meios, pode assim recorrer mas agradecíamos um aviso para procedermos ao depósito na plataforma. Se necessitar de esclarecimentos, escreva-nos para geral@paginaum.pt.

  • Medicamento (promissor) contra o nanismo com custo alto (e polémica internacional)

    Medicamento (promissor) contra o nanismo com custo alto (e polémica internacional)


    Primeiro, estranha-se, depois forçosamente se conclui que, afinal, nem todos os ajustes directos trazem água no bico, e são bem-intencionados, porque, analisados em detalhe, se mostra evidente que mais ninguém, além de uma empresa específica, pode trazer esperança, mesmo se a um custo (muito mais) elevado, a quem sofre de doenças raras.

    O caso da aquisição pelo Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) de um fármaco inovador – vosoritida, sob a marca comercial Voxzogo, pela BioMarin –, como terapêutica para uma forma de nanismo (acondroplasia), chamou a atenção do PÁGINA UM por dois motivos: ajuste directo e preço muito elevado.

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    Mas nem como tudo o que reluz é ouro, também nem tudo o que é ajuste directo com valores elevados é é pechisbeque. E a vosoritida como terapêutica da acondroplasia é disso um exemplo. Esta doença genética, que tem uma incidência em Portugal de 1 por cada 22.000 crianças nascidas – o que significa que, em cada dois anos, há sete que nasce com esta malformação congénita –, tem como reflexos visíveis uma baixa estatura desproporcionada, devido a um menor crescimento dos membros superiores e inferiores, além de malformações da coluna e de outros ossos do crânio.

    A vosoritida, que apenas em 2021 recebeu luz verde da Agência Europeia do Medicamento e de outros reguladores internacionais, ‘simula’ uma substância produzida naturalmente em pessoas sem alteração genética no gene do receptor 3 do factor de crescimento de fibroblastos. Antes deste medicamento – que em ensaios clínicos mostrou resultados promissores, sem efeitos secundários relevantes –, quase apenas se poderia recorrer a intervenções correctivas, incluindo cirurgias, e com resultados muito limitados.

    Mas além de ser um fármaco ainda sem resultados de longo prazo, há um outro óbice: obriga a administrações de longo prazo, até o crescimento cessar, através de injecções diárias. E o preço não é nada barato: 700 euros por dose. Assim, por ano, para cada criança tratada, o custo atinge mais de 250 mil euros.

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    Na semana passada, com o contrato a ser publicado ontem, o CHUC adquiriu um total de 7920 unidades deste fármaco, fabricado pela biotecnológica norte-americana BioMarin, por cerca de 5,2 milhões de euros. Com IVA atinge os 5,5 milhões. Mas a este contrato de aquisição recente juntam-se mais cinco desde Setembro do ano passado, todos celebrados com uma empresa de logística do sector da saúde . A factura suportada atinge já os 13,4 milhões de euros, embora inclua o abastecimento para o próximo ano.

    De acordo com dados do CHUC, estão neste momento a ser tratadas 27 crianças de todo o país, com o tratamento inicial, até Setembro do ano passado, a ser gratuito para o Estado português, mas depois as facturas começaram a chegar. “Os serviços de pediatria do Hospital de Coimbra são a referência nacional para este tipo de doença genética, e por isso centralizou-se aqui a gestão deste fármaco, a compra e a entrega às famílias das crianças, enquanto o Infarmed não conclui a avaliação económica”, no contexto do Programa para Acesso Precoce a Medicamentos (PAP), salienta José Feio, director de serviços de Farmacologia do CHUC.

    Isto significa que, até se chegar à fase de negociação e definição de um preço final e da respectiva comparticipação do Estado – que se prevê total face ao elevadíssimo custo dos tratamentos diários –, será o orçamento do CHUC a arcar com os encargos de todos o país. Daí que José Feio defenda um “financiamento vertical”, em que os hospitais possam recorrer a um suplemento orçamental para fazer face aos encargos suplementares para novos fármacos.

    Mas se, num Estado solidário, não parecem existir dúvidas sobre a utilidade de certos fármacos que dão esperança de uma melhor vida a quem teve uma ‘infelicidade genética’, o preço acaba por ser tema sensível mas necessário, sobretudo quando as farmacêuticas apresentam lucros significativos quando um dos seus medicamentos tem sucesso.

    Por exemplo, as receitas da BioMarin com o seu Voxzogo quase quadruplicaram no primeiro semestre deste ano, passando de 54 milhões de dólares em período homólogo de 2022 para 201,2 milhões, sendo já o seu terceiro medicamento mais rentável e, de longe, o maior crescimento de facturação.

    Como neste momento a BioMarin é ainda a única farmacêutica com um tratamento para a acondroplasia – os desenvolvimentos pela Ascendis Pharma, BridgeBio e Pfizer ainda não estão concluídos –, ignora-se ainda quais os encargos totais para o erário público, tendo em conta que, podendo o tratamento começar a partir dos 2 anos de idade e seguir até ao fim da adolescência, potencialmente, no futuro, poderão vir a ser tratadas cerca de duas dezenas de crianças por ano. Aos actuais preços unitários do tratamento anual (255.500 euros), significaria que o custo global ascenderia aos 10 milhões de euros por ano.

    José Feio considera, contudo, prematuro apontar um custo, estando, porém, muito confiante na capacidade de negociação quando a avaliação económica do Infarmed estiver concluída. “A equipa do Infarmed que conheço integra um painel de especialistas de grande valor e seriedade, e excelente capacidade de negociação”, salienta, acrescentando que “em fármacos desta natureza, Portugal, mesmo sendo um país de pequena dimensão, consegue preços mais baixos do que a generalidade dos países europeus”. Por agora, o custo médio em redor dos 2.500 euros por ano é substancialmente inferior aos 3.000 dólares (2.837 euros ao câmbio actual) anunciado em 2021 pela biotecnológica norte-americana.

    Para o director de serviços de Farmacologia do CHUC, no caso da vosoritida, além dos resultados até agora obtidos “coincidirem ou até se mostrarem melhores do que os ensaios clínicos”, também se deve fazer uma avaliação sobre as poupanças nos tratamentos médicos de pessoas com nanismo. Entre as afecções médicas associadas à acondroplasia estão a apneia do sono, infecções de ouvido, compressão da medula espinal e acumulação de líquido no crânio. Além disso, sem rastreio, o risco de morte súbita em crianças com menos de 5 anos com acondroplasia pode ser quase 50 vezes superior.

    Contudo, talvez paradoxalmente, a descoberta de uma terapia para esta doença genética não foi festejada de forma unânime, incluindo mesmo pelas associações de apoios às pessoas com nanismo. Por exemplo, em 2020, quando a vosoritida ainda estava em ensaios, uma reportagem do New York Times transmitia o receio de que o medicamento pudesse afectar a vida dos adultos com acondroplasia, com associações muito dinâmicas que incentivam ao ‘Orgulho Anão’, ou seja, à capacidade de fazer uma vida normal e plena mesmo nessa condição.

    E ainda mais recentemente, no passado dia 30 de Agosto, uma esclarecedora reportagem da Nature salientava que, embora a procura deste medicamento tenha sido recebido de forma entusiástica e esperançosa por alguns pais com filhos sofrendo de nanismo, houve também movimentos de desaprovação.

    A Nature cita um bioeticista da Universidade de San Diego, Joseph Stramondo, que diz que certas “pessoas responderam como se isto fosse um ataque à subcultura e à identidade das pessoas com nanismo”. E uma importante associação norte-americana, a Little People of America, que conta com oito mil membros, fala mesmo em apagamento ou mesmo em eugenia de pessoas anãs. Aliás, como salienta a reportagem da Nature, as relações entre a Little People of America a a BioMarin têm sido tensas.

    O contrato para aquisição da vosoritida integra o Boletim P1 da Contratação Pública e Ajustes Directos que agrega os contratos divulgados entre a passada sexta-feira e domingo. Desde Setembro, o PÁGINA UM apresenta uma análise diária aos contratos publicados no dia anterior (independentemente da data da assinatura) no Portal Base. De segunda a sexta-feira, o PÁGINA UM faz uma leitura do Portal Base para revelar os principais contratos públicos, destacando sobretudo aqueles que foram assumidos por ajuste directo.

    PAV


    Ontem, dia 30 de Outubro, no Portal Base foram divulgados 633 contratos públicos, com preços entre os 12,35 euros – para aquisição de medicamentos, pela Unidade Local de Saúde de Matosinhos, ao abrigo de acordo-quadro – e os 5.993.347,58 euros – para empreitada de construção de Polo de Saúde, pelo Município de Cascais, através de concurso público.

    Com preço contratual acima de 500.000 euros, foram publicados 16 contratos, dos quais 11 por concurso público, um ao abrigo de acordo-quadro, um por ajuste directo e três por consulta prévia simplificada.

    Por ajuste directo, com preço contratual superior a 100.000 euros, foram publicados oito contratos, pelas seguintes entidades adjudicantes: Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (com a Alloga Logifarma, no valor de 5.228.467,20 euros); Laboratório Nacional de Engenharia Civil (com a TIS.pt – Consultores em Transportes Inovação e Sistemas, no valor de 213.730,00 euros); Município de Almada (com a Algeco – Construções Pré-Fabricadas, no valor de 171.518,96 euros); Banco de Portugal (com a Tubos Vouga – Sistemas de Engenharia, no valor de 163.244,16 euros); Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (com a C. Santos VP, S.A., no valor de 130.560,00 euros); Sociedade de Desenvolvimento do Porto Santo (com a Magnolia Golf Design, no valor de 124.800,00 euros); Estado Maior da Força Aérea (com a Interlimpe – Facility services, no valor de 123.980,94 euros); e o Hospital Garcia de Orta (com a Blueclinical, no valor de 100.000,00 euros).


    TOP 5 dos contratos públicos divulgados no dia 30 de Outubro

    (todos os procedimentos)

    1 Construção do Polo de Saúde de Cascais       

    Adjudicante: Município de Cascais  

    Adjudicatário: Construções Corte Recto – Engenharia & Construção

    Preço contratual: 5.993.347,58 euros          

    Tipo de procedimento: Concurso público


    2Aquisição de medicamentos

    Adjudicante: Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra

    Adjudicatário: Alloga Logifarma

    Preço contratual: 5.228.467,20 euros

    Tipo de procedimento: Ajuste directo


    3Empreitada de construção da Unidade de Saúde de Ribeira Nova

    Adjudicante: Lisboa Ocidental, SRU – Sociedade de Reabilitação Urbana

    Adjudicatário:  NVE Engenharias

    Preço contratual: 2.681.629,65 euros

    Tipo de procedimento: Concurso público


    4Empreitada de recuperação e construção dos edifícios destinados a ERPI, CD e SAD

    Adjudicante: Centro Social e Paroquial de Alcaide

    Adjudicatário: Construções J.M.R.B.

    Preço contratual: 1.995.100,92 euros

    Tipo de procedimento: Concurso público


    5Empreitada de construção de lar para a terceira idade

    Adjudicante: Centro Social da Paróquia S. Martinho de Medelo    

    Adjudicatário: António Freitas Castro, Lda.

    Preço contratual: 1.825.863,40 euros

    Tipo de procedimento: Concurso público


    TOP 5 dos contratos públicos por ajuste directo divulgados no dia 30 de Outubro

    1 Aquisição de medicamentos

    Adjudicante: Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra

    Adjudicatário: Alloga Logifarma

    Preço contratual: 5.228.467,20 euros


    2Aquisição de estudo para aumentar a capacidade aeroportuária de Lisboa

    Adjudicante: Laboratório Nacional de Engenharia Civil

    Adjudicatário: TIS.pt – Consultores em Transportes Inovação e Sistemas

    Preço contratual: 213.730,00 euros


    3Locação de salas de aulas em monoblocos para a Escola Básica do Alfeite 

    Adjudicante: Município de Almada   

    Adjudicatário: Algeco – Construções Pré-Fabricadas

    Preço contratual: 171.518,96 euros


    4Andaimes para as fachadas do Edifício Portugal

    Adjudicante: Banco de Portugal       

    Adjudicatário: Tubos Vouga – Sistemas de Engenharia      

    Preço contratual: 163.244,16 euros


    5Aquisição de serviços especializados para o parqueamento de viaturas de luxo       

    Adjudicante: Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça

    Adjudicatário: C. Santos VP, S.A.

    Preço contratual: 130.560,00 euros

    MAP

  • Vírus sincicial respiratório: Sanofi já factura (bem) com novo fármaco ‘apadrinhado’ pela imprensa

    Vírus sincicial respiratório: Sanofi já factura (bem) com novo fármaco ‘apadrinhado’ pela imprensa


    Desde Fevereiro deste ano não há registos de internamentos em Portugal de crianças com infecções causadas pelo vírus sincicial respiratório (VSR), mas a farmacêutica Sanofi já começou a recolher em Portugal dividendos de uma forte campanha mediática em redor desta doença banal e praticamente inofensiva (sem mortes conhecidas), que foi transformada num suposto problema gravíssimo de Saúde Pública. Conferências e conteúdos comerciais pagos em jornais, como o Público e o Expresso, ajudaram a promover um novo fármaco para ser administrado a todos os recém-nascidos, substituindo um antigo, apenas usado em prematuros e bebés com comorbilidades graves. O negócio é literalmente de milhões. Este mês, a Madeira deu o ‘pontapé de saída’ comprando 2.400 doses, quando nascem 1.700 bebés por ano, e gastando 560 mil euros. Se no Continente se optar pela mesma bitola, o negócio vai chegar aos 26 milhões por ano. Não existem evidências sobre o benefício de um novo medicamento em crianças saudáveis, até porque em França e Itália já se contabilizam reacções adversas ao novo fármaco.


    O mais recente boletim de vigilância epidemiológica da gripe e de outros vírus respiratórios, relativa à semana 41 deste ano (9 a 15 de Outubro), aponta para “ausência de casos notificados de infeção por VSR [vírus sincicial respiratório] em crianças internadas menores de 2 anos”. O relatório da semana 40, diz o mesmo. Na semana 39, idem. Igualmente na semana 38. Idem para a semana 37.

    Na verdade, é preciso recuar à semana 8 deste ano, em finais de Fevereiro, para se encontrar um destes relatórios do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA) que reporte casos de internamento por VSR, uma das infecções respiratórias mais comuns no início de vida (até aos dois anos), mas geralmente benigna, excepto em prematuros ou recém-nascidos com problemas respiratórios e cardíacos. Mas mesmo nos casos muito raros, não existe registo em Portugal de qualquer morte tendo o VSR como causa.

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    Mas pequenos surtos ocorridos durante a pandemia da covid-19 – já previstos por investigadores, como resultado do distanciamento social, dos lockdowns e do amplo uso de máscaras, que implicou uma redução da imunidade passiva natural (a partir do leite materno) – transformaram uma “banal doença, muito banal” num mediático fenómeno de saúde pública. Para isso muito contribuíram médicos e comunicação social, mesmo a nível internacional, que trataram de equiparar o VSR à covid-19 e à gripe, falando mesmo há um ano na iminência de uma tripla pandemia tripla no passado Inverno, que nunca aconteceu. E devia ter sucedido, a atender pelos especialistas na matéria que, em Portugal, asseguraram esta fatalidade.

    Em Portugal, este fenómeno também sucedeu com uma crescente abordagem mediática. Conforme o PÁGINA UM destacou em Maio passado, ao longo de 2022 registou-se um invulgar número de notícias sobre o VSR na imprensa portuguesa, contabilizando-se 14 artigos no Diário de Notícias, 12 no Observador, 22 na CNN Portugal, 25 no Expresso e 15 no Público.

    No caso destes últimos dois jornais, coincidentemente, surgiram eventos comerciais pagos pela farmacêutica Sanofi, que em parceria com a AstraZeneca, estavam a promover um novo anticorpo monoclonal – o nirsevimab, um substituto de um outro fármaco similar (palivizumab), que há já vários décadas era administrado apenas a prematuros ou crianças com comorbilidades muito específicas.

    Em 4 de Novembro do ano passado, o pneumologista Filipe Froes ‘anunciava’ no Diário de Notícias a iminência de uma pandemia tripla: gripe, covid e vírus sincicial respiratório (VSR). Falhou triplamente, mas contribuiu para o alarmismo e para alcandorar a VSR ao estatuto de grave problema de Saúde Pública.

    A articulação entre parcerias comerciais e notícias favoráveis aos interesses económicos da Sanofi ficou bem patente no caso específico do jornal Público. No seguimento de outros eventos comerciais, incluindo conferências, a Sanofi fez publicar, na edição em papel de 29 de Abril, um inaudito conteúdo comercial de quatro páginas em texto ao estilo jornalístico, com chamada de primeira página.

    Nesse texto, surgia um pediatra, Luís Varandas, a anunciar “um novo anticorpo monoclonal, já autorizado pela Agência Europeia do Medicamento, de administração única, a recém-nascidos e lactentes, no início da estação do VSR”, omitindo-se que se tratava do niservimab, comercializado pela própria Sanofi.

    Duas semanas depois, o Público daria destaque a um artigo na revista científica da Ordem dos Médicos sobre a incidência da VSR em 2021, salientando ter sido uma “epidemia ‘de época’”, com 37 semanas, mas sem que surja, nessa análise, qualquer reporte de mortes. E, por fim, ainda nesse mês de Abril surgiria uma manchete no Público a anunciar um alegado parecer, nunca revelado oficialmente, da Sociedade Portuguesa de Pediatria – que no ano passado recebeu 108 mil euros da Sanofi – que fora entregue na Direcção-Geral da Saúde recomendando a administração do nirsevimab a todos os recém-nascidos. Só depois de questionado pelo PÁGINA UM, o Público viria a identificar que este fármaco era comercializado pela Sanofi, com indicação dessa alteração no final do artigo online.

    Sanofi conseguiu, através de conteúdos comerciais e conferências pagas a órgãos de comunicação social, ‘promover’ uma doença banal a um caso grave de Saúde Pública. Depois de pequenos surtos decorrentes da gestão da covid-19, não há hospitalizações de crianças com infecções por VSR desde Fevereiro, mas há o negócio de novo anticorpo monoclonal.

    Embora não exista conhecimento de uma decisão da DGS ou do Infarmed para a compra deste fármaco, e a sua administração às cerca de 80 mil crianças que nascem em Portugal por ano –, a Sanofi já começou a recolher dividendos da mediatização do VSR nos últimos anos. Com efeito, o PÁGINA UM detectou já uma avultada compra de nirsevimab – comercializado pela Sanofi sob a marca Beyfortus – este mês pelo Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira (SESARAM).

    Assinado no passado dia 13, a empresa pública que gere o Hospital Nélio Mendonça adquiriu 2.400 unidades deste fármaco injectável (em doses de 50 e 100 miligramas), cada uma custando 220 euros. Preço total: 528 mil euros, o que, com IVA, alcança quase 560 mil euros. Como o fármaco é de administração única e tem um prazo de validade de apenas dois anos, significa que, em princípio, esta compra não visa injectar apenas os prematuros e recém-nascidos com comorbilidades, uma vez que, por ano, nascem pouco mais de 1.700 crianças, segundo dados da Direcção Regional de Estatística da Madeira. O PÁGINA UM pediu esclarecimentos e informações, na passada segunda-feira, à Secretaria Regional de Saúde e Protecção Civil da Madeira, mas não obteve resposta.

    Considerando que em Portugal nasceram um pouco mais de 84 mil crianças por ano no último quinquénio (2018-2022), se houver uma decisão similar para comprar à Sanofi o seu anticorpo monoclonal no sentido de uma administração generalizada, então a factura atingirá mais de 27 milhões de euros por ano.  

    Sanofi e AstraZeneca já começaram a vender um fármaco a ser administrado a todos os bebés. Desde Fevereiro não há registos de internamentos causados pelo vírus sincicial respiratório.

    Este valor potencial é incomensuravelmente superior ao que se tem gastado com o palivizumab, o antecessor do nirsevimab. Pela consulta dos contratos no Portal Base, desde 2008 foram comprados 9,1 milhões de euros deste anticorpo monoclonal, sendo que em 2014 se registou o maior gasto: quase 2,2 milhões de euros. No ano passado despendeu-se 713 mil euros – mesmo se houve supostamente surtos graves.

    Mesmo podendo-se ser populista em matérias de Saúde Pública, certo é que gastos excessivos com baixos (ou mesmo nulos) benefícios podem resultar em balanços muito negativos. Por exemplo, em 2011, um artigo científico apontava que na Flórida “o custo da imunoprofilaxia com palivizumab excedeu em muito o benefício económico de prevenir hospitalizações, mesmo em lactentes com maior risco de infecção por VSR”. Isto porque o preço por tratamento era extremamente elevado. Por exemplo, em prematuros com menos de seis meses de idade, a imunoprofilaxia com este anticorpo monoclonal da AstraZeneca custava entre 3.092 mil e quase 915 mil euros.

    No Canadá, onde este fármaco é comercializado pela AbbVie – devido a um acordo comercial –, o preço de venda atingia há poucos anos os 15.000 dólares por grama, sendo esta farmacêutica acusada de tácticas de vendas agressivas. Segundo uma notícia da CBC, no período de 2015-2016, o Canadá gastou 43,5 milhões de dólares para imunizar apenas 6.392 crianças, o que significou, em média, à cotação actual, um custo de quase 4.700 euros por criança.  

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    Além disso, e no caso do nirsevimab, não é prudente começar uma administração generalizada num medicamento tão recente, apenas aprovado pela Agência Europeia do Medicamento em Novembro de 2022 e pela Food and Drug Administration, no Estados Unidos, em Julho passado. Neste momento, apenas com registos da França e Espanha, foram reportados ao sistema da EudraVigilance um total de 28 reacções adversas, das quais 25 classificadas como sérias. Destas, 11 resultaram em hospitalizações prolongadas.

    A consultora Airfinity previu, em Setembro do ano passado, que a AstraZeneca e a Sanofi poderiam atingir uma receita da ordem dos 1,1 mil milhões de dólares apenas por conseguirem a aprovação da imunoprofilaxia contra o VSR antes da concorrência.

  • Greves e instabilidade do SNS até beneficiam Governo: portugueses estão a procurar menos os hospitais

    Greves e instabilidade do SNS até beneficiam Governo: portugueses estão a procurar menos os hospitais


    Esta noite, os tempos de espera no Hospital Santa Maria, consultando os dados em tempo real, andam pelas três horas para os doentes menos urgentes e menos de uma hora para os doentes urgentes. Poderia ser pior. Com as greves e a instabilidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS), antevia-se o caos. Mas, afinal, os portugueses preferem a ‘morte’ ao caos, e daí muitos têm fugido de previsíveis ‘secas’ nas urgências, optando por nem lá porem os pés. Uma análise do PÁGINA UM aos dados oficiais mostram que nas primeiras duas semanas de Outubro se contabilizaram menos 16.839 doentes nas urgências face ao período homólogo, uma queda quase generalizada em todos os hospitais, sobretudo do Centro e da região de Lisboa e Vale do Tejo. No Hospital de Santa Maria, a queda é mesmo de 20%. Mostramos todos os números.


    As greves de médicos, a instabilidade no Serviço Nacional de Saúde (SNS), o fecho temporário de serviços e o clima mediático que enfatiza as potenciais dificuldades de resposta hospitalar estão a ter um efeito que não desagradará ao Governo: nas duas primeiras semanas de Outubro, em vez de entupimentos e aumentos do tempo de espera, verifica-se que a esmagadora maioria dos principais hospitais públicos regista uma redução na afluência aos serviços de urgência face ao período homólogo do ano passado. No Hospital de Santa Maria, o terceiro do país com mais episódios em 2022, a queda dos números de urgência é de 20%. Foram menos 1.722 pessoas a procurarem as urgências.

    De acordo com a análise do PÁGINA UM aos números oficiais da Monitorização Diária dos Serviços de Urgência para as 25 principais unidades hospitalares do SNS, o Hospital do Barreiro foi aquele que contabilizou a maior queda. Entre 1 e 14 de Outubro do ano passado foram atendidas, em média diária, nas urgências daquela unidade de saúde da Margem Sul um total de 390 pessoas, mas no mesmo período deste ano esse número baixou para 290, ou seja, uma descida de 25.6%. O segundo hospital com maior redução relativa (e com a maior redução absoluta) foi o Hospital de Santa Maria, em Lisboa: no período em análise teve no ano passado 621 atendimentos por dia nas urgências; este ano ficou pelas 498.

    Esta descida é muito significativa: na primeira quinzena de 2022, a unidade principal do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte foi o segundo mais sobrecarregado de episódios de urgência (apenas atrás do Hospital de São João do Porto e do Hospital Fernando da Fonseca, conhecido por Amadora-Sintra), mas agora foi ainda ultrapassado pelo Hospital de Gaia e pelo Hospital de Braga. Estas duas unidades são, aliás, duas das poucas excepções, porquanto registaram subidas nas urgências, embora ligeiras (2,6% e 5,2%, respectivamente).

    Além destes dois hospitais nortenhos, apenas se contabilizam pequenas variações positivas nas urgências de Guimarães (2,5%), São José (1,4%), Vila Nova de Famalicão (0,3%) e Viana do Castelo (1,2%). Fora do top 25, destaca-se, contudo, o Hospital de Faro que registou uma subida de 64,4%, mas em parte devido à redução registada no Hospital de Portimão.

    De resto, predominam as descidas. Além dos já referidos casos do Barreiro e de Santa Maria, há mais sete hospitais do top 25 com reduções de pelo menos 10%: Universidade de Coimbra (-17,5%), Leiria (-10,7%), Vila Franca de Xira (-10,0%), Viseu (-10,5%), Setúbal (-15,0%) e Portimão(-10,0%). Também fora do top 25 merece destaque a redução da procura das urgências no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures: nas duas primeiras semanas de Outubro do ano passado foram atendidas nas urgências 492 pessoas por dia; este ano apenas 262, o que significa uma descida de 46,9%. Também em queda está a principal unidade pediátrica do país, o Hospital D. Estefânia, que registou uma descida de 12,9%.

    Número médio diário de episódios de urgência entre 1 e 14 de Outubro e em Setembro para os anos de 2022 e 2023, e variação relativa (%). Fonte: ACSS.

    Este fenómeno de queda quase generalizado e com significado estatístico é bastante recente. O PÁGINA UM comparou também o mês de Setembro deste ano com o período homólogo de 2022 e constatou que apenas os hospitais de Coimbra (-15,5%) e de Setúbal (-13,0%) registaram uma redução superior a 10% no afluxo de pessoas às urgências: E 13 dos 25 maiores hospitais até tinham registado uma subida.

    Estes números de Outubro – que serão induzidos pela instabilidade do SNS e pela percepção dos pacientes de que haverá falhas no serviço em caso de se deslocarem a hospitais públicos – acabam por atenuar uma previsível nova sobrecarga nos serviços hospitalares após os dois primeiros anos de pandemia (2020 e 2021).

    Com efeito, na primeira quinzena de Outubro de 2020, todas as urgências do SNS receberam, em média, 12.985 doentes, número que já subiu para os 17.346 em 2021 e que aumentou ainda mais no ano seguinte, para os 18.954 doentes por dia.

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    Tendo baixado para os 17.751 doentes atendidos em média por dia entre 1 e 14 de Outubro passado, o Governo ‘respira de alívio’, uma vez que pior do que as greves será as urgências entupidas de doentes com tempos de espera desesperantes.

    Contudo, no período em análise (primeiras duas semanas de Outubro), apesar da queda nos atendimentos quase generalizada – chegando a 13% nos hospitais da região de Lisboa e Vale do Tejo, ou seja, menos 864 urgências por dia –, o Algarve até regista uma subida de 9%, embora isso represente 85 doentes a mais nas urgências em cada dia.

  • Covid-19: Custo das vacinas desperdiçadas ultrapassa os 511 milhões de euros

    Covid-19: Custo das vacinas desperdiçadas ultrapassa os 511 milhões de euros


    A “máquina” do Banco Central Europeu permitiu a ilusão de tudo se poder fazer. A Comissão Europeia impôs, e os Estados-membros aceitaram, a compra de vacinas contra a covid-19 à fartazana. O resultado está aí. Ontem à noite, o Tribunal de Contas já levantou o véu do desastre financeiro em Portugal, alertando para um desperdício de vacinas não administradas que poderia chegar aos 45%. Esse valor, estimado para o final do ano passado, pecará por defeito. O Estado português encomendou até 2022 um total de 61,2 milhões de doses, mas por causa da baixa procura nos meses mais recentes só se utilizaram, até agora, 28,2 milhões de doses. Houve mesmo duas vacinas em que a taxa de desperdício foi de quase 100%. Contas feitas, já voaram assim para os cofres das farmacêuticas mais de 511 milhões de euros sem qualquer préstimo público. E vai haver mais até 2026, pelo menos. A inflação e as oportunidades perdidas para o futuro do Serviço Nacional de Saúde são a factura a pagar pelos contribuintes.


    Um desastre financeiro. Portugal encomendou 61.192.803 doses de vacinas contra a covid-19 até final do ano passado, segundo dados de um relatório do Tribunal de Contas ontem à noite revelado, mas os dados do European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC) comprovam que, até agora, apenas foram administradas 28.200.460 doses no nosso país. Tendo em conta o tempo já passado – e mais compras entretanto feitas –, o desperdício financeiro, decorrentes dos secretos acordos prévios de aquisição negociados pela Comissão von der Leyen e as farmacêuticas, será, no mínimo, desastroso.

    O relatório do Tribunal de Contas é prudente – e até bondoso na análise entretanto realizada –, estimando que, até final do ano passado, onde termina a análise, a taxa de desperdício era de 11,2%, apontando para um desperdício de cerca de 3,5 milhões de doses. Mas salientava que o desperdício seria previsivelmente maior, porque a percentagem de doses ainda não administradas face ao total então recebido era já de 42%, “deixando antever uma tendência de agravamento da taxa de desperdício de vacinas, ao longo do tempo”. Como a vacinação perdeu gás nos últimos meses, ao ponto da adesão dos menores de 50 anos para o terceiro reforço ter sido praticamente nula, a perda de validade terá atingido quase todo o stock e encomendas chegadas nos primeiros meses de 2023.

    Nem todas as vacinas terão tido o lixo como destino. Substituindo o obscurantismo do Ministério da Saúde – que tem mantido uma postura de secretismo inqualificável –, o Tribunal de Contas revela que, até ao ano passado, “o desperdício das doses em excesso foi minimizado através de doações, de revendas e de empréstimos”, salientando que 7,8 milhões de doses de vacinas foram doadas a países terceiros, quer através de doações bilaterais, quer do mecanismo GAVI/COVAX; 1,8 milhões de doses foram revendidas; e ainda 775 mil doses terão sido cedidas a título de empréstimo.

    Em todo o caso, estes mecanismos não terão sido tão intensos nos três últimos trimestres do ano passado, e muito menos ao longo de 2023, porque há um excesso de oferta perante a escassez de procura. Com efeito, a adesão dos europeus aos segundo e terceiros reforços da vacina contra a covid-19 foi bastante baixa. Conforme o PÁGINA UM revelou na semana passada, nos países abrangidos pelo ECDC apenas 14,7% da população tomou o segundo reforço e somente 2,4% o terceiro.

    Prova da fraca adesão ao longo de 2022 – e também de 2023 – nota-se pelo fraco acréscimo de doses administradas entre o final do ano passado – que segundo o relatório do Tribunal de Contas, era de 27.986.899 unidades – e o valor actualmente indicado para Portugal pelo ECDC: 28.200.460 unidades. Ou seja, nos últimos seis meses apenas foram administradas, de acordo com os números indicados por duas entidades credíveis, 215.561 doses no nosso país, fazendo aumentar as quantidades desperdiçadas, sem préstimo.

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    Assim, mesmo excluindo as encomendas ao longo do presente ano – quantidades que continuam no segredo dos deuses, enquanto se aguarda ainda pela sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa a uma intimação do PÁGINA UM entrada em 31 de Dezembro do ano passado –, o diferencial entre as compras até ao final de 2022 (cerca de 61,2 milhões de doses) e as doses efectivamente administradas aos portugueses até agora (28,2 milhões de doses) será, portanto, de 33 milhões de doses. Ou seja, a taxa de desperdício já atingirá os 54%, em vez dos 42% estimados para o final do ano passado pelo Tribunal de Contas.

    E, cálculos feitos com base nos custos unitários apontados pelo Tribunal de Contas (15,5 euros por dose), conclui-se então que o montante gasto pelo Governo em vacinas não administradas já ultrapassará os 511 milhões de euros. Recorde-se que somando todas as autorizações de despesa emanadas por Resolução do Conselho de Ministros, a mais recente das quais no passado dia 22 de Setembro, o Governo português prevê gastar até 2026 um total de cerca de 1,1 milhões de euros na compra de vacinas.

    Além de outros pormenores transmitidos pelo relatório, o Tribunal de Contas acaba por revelar casos paradigmáticos dos desperdícios milionários, em benefícios das farmacêuticas, por graça e obra da Comissão von der Leyen com os acordos prévios de aquisição.

    Dados actuais do European Centre for Disease Prevention and Control mostram que Portugal administrou 28,2 milhões de doses, mas o Tribunal de Contas diz que, até ao final do ano, o Governo encomendou 61,2 milhões de doses. E vêm mais a caminho até 2026.

    Por exemplo, por essa via, Portugal foi obrigado a comprar 408 mil doses à Novavax, mesmo se a aprovação dessa vacina só se tivesse concretizado em Abril do ano passado. O Tribunal de Contas diz mesmo que “o desperdício foi de quase 100% das doses encomendadas”. Na verdade, consultando os dados do ECDC foram administradas apenas 314 doses, ou seja, o desperdício real foi de 99,9%.

    Mas nem foi, diga-se, a pior situação. Cruzando a informação das compras por marca, constante no relatório do Tribunal de Contas, com as doses administradas por marca no site do ECDC, fica-se a saber que a vacina da Sanofi-GSK, a Vidprevtyn, autorizada apenas em Dezembro do ano passado pela DGS, teve como consequência, pelos acordos da Comissão von der Leyen, que Portugal acabasse por comprar 830.400 doses. Segundo o ECDC foram administradas até hoje somente 77 doses da Vidprevtyn, ou seja, 0,0093% do total.

    Doses encomendadas (até final de 2022) e administradas (até à actualidade) em Portugal por marca e respectivas taxas de administração de desperdício. Fonte: Tribunal de Contas e ECDC.

    Mesmo a Pfizer tem, até agora, uma taxa de administração que não chega aos 55%, mesmo assim bem acima da vacina da Moderna (35,5%), da AstraZeneca (33,3%) e da Janssen (28,8%).  

    De entre as vacinas administradas em Portugal, ainda segundo os dados do ECDC – a DGS não revela essa informação –, 74% foram da Pfizer, que acabou assim por dominar completamente o mercado nacional. A Moderna regista uma quota de 14%, enquanto a AstraZeneca e a Janssen – que não usam a tecnologia RNAm – ficaram com quotas de 8% e 4%, respectivamente.

  • Governo gasta mais 222 milhões de euros em vacina que já (quase) ninguém quer

    Governo gasta mais 222 milhões de euros em vacina que já (quase) ninguém quer


    Com a crónica crise no Serviço Nacional de Saúde, em Portugal só não falta dinheiro para uma coisa: vacinas contra a covid-19. O Governo acaba de decidir gastar mais 222 milhões de euros até 2026, aumentando a factura destas vacinas para os 1,1 mil milhões de euros. O montante médio anual previsto (55,5 milhões de euros) daria, nas primeiras fases, para comprar mais de 2,8 milhões de doses, mas, a não ser que os preços unitários praticados pelas farmacêuticas tenham disparado, comprar-se-á para deitar fora. Com efeito, a adesão ao terceiro booster em Portugal foi de apenas 4% (400 mil pessoas), de acordo com dados do European Centre for Disease Prevention and Control. Na Europa foi ainda mais baixo (2,4%) e já há mais de uma dezena de países onde praticamente deixou de se administrar reforços, devido à baixa procura.


    Apesar de um desinteresse generalizado, em toda a Europa, no reforço da vacinação contra a covid-19, o Governo português destinou mais 222 milhões de euros para a compra de doses até 2026. Tendo em conta que nos anos anteriores os custos globais de aquisição de doses e de material para a administração de vacinas já vai em quase 877 milhões de euros, a factura vai assim ascender aos 1,1 mil milhões de euros.

    De acordo com a Resolução do Conselho de Ministros publicada hoje, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) fica autorizada a gastar um montante de 223.326.350,32 euros até 2026, ficando os encargos anuais entre os cerca de 50 milhões de euros, no próximo ano, e os 65,4 milhões a gastar este ano.

    Centros de vacinação para o terceiro reforço estiveram às moscas. Apenas 4% dos portugueses aderiram.

    Embora o Governo queira manter secretos os contratos assinados com as farmacêuticas – estando uma intimação a correr no Tribunal Administrativo de Lisboa, por iniciativa do PÁGINA UM –, as diversas Resoluções de Conselho de Ministros desvendam já um pouco do véu sobre os sumptuosos gastos para uma operação vacinal sem precedentes, mas que foi perdendo muito gás durante os últimos dois anos, não apenas em Portugal mas em todos os países abrangidos pelo European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC).

    De acordo com esta instituição, Portugal até foi, no grupo dos 30 países europeus abrangidos, aquele com maior adesão na vacinação primária: 87% da população. Mas no primeiro booster já só respondeu ao “convite” 69% da população, sendo até já ultrapassado pela Itália (76%).

    Mas foi com a chamada para o segundo e terceiro booster – numa altura em que a eficácia das vacinas e os seus efeitos secundários, a par do secretismo das autoridades e da dominância de variantes menos agressivas, levaram ao aumento da desconfiança – que se observou um quase completo alheamento. No caso de Portugal, o segundo booster somente teve uma adesão de 30,8%, mesmo assim uma procura apenas ultrapassada pela Bélgica (33,6%) e a Dinamarca (32,3%).

    Evolução da adesão (% da população total) ao programa vacinal na Europa nas diversas fases. Nota: sd (sem dados). Fonte: ECDC.

    Já com o terceiro booster, a queda da procura ainda foi maior, sobretudo em Portugal, que nas outras fases estava no “pelotão da frente”. De acordo com os dados do ECDC, apenas 4% da população portuguesa foi à chamada para o terceiro booster – ou seja, ao terceiro reforço após a vacinação inicial com uma ou duas doses, consoante a marca –, ficando assim atrás da Holanda (12,6%), Finlândia (9,9%), Irlanda (9,6%), Islândia (4,9%) e Bélgica (4,3%).

    Aliás, na generalidade dos países, a procura pelo terceiro reforço é bem demonstrativo de que a confiança na vacinação contra a covid-19 – ou a percepção da sua utilidade face à imunidade natural e à ocorrência de variantes menos agressivas – é agora praticamente nula. Os dados da ECDC revelam 11 países com adesão nula ou inferior a 1% ao terceiro booster. Contam-se ainda cinco países sem dados para o terceiro booster, dos quais quatro (Croácia, Lituânia, Polónia e Roménia) onde provavelmente a adesão foi nula, visto que a procura do segundo booster já era bastante baixa.

    Em termos globais, a ECDC aponta assim para uma adesão de apenas 2,4% dos europeus aos terceiro booster, quando atingira 14,7% no segundo booster, os 54,6% no primeiro booster e os 73% na vacinação primária. Em termos absolutos, nos países europeus abrangidos pelo ECDC (União Europeia e ainda Islândia, Liechtenstein e Noruega), foram administradas mais de 330 milhões de doses em vacinação primária (houve cerca de 342 milhões de pessoas que optaram apenas por uma dose), baixando para 248 milhões quando as autoridades consideraram a necessidade de um reforço. Ao segundo reforço só responderam já um pouco menos de 67 milhões de pessoas. E para o terceiro booster já só mostraram interesse menos de 9 milhões de europeus. Assim, entre a vacinação primária e o terceiro reforço, contabiliza-se uma redução de 97,3%.

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    Mesmo que Portugal mantenha, para os próximos reforços previstos até 2026, os níveis de adesão do terceiro reforço (4%) – o que corresponde a cerca de 400 mil pessoas –, as quantidades susceptíveis de serem adquiridas, atendendo ao montante atribuído à DGS pelo Governo, aparentam ser excessivos, se se tiver em conta os preços praticados nas primeiras fases da vacinação.

    As primeiras compras do Governo português tiveram um preço entre os 15 e os 20 euros por dose, significando que, se o preço unitário se mantivesse nesses níveis, seria apenas necessário gastar 8 milhões de euros por ano. E não os 55,5 milhões de euros a gastar, em média por ano, até 2026.

    Porém, mostra-se expectável, que as farmacêuticas, com a forte redução da procura, aumentem substancialmente os preços unitários para manter as expectativas de receita. Só assim se justifica que o Governo preveja um gasto médio anual de 55,5 milhões de euros, que dariam para quase 2,8 milhões de pessoas, ou seja, quase sete vezes mais do que o número de vacinados com a terceira dose de reforço.

    Evolução da administração de doses contra a covid-19 nos países europeus nas diversas fases do processo de vacinação contra a covid-19. Fonte: ECDC.

    Recorde-se, mais uma vez, que o Ministério da Saúde está a fazer todos os esforços para manter secretos os contratos das vacinas contra a covid-19, onde constam os preços unitários. Desde o final do ano passado decorre um processo de intimação do PÁGINA UM no Tribunal Administrativo de Lisboa, quase kafkiano, para acesso aos contratos de compra das vacinas.

    Ainda esta semana, a juíza do processo exigiu que o Ministério da Saúde provasse, com documentação, que os contratos entre a Direcção-Geral da Saúde e as farmacêuticas, solicitados pelo PÁGINA UM, se encontravam no site da Comissão Europeia. Aguarda-se essa “prova”, até porque, na verdade, aquilo que consta no site da Comissão Europeia são apenas os acordos, barbaramente rasurados, entre a Comissão von der Leyen e as diversas farmacêuticas, algumas das quais nem sequer venderam qualquer dose a Portugal.

    O actual director-geral interino da Saúde, André Peralta-Santos – um dos principais candidatos a substituir Graça Freitas como Autoridade de Saúde Nacional –, e que colaborou no ano passado por quatro vezes com a farmacêutica Pfizer, defendeu em Julho passado, junto do Tribunal Administrativo de Lisboa, que o Ministério da Saúde deveria, “para efeitos de contestação” à intimação do PÁGINA UM para acesso aos contratos de compras de vacinas e outros documentos associado às aquisições, “questionar, mesmo nesta fase do processo, se os Tribunais nacionais serão os competentes para julgar esta matéria”. A Pfizer foi a empresa farmacêutica que mais vendas terá efectuado a Portugal.


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