Categoria: Saúde

  • Vacina reduziu mortes, mas Reino Unido enfrenta “pandemia de vacinados”

    Vacina reduziu mortes, mas Reino Unido enfrenta “pandemia de vacinados”

    A mais recente vaga de casos positivos de covid-19, muito superior às anteriores, está a causar constrangimentos económicos e de logística nunca vistos. Se a vacina mostra fortes sinais de reduzir significativamente o risco de hospitalização e de morte, sobretudo nos mais idosos, o SARS-CoV-2 está, paradoxalmente, a “entrar” mais facilmente na comunidade vacinada, mesmo usando valores padronizados. Existem várias explicações para este aparente paradoxo, segundo um relatório da Agência de Saúde Sanitária do Reino Unido. Uma delas é tema tabu em Portugal, e a Direcção-Geral da Saúde recusa dar informações ao PÁGINA UM: a imunidade natural dos recuperados – que integram muitos dos não-vacinados – poderá ser afinal muito superior à imunidade vacinal.


    É um dos paradoxos do momento: com 71% da população vacinada e mais de 54% com dose de reforço, o Reino Unido está a enfrentar uma vaga avassaladora de casos positivos de covid-19 – e essa variável está a contribuir para uma significativa queda da mortalidade –, mas a “culpa” parece ser afinal dos vacinados que apresentam incidências muito superiores aos dos não-vacinados. A situação deverá ser idêntica em outros países. Em Portugal, a Direcção-Geral da Saúde nunca divulga dados sobre estas matérias, embora constem do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE).

    Apesar desta situação não beliscar os benefícios da vacinação na população mais idosa – cuja taxa de mortalidade nos maiores de 80 anos vacinados é de apenas 20% face à dos não-vacinados do mesmo grupo etário –, em causa estará um dos benefícios da vacina prometidos pelas farmacêuticas: uma maior protecção contra a infecção, mesmo em recuperados.

    blue and white plastic bottle

    Recorde-se que a recente vaga de infecções, sobretudo no Hemisfério Norte, tem colocado uma pressão suplementar na gestão logística e económica da pandemia, com cada vez mais pessoas a serem obrigadas a confinamento por causa de testes positivos, mesmo os assintomáticos. Por exemplo, o Reino Unido conta, neste momento, com cerca de 3,6 milhões de casos activos, representando 5,5% do total da população. Este valor é cerca do dobro do pico registado em Janeiro do ano passado. Em Portugal, há um ano, cerca de 1,4% da população estava como “caso activo”; agora são 3,5% (356.477 pessoas).

    A última actualização do relatório periódico da Agência de Saúde Sanitária (ASS) do Reino Unido – um dos mais completos e transparentes sistemas mundiais de gestão da pandemia – revela que o grupo populacional que mais tem contribuído para esta vaga explosiva de casos é, afinal, o dos vacinados.

    A entidade estatal do Reino Unido apresenta, no seu relatório de vigilância epidemiológica, vários indicadores relacionados com o número de casos, hospitalizações e mortes por covid-19, tanto estratificados por idades como também por estado vacinal. E mostra agora que, no caso da incidência, os vacinados estão em larga maioria, tanto em número – compreensível porque são mais –, mas também em termos relativos ou padronizados – isto é, em casos no grupo em relação à totalidade de pessoas do grupo. A situação evidencia-se especialmente na população adulta activa.

    De facto, nos menores de 18 anos, a incidência dos não-vacinados ainda é superior à dos vacinados (3.376 por 100.000 pessoas vs. 2.357), mas inverte-se, de forma evidente, nos grupos etários mais velhos. Nos jovens adultos (18-29 anos), a incidência nos vacinados chega a ser praticamente o dobro face à nos não-vacinados. Nos grupos etários seguintes (30-39 anos, 40-49 anos, 50-59 anos e 60-69 anos), as incidências nos vacinados são ainda superiores: mais 133%, mais 145%, mais 127% e mais 110%, respectivamente.

    Incidência cumulativa bruta no período entre a semana 50 de 2021 e a semana 1 de 2022 (por 100.000 habitantes). Fonte: ASS (Reino Unido)

    Este crescimento em grupos etários até aos 70 anos – que representaram mais de 75% da população do Reino Unido – justifica, só por si, o aumento galopante dos casos activos, embora sem reflexo em termos de mortalidade. Isto porque a vulnerabilidade à doença na população adulta em idade activa sempre foi bastante baixa mesmo antes da criação das vacinas.

    No caso dos maiores de 70 anos, a incidência nos vacinados continua a ser superior à dos não-vacinados, mas em dimensão menor: mais 82% no grupo dos 70 aos 79 anos, e mais 31% nos maiores de 80 anos.

    A ASS do Reino Unido salienta que, na base desta surpreendente discrepância, estará o facto de “as pessoas totalmente vacinadas estarem mais preocupadas com a saúde e, portanto, estando mais propensas a realizar o teste para a covid-19, acabarem por ser mais identificadas” quando estão infectadas. Esta justificação não deixa de ser curiosa, porque significaria então que a comunidade vacinada aparenta não confiar demasiado na eficácia das vacinas na sua protecção.

    A mesma entidade defende que a diferença da incidência se possa dever, para além de condicionalismos de idade e ocupação, também à sua maior exposição, ou seja, “as pessoas vacinadas e não-vacinadas podem comportar-se de maneira diferente, especialmente no que respeita às interacções sociais”.

    Por fim, last but not the least, o organismo britânico considera que, entre os não-vacinados, estarão pessoas recuperadas que não se vacinaram, mas que apresentam “imunidade natural ao vírus”. Ou seja, esta entidade acaba por admitir implicitamente que a imunidade natural, pelo menos no que diz respeito à (re)infecção, será superior à vacinal.

    Taxa bruta de mortalidade por covid-19 no período entre a semana 50 de 2021 e a semana 1 de 2022 (por 100.000 habitantes). Fonte: ASS (Reino Unido)

    Apesar desta vaga de casos, a mortalidade total atribuída à covid-19 tem estado, quase na generalidade da Europa, em nível relativamente baixo para um Inverno anterior à pandemia. No Reino Unido, o registo de óbitos diário (em média móvel de 7 dias) situava-se nos 273 em 17 de Janeiro, correspondente a cerca de 40 óbitos em Portugal. Este valor é um quarto (24%) do valor homólogo em 2021.

    Segundo o último relatório da ASS do Reino Unido, actualizado ontem, a mortalidade mostra-se bastante mais baixa nos vacinados em relação aos não-vacinados, embora de forma bastante diferenciada em função da idade. No período entre 13 de Dezembro de 2021 e 3 de Janeiro deste ano, de acordo com este relatório, a taxa de mortalidade por covid-19 (ao fim de 60 dias) era de 54,3 óbitos por 100.000 pessoas vacinadas, enquanto a dos não-vacinados do mesmo grupo etário se situava em 262,2, ou seja, quase cinco vezes mais.

    A proporção nos grupos etários inferiores é sensivelmente idêntica, mas pouco relevante se se usar, em vez da unidade “por 100.000 habitantes”, a mais usual percentagem (por 100 habitantes). Nesse caso, o risco de morte de pessoas na faixa etária dos 30 aos 39 anos foi, no período em análise, de apenas 0,0005% se vacinada, e de 0,0017% para os não-vacinados do mesmo grupo etário.

    No caso dos jovens adultos dos 18 aos 29 anos, as percentagens são, respectivamente, de 0.0001% e 0,0006%. Ou seja, o risco sobe seis vezes, mas mantém-se muitíssimo baixo. No caso dos menores de idade, nenhum jovem vacinado morreu (0,0%) no período em análise, enquanto a taxa de mortalidade para os não-vacinados foi de 0,0001%.

    Taxa bruta de hospitalização por covid-19 no período entre a semana 50 de 2021 e a semana 1 de 2022 (por 100.000 habitantes). Fonte: ASS (Reino Unido)

    Em relação às hospitalizações, o relatório da ASS mostra também uma menor necessidade nos vacinados, mas, mais uma vez, essa diferença só é relevante nos mais idosos – e também mais vulneráveis à doença. Para as pessoas com mais de 80 anos, o rácio de internamentos dos vacinados foi de 88,7 por 100.000, enquanto o dos não-vacinados se situou em quase 263.

    Esta diferença também se apresenta significativa nos grupos etários entre os 50 e 79 anos, com o risco de internamento a ser cerca de cinco vezes superior nos não-vacinados face aos vacinados.

    Essa proporção mantém-se até nos menores de idade, mas com um aspecto relevante: nestas idades o risco de internamento é incomensuravelmente inferior ao dos mais idosos. O risco de hospitalização por covid-19 num vacinado com mais de 80 anos é oito vezes superior ao de um menor não-vacinado, o que confirma, mais uma vez, que a covid-19 não constitui um problema com relevância em idades pediátricas.

  • Direcção-Geral da Saúde culpou coronavírus até por ataques cardíacos fulminantes em doentes assintomáticos

    Direcção-Geral da Saúde culpou coronavírus até por ataques cardíacos fulminantes em doentes assintomáticos

    Milhares de entradas nas urgências com cardiopatias isquémicas deram muitas centenas de óbitos “carimbados” com covid-19. O PÁGINA UM, continuando a dissecar a base de dados dos internados nos primeiros 15 meses da pandemia, detectou que cerca de 10% dos hospitalizados e 10% dos mortos sofreram cardiopatias isquémicas. Muitos tiveram ataques cardíacos, alguns fulminantes, mas todos levaram com o selo “covid”. Bastou um teste positivo, mesmo se o doente agonizava sem qualquer sintoma de infecção por SARS-CoV-2.


    Vários milhares de pessoas com sintomas graves ou moderados de cardiopatias isquémicas do coração – entre as quais enfartes do miocárdio, anginas de peito e aterosclerose neste órgão – acabaram classificados como doentes-covid pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) apenas porque tiveram, na admissão hospitalar, um teste positivo. Em caso de desfecho fatal, a DGS anunciava-as como vítimas da pandemia.

    Na análise da base de dados do Ministério da Saúde abrangendo os internamentos dos primeiros 15 meses da pandemia, a que o PÁGINA UM teve acesso, confirma-se que independentemente do grau de gravidade de doenças cardíacas, um teste positivo foi o suficiente para ficar nas “malhas” das estatísticas da covid-19. Em centenas de casos, o SARS-CoV-2 nem sequer teve tempo de se manifestar, porque algumas dezenas faleceram no próprio dia ou no dia seguinte à admissão nos serviços de urgência hospitalar. E centenas no prazo de uma semana. Em condições naturais, antes da pandemia, todos estes óbitos teriam considerado estas cardiopatias como a causa.

    doctors doing surgery inside emergency room

    No período de Março de 2020 a Maio de 2021, envolvendo mais de 50 mil doentes-covid, o PÁGINA UM contabilizou, em mais de 50 mil internados, um total de 5.193 pessoas com referências, nos respectivos boletins clínicos, a uma ou mais cardiopatias isquémicas. Este número representa quase 10% do total de doentes-covid internados neste período. Contabilizando os desfechos fatais de pessoas oficialmente classificadas de doentes-covid, houve 1.757 que morreram após ataques cardíacos ou outras cardiopatias isquémicas, ou seja, 10% do total até Maio do ano passado.

    Não se consegue, neste universo, e com os dados disponíveis, quantificar com rigor absoluto o contributo destas doenças isquémicas para os desfechos fatais, nem sequer a percentagem de casos mortais em que a covid-19 pode ter desencadeado o evento cardíaco.

    Infelizmente, a base de dados é, de forma inexplicável, omissa sobre a data em concreto da ocorrência do evento cardíaco, informando apenas a ordem dos diagnósticos (que, em cada indivíduo, começa no 0). Por norma, primeiro, registam-se todas as doenças e problemas relevantes no momento da admissão hospitalar – e que a justificam – , e em seguida as comorbilidades e os aspectos relevantes da evolução clínica.

    Contudo, como não existe na base de dados dos doentes-covid uma separação entre as doenças e afecções antes da admissão e durante o internamento, apenas por dedução – mesmo com consulta individual dos mais de 50 mil doentes registados – se consegue determinar, sem demasiado erro, o número de doentes em que o evento cardíaco foi a causa directa do internamento.

    doctor performing operation

    Assim, quando pelo menos um registo destas isquemias – com os códigos I20 a I25 da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CDI) – surgia nas primeiras posições da ordem do diagnóstico (entre 0 e 6), o PÁGINA UM considerou que estas constituíram a causa directa do internamento.

    Saliente-se que a referência à covid-19 (com o código U071) aparece, em muitos destes casos, com um número de ordem do diagnóstico superior ao das cardiopatias, o que significa, nestas circunstâncias, sem qualquer dúvida, que a admissão foi muito urgente, e só depois houve confirmação de teste positivo ao SARS-CoV-2.

    Assim, considerando este método, o PÁGINA UM identificou um total de 2.186 doentes-covid hospitalizados neste período que terão tido uma ou mais cardiopatias isquémicas como evidente causa de internamento, e não tendo ainda sintomas de infecção pelo SARS-CoV-2. Destes, 672 morreram.

    Também pelo tempo de estadia hospitalar se confirma que mesmo cardiopatias agudas fulminantes acabaram anunciadas como mortes-covid. Os casos mais chocantes observam-se com os enfartes do miocárdio – vulgarmente conhecidos por ataques cardíacos e com o código I21 da CDI. Entre Março de 2020 e Maio de 2021, e segundo o critério definido pelo PÁGINA UM, contabilizam-se 949 pessoas com este gravíssimo problema cardíaco, sendo que 206 tiveram diagnóstico de ordem 0 (100% de certeza de ter sido causa de internamento), e 657 com registo de ordem 6 ou inferior. Portanto, sete em cada 10 destas pessoas terão sofrido ataques cardíacos antes de qualquer teste positivo à covid-19.

    De entre estes casos, 40 pessoas morreram no próprio dia do internamento – ou seja, o ataque cardíaco foi mesmo fulminante –, 123 em três ou menos dias, e 253 antes de completado o sétimo dia de internamento. No total, a taxa de mortalidade destes doentes foi de 43%, ou seja, cerca de 20 pontos percentuais acima do rácio médio dos doentes-covid sem esta comorbilidade.

    Saliente-se, contudo, que a média das idades foi geralmente, nestes casos, bastante elevada (76 anos). Nos muito idosos (mais de 80 anos), a taxa de sobrevivência foi de apenas 44%. Ao invés, a taxa de mortalidade dos menores de 60 anos foi de 13%. Três dos mortos de ataque cardíaco com covid-19 no certificado de óbito tinham menos de 50 anos.

    person in white face mask

    Se se considerar todas as 2.186 cardiopatias isquémicas com ordem de diagnóstico de 6 ou inferior – ou seja, os eventos que terão sido a causa determinante de internamento –, além dos 949 ataques cardíacos, contabilizam-se ainda 78 anginas de peito (código I20), 381 aterosclerose do coração (código I251). Nas restantes de doenças cardíacas crónicas, destacam-se 335 casos de sequelas provenientes de ataques cardíacos antigos (código I252) e 221 cardiomiopatias isquémicas (código I255).

    As taxas de mortalidade hospitalar variaram muito neste tipo de cardiopatias. Nas anginas de peito foi de 24%, próxima daquela contabilizada para a generalidade dos doentes-covid, nas ateroscleroses do coração rondou os 26% e atingiu os 34% nas cardiomiopatias isquémicas.

    Contudo, para a DGS foi tudo “varrido” a covid-19.

  • Covid-19 estará a esconder mortes por erros, negligência e acidentes em hospitais

    Covid-19 estará a esconder mortes por erros, negligência e acidentes em hospitais

    A Direcção-Geral da Saúde determinou que se alguém falecesse com um teste positivo ao SARS-CoV-2 levava automaticamente com o carimbo de “morte covid”. Os registos dos internados na primeira fase da pandemia, que o PÁGINA UM tem dissecado, mostram 250 casos suspeitos que podem ter sido apenas anormais reacções a procedimentos médicos, ou pura negligência médica. Um total de 88 pessoas morreram nestas circunstâncias. Como raramente houve autópsias, a morte morreu solteira.


    Um erro na operação de intubação numa unidade de cuidados intensivos do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte contribuiu para a morte de um doente de 61 anos em Abril de 2020. Este evento trágico foi único, mas o PÁGINA UM detectou muitos mais casos suspeitos de erros e negligência médica que estarão a ser escondidos sob o carimbo da covid-19, uma vez que, por regra, não são feitas autópsias nos óbitos confirmados por esta doença.

    Estas suspeitas advêm da consulta à base de dados do Ministério da Saúde sobre os internamentos de doentes-covid, a que o PÁGINA UM teve acesso, e detecta-se através da codificação feita segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CDI).

    Aprovada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), esta codificação não apresenta apenas as doenças e comorbilidades de cada doente no seu processo clínico; também identifica, por exemplo, complicações de actos médicos e cirúrgicos, acidentes, erros, negligência e reacções inesperadas.

    medical professionals working

    Este tipo de situações recebe, por norma, os códigos Y62 a Y84 da CDI, consoante a sua tipologia. Não estão aqui incluídos, embora haja largas dezenas de casos, os acidentes em hospitais como quedas da cama ou em casas de banho em doentes-covid, alguns fatais.

    Numa análise detalhada à base de dados dos internamentos nos primeiros 15 meses da pandemia, entre Março de 2020 e Maio de 2021, contabilizam-se 250 doentes-covid com registos de reacções adversas após procedimentos médicos. Em alguns casos estar-se-á perante eventuais erros ou negligência médica. De entre os pacientes afectados, 88 morreram, ou seja, 35% – um valor cerca de 12 pontos percentuais acima da taxa de mortalidade dos internados sem este tipo de registos.

    Nem todos os desfechos fatais terão sido devidos apenas a reacções adversas dos doentes ou a erros médicos – até pela grande debilidade e elevada idade de muitas das vítimas –, mas todos acabaram classificados como mortes por covid-19. Muito provavelmente as famílias nem sequer souberam aquilo que se passou dentro das portas do hospital.

    person walking on hallway in blue scrub suit near incubator

    O caso do doente do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte – que agrega o Hospital de Santa Maria – é um exemplo paradigmático.

    À entrada nos cuidados intensivos em 22 de Abril de 2020, a sua situação já era grave: diabético tipo II, vinha com insuficiência respiratória e síndrome de desconforto respiratório decorrente de covid-19 diagnosticada, mas os médicos terão tido dificuldade em o intubar (surgindo essa referência com o código T884 da CDI) e o tubo orotraqueal acabou por ser mal colocado (código Y653). O homem sofreu um choque não especificado (R579) e morreu no dia seguinte ao internamento.

    A esmagadora maioria dos registos mostra-se, porém, com referências extremamente vagas sobre a origem exacta do erro, acidente ou reacção anormal, não sendo assim possível concluir se se está perante uma situação incontornável ou imprevista, ou se se tratou de erro médico.

    Por exemplo, na base de dados surgem 44 casos classificados com o código Y848, que se refere a procedimentos médicos que causaram reacções adversas tardias mas não especificadas. Noutros casos especificam-se a causa, embora pouco concretizando, como são as 32 reacções contabilizadas no decurso de procedimentos radiológicos (Y842) e as 32 reacções devidas a cateteres urinários (código Y848).

    Existem também registos de efeitos adversos que, de forma clara, nada tiveram a ver com a covid-19, porque se deveram sim a actos cirúrgicos decorrentes de outros problemas. São exemplo disso os 16 casos classificados com o código Y831 (implantes de dispositivos médicos) e os 13 casos com o código Y832 (bypass gástricos com anastomose). Problemas na área da gastroenterologia, aliás, mostraram-se relativamente frequentes.

    A falta de informação sobre o verdadeiro contributo destes procedimentos médicos para as eventuais mortes dos pacientes acaba, contudo, por ocultar eventuais negligências, tanto mais que o “carimbo” da covid-19 levou a que se prescindisse, na esmagadora maioria dos casos, à realização de autópsia. Uma morte com covid-19 foi, para a Direcção-Geral da Saúde, sempre uma insuspeita morte exclusivamente causada pelo SARS-CoV-2.

    Aliás, na base de dados surgem nove estranhos casos com o código Y66, que significa que houve falta de administração de cuidados médicos e cirúrgicos. Destes nove, oito acabaram por morrer, sendo que sete foram no Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa.

    O Hospital de Coimbra é aquele que contabiliza maior número de mortes atribuídas à covid-19 de pessoas com registo de reacções adversas ou eventuais erros médicos. No total, nos primeiros 15 meses da pandemia, contam 24 mortes, mas pelo código da CDI conclui-se que foram problemas decorrentes de cirurgias cardíacas ou de gastroenterologia. Nos hospitais de Lisboa registaram-se 22 mortes deste género, das quais nove no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental. Todas classificadas como covid-19.

  • Morreram mais de 1.300 pessoas que apanharam covid-19 nos hospitais durante a primeira fase da pandemia

    Morreram mais de 1.300 pessoas que apanharam covid-19 nos hospitais durante a primeira fase da pandemia

    Os hospitais salvaram muitos doentes, mas também foram locais de surtos e muitas infecções por covid-19. O PÁGINA UM analisou a base de dados dos registos hospitalares nos 15 primeiros meses da pandemia e encontrou indícios da existência de, pelo menos, 4.140 infecções nosocomiais de covid-19, que resultaram em 1.326 mortes. O Hospital Pedro Hispano, onde trabalha o médico Gustavo Carona – que confessou em livro ter ido trabalhar com sintomas – foi um dos três piores do país entre Março de 2020 e Maio de 2021. E a Direcção-Geral da Saúde nada diz.


    Ao longo dos primeiros 15 meses de pandemia, pelo menos 4.140 doentes-covid terão sido infectados pelo SARSC-CoV-2 nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde após a sua admissão por outras causas. Através da análise de uma base de dados do Ministério da Saúde com informação clínica sobre internamentos por covid-19, a investigação do PÁGINA UM mostra que os surtos desta doença em meio hospitalar (infecção nosocomial) foram bastante frequentes em algumas unidades de saúde. Em todo o país, entre Março de 2020 e Maio de 2021, quase 8% do total dos internados foram infectados nos hospitais. Não estarão aqui incluídos os infectados, sobretudo idosos em lares, que tenham estado em tratamento hospitalar e recebido alta ou aqueles em tratamento ambulatório.

    man wearing medical mask and robe

    Nos centros hospitalares com mais de 500 doentes-covid durante os primeiros 15 meses da pandemia, nove registaram mais de 10% de internados-covid com “versão” nosocomial: Centro Hospitalar do Oeste (13,1%), Hospital Beatriz Ângelo (12,8%), Unidade de Saúde Local de Matosinhos, que agrega o Hospital Pedro Hispano (12,5%), Centro Hospitalar da Póvoa do Varzim/Vila do Conde (12,4%), Centro Hospitalar Universitário de São João (11,9%), Centro Hospitalar Lisboa Ocidental (11,7%), Hospital Garcia de Orta (11,5%), Centro Hospitalar Universitário do Porto (11,3%) e Hospital de Cascais (10,3%).

    Note-se, porém, que em termos de gravidade relativa, a pior situação registou-se no IPO de Lisboa, que teve um surto relevante conhecido em Novembro do ano passado, mas que já não foi inédito: entre Março de 2020 e Maio de 2021, de entre os 64 doentes-covid, metade (32) foram infectados naquela unidade hospitalar.

    O melhor desempenho nas grandes unidades de saúde observou-se no Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, com apenas 2,4% dos doentes-covid com a “versão” nosocomial. Igual desempenho tiveram o Hospital da Figueira da Foz e a Unidade Local de Saúde do Nordeste. Por sua vez, o Centro Hospitalar Universitário da Cova da Beira teve apenas cinco doentes-covid nosocomial em 480 internados. Note-se, contudo, que nem todos os hospitais terão feito registos correctos de infecções nosocomiais causadas pelo SARS-CoV-2, como parece ser o caso das unidades de saúde da Madeira, que não apontam qualquer caso em 527 internados durante o período em análise (ver texto em baixo).

    Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra registou um dos melhores desempenho no controlo da covid-19 nosocomial.

    Face à maior prevalência de comorbilidades e ao estado mais vulnerável dos pacientes já internados, com a média de idades mais elevada do que na comunidade, a taxa de mortalidade dos doentes-covid-19 em “versão” nosocomial foi de quase um terço (32%): dos 4.140 internados, 1.326 morreram. Os doentes-covid que foram infectados na comunidade tiveram no mesmo período, uma taxa de mortalidade hospitalar de cerca de 22%, ou seja, menos 10 pontos percentuais. Saliente-se, contudo, que o desfecho fatal, em qualquer caso, pode não ter sido devido às complicações decorrentes da infecção pelo SARS-CoV-2, decorrendo sobretudo dos discutíveis critérios seguidos pela Direcção-Geral da Saúde (DGS).

    Em todo o caso, encontram-se registos de 27 doentes com covid-19 já estavam admitidos no hospitais – alguns há muitos meses ou mais de um ano – quando o SARS-CoV-2 foi identificado em Portugal no início de Março de 2020. Destes, 11 acabaram mesmo por morrer.

    Podem ser várias as causas para os distintos graus de infecções nosocomiais de covid-19 nas diversas unidades de saúde em Portugal, mas quase todas radicam no maior ou menor cumprimento das regras de prevenção activa e passiva em meios hospitalar.

    Número de casos de covi-19 nosocomial em hospitais, centros hospitalares (CH e CHU) e em unidades locais de saúde (ULS) entre Março de 2020 e Maio de 2021 (excluindo unidades com menos de 20 casos)

    Apesar de, em teoria, as normas da DGS obrigarem a isolamento profiláctico dos profissionais das unidades em caso de contactos de alto risco – que é elevado nos chamados “covidários” ou sempre que ocorrem descuidos –, tal raramente sucedeu em muitos casos, se não houvesse sintomas. O objectivo terá sido o de evitar a falta de recursos humanos.

    Porém, o reverso da medalha foi a multiplicação de surtos causados sobretudo por profissionais de saúde que atingiram potencialmente doentes fragilizados por outras doenças.

    Um dos casos mais evidentes desses descuidos de alguns profissionais de saúde soube-se publicamente através de um relato, sob a forma de livro, de um mediático médico do Hospital Pedro Hispano.

    No seu livro “Diário de um médico no combate à pandemia”, o anestesiologista Gustavo Carona chegou a afirmar que “no meu hospital, ou pelo menos no meu serviço, a política foi só nos testarmos se tivéssemos sintomas. Nós tivemos um milhão de vezes em contacto próximo com doentes covid, e, por vezes, havia uma falha aqui ou outra ali”.

    Relatando no livro o caso pessoal de uma “falha”, este médico – que exerce sobretudo funções de medicina intensiva – escreve mesmo que “os isolamentos profilácticos eram um luxo ao qual nós não nos podíamos dar, só nos testávamos se tivéssemos sintomas”, acrescentando que, após um contacto de alto risco (com um doente confirmado e sintomático), “segui a minha vida à espera de ter ou não sintomas e afastei-me da minha mãe.”

    No seu relato supostamente verídico, o médico – que tem manifestado a defesa intransigente de todas as medidas estatais relevantes – admite ter acordado em data incerta de Janeiro do ano passado com sintomas compatíveis com covid-19, mas foi trabalhar nesse dia, e somente soube no final do turno, por teste, que estava infectado.

    Gustavo Carona, médico no Hospital Pedro Hispano (ULS de Matosinhos)

    Paula Carvalho, assessora de imprensa do Hospital Pedro Hispano – cuja administração se recusou a dar informações detalhadas e mais precisas sobre infecções nosocomiais naquela unidade de saúde no período em que o médico Gustavo Carona esteve a trabalhar infectado, com e sem sintomas , diz que “questões como a da testagem [transcritas no livro] podem ser facilmente explicadas e compreendidas, no contexto das normas e orientações da altura.”

    A DGS, por sua vez, mantém o silêncio absoluto sobre todas as questões e pedidos de esclarecimento do PÁGINA UM. Em 10 de Dezembro foi-lhe enviado um pedido expresso, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, para se obterem dados oficiais e reconhecidos sobre “surtos de covid-19 em unidades de saúde, eventualmente discriminadas por unidade e mês”, bem como o “número de infecções (casos positivos)” e o “número total de óbitos”.

    A directora-geral da Saúde Graça Freitas nunca respondeu, e seguiu, entretanto, uma (habitual) queixa para a Comissão de Acessos aos Documentos Administrativos.

    O PÁGINA UM vai continuar, em todo o caso, a divulgar informação verídica e fundamental para esclarecer todos os meandros da gestão da pandemia.


    Metodologia para detecção de covid-19 nosocomial

    Nem sempre a referência à existência de covid-19 nosocomial consta expressamente na síntese dos boletins clínicos – convenientemente anonimizados, como exige o Regulamento Geral de Protecção de Dados e determina a deontologia jornalística.

    Nesta base de dados, os diagnósticos clínicos e as comorbilidades antes e durante o internamento seguem os códigos da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CDI), aprovada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). As doenças e outros problemas, para cada doente, estão ordenados cronologicamente, sabendo-se apenas que o diagnóstico principal de admissão tem o número 0 e corresponde à data de internamento.

    Os restantes registos constituem o complemento dos problemas que levaram aos internamentos, e também da evolução clínica, geralmente os agravamentos ou outras evidências relevantes. Ora, se a covid-19 – que tem o código U071 da CDI – surge nos primeiros lugares da ordenação, depreende-se que seja a causa directa do internamento (e é mesmo se tem o número 0) ou que o teste foi positivo no momento da admissão.

    Assim sendo, o PÁGINA UM considerou que se estaria sempre perante uma infecção nosocomial se a covid-19 (U071) estivesse na posição 6 ou superior. Note-se que a mediana da posição do diagnóstico da covid-19 (U071) dos 4.140 internados que se assumiu terem sido infectados em meio hospitalar é de 10, sendo que em 351 doentes a covid-19 aparece na posição 20 ou superior na ordem de diagnóstico.

  • Segundo Inverno de pandemia menos mortífero do que invernos com gripe

    Segundo Inverno de pandemia menos mortífero do que invernos com gripe

    Sem gripe e com a covid-19 a mostrar menor letalidade, o Inverno de 2021-2022 está muito menos mortífero do que em períodos anteriores ao surgimento do SARS-CoV-2. O excesso de mortalidade ao longo da pandemia e o tempo mais ameno podem ser uma explicação, mas mostra-se evidente uma falta de adesão entre a realidade e a sua percepção pública e política.


    O período invernal em curso, iniciado no dia 21 de Dezembro do ano passado, está a ser um dos menos mortíferos da última década, sobretudo se se considerar o processo de envelhecimento populacional. Esta situação contrasta com um ambiente de pânico na sociedade portuguesa no decurso de um forte aumento do número de testes positivos com covid-19.

    Segundo a Direcção-Geral da Saúde, estão actualmente infectados quase 265 mil portugueses, quando em igual período do ano passado rondava os 110 mil, ou seja, um aumento de cerca de 140%. Contudo, ao nível de óbitos atribuídos à covid-19, a situação é agora oposta: a média móvel da última semana é de 19 – com tendência estável –, enquanto há um ano atingia já os 104, e então com uma forte tendência de subida. No Inverno passado, de acordo com dados oficiais, chegou-se perto dos 300 óbitos por dia (média móvel) no pico da mortalidade por covid-19.

    man wiping mouse with tissue paper

    A actual diminuição dos desfechos fatais directamente associados à pandemia acompanha também uma redução na mortalidade por todas as causas. De acordo com o Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) – que agrega todas as causas de desfechos fatais –, o actual Inverno (com 21 dias, até 10 de Janeiro) regista já 7.444 mortes, uma média de 354 por dia, o que é o quinto valor mais baixo da última década e o segundo nos últimos seis anos. Se se considerar que a população idosa com mais de 85 anos – onde se concentra uma parte considerável das mortes por todas as causas (cerca de 40% do total) – teve um crescimento de 44% entre 2011 e 2020 (passando de 237 mil para mais de 333 mil –, a situação deste período invernal manifesta-se francamente favorável do ponto de vista de Saúde Pública.

    Com efeito, face à menor letalidade da covid-19 nesta fase pandémica, à contínua ausência de actividade dos vírus influenza (causador das gripes) e à menor prevalência de outras infecções respiratórias, o período invernal em curso apresenta mortalidade total por todas as causas 6% inferior à média. Esta redução será maior se indexada à taxa de mortalidade no grupo etário dos mais idosos, porque são agora muitos mais.

    Saliente-se, contudo, que a mortalidade nos Invernos ao longo dos anos regista sempre valores muito extremados. Antes como agora, o período invernal é muito mortífero ou pouco letal em função directa da “agressividade” da gripe, das infecções respiratórias, da meteorologia, bem como da capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde.

    Mortalidade média diária por todas as causas entre 21 de Dezembro e 10 de Janeiro no período 2009-2010 até 2021-2022 (Fonte: SICO).

    Por exemplo, no Inverno passado – com surtos de covid-19 acompanhados de um período de frio extremo –, a mortalidade total entre 21 de Dezembro de 2020 e 10 de Janeiro de 2021 situou-se nos 466 óbitos por dia, mais 112 do que em período homólogo do actual Inverno. Recorde-se que, em Janeiro do ano passado, a situação ainda piorou nos dois últimos terços do mês, com diversos dias de mortalidade acima de 700. Por agora, no mês de Janeiro em curso, apenas no dia 1 se ultrapassou os 400 óbitos, o que se deve considerar uma situação excepcionalmente favorável.

    Com efeito, seguindo os dados do SICO, a mortalidade total do presente Inverno está em níveis muito próximos de anos de fraca actividade gripal, como os Invernos de 2019-2020 ou 2015-2016. Neste último caso, o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA) considerou que “a actividade gripal foi de baixa intensidade” e que “não se observaram excessos de mortalidade semanais durante o Outono e Inverno”. No período em análise (21 de Dezembro de 2015 até 10 de Janeiro de 2016) apenas morreram, em média, 322 pessoas por dia.

    Se se comparar o presente Inverno com outros anteriores à pandemia, a situação mostra-se também muito mais favorável em relação sobretudo aos anos de 2016-2017 – que registou uma mortalidade média diária de 455 óbitos – e de 2017-2018 – com mortalidade diária de 395 óbitos.

    Variação absoluta da mortalidade total entre 21 de Dezembro e 10 de Janeiro no período 2009-2010 até 2021-2022, tendo como referência o período de menor actividade gripal (2012-2013) (Fonte: SICO).

    A época gripal nestes dois períodos foi particularmente agreste. Segundo o INSA, na época de 2016-2017 (que compreende o período entre meados de Outubro e Maio seguinte) estima-se que a gripe, por via directa e indirecta, causou a morte de 4.472 pessoas, enquanto na de 2017-2018 foi de 3.700.

    Comparando o período invernal desde 2009-2010 – tendo como referência o ano de menor actividade gripal (2012-2013), e portanto de menor mortalidade –, o actual Inverno apresenta um excesso de 738 óbitos, mas não se tem aqui em conta que no final de 2012 viviam cerca de 244 mil pessoas com mais de 85 anos e agora vivem mais de 333 mil.

    Mesmo assim, esse acréscimo é substancialmente inferior ao Inverno passado (2020-2021), que registou 3.089 óbitos em excesso em relação ao ano de referência, ou seja, mais 147 óbitos em cada dia. E também muito mais baixo do que os números registados nos Invernos pré-pandemia de 2014-2015, 2016-2017, 2017-2018 e 2018-2019.

    Porém, estas evidências estatísticas – dir-se-iam científicas – não estão espelhadas no presente ambiente de quase estado de sítio, onde imperam ainda fortes medidas de lockdown económico e de discriminação social.

  • O milagre da terra que a pandemia sujou

    O milagre da terra que a pandemia sujou

    Descoberta a partir de uma amostra de solo, a ivermectina já valeu um Prémio Nobel e o seu reconhecimento como “fármaco milagroso”. A pandemia, porém, manchou-lhe os créditos. Independentemente da sua eficácia no combate à covid-19 – que move paixões diametralmente opostas –, ninguém de bem poderá colocar em causa um bem da Natureza que deu (melhor) vida a milhões de pessoas.


    Até ao início de 2020, era um dos fármacos mundiais mais amado pela Organização Mundial de Saúde, elogiada por médicos e endeusada por investigadores. Os louvores vinham de todos os lados, sobretudo da comunidade de farmacologia, e logo no título de artigos científicos, que a consideravam uma wonder drug, um fármaco maravilhoso, ao lado da penicilina e da aspirina. Entre 1990 e 2019, o Google Scholar contabiliza cerca de 16.400 artigos sobre a ivermectina. Nenhum a maldiz. Pudera: o seu descobridor, o japonês Satoshi Omura e o irlandês William Campbell – que a “purificou” – foram galardoados com o Prémio Nobel da Medicina em 2015, pelas maravilhas produzidas por este “milagre da terra”.

    Hoje, no decurso de dois anos de pandemia, ivermectina é quase uma palavra maldita. Quem a invoca para o combate contra a covid-19, facilmente recebe epítetos como “bolsonarista”, “negacionista” ou “defensor do uso de medicamentos veterinários em humanos”.

    A oncocercose, ou cegueira dos rios, é uma das mais incapacitantes doenças na África e América Letina, agora com cura graças à ivermectina.

    Independentemente da sua eficácia ou não contra o SARS-CoV-2, invectivar – ou seja, injuriar – a ivermectina é uma das acções mais injustas para um medicamento que já salvou milhões e milhões de pessoas, sobretudo em países subdesenvolvidos, de doenças mortais ou incapacitantes como a oncocercose (cegueira dos rios), a estrongiloidíase, a filariose linfática (também conhecida como elefantíase) e outras doenças parasitárias.

    Em 2016, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considerava a ivermectina como um fármaco com “capacidade para controlar a transmissão da malária”, uma vez que mata os mosquitos Anopheles que a ingerirem se estiver no sangue humano. E, na verdade, não houve quase nenhuma doença em que não se tenha experimentado os seus efeitos.

    Além do seu uso veterinário, a ivermectina tem sido utilizada ou testada, com maior ou menor sucesso, no tratamento de uma panóplia de doenças humanas, desde miíase, esquistossomose e triquinose até leishmaniose, tripanossomíase africana (também chamada doença do sono) e americana (doença das chagas), passando ainda por certos tipos de asma, epilepsia (por exemplo, síndrome de Nodding) e afecções neurológicas. A sua acção antibacteriana também tem sido estudada – por exemplo, no controlo da tuberculose e da úlcera de Buruli –, bem como os seus efeitos antivirais.

    A sua acção contra o SARS-CoV-2 foi apenas mais uma tentativa de confirmar a sua fama de “fármaco maravilhoso”. Porém, aquilo que, por agora, mais conseguiu foi ver “conspurcados” os seus créditos, sobretudo por quem, vivendo as suas vidas sossegadas na cómoda Europa, nunca conheceu os seus milagres por terras de pobreza e miséria.

    A “descoberta” da ivermectina foi sobretudo um achado, fruto do acaso. Em 1973, Satoshi Omura, um bioquímico do Kitasato Institute de Tóquio, decidiu recolher um pouco de solo junto a um campo de golfe de Kawana, na região de Shizuoka, no centro da principal ilha japonesa. Foi uma única colheita, num dos sacos que Omura costumava trazer consigo, mesmo em momentos de lazer. Dali descobriu a existência de uma estranha bactéria, baptizada de Streptomyces avermitilis, cujos produtos de fermentação tinham poderes antiparasitários.

    Satoshi Omura, colhendo solo do local onde colheu a primeira amostra da bactéria que daria origem à ivermectina (© Andy Crump)

    Essas propriedades das então chamadas “avermectinas” seriam depois “purificadas”, já nos laboratórios da farmacêutica norte-americana Merck & Co (conhecida na Europpor Merck Sharp & Dohme, ou simplesmente MSD), por William Campbell, então já com dupla nacionalidade. E daí nasceria a ivermectina, como uma substância de largo espectro antiparasitário. Jamais, sem a recolha de Omura tal seria possível, até porque em mais lado nenhum se descobriram, até agora, aquelas bactérias.

    Durante a sua primeira década de “vida”, a ivermectina foi administrada apenas em animais, tratando doenças que causavam prejuízos de muitos milhões de euros no sector pecuário. Por exemplo, o Brasil é um dos países com maior utilização como remédio veterinário.

    Ainda somente em animais, a ivermectina logo revelou ser extremamente eficaz contra a maioria dos vermes intestinais comuns (excepto ténias), e a sua administração por via oral facilitava o uso. Além disso, não apresentava sinais de resistência cruzada com outros compostos antiparasitários.

    Mas esse foi apenas o seu ponto de partida. Em 1981, a MSD – que registou a patente da ivermectina – conseguiu autorização para uso humano, graças ao seu poder contra algumas das denominadas Doenças Tropicais Negligenciadas (DTN). Seis anos mais tarde, a farmacêutica tomou uma decisão rara no mundo deste sector: libertou a patente e criou um programa de doação contínua, permitindo o uso da ivermectina em programas da OMS contra a oncocercose, uma doença desfigurante e incapacitante causada por um nemátodo parasita (filárias) das espécie Onchocerca volvulus.

    Este parasita, transmitido pela picada de uma mosca preta do género Simulium, permanece no hóspede durante anos, maturando sexualmente e libertando depois milhões de larvas microscópicas sob a pele. Além de graves lesões cutâneas, também o sistema linfático e o nervo óptico são afectados. No limite, causam cegueira. A doença, que assombrou durante séculos os países mais pobres, desenvolve-se sobretudo em comunidades ribeirinhas – daí ser também conhecida por cegueira dos rios.

    William Campbell, recebendo o Nobel da Medicina em 2015, pela descoberta da ivermectina (© Nobel Media AB 2015. Foto: Pi Frisk)

    Antes da introdução da ivermectina no Programa Africano de Controle da Oncocercose, estimava-se que entre 20 milhões e 40 milhões de pessoas sofriam de oncorcecose, e cerca de 200 milhões estavam sob risco de infecção, sobretudo na África subsariana, Iémen e diversos países da América Latina.

    Anos mais tarde, graças à ivermectina, o objectivo de controlo desta doença passou para um nível superior: a sua eliminação.

    Desde que teve início, o programa incentivado pela OMS possibilitou a distribuição gratuita de mais de quatro mil milhões de embalagens de ivermectina em dezenas de países. Segundo a OMS, a cegueira dos rios já foi erradicada na Colômbia, Equador, México e Guatemala, enquanto Venezuela, Uganda e Sudão estão próximos de atingir esse objectivo.

    Em meados da década de 1990, a ivermectina foi, igualmente, considerada um excelente tratamento para a filariose linfática. Também conhecida por elefantíase, esta doença é provocada por um parasita que se concentra nos vasos linfáticos, causando um inchaço da pele e dos tecidos, nomeadamente nos pés, pernas e genitais. A eficácia deste fármaco levou também à sua introdução no programa da OMS contra a filariose linfática, sobretudo em regiões onde coexiste com a oncocercose. Em 2015, quase 374 milhões de pessoas necessitavam de tomar regulamente ivermectina para evitar esta doença.

    O Programa Africano para o Controlo da Oncocercose 1995-2019 estimou que a administração em massa de ivermectina também conferiu benefícios secundários em termos de Saúde Pública, devido ao seu impacte em infecções não-alvo. Durante o período 1995-2010, estima-se que, por via da sua administração, se tenha conseguido um acréscimo de cerca de 19,6 milhões de anos de vida à população africana, tanto no controlo da cegueira dos rios como de outras doenças parasitárias.

    Considerada extremamente segura – por ter efeitos secundários mínimos e poder ser administrada por via oral sem necessidade de supervisão médica –, este antiparasitária e anti-inflamatória poderá ainda ter outras propriedades.

    Fábrica da farmacêutica portuguesa Hovione, em Macau, que produz ivermectina.

    Surpreendentemente, ou não, apesar de 40 anos de sucesso global incomparável, os cientistas ainda não têm certezas absolutas sobre como a ivermectina funciona para controlar todas estas doenças, embora aparente agir através de processos imunorregulatórios. Sabe-se, contudo, que possui elevada lipossolubilidade, o que a faz distribuir-se rapidamente pelo corpo, eliminando, por exemplo, as microfilárias dos vasos linfáticos periféricos com grande rapidez e efeito de longa duração.

    Mas esses aspectos já pouco importaram para que, em 2015, Omura e Campbell tenham tido o reconhecimento do Comité Nobel. Mas quem talvez devesse receber essa honra fosse, afinal, a bactéria Streptomyces avermitilis. “Eu apenas dispus do poder dos micróbios”, confessaria Satoshi Omura aquando da conferência de imprensa de entrega do Nobel da Medicina.

    Uma das (muitas) curiosidades da ivermectina é a sua actual “costela portuguesa”. A Hovione, uma farmacêutica nacional sediada em Loures, produz este medicamento para uso humano desde 1997 na sua fábrica em Macau, e é atualmente o maior produtor mundial. Na verdade, fabrica o princípio activo em forma de pó, que depois segue para os quatro cantos do Mundo para ser transformado em comprimidos ou em gel, e ser comercializada a preços acessíveis.

    Texto editado por Pedro Almeida Vieira

  • Quedas de idosos fazem saltar mortes por covid-19

    Quedas de idosos fazem saltar mortes por covid-19

    O registo de doentes-covid pelo Ministério da Saúde inclui largas centenas de internamentos por quedas, trambolhões, escorregadelas e contusões por objectos. Estes doentes entraram na base de dados da covid-19 porque testaram positivo na admissão hospitalar. O PÁGINA UM teve acesso a informação clínica dos doentes-covid até Maio do ano passado, e contabilizou mais de 1.200 casos de hospitalizações nestas circunstâncias. Destas pessoas, 266 morreram, muitas num prazo muito curto. Mas todas foram contadas pelo Governo como vítimas da pandemia. Veja, no final do artigo, os casos mais bizarros.


    Em finais de Janeiro do ano passado, um homem de 60 anos caiu de uma janela no dia em que foi internado num hospital do Grande Porto – que o PÁGINA UM conhece mas não divulga para preservação da identidade num evento trágico. Era um doente terminal, com cancro do pâncreas e neoplasias secundárias no fígado. Tinha também covid-19 com manifestação de hipoxemia. A queda da janela, provavelmente suicídio, causou-lhe morte imediata. Porém, entrou nas estatísticas oficiais dos óbitos-covid da Direcção-Geral da Saúde.

    Este foi um caso raro num episódio de desespero, mas a base de dados do Serviço Nacional de Saúde (SNS) possui, na verdade, centenas e centenas de internados contabilizados como doentes-covid que foram hospitalizados por causas nada relacionadas com a pandemia, como sejam quedas no soalho, de camas, de varandas ou janelas, devido a escorregadelas ou tropeções ou colisões contra objectos.

    Em muitos casos, os danos físicos foram muitíssimo graves, incluindo traumatismos cranianos, membros partidos ou afectação de outros órgãos. No total, até Maio de 2021, terão ocorrido pelo menos 266 óbitos atribuídos à covid-19 de pessoas cujo internamento foi subsequente a quedas e acidentes similares.

    Numa parte dos casos, a morte surgiu no próprio dia ou nos dias seguintes face à gravidade dos traumatismos. Porém, entraram na contabilidade dos casos e mortes por covid-19 porque, na admissão no hospital, tiveram teste positivo ao SARS-CoV-2.

    Numa análise detalhada do PÁGINA UM à base de dados do SNS, contabilizam-se pelo menos 1.207 casos de internamento até Maio de 2021 em que, subjacente à hospitalização inicial, estiveram quedas, em alguns casos especificadas (soalho, varanda, cadeira, cadeira de rodas ou cama).

    Em diversas situações, os traumatismos da queda podem ter sido subsequentes a um outro evento (como um ataque cardíaco ou um acidente vascular cerebral), mas na esmagadora maioria das situações tratou-se de quedas acidentais. Não consta, nem nos registos, nem em artigos científicos com peer review, que o SARS-CoV-2 possa ser responsável ou co-responsável por qualquer queda, trambolhão ou escorregadela.

    Nesta base de dados do SNS – convenientemente anonimizada, como exige o Regulamento Geral de Protecção de Dados e determina a deontologia jornalística – estão incluídos todos os diagnósticos clínicos e as comorbilidades antes e durante o internamento, seguindo os códigos da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CDI), aprovada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Os registos das doenças, maleitas e lesões (directas e sequelas) de cada doente surgem ordenadas cronologicamente (a partir do 0, embora sem referência à data de cada). Deste modo, sempre que as quedas (com o código iniciado pela letra W na CDI) constam nas primeiras linhas do registo individual, e geralmente antes do diagnóstico covid-19 (com o código U071 da CDI), mostra-se evidente que foram os traumatismos per si os responsáveis pelo internamento.

    De acordo com a informação analisada pelo PÁGINA UM, 86% das pessoas do grupo dos internados por traumatismos resultantes de quedas e contusões contra obstáculos – que não inclui acidentes rodoviários ou com maquinaria – tinham mais de 65 anos. Em termos absolutos, até Maio de 2021, a base de dados do SNS registou 178 internamentos por traumatismos desta natureza – e depois com teste positivo à covid-19 – de pessoas com 90 ou mais anos, e ainda de 502 com idades entre os 80 e 89 anos. A média foi de quase 78 anos, e mais de metade dos hospitalizados nestas circunstâncias tinha idade superior a 81 anos.

    woman in black and white long sleeve shirt sitting on black wheelchair

    O idoso mais velho hospitalizado nestas condições foi uma senhora de 103 anos, bastante debilitada (já com caquexia) e com deficiência renal, que caiu da cama em Novembro de 2020, com perda de consciência. Internada no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, acabou por morrer ao quinto dia. Foi considerada mais uma morte por covid-19.

    No entanto, também houve crianças, adolescentes e jovens adultos internados por quedas que surgem como doentes-covid. O mais jovem foi um bebé de dois anos do sexo masculino. Esteve internado no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte apenas dois dias em Setembro de 2020, em observação, por ter perdido a consciência após a queda. Foi assim metido nas contas oficiais dos internados por covid-19 porque registou positivo no teste de admissão no hospital. Surgem mais cinco menores de idade em similar circunstância, com internamentos muito curtos (quase sempre apenas um dia), ou seja, a covid-19 não os afectou.

    A gravidade de algumas destas quedas e outras contusões, sobretudo dos mais idosos, mostra-se notória quer na taxa de mortalidade quer nos efeitos das quedas (traumatismos). De entre os 178 traumatizados (e depois com covid-19) com 90 ou mais anos, 65 morreram. Destes, 14 em menos de uma semana. Em todas as idades, 62 faleceram no período de uma semana, sendo que cinco morreram no próprio dia do internamento e 15 no dia imediatamente posterior.

    black and brown spiral staircase

    Observando o efeito directo de muitas das quedas – ou seja, os traumatismos resultantes –fica-se com a verdadeira percepção da sua gravidade, e da irrelevância da covid-19 no desfecho fatal.

    De entre os internados após estes acidentes que morreram nos primeiros dias de internamento, contam-se traumatismos crânio-encefálicos, hemorragias subdurais, fracturas da base do crânio, compressão do encéfalo, edemas cerebrais, etc.. Isto apenas se se considerar a cabeça. Se se incluírem também as fracturas e danos nos membros superiores e inferiores, ou fracturas ou contusões em outras partes do corpo, ainda mais em pessoas fragilizadas, então pode-se deduzir que a covid-19 – embora bastante letal em idosos – arcou com muitas mais culpas do que aquelas que, efectivamente, teve.

    Além destes cerca de 1.200 casos, o PÁGINA UM detectou na base de dados do SNS mais 719 doentes-covid que registaram quedas, mas a esmagadora maioria terá já ocorrido em meio hospitalar, tendo em consideração a ordem do registo clínico individual. Em alguns casos, essas quedas – muitas das quais da cama – podem ter contribuído para um desfecho fatal, mas apenas uma investigação clínica, ou judicial, daria uma resposta. Algo que o PÁGINA UM, neste aspecto concreto, não consegue fazer.


    Óbitos atribuídos à covid-19 de pessoas internadas no próprio dia da morte após quedas e outros acidentes similares

    Homem, 91 anos
    Data de internamento: 28/11/2020
    Causa do internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hematoma subdural e lesão focal.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra

    Homem, 87 anos
    Data de internamento: 15/01/2021
    Causa do internamento: queda resultando em traumatismo intracraniano de doente diabético.
    Unidade de saúde: Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca (Amadora-Sintra)

    Mulher, 84 anos
    Data de internamento: 27/01/2021
    Causa do internamento: queda de doente acamado com doença de Alzheimer.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar de Setúbal

    Mulher, 65 anos
    Data de internamento: 24/11/2020
    Causa do internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico hemorrágico.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de São João (Porto)

    Homem, 60 anos
    Data de internamento: 27/01/2021
    Causa de internamento: queda de janela do hospital (suicídio?) de doente terminal com tumor de pâncreas e fígado, apresentando covid-19.
    Unidade de saúde: conhecida, mas não revelada


    Óbitos atribuídos à covid-19 de pessoas internadas após quedas e outros acidentes similares e que morreram no dia seguinte

    Mulher, 99 anos
    Data de internamento: 17/06/2020
    Causa de internamento: queda de cadeira de rodas resultando laceração periocular e coma subsequente.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte

    Homem, 97 anos
    Data de internamento: 01/11/2020
    Causa de internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Tâmega e Sousa

    Mulher, 97 anos
    Data de internamento: 23/01/2021
    Causa de internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Tâmega e Sousa

    Mulher, 89 anos
    Data de internamento: 05/02/2021
    Causa do internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural e hemiplegia afectando o lado esquerdo do doente.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra

    Mulher, 87 anos
    Data de internamento: 29/01/2021
    Causa de internamento: queda resultando em traumatismo intracraniano e perda de consciência de doente crónico renal, que vivia em lar de idosos
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Barreiro-Montijo

    Homem, 87 anos
    Data de internamento: 03/04/2020
    Causa de internamento: queda de doente em lar de idosos com cancro da bexiga, diabetes.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra

    Homem, 86 anos
    Data de internamento: 30/12/2020
    Causa do internamento: queda resultando em fractura do fémur esquerdo de doente com demência e estenose da válvula aórtica, que vivia em lar de idosos.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Lisboa Ocidental

    Mulher, 85 anos
    Data de internamento: 12/12/2020
    Causa de internamento: queda resultando numa contusão não especificada da cabeça.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro

    Homem, 85 anos
    Data de internamento: 18/01/2021
    Causa de internamento: queda resultando em traumatismo intracraniano em doente com grave desidratação.
    Unidade de saúde: Unidade Local de Saúde do Norte Alentejano

    Homem, 84 anos
    Data de internamento: 28/10/2020
    Causa de internamento: queda resultando em fractura do fémur direito de doente com doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC), cancro do pulmão e dependência de oxigénio suplementar.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar do Oeste

    Mulher, 78 anos
    Data de internamento: 17/01/2021
    Causa de internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural e coma de doente com diabetes e antigo enfarte do miocárdio.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra

    Homem, 77 anos
    Data de internamento: 06/01/2021
    Causa do internamento: queda envolvendo doente com rabdomiólise e hipopotassemia.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra

    Mulher, 75 anos
    Data de internamento: 25/01/2021
    Causa de internamento: queda resultando em fractura do colo do fémur de uma doente com obesidade mórbida e insuficiência cardíaca que sofreu ataque cardíaco.
    Unidade de saúde: Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca (Amadora-Sintra)

    Homem, 70 anos
    Data de internamento: 16/11/2020
    Causa de internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural, compressão do encéfalo, edema cerebral e coma em doente com diabetes e estenose aórtica.
    Unidade de saúde: Hospital de Braga

    Homem, 67 anos
    Data de internamento: 17/01/2021
    Causa de internamento: queda resultando fractura da base do crânio e em hemorragia epidural, e ainda fractura das costelas.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra

  • Quatro em cada 10 menores hospitalizados com covid-19 foram internados por outras causas

    Quatro em cada 10 menores hospitalizados com covid-19 foram internados por outras causas

    Para o Serviço Nacional de Saúde tudo conta para aumentar os números de internados por covid-19 em jovens. O PÁGINA UM, através de uma base de dados oficial a que teve acesso, revela como fracturas, apendicites, diabetes, cancros, infecções diversas, problemas congénitos, envenenamentos por inalação de monóxido de carbono, ideação suicida, complicações pós-parto em adolescentes e até torções de testículos são apanhados pelas “malhas” das autoridades de Saúde para classificar jovens como doentes-covid. Basta que tenham tido teste positivo na admissão ao hospital ou durante o internamento.


    Uma parte significativa dos menores de idade contabilizada na base de dados do Ministério da Saúde relativa aos doentes-covid esteve internada por causas não relacionadas com o SARS-CoV-2. De acordo com os registos hospitalares dos primeiros 15 meses da pandemia, de entre os 810 menores hospitalizados nas unidades do Serviço Nacional de Saúde entre Março de 2020 e Maio de 2021, cerca de 42% (342 bebés, crianças e adolescentes) foram contabilizados apenas porque, por regra, testaram positivo na unidade de saúde onde se deslocaram para receber tratamento a outros problemas, imediatamente no momento da admissão ou durante a hospitalização. Ou seja, a covid-19 foi detectada após a patologia ou afecção que justificou o internamento.

    Estes números não incluem os recém-nascidos – pelo menos 38 – que surgem contabilizados como doentes-covid por terem sido infectados pelas respectivas mães, sem daí ter advindo problemas de saúde relevantes.

    selective focus photography of baby holding wooden cube

    Tendo em consideração que a Direcção-Geral da Saúde (DGS) mantém uma opacidade absoluta sobre dados fundamentais relacionados com o impacte da covid-19 nos menores de idade – recusando mesmo conceder acesso à base de dados do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE) –, o PÁGINA UM decidiu começar a divulgar dados confidenciais a que teve acesso. E a análise detalhada aos registos clínicos, anonimizados, permite denunciar, desde já, que a gravidade da pandemia, sendo evidente nos idosos, está a ser empolada pela DGS e Governo em relação à população mais jovem, com o objectivo de pressionar e incentivar os pais a vacinarem os seus filhos.

    Com efeito, de acordo com a base de dados consultada pelo PÁGINA UM, até Maio de 2021 foram registados apenas 468 internamentos de menores cuja hospitalização se deveu directamente à covid-19, o que representava uma taxa de internamento de cerca de 0,4% dos casos positivos nesta faixa etária. Se se considerar a população total dos menores de idade (1,7 milhões, segundo as estimativas do INE), esse rácio de internamentos (em 15 meses) foi de 0,027%. Mesmo que se contabilizem os 810 menores internados com teste positivo, então esse rácio sobe para 0,048%.

    As causas de internamento dos 342 menores de idade que acabaram nas “malhas” do registo do SNS da pandemia – apenas por terem tido um teste positivo aquando da sua admissão hospitalar – são as mais diversas. Na verdade, reflectem as situações do quotidiano anteriores à pandemia, com toda uma panóplia de doenças e outras afecções pediátricas.

    baby on bed

    Na base de dados do SNS constam, como sendo doentes-covid, 44 menores com apendicites como justificação para internamento. Na admissão, como tiveram caso positivo à covid-19, ficaram nos registos. Houve ainda 22 hospitalizações deste género por pielonefrite aguda. Nos registos individuais, convenientemente anonimizados, observados pelo PÁGINA UM, contam-se 17 bebés com menos de dois anos internados por causa desta infecção do sistema urinário.

    Casos de anemia falciforme foram uma dezena (todos na região de Lisboa e Coimbra), destacando-se também a hospitalização para tratamento médico de 11 menores com diabetes tipo I, outros tantos com diagnóstico de sepsis, nove com meningites e cinco com inflamações dos nódulos linfáticos (linfadenites do pescoço e da cabeça). Foram ainda internados quatro jovens, entre os 7 e os 14 anos, com síndrome inflamatória multissistémica – a única doença, entre estes 342 casos, que pode estar associada a uma complicação por covid-19.

    Recorde-se que, até agora, morreram três menores de idade: dois bebés com menos de um ano e uma criança de quatro anos, todos com gravíssimas comorbilidades. Na faixa dos 10 aos 19 anos, de acordo com o intervalo de idade usados pela DGS, estão mais três óbitos, mas já de maiores de 18 anos e com graves comorbilidades. A mais recente morte neste grupo ocorreu em 14 de Dezembro passado: o de uma jovem de Braga que sofria de síndrome de Dravet. Relembre-se que a DGS, desrespeitando a confidencialidade de dados clínicos, divulgou que a jovem de Braga não estava vacinada.

    A lista de patologias que justificam internamentos directos, mas que são depois transformados em hospitalizações por covid-19, é quase interminável. De entre as patologias detectadas pelo PÁGINA UM, estão cancros em quatro menores, entre os quais uma criança de três anos hospitalizada devido a um tumor cerebral no Hospital de São João.

    E depois há uma gama de problemas que sempre preocuparam os pais antes da pandemia: 28 internamentos por fracturas diversas, quase sempre acidentais; cinco casos de intoxicação por inalação de monóxido de carbono; seis envenenamentos (entre os quais um bebé de um ano com derivado de canábis e outro com ansiolíticos); um caso de alcoolismo (um jovem de 17 anos); quatro por ideação suicida; dois por anorexia nervosa (duas adolescentes de 16 e 17 anos); um caso de transtorno ansioso; dois casos de hospitalização por torção dos testículos; um por laceração do tendão de Aquiles do pé esquerdo (um jovem de 14 anos em Lisboa); e um internamento por laceração do sobrolho (uma criança quatro anos em Coimbra).

    three women lying on bed while raising their feet

    Ainda se destacam, em particular, uma dezena de casos de adolescentes consideradas doentes-covid que foram parar ao hospital por razões mais relevantes: complicações pós-parto, que atingiram cinco jovens de 17 anos, quatro de 16 anos e uma de 15 anos.

    Mesmo em muitos internamentos em que a covid-19 surge no topo hierárquico dos diagnósticos no boletim clínico de internamento, mostra-se discutível se esta doença foi, efectivamente, a causa directa de hospitalização. Por uma razão simples: um grande número são recém-nascidos – ou seja, em concreto, nem sequer foram “admitidos” na unidade de saúde –, ou então menores de um ano. A base de dados do SNS contabiliza, porém, não deixou “escapar” 168 bebés dentro deste grupo etário, grande parte dos quais “apanharam” covid-19 das mães.

    Quase na totalidade destes casos, a covid-19 não teve qualquer relevância na situação clínica, mesmo quando houve necessidade de internamento em cuidados intensivos (UCI). Com efeito, nos menores de um ano, apenas cinco estiveram em UCI, mas devido à condição de prematuro ou por afecções congénitas. Foi o caso de um bebé internado durante três meses e uma semana, incluindo em UCI, no Hospital Garcia da Orta, porque nasceu com 27 semanas. Mesmo com covid-19 sobreviveu.

    Houve também dois recém-nascidos que estiveram em UCI no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental: um em observação por três dias; e outro em situação mais grave, por sofrer de síndrome da angústia respiratória aguda (SARA), e que acabou por ter alta apenas ao fim de um mês e meio. Também dois casos de prematuros em UCI estiveram internados no Hospital do Espírito Santo de Évora. Ambos tiveram uma hospitalização de quatro dias, em observação. Curiosamente, um desses bebés nasceu na véspera de Natal de 2020.

    man in blue scrub suit holding baby

    O caso clínico mais grave passou pelo Hospital Dona Estefânia: um prematuro de 24 semanas – que também surge nos registos de doentes-covid – esteve internado seis meses por nascer com 24 semanas e gravíssimas malformações congénitas cardíacas e neurológicas. Aliás, sobreviveu à covid-19 “nas calmas” face à gravidade inicial do seu estado clínico. Na verdade, até a apanhou no hospital, já que nasceu em Janeiro de 2020 – antes da “chegada” do SARS-CoV-2 a Portugal – e só viu pela primeira vez na vida a luz fora do hospital em Julho desse ano.

    A partir do primeiro ano de vida, a taxa de internamento hospitalar por covid-19 mostrou-se ainda mais diminuta, mesmo quando esta doença foi a causa directa de hospitalização. De acordo com a base da dados consultada pelo PÁGINA UM, entre os 1 e os 2 anos de idade, apenas se contabilizaram, no período em análise, 41 internamentos em que a covid-19 foi considerada a responsável directa pela hospitalização, independentemente das comorbilidades pré-existentes. Somente um destes bebés esteve em UCI.

    No extenso grupo etário dos 2 aos 17 anos – que agrupam mais de 1,5 milhões de jovens – contam-se somente 259 internamentos “directos” por covid-19, dos quais 18 necessitaram de internamento em UCI, mas nem todos entubados. Nenhum destes jovens e crianças morreu.

    Artigo com colaboração de Maria Afonso Peixoto

  • Raio X à pandemia: uma análise descritiva e gráfica

    Raio X à pandemia: uma análise descritiva e gráfica

    Nascido em 2019, o SARS-CoV-2 deixou, até agora, muito mais do que as cerca de 5,45 milhões de mortes. Ao entrar pelo quarto ano da sua existência confirmada (2019, 2020, 2021 e 2022), a covid-19 transformou o Mundo em algo diferente, atulhado em pânico e medo, em medidas cada vez mais autoritárias mesmo em países democráticos, acentuando a falta de solidariedade dos países ricos com os pobres, e a Ciência – esse outrora bastião do conhecimento dinâmico e do perpétuo questionamento – por bolandas anda agora, ora demonstrando ser a solução, ora rodando ao sabor dos interesses financeiros, ora rodopiando pelos circunstancialismos políticos.

    No novo mundo distópico, o ano 2022 anuncia-se incerto, e despediu-se de um ano de 2021, que terminou paradoxal. O PÁGINA UM mostra como, através de uma análise detalhada à situação pandémica na Europa, incidindo sobre os países da União Europeia, onde também se incluiu, neste lote o Reino Unido.

    Quase com dois anos completos de uma pandemia em pleno, que já atingiu 290 milhões de pessoas, mesmo com vacinas supostamente milagrosas a proteger 48% da população mundial, os últimos dias de 2021 mostraram novos recordes de casos positivos. A culpa – pelo que argumenta a esmagadora maioria dos políticos – justifica-se pelos não-vacinados e pela nova variante Ómicron, mas a evidência mostra outras realidades.

    black and silver magnifying glass beside teal textile

    A vacina acabou por não apresentar o desempenho prometido – e muito menos na inicialmente prometida capacidade de criar imunidade de grupo. A duração da protecção também se mostrou demasiado curta. Por outro lado, a suposta elevada transmissibilidade da variante Ómicron trouxe o resto: o ritmo de testagem subiu para níveis quase estratosféricos na última semana. Em Portugal, por exemplo, o máximo de testes por dia em 2020 foi ligeiramente inferior a 60 mil. Ao longo dos 11 primeiros meses de 2021 nunca superou a centena de milhar. No passado dia 30 de Dezembro foram feitos 402.756 testes.

    Mais testes sempre darão mais casos em termos absolutos, sabendo-se que uma parte significativa das pessoas infectadas não apresenta sequer sintomas, pelo que somente uma testagem massiva a apanharia. A nível mundial, em termos de média móvel de sete dias, o dia 31 de Dezembro passado registou 1.323.362 casos positivos– um valor jamais antes alcançado desde o início da pandemia. Fogo fátuo, mesmo tendo em conta o desfasamento entre casos e eventuais desfechos fatais. Com efeito, nesse dia, os óbitos contabilizados à escala mundial foram apenas de 5.919 – o valor mais baixo desde 24 de Outubro de 2020 –, evidenciando a consistente tendência decrescente da mortalidade por covid-19 desde finais de Agosto. Em contra-ciclo com aquilo que ocorrera no ano anterior.

    De facto, em contraste com o dia homólogo de 2020 (com 11.768 óbitos), o último dia de 2021 registou metade do número de mortes. Mais relevante se mostra essa tendência decrescente por ocorrer com a chegada do Inverno no Hemisfério do Norte – onde vive 87% da população mundial.

    Taxa de vacinação e óbitos por covid-19 em 28 de Dezembro de 2021 (padronizada à população portuguesa, e média móvel de 7 dias). Fontes: Worldometers e Our World in Data.

    Recorde-se que o Inverno de 2020-2021 registou um padrão muito similar ao que ocorre com as épocas gripais, independentemente de mostrar um maior impacte. As infecções e a mortalidade por covid-19 começaram a subir, de forma consistente, a partir de Outubro, e agravou-se em Janeiro de 2021, com o pico de óbitos a nível mundial a ser atingido a 28 daquele mês (14.815, em média móvel de sete dias).

    Analisando a situação dos países da União Europeia – incluindo, neste lote, ainda o Reino Unido –, e tendo como referência a média móvel de sete dias em 28 de Dezembro, confirma-se, de uma forma ainda mais marcante, a falta de “sintonia” entre casos de infecção e mortes, o que pode, afinal, evidenciar a transição da pandemia para a endemia. Ou seja, mais infecções por um vírus menos letal.

    Com efeito, para o período de referência, observa-se que apenas a Espanha, Suécia, Roménia, Letónia, Hungria e Eslovénia apresentavam uma menor incidência (percentagem de casos positivos na sua população) em 2021 do que em 2020. Em alguns casos, a subida foi enorme. Por exemplo, a Grécia tinha uma incidência de 0,07% em 2020 e era de 1,0% em 2021, enquanto na Irlanda aumentou mais de 10 vezes: passou de 0,34%, em 2020, para 3,74%, em 2021. No entanto, a Finlândia – que é, de entre os países da União Europeia, aquele com menor impacte da pandemia em termos de mortalidade – registou nas últimas semanas um aumento muito significativo dos casos positivos. Se em 2020 este país escandinavo tinha, no período em análise, apenas 0,16% da sua população infectada, agora está com 3,48%, sendo apenas ultrapassada pela Irlanda.

    Em termos gerais, quase todos os países em análise registavam, no final de 2021, mais de 1% da respectiva população infectada. As únicas excepções eram a Suécia (0,98%), a Eslováquia e a Lituânia (0,91%, ambas), a Alemanha (0,86%), Eslovénia (0,80%), a Espanha (0,58%), a Letónia (0,57%), a Croácia (0,55%) e a Áustria (0,32%). No outro extremo, cinco países contabilizavam 3% ou mais da população infectada: Chipre (3,79%), Finlândia (3,48%), Irlanda (3,74%), Reino Unido (3,21%) e Bélgica (3,00%). Ao invés, em período homólogo de 2020, apenas a Espanha (2,11%) tinha mais de 2% da população infectada, registando-se mesmo 21 países com menos de 1%, dos quais nove abaixo dos 0,5% (Finlândia, Grécia, Malta, Roménia, Áustria, Croácia, França, Alemanha e Irlanda).

    Incidência cumulativa desde o início da pandemia e mortes por covid-19 em 28 de Dezembro de 2021 (padronizada à população portuguesa, e média móvel de 7 dias). Fontes: Worldometers e Our World in Data.

    Embora haja um desfasamento temporal entre um pico de casos e a ocorrência de um pico de óbitos – geralmente, duas semanas –, a “agressividade” do SARS-CoV-2 aparenta agora ser francamente menor.

    Note-se, porém, que se deve ter em consideração que a política de testagem de assintomáticos tende, em princípio, a diminuir a taxa de letalidade, sobretudo se se concentra em população jovem, onde a gravidade da doença foi sempre estatisticamente irrelevante.

    Com efeito, padronizando os óbitos de todos os países da União Europeia (mais Reino Unido) à população portuguesa – de modo a se ter uma melhor percepção comparativa da actual situação pandémica na Europa –, constata-se uma redução quase generalizada, e muito significativa, das mortes no final de 2021 em relação ao final de 2020. De facto, apenas a Grécia, a Polónia e a Hungria apresentavam nos últimos dias de 2021 uma situação pior do que em período homólogo de 2020.

    A norma foi uma descida muito significativa. A maior redução relativa registou-se no Luxemburgo, um pequeno país de 630 mil habitantes. No final de 2020, os óbitos diários (padronizados à população portuguesa) foram 84; no final de 2021 nenhum. Outras reduções muito relevantes (superiores a 60%) observam-se em Portugal (71 óbitos em 2020 vs. 14 em 2021), no Reino Unido (70 vs. 11), na Suécia (95 vs. 2), Bélgica (81 vs. 23), Áustria (86 vs. 20), Itália (78 vs. 24), Malta (66 vs. 21), Eslovénia (148 vs. 40).

    Note-se, porém, que em alguns destes países, sobretudo no Leste europeu, verificou-se um pico muito relevante de mortalidade em Novembro, seguido de uma descida abrupta.

    Em todo o caso, aparentando ser um padrão sobretudo regional, a mortalidade atribuída à covid-19 ainda atingia valores elevados no final de 2021 na parte oriental da Europa.

    Incidência cumulativa e taxa de mortalidade por covid-19 desde o iníco da pandemia. Fontes: Worldometers e Our World in Data.

    Numa altura em que os óbitos por esta doença em Portugal se situavam nos 14 por dia (média móvel de sete dias), três países superavam os 100 óbitos diários (padronizados à população portuguesa): Croácia (129), Hungria (126) e Polónia (111). Mais cinco registavam mais de 50 óbitos: Bulgária (97), Eslováquia (96), Lituânia (77), Grécia (70) e Letónia (59).

    A influência directa da vacinação na letalidade da covid-19 nos diversos países europeus tem sido uma discussão recorrente nos últimos meses. Ou seja, será que os países com maior taxa de vacinação automaticamente registarão uma menor mortalidade?

    Essa suposta evidência colocou-se sobretudo durante o mês de Novembro do ano passado, quando o Leste europeu foi “varrido” por um número inusitado de casos, enquanto os países ocidentais continuavam num Outono bastante ameno em termos de infecções e mortes.

    Porém, nessa “evidência” havia sempre um aspecto esquecido: a partir de níveis razoavelmente elevados de taxa de vacinação – dir-se-ia acima dos 60% da população do país –, mostra-se admissível supor que a quase totalidade das pessoas idosas e vulneráveis estarão já vacinadas. Recorde-se que, por norma, entre 25% e 30% da população de um país europeu tem mais de 65 anos, e é esta a faixa etária mais vulnerável à covid-19 e com prioridade na vacinação.

    Se se considerar os últimos dias de 2021, a relação directa entre a taxa de vacinação (com duas doses) e os óbitos por covid-19 (padronizados à população portuguesa) já não parece muito evidente. Na aparência os países com menor taxa de vacinação têm mais óbitos, mas existe também, de uma forma bastante clara, um padrão regional: Leste europeu tem mais mortes do que o Oeste europeu. Qual o factor que conta mais?

    Além disso, existem muitas excepções. Por exemplo, a Roménia, o Chipre e mesmo a Eslovénia estavam, no final de 2021, com níveis de mortalidade relativamente baixos, mas ainda com taxas de vacinação da população abaixo dos 65%. A Roménia, apesar de ter apenas 40,1% da sua população vacinada, apresentava mortalidade abaixo de seis países com taxas de vacinação superiores a 70%.

    Um outro aspecto interessante de observar é a evolução da pandemia na Europa desde 2020, e de como a maior ou menor incidência cumulativa nos diversos países se repercutiu em termos de mortalidade acumulada e actual por esta doença.

    Convém notar que estas comparações devem ser observadas com algumas reticências, por três razões. Primeiro, a incidência da covid-19 dependeu das distintas medidas não-farmacológicas adoptadas pelos diversos países, e da sua verdadeira eficácia, e também das respectivas estratégias de detecção das infecções (maior ou menor testagem de assintomáticos). Segundo, a introdução da vacinação, e a sua eficácia, pode ter alterado, de uma forma mais ou menos significativa, a taxa de letalidade ao longo do período pandémico. Terceiro, ignora-se ainda, em grande medida, a relevância de factores ambientais ou mesmo populacionais (ou sociais) que possam determinar uma menor ou maior mortalidade.

    Ponderado tudo isto, uma coisa parece certa: uma menor incidência cumulativa não constituiu, até agora, uma garantia de baixa mortalidade na população, nem ao longo da pandemia nem em relação à situação mais recente.

    Mas antes de dissecar esta questão, talvez seja mais importante relevar primeiro que o SARS-CoV-2 atingiu de forma muito distinta o continente europeu. Considerando a população respectiva dos 28 países em análise, a incidência vai desde os 4,3% na Finlândia até aos 23,1% da República Checa (ou seja, quase um em cada quatro checos tiveram covid-19 em menos de dois anos). Portugal regista 12,9% – isto é, quase 1 em cada 8 pessoas teve um teste positivo. Em todo o caso, a maioria dos países apresenta incidências relativamente próximas: 18 países estão com este rácio entre os 12,5% e os 18,5%.

    O senso comum diria que uma menor incidência resultaria, de imediato, numa menor mortalidade. O caso da Finlândia aparenta indiciar isso. Com apenas 4,3% da sua população com teste positivo desde o início da pandemia, a taxa de mortalidade por covid-19 é, até agora, a mais baixa da União Europeia: 2,8 por 10.000 habitantes. Porém, este país escandinavo é uma excepção.

    Taxa de vacinação e incidência em 28 de Dezembro de 2021 (média móvel de 7 dias). Fontes: Worldometers e Our World in Data.

    De facto, alguns países com incidência cumulativa relativamente baixa (em comparação aos outros países) apresentam taxas de mortalidade muito mais elevada. São os casos, sobretudo, da Roménia (terceiro país com menor incidência, mas quarto com maior taxa de mortalidade), da Bulgária (sexto país com menor incidência, mas com a pior taxa de mortalidade) e da Hungria (décimo com menor incidência, mas a segunda pior taxa de mortalidade).

    Portugal – com uma incidência de 12,9% (12º maior no grupo de 28 países em análise) e uma taxa de mortalidade de 12,9 óbitos por 10.000 habitantes (17ª posição) – encontra-se numa situação intermédia.

    Existem muitos factores que podem explicar a ausência de relação directa entre incidência e mortalidade causada pelo SARS-CoV-2. Por um lado, a incidência pode ser muito distinta entre grupos etários, o que produz efeitos muito distintos. Ou seja, enquanto 1.000 casos positivos no grupo dos mais idosos pode resultar em muito mais de 100 óbitos, o mesmo número em jovens terá consequências irrelevantes, ou mesmo nulas.

    Nesse aspecto, a maior ou menor incidência da doença nos idosos, e particularmente nos lares, é um aspecto determinante para o impacte da doença em cada país. Além disso, cada país – e mesmo nas distintas regiões de um mesmo país – registaram-se níveis distintos de resposta à pandemia, incluindo ao nível do tratamento hospitalar, com efeitos directos muito relevantes na mortalidade.

    Por fim, a incidência cumulativa desde o início da pandemia não aparenta ser relevante nos níveis de mortalidade por covid-19 no período mais recente. Com referência aos óbitos de 28 de Dezembro de 2021 (média móvel de sete dias), e padronizados à população portuguesa, não se observa de forma directa um padrão de menor mortalidade nos países com maior incidência cumulativa desde o início da pandemia.

    A Croácia é o país que apresenta maior mortalidade na União Europeia (129 óbitos padronizados no dia 28 de Dezembro), mas contava já com 17,3% da sua população com teste positivo à covi-19. A República Checa, o país com maior incidência cumulativa na União Europeia (23,1%), apresentava mesmo assim o 9º valor mais elevado de mortalidade (58 óbitos).

  • Hospital de Cascais recebeu elogios no combate à pandemia mas silenciou surtos descontrolados de sépsis

    Hospital de Cascais recebeu elogios no combate à pandemia mas silenciou surtos descontrolados de sépsis

    A unidade de saúde de Cascais, integrada no SNS, mas gerida pelo Grupo Lusíadas, registou o pior desempenho no controlo de infecções hospitalares durante o primeiro ano da pandemia. O risco de morte de doentes com covid-19 que desenvolveram sépsis triplica em comparação com os outros. O ex-director da Visão, Pedro Camacho, foi uma das vítimas mortais.


    O Hospital de Cascais recebeu em Dezembro do ano passado um destaque da Federação Internacional dos Hospitais – ficando integrado numa lista de 103 unidades de saúde mundiais que prestariam “serviços de excelência no combate à pandemia” –, mas estava então a atravessar, no denominado “covidário”, um surto de septicémia – uma gravíssima infecção geralmente nosocomial (de origem hospitalar) da corrente sanguínea – que se prolongaria até Fevereiro deste ano.

    Na esmagadora maioria dos casos desta infecção de elevada letalidade – associada, em parte, a deficiências de higienização hospitalar – não foi identificada a bactéria na sua origem. Existem, porém, vários registos de sépsis causada por Escherichia coli, Staphylococcus aureus, pseudomonas e enterococos.

    De acordo com registos anonimizados do Hospital de Cascais, a que o PÁGINA UM teve acesso, contabilizam-se 119 doentes internados com covid-19 que desenvolveram sépsis entre Março de 2020 e Abril deste ano. Grande parte destes doentes eram idosos (mediana de 73 anos), havendo 78 homens e 41 mulheres. O mais novo doente tinha 31 anos e o mais idoso contava 98. Ao longo destes 14 meses, no decurso dessas altamente letais infecções, acabariam por morrer 72 destes doentes, mas a covid-19 ficou com a “culpa” exclusiva.

    Hospital de Cascais é gerido em PPP pelo Grupo Lusíadas Saúde.

    O impacte de uma sépsis num doente-covid – tal como em outros doentes internados com o sistema imunitário debilitado – é geralmente devastador, tanto mais que a sua evolução é “silenciosa”, e muitas das bactérias causadoras são multirresistentes a antibióticos.

    No caso particular dos doentes-covid internados no hospital de Cascais, a taxa de mortalidade daqueles que não tiveram sepsis foi de 19%; com sépsis subiu para 61% – ou seja, três vezes mais.

    Considerando a totalidade dos hospitalizados por covid-19 em Cascais entre Março de 2020 e Abril de 2021 (cerca de 1.400 doentes), a probabilidade de desenvolver sépsis foi de 8%. A nível nacional, segundo apurou o PÁGINA UM, a esmagadora maioria dos hospitais do SNS registou uma taxa de prevalência de sépsis a rondar os 2%. Ou seja, a prevalência, ou risco, nesta unidade de saúde da Grande Lisboa foi quatro vezes superior.

    Os casos fatais de sépsis no “covidário” do Hospital de Cascais começaram desde o início da pandemia, sempre em enfermaria – isto é, não estiveram associados às unidades de cuidados intensivos (UCI) –, mas em número diminuto. A situação agudizou-se sobretudo em Novembro do ano passado. Nesse mês já se registaram cinco mortes de doentes-covid associadas a sépsis – em parte de pessoas ainda internadas em Outubro. A partir de Dezembro aumentaram ainda mais. No último mês de 2020 contabilizaram-se nove óbitos, subindo para 15 em Janeiro deste ano. Em Fevereiro fixaram-se em 12.

    Nos meses seguintes, em parte também pela redução significativa dos internamentos, os óbitos associados à sépsis em doentes-covid desceram para seis e dois, respectivamente em Março e Abril.

    Uma das vítimas destes surtos no Hospital de Cascais terá sido o conhecido jornalista Pedro Camacho, ex-director da Visão e então director de inovação e novos projectos da Lusa. Falecido em 5 de Dezembro de 2020, após um longo internamento de cinco semanas por covid-19, as notícias de diversos órgãos de comunicação social – como o Público e o Expresso – revelaram que o seu estado clínico se agravara fatalmente “por duas infecções causadas por bactérias hospitalares”. Foi, no entanto, considerado um óbito por covid-19.

    Registo de doentes-covid com sépsis por data de início de internamento e número de óbitos.

    O PÁGINA UM apurou que, de facto, após ter sido internado no Hospital de Cascais em 29 de Outubro do ano passado, Pedro Camacho sofreu diversas complicações não directamente associada à covid-19, entre as quais duas septicémias distintas, incluindo um choque séptico.

    Os dados anonimizados que o PÁGINA UM consultou não permitem identificar em concreto as datas de detecção destas infecções nosocomiais, mas, mesmo que tal fosse possível, não seriam obviamente aqui reveladas.

    Em parte por ter sido um período crítico de internamentos, e de ainda estar em curso um problema de higienização, o mês de Janeiro deste ano foi aquele com maior número de internados por covid-19 que desenvolveram depois sépsis. No total contabilizaram-se 31 casos, mais 13 do que em Dezembro de 2020 e mais 14 do que em Fevereiro deste ano. Em Março e Abril, os casos passaram a ser pontuais. A partir desse período, o PÁGINA ainda não conseguiu obter mais dados.

    Oficialmente denominado Hospital de Cascais Dr. José de Almeida, esta unidade de saúde é gerida pelo Grupo Lusíadas Saúde, através de uma parceria público-privada (PPP) desde 2010. Este contrato deveria terminar dentro de dias, no final deste mês, mas foi prolongado por mais um ano por Resolução do Conselho de Ministros com um custo máximo para o erário público de 80 milhões de euros.

    Recorde-se, no entanto, que em Maio deste ano, em comunicado, Lusíadas Saúde anunciara não estar interessada em concorrer ao novo concurso de gestão no âmbito da PPP nos moldes estabelecidos num despacho de Maio do ano passado dos Ministérios das Finanças e da Saúde, por não ser possível “construir uma proposta sustentável que assegure a qualidade e excelência de cuidados que pautam a atuação do Grupo”.

    O PÁGINA UM enviou um conjunto de seis questões à administração do Hospital de Cascais, presidida por José Bento, mas não obteve qualquer reacção.