Os hospitais salvaram muitos doentes, mas também foram locais de surtos e muitas infecções por covid-19. O PÁGINA UM analisou a base de dados dos registos hospitalares nos 15 primeiros meses da pandemia e encontrou indícios da existência de, pelo menos, 4.140 infecções nosocomiais de covid-19, que resultaram em 1.326 mortes. O Hospital Pedro Hispano, onde trabalha o médico Gustavo Carona – que confessou em livro ter ido trabalhar com sintomas – foi um dos três piores do país entre Março de 2020 e Maio de 2021. E a Direcção-Geral da Saúde nada diz.
Ao longo dos primeiros 15 meses de pandemia, pelo menos 4.140 doentes-covid terão sido infectados pelo SARSC-CoV-2 nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde após a sua admissão por outras causas. Através da análise de uma base de dados do Ministério da Saúde com informação clínica sobre internamentos por covid-19, a investigação do PÁGINA UM mostra que os surtos desta doença em meio hospitalar (infecção nosocomial) foram bastante frequentes em algumas unidades de saúde. Em todo o país, entre Março de 2020 e Maio de 2021, quase 8% do total dos internados foram infectados nos hospitais. Não estarão aqui incluídos os infectados, sobretudo idosos em lares, que tenham estado em tratamento hospitalar e recebido alta ou aqueles em tratamento ambulatório.
Nos centros hospitalares com mais de 500 doentes-covid durante os primeiros 15 meses da pandemia, nove registaram mais de 10% de internados-covid com “versão” nosocomial: Centro Hospitalar do Oeste (13,1%), Hospital Beatriz Ângelo (12,8%), Unidade de Saúde Local de Matosinhos, que agrega o Hospital Pedro Hispano (12,5%), Centro Hospitalar da Póvoa do Varzim/Vila do Conde (12,4%), Centro Hospitalar Universitário de São João (11,9%), Centro Hospitalar Lisboa Ocidental (11,7%), Hospital Garcia de Orta (11,5%), Centro Hospitalar Universitário do Porto (11,3%) e Hospital de Cascais (10,3%).
Note-se, porém, que em termos de gravidade relativa, a pior situação registou-se no IPO de Lisboa, que teve um surto relevante conhecido em Novembro do ano passado, mas que já não foi inédito: entre Março de 2020 e Maio de 2021, de entre os 64 doentes-covid, metade (32) foram infectados naquela unidade hospitalar.
O melhor desempenho nas grandes unidades de saúde observou-se no Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, com apenas 2,4% dos doentes-covid com a “versão” nosocomial. Igual desempenho tiveram o Hospital da Figueira da Foz e a Unidade Local de Saúde do Nordeste. Por sua vez, o Centro Hospitalar Universitário da Cova da Beira teve apenas cinco doentes-covid nosocomial em 480 internados. Note-se, contudo, que nem todos os hospitais terão feito registos correctos de infecções nosocomiais causadas pelo SARS-CoV-2, como parece ser o caso das unidades de saúde da Madeira, que não apontam qualquer caso em 527 internados durante o período em análise (ver texto em baixo).
Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra registou um dos melhores desempenho no controlo da covid-19 nosocomial.
Face à maior prevalência de comorbilidades e ao estado mais vulnerável dos pacientes já internados, com a média de idades mais elevada do que na comunidade, a taxa de mortalidade dos doentes-covid-19 em “versão” nosocomial foi de quase um terço (32%): dos 4.140 internados, 1.326 morreram. Os doentes-covid que foram infectados na comunidade tiveram no mesmo período, uma taxa de mortalidade hospitalar de cerca de 22%, ou seja, menos 10 pontos percentuais. Saliente-se, contudo, que o desfecho fatal, em qualquer caso, pode não ter sido devido às complicações decorrentes da infecção pelo SARS-CoV-2, decorrendo sobretudo dos discutíveis critérios seguidos pela Direcção-Geral da Saúde (DGS).
Em todo o caso, encontram-se registos de 27 doentes com covid-19 já estavam admitidos no hospitais – alguns há muitos meses ou mais de um ano – quando o SARS-CoV-2 foi identificado em Portugal no início de Março de 2020. Destes, 11 acabaram mesmo por morrer.
Podem ser várias as causas para os distintos graus de infecções nosocomiais de covid-19 nas diversas unidades de saúde em Portugal, mas quase todas radicam no maior ou menor cumprimento das regras de prevenção activa e passiva em meios hospitalar.
Número de casos de covi-19 nosocomial em hospitais, centros hospitalares (CH e CHU) e em unidades locais de saúde (ULS) entre Março de 2020 e Maio de 2021 (excluindo unidades com menos de 20 casos)
Apesar de, em teoria, as normas da DGS obrigarem a isolamento profiláctico dos profissionais das unidades em caso de contactos de alto risco – que é elevado nos chamados “covidários” ou sempre que ocorrem descuidos –, tal raramente sucedeu em muitos casos, se não houvesse sintomas. O objectivo terá sido o de evitar a falta de recursos humanos.
Porém, o reverso da medalha foi a multiplicação de surtos causados sobretudo por profissionais de saúde que atingiram potencialmente doentes fragilizados por outras doenças.
Um dos casos mais evidentes desses descuidos de alguns profissionais de saúde soube-se publicamente através de um relato, sob a forma de livro, de um mediático médico do Hospital Pedro Hispano.
No seu livro “Diário de um médico no combate à pandemia”, o anestesiologista Gustavo Carona chegou a afirmar que “no meu hospital, ou pelo menos no meu serviço, a política foi só nos testarmos se tivéssemos sintomas. Nós tivemos um milhão de vezes em contacto próximo com doentes covid, e, por vezes, havia uma falha aqui ou outra ali”.
Relatando no livro o caso pessoal de uma “falha”, este médico – que exerce sobretudo funções de medicina intensiva – escreve mesmo que “os isolamentos profilácticos eram um luxo ao qual nós não nos podíamos dar, só nos testávamos se tivéssemos sintomas”, acrescentando que, após um contacto de alto risco (com um doente confirmado e sintomático), “segui a minha vida à espera de ter ou não sintomas e afastei-me da minha mãe.”
No seu relato supostamente verídico, o médico – que tem manifestado a defesa intransigente de todas as medidas estatais relevantes – admite ter acordado em data incerta de Janeiro do ano passado com sintomas compatíveis com covid-19, mas foi trabalhar nesse dia, e somente soube no final do turno, por teste, que estava infectado.
Gustavo Carona, médico no Hospital Pedro Hispano (ULS de Matosinhos)
Paula Carvalho, assessora de imprensa do Hospital Pedro Hispano – cuja administração se recusou a dar informações detalhadas e mais precisas sobre infecções nosocomiais naquela unidade de saúde no período em que o médico Gustavo Carona esteve a trabalhar infectado, com e sem sintomas , diz que “questões como a da testagem [transcritas no livro] podem ser facilmente explicadas e compreendidas, no contexto das normas e orientações da altura.”
A DGS, por sua vez, mantém o silêncio absoluto sobre todas as questões e pedidos de esclarecimento do PÁGINA UM. Em 10 de Dezembro foi-lhe enviado um pedido expresso, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, para se obterem dados oficiais e reconhecidos sobre “surtos de covid-19 em unidades de saúde, eventualmente discriminadas por unidade e mês”, bem como o “número de infecções (casos positivos)” e o “número total de óbitos”.
A directora-geral da Saúde Graça Freitas nunca respondeu, e seguiu, entretanto, uma (habitual) queixa para a Comissão de Acessos aos Documentos Administrativos.
O PÁGINA UM vai continuar, em todo o caso, a divulgar informação verídica e fundamental para esclarecer todos os meandros da gestão da pandemia.
Metodologia para detecção de covid-19 nosocomial
Nem sempre a referência à existência de covid-19 nosocomial consta expressamente na síntese dos boletins clínicos – convenientemente anonimizados, como exige o Regulamento Geral de Protecção de Dados e determina a deontologia jornalística.
Nesta base de dados, os diagnósticos clínicos e as comorbilidades antes e durante o internamento seguem os códigos da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CDI), aprovada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). As doenças e outros problemas, para cada doente, estão ordenados cronologicamente, sabendo-se apenas que o diagnóstico principal de admissão tem o número 0 e corresponde à data de internamento.
Os restantes registos constituem o complemento dos problemas que levaram aos internamentos, e também da evolução clínica, geralmente os agravamentos ou outras evidências relevantes. Ora, se a covid-19 – que tem o código U071 da CDI – surge nos primeiros lugares da ordenação, depreende-se que seja a causa directa do internamento (e é mesmo se tem o número 0) ou que o teste foi positivo no momento da admissão.
Assim sendo, o PÁGINA UM considerou que se estaria sempre perante uma infecção nosocomial se a covid-19 (U071) estivesse na posição 6 ou superior. Note-se que a mediana da posição do diagnóstico da covid-19 (U071) dos 4.140 internados que se assumiu terem sido infectados em meio hospitalar é de 10, sendo que em 351 doentes a covid-19 aparece na posição 20 ou superior na ordem de diagnóstico.
Sem gripe e com a covid-19 a mostrar menor letalidade, o Inverno de 2021-2022 está muito menos mortífero do que em períodos anteriores ao surgimento do SARS-CoV-2. O excesso de mortalidade ao longo da pandemia e o tempo mais ameno podem ser uma explicação, mas mostra-se evidente uma falta de adesão entre a realidade e a sua percepção pública e política.
O período invernal em curso, iniciado no dia 21 de Dezembro do ano passado, está a ser um dos menos mortíferos da última década, sobretudo se se considerar o processo de envelhecimento populacional. Esta situação contrasta com um ambiente de pânico na sociedade portuguesa no decurso de um forte aumento do número de testes positivos com covid-19.
Segundo a Direcção-Geral da Saúde, estão actualmente infectados quase 265 mil portugueses, quando em igual período do ano passado rondava os 110 mil, ou seja, um aumento de cerca de 140%. Contudo, ao nível de óbitos atribuídos à covid-19, a situação é agora oposta: a média móvel da última semana é de 19 – com tendência estável –, enquanto há um ano atingia já os 104, e então com uma forte tendência de subida. No Inverno passado, de acordo com dados oficiais, chegou-se perto dos 300 óbitos por dia (média móvel) no pico da mortalidade por covid-19.
A actual diminuição dos desfechos fatais directamente associados à pandemia acompanha também uma redução na mortalidade por todas as causas. De acordo com o Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) – que agrega todas as causas de desfechos fatais –, o actual Inverno (com 21 dias, até 10 de Janeiro) regista já 7.444 mortes, uma média de 354 por dia, o que é o quinto valor mais baixo da última década e o segundo nos últimos seis anos. Se se considerar que a população idosa com mais de 85 anos – onde se concentra uma parte considerável das mortes por todas as causas (cerca de 40% do total) – teve um crescimento de 44% entre 2011 e 2020 (passando de 237 mil para mais de 333 mil –, a situação deste período invernal manifesta-se francamente favorável do ponto de vista de Saúde Pública.
Com efeito, face à menor letalidade da covid-19 nesta fase pandémica, à contínua ausência de actividade dos vírus influenza (causador das gripes) e à menor prevalência de outras infecções respiratórias, o período invernal em curso apresenta mortalidade total por todas as causas 6% inferior à média. Esta redução será maior se indexada à taxa de mortalidade no grupo etário dos mais idosos, porque são agora muitos mais.
Saliente-se, contudo, que a mortalidade nos Invernos ao longo dos anos regista sempre valores muito extremados. Antes como agora, o período invernal é muito mortífero ou pouco letal em função directa da “agressividade” da gripe, das infecções respiratórias, da meteorologia, bem como da capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde.
Mortalidade média diária por todas as causas entre 21 de Dezembro e 10 de Janeiro no período 2009-2010 até 2021-2022 (Fonte: SICO).
Por exemplo, no Inverno passado – com surtos de covid-19 acompanhados de um período de frio extremo –, a mortalidade total entre 21 de Dezembro de 2020 e 10 de Janeiro de 2021 situou-se nos 466 óbitos por dia, mais 112 do que em período homólogo do actual Inverno. Recorde-se que, em Janeiro do ano passado, a situação ainda piorou nos dois últimos terços do mês, com diversos dias de mortalidade acima de 700. Por agora, no mês de Janeiro em curso, apenas no dia 1 se ultrapassou os 400 óbitos, o que se deve considerar uma situação excepcionalmente favorável.
Com efeito, seguindo os dados do SICO, a mortalidade total do presente Inverno está em níveis muito próximos de anos de fraca actividade gripal, como os Invernos de 2019-2020 ou 2015-2016. Neste último caso, o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA) considerou que “a actividade gripal foi de baixa intensidade” e que “não se observaram excessos de mortalidade semanais durante o Outono e Inverno”. No período em análise (21 de Dezembro de 2015 até 10 de Janeiro de 2016) apenas morreram, em média, 322 pessoas por dia.
Se se comparar o presente Inverno com outros anteriores à pandemia, a situação mostra-se também muito mais favorável em relação sobretudo aos anos de 2016-2017 – que registou uma mortalidade média diária de 455 óbitos – e de 2017-2018 – com mortalidade diária de 395 óbitos.
Variação absoluta da mortalidade total entre 21 de Dezembro e 10 de Janeiro no período 2009-2010 até 2021-2022, tendo como referência o período de menor actividade gripal (2012-2013) (Fonte: SICO).
A época gripal nestes dois períodos foi particularmente agreste. Segundo o INSA, na época de 2016-2017 (que compreende o período entre meados de Outubro e Maio seguinte) estima-se que a gripe, por via directa e indirecta, causou a morte de 4.472 pessoas, enquanto na de 2017-2018 foi de 3.700.
Comparando o período invernal desde 2009-2010 – tendo como referência o ano de menor actividade gripal (2012-2013), e portanto de menor mortalidade –, o actual Inverno apresenta um excesso de 738 óbitos, mas não se tem aqui em conta que no final de 2012 viviam cerca de 244 mil pessoas com mais de 85 anos e agora vivem mais de 333 mil.
Mesmo assim, esse acréscimo é substancialmente inferior ao Inverno passado (2020-2021), que registou 3.089 óbitos em excesso em relação ao ano de referência, ou seja, mais 147 óbitos em cada dia. E também muito mais baixo do que os números registados nos Invernos pré-pandemia de 2014-2015, 2016-2017, 2017-2018 e 2018-2019.
Porém, estas evidências estatísticas – dir-se-iam científicas – não estão espelhadas no presente ambiente de quase estado de sítio, onde imperam ainda fortes medidas de lockdown económico e de discriminação social.
Descoberta a partir de uma amostra de solo, a ivermectina já valeu um Prémio Nobel e o seu reconhecimento como “fármaco milagroso”. A pandemia, porém, manchou-lhe os créditos. Independentemente da sua eficácia no combate à covid-19 – que move paixões diametralmente opostas –, ninguém de bem poderá colocar em causa um bem da Natureza que deu (melhor) vida a milhões de pessoas.
Até ao início de 2020, era um dos fármacos mundiais mais amado pela Organização Mundial de Saúde, elogiada por médicos e endeusada por investigadores. Os louvores vinham de todos os lados, sobretudo da comunidade de farmacologia, e logo no título de artigos científicos, que a consideravam uma wonder drug, um fármaco maravilhoso, ao lado da penicilina e da aspirina. Entre 1990 e 2019, o Google Scholar contabiliza cerca de 16.400 artigos sobre a ivermectina. Nenhum a maldiz. Pudera: o seu descobridor, o japonês Satoshi Omura e o irlandês William Campbell – que a “purificou” – foram galardoados com o Prémio Nobel da Medicina em 2015, pelas maravilhas produzidas por este “milagre da terra”.
Hoje, no decurso de dois anos de pandemia, ivermectina é quase uma palavra maldita. Quem a invoca para o combate contra a covid-19, facilmente recebe epítetos como “bolsonarista”, “negacionista” ou “defensor do uso de medicamentos veterinários em humanos”.
A oncocercose, ou cegueira dos rios, é uma das mais incapacitantes doenças na África e América Letina, agora com cura graças à ivermectina.
Independentemente da sua eficácia ou não contra o SARS-CoV-2, invectivar – ou seja, injuriar – a ivermectina é uma das acções mais injustas para um medicamento que já salvou milhões e milhões de pessoas, sobretudo em países subdesenvolvidos, de doenças mortais ou incapacitantes como a oncocercose (cegueira dos rios), a estrongiloidíase, a filariose linfática (também conhecida como elefantíase) e outras doenças parasitárias.
Em 2016, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considerava a ivermectina como um fármaco com “capacidade para controlar a transmissão da malária”, uma vez que mata os mosquitos Anopheles que a ingerirem se estiver no sangue humano. E, na verdade, não houve quase nenhuma doença em que não se tenha experimentado os seus efeitos.
Além do seu uso veterinário, a ivermectina tem sido utilizada ou testada, com maior ou menor sucesso, no tratamento de uma panóplia de doenças humanas, desde miíase, esquistossomose e triquinose até leishmaniose, tripanossomíase africana (também chamada doença do sono) e americana (doença das chagas), passando ainda por certos tipos de asma, epilepsia (por exemplo, síndrome de Nodding) e afecções neurológicas. A sua acção antibacteriana também tem sido estudada – por exemplo, no controlo da tuberculose e da úlcera de Buruli –, bem como os seus efeitos antivirais.
A sua acção contra o SARS-CoV-2 foi apenas mais uma tentativa de confirmar a sua fama de “fármaco maravilhoso”. Porém, aquilo que, por agora, mais conseguiu foi ver “conspurcados” os seus créditos, sobretudo por quem, vivendo as suas vidas sossegadas na cómoda Europa, nunca conheceu os seus milagres por terras de pobreza e miséria.
A “descoberta” da ivermectina foi sobretudo um achado, fruto do acaso. Em 1973, Satoshi Omura, um bioquímico do Kitasato Institute de Tóquio, decidiu recolher um pouco de solo junto a um campo de golfe de Kawana, na região de Shizuoka, no centro da principal ilha japonesa. Foi uma única colheita, num dos sacos que Omura costumava trazer consigo, mesmo em momentos de lazer. Dali descobriu a existência de uma estranha bactéria, baptizada de Streptomyces avermitilis, cujos produtos de fermentação tinham poderes antiparasitários.
Essas propriedades das então chamadas “avermectinas” seriam depois “purificadas”, já nos laboratórios da farmacêutica norte-americana Merck & Co (conhecida na Europpor Merck Sharp & Dohme, ou simplesmente MSD), por William Campbell, então já com dupla nacionalidade. E daí nasceria a ivermectina, como uma substância de largo espectro antiparasitário. Jamais, sem a recolha de Omura tal seria possível, até porque em mais lado nenhum se descobriram, até agora, aquelas bactérias.
Durante a sua primeira década de “vida”, a ivermectina foi administrada apenas em animais, tratando doenças que causavam prejuízos de muitos milhões de euros no sector pecuário. Por exemplo, o Brasil é um dos países com maior utilização como remédio veterinário.
Ainda somente em animais, a ivermectina logo revelou ser extremamente eficaz contra a maioria dos vermes intestinais comuns (excepto ténias), e a sua administração por via oral facilitava o uso. Além disso, não apresentava sinais de resistência cruzada com outros compostos antiparasitários.
Mas esse foi apenas o seu ponto de partida. Em 1981, a MSD – que registou a patente da ivermectina – conseguiu autorização para uso humano, graças ao seu poder contra algumas das denominadas Doenças Tropicais Negligenciadas (DTN). Seis anos mais tarde, a farmacêutica tomou uma decisão rara no mundo deste sector: libertou a patente e criou um programa de doação contínua, permitindo o uso da ivermectina em programas da OMS contra a oncocercose, uma doença desfigurante e incapacitante causada por um nemátodo parasita (filárias) das espécie Onchocerca volvulus.
Este parasita, transmitido pela picada de uma mosca preta do género Simulium, permanece no hóspede durante anos, maturando sexualmente e libertando depois milhões de larvas microscópicas sob a pele. Além de graves lesões cutâneas, também o sistema linfático e o nervo óptico são afectados. No limite, causam cegueira. A doença, que assombrou durante séculos os países mais pobres, desenvolve-se sobretudo em comunidades ribeirinhas – daí ser também conhecida por cegueira dos rios.
Antes da introdução da ivermectina no Programa Africano de Controle da Oncocercose, estimava-se que entre 20 milhões e 40 milhões de pessoas sofriam de oncorcecose, e cerca de 200 milhões estavam sob risco de infecção, sobretudo na África subsariana, Iémen e diversos países da América Latina.
Anos mais tarde, graças à ivermectina, o objectivo de controlo desta doença passou para um nível superior: a sua eliminação.
Desde que teve início, o programa incentivado pela OMS possibilitou a distribuição gratuita de mais de quatro mil milhões de embalagens de ivermectina em dezenas de países. Segundo a OMS, a cegueira dos rios já foi erradicada na Colômbia, Equador, México e Guatemala, enquanto Venezuela, Uganda e Sudão estão próximos de atingir esse objectivo.
Em meados da década de 1990, a ivermectina foi, igualmente, considerada um excelente tratamento para a filariose linfática. Também conhecida por elefantíase, esta doença é provocada por um parasita que se concentra nos vasos linfáticos, causando um inchaço da pele e dos tecidos, nomeadamente nos pés, pernas e genitais. A eficácia deste fármaco levou também à sua introdução no programa da OMS contra a filariose linfática, sobretudo em regiões onde coexiste com a oncocercose. Em 2015, quase 374 milhões de pessoas necessitavam de tomar regulamente ivermectina para evitar esta doença.
O Programa Africano para o Controlo da Oncocercose 1995-2019 estimou que a administração em massa de ivermectina também conferiu benefícios secundários em termos de Saúde Pública, devido ao seu impacte em infecções não-alvo. Durante o período 1995-2010, estima-se que, por via da sua administração, se tenha conseguido um acréscimo de cerca de 19,6 milhões de anos de vida à população africana, tanto no controlo da cegueira dos rios como de outras doenças parasitárias.
Considerada extremamente segura – por ter efeitos secundários mínimos e poder ser administrada por via oral sem necessidade de supervisão médica –, este antiparasitária e anti-inflamatória poderá ainda ter outras propriedades.
Fábrica da farmacêutica portuguesa Hovione, em Macau, que produz ivermectina.
Surpreendentemente, ou não, apesar de 40 anos de sucesso global incomparável, os cientistas ainda não têm certezas absolutas sobre como a ivermectina funciona para controlar todas estas doenças, embora aparente agir através de processos imunorregulatórios. Sabe-se, contudo, que possui elevada lipossolubilidade, o que a faz distribuir-se rapidamente pelo corpo, eliminando, por exemplo, as microfilárias dos vasos linfáticos periféricos com grande rapidez e efeito de longa duração.
Mas esses aspectos já pouco importaram para que, em 2015, Omura e Campbell tenham tido o reconhecimento do Comité Nobel. Mas quem talvez devesse receber essa honra fosse, afinal, a bactéria Streptomyces avermitilis. “Eu apenas dispus do poder dos micróbios”, confessaria Satoshi Omura aquando da conferência de imprensa de entrega do Nobel da Medicina.
Uma das (muitas) curiosidades da ivermectina é a sua actual “costela portuguesa”. A Hovione, uma farmacêutica nacional sediada em Loures, produz este medicamento para uso humano desde 1997 na sua fábrica em Macau, e é atualmente o maior produtor mundial. Na verdade, fabrica o princípio activo em forma de pó, que depois segue para os quatro cantos do Mundo para ser transformado em comprimidos ou em gel, e ser comercializada a preços acessíveis.
O registo de doentes-covid pelo Ministério da Saúde inclui largas centenas de internamentos por quedas, trambolhões, escorregadelas e contusões por objectos. Estes doentes entraram na base de dados da covid-19 porque testaram positivo na admissão hospitalar. O PÁGINA UM teve acesso a informação clínica dos doentes-covid até Maio do ano passado, e contabilizou mais de 1.200 casos de hospitalizações nestas circunstâncias. Destas pessoas, 266 morreram, muitas num prazo muito curto. Mas todas foram contadas pelo Governo como vítimas da pandemia. Veja, no final do artigo, os casos mais bizarros.
Em finais de Janeiro do ano passado, um homem de 60 anos caiu de uma janela no dia em que foi internado num hospital do Grande Porto – que o PÁGINA UM conhece mas não divulga para preservação da identidade num evento trágico. Era um doente terminal, com cancro do pâncreas e neoplasias secundárias no fígado. Tinha também covid-19 com manifestação de hipoxemia. A queda da janela, provavelmente suicídio, causou-lhe morte imediata. Porém, entrou nas estatísticas oficiais dos óbitos-covid da Direcção-Geral da Saúde.
Este foi um caso raro num episódio de desespero, mas a base de dados do Serviço Nacional de Saúde (SNS) possui, na verdade, centenas e centenas de internados contabilizados como doentes-covid que foram hospitalizados por causas nada relacionadas com a pandemia, como sejam quedas no soalho, de camas, de varandas ou janelas, devido a escorregadelas ou tropeções ou colisões contra objectos.
Em muitos casos, os danos físicos foram muitíssimo graves, incluindo traumatismos cranianos, membros partidos ou afectação de outros órgãos. No total, até Maio de 2021, terão ocorrido pelo menos 266 óbitos atribuídos à covid-19 de pessoas cujo internamento foi subsequente a quedas e acidentes similares.
Numa parte dos casos, a morte surgiu no próprio dia ou nos dias seguintes face à gravidade dos traumatismos. Porém, entraram na contabilidade dos casos e mortes por covid-19 porque, na admissão no hospital, tiveram teste positivo ao SARS-CoV-2.
Numa análise detalhada do PÁGINA UM à base de dados do SNS, contabilizam-se pelo menos 1.207 casos de internamento até Maio de 2021 em que, subjacente à hospitalização inicial, estiveram quedas, em alguns casos especificadas (soalho, varanda, cadeira, cadeira de rodas ou cama).
Em diversas situações, os traumatismos da queda podem ter sido subsequentes a um outro evento (como um ataque cardíaco ou um acidente vascular cerebral), mas na esmagadora maioria das situações tratou-se de quedas acidentais. Não consta, nem nos registos, nem em artigos científicos com peer review, que o SARS-CoV-2 possa ser responsável ou co-responsável por qualquer queda, trambolhão ou escorregadela.
Nesta base de dados do SNS – convenientemente anonimizada, como exige o Regulamento Geral de Protecção de Dados e determina a deontologia jornalística – estão incluídos todos os diagnósticos clínicos e as comorbilidades antes e durante o internamento, seguindo os códigos da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CDI), aprovada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Os registos das doenças, maleitas e lesões (directas e sequelas) de cada doente surgem ordenadas cronologicamente (a partir do 0, embora sem referência à data de cada). Deste modo, sempre que as quedas (com o código iniciado pela letra W na CDI) constam nas primeiras linhas do registo individual, e geralmente antes do diagnóstico covid-19 (com o código U071 da CDI), mostra-se evidente que foram os traumatismos per si os responsáveis pelo internamento.
De acordo com a informação analisada pelo PÁGINA UM, 86% das pessoas do grupo dos internados por traumatismos resultantes de quedas e contusões contra obstáculos – que não inclui acidentes rodoviários ou com maquinaria – tinham mais de 65 anos. Em termos absolutos, até Maio de 2021, a base de dados do SNS registou 178 internamentos por traumatismos desta natureza – e depois com teste positivo à covid-19 – de pessoas com 90 ou mais anos, e ainda de 502 com idades entre os 80 e 89 anos. A média foi de quase 78 anos, e mais de metade dos hospitalizados nestas circunstâncias tinha idade superior a 81 anos.
O idoso mais velho hospitalizado nestas condições foi uma senhora de 103 anos, bastante debilitada (já com caquexia) e com deficiência renal, que caiu da cama em Novembro de 2020, com perda de consciência. Internada no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, acabou por morrer ao quinto dia. Foi considerada mais uma morte por covid-19.
No entanto, também houve crianças, adolescentes e jovens adultos internados por quedas que surgem como doentes-covid. O mais jovem foi um bebé de dois anos do sexo masculino. Esteve internado no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte apenas dois dias em Setembro de 2020, em observação, por ter perdido a consciência após a queda. Foi assim metido nas contas oficiais dos internados por covid-19 porque registou positivo no teste de admissão no hospital. Surgem mais cinco menores de idade em similar circunstância, com internamentos muito curtos (quase sempre apenas um dia), ou seja, a covid-19 não os afectou.
A gravidade de algumas destas quedas e outras contusões, sobretudo dos mais idosos, mostra-se notória quer na taxa de mortalidade quer nos efeitos das quedas (traumatismos). De entre os 178 traumatizados (e depois com covid-19) com 90 ou mais anos, 65 morreram. Destes, 14 em menos de uma semana. Em todas as idades, 62 faleceram no período de uma semana, sendo que cinco morreram no próprio dia do internamento e 15 no dia imediatamente posterior.
Observando o efeito directo de muitas das quedas – ou seja, os traumatismos resultantes –fica-se com a verdadeira percepção da sua gravidade, e da irrelevância da covid-19 no desfecho fatal.
De entre os internados após estes acidentes que morreram nos primeiros dias de internamento, contam-se traumatismos crânio-encefálicos, hemorragias subdurais, fracturas da base do crânio, compressão do encéfalo, edemas cerebrais, etc.. Isto apenas se se considerar a cabeça. Se se incluírem também as fracturas e danos nos membros superiores e inferiores, ou fracturas ou contusões em outras partes do corpo, ainda mais em pessoas fragilizadas, então pode-se deduzir que a covid-19 – embora bastante letal em idosos – arcou com muitas mais culpas do que aquelas que, efectivamente, teve.
Além destes cerca de 1.200 casos, o PÁGINA UM detectou na base de dados do SNS mais 719 doentes-covid que registaram quedas, mas a esmagadora maioria terá já ocorrido em meio hospitalar, tendo em consideração a ordem do registo clínico individual. Em alguns casos, essas quedas – muitas das quais da cama – podem ter contribuído para um desfecho fatal, mas apenas uma investigação clínica, ou judicial, daria uma resposta. Algo que o PÁGINA UM, neste aspecto concreto, não consegue fazer.
Óbitos atribuídos à covid-19 de pessoas internadas no próprio dia da morte após quedas e outros acidentes similares
Homem, 91 anos Data de internamento: 28/11/2020 Causa do internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hematoma subdural e lesão focal. Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra
Homem, 87 anos Data de internamento: 15/01/2021 Causa do internamento: queda resultando em traumatismo intracraniano de doente diabético. Unidade de saúde: Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca (Amadora-Sintra)
Mulher, 84 anos Data de internamento: 27/01/2021 Causa do internamento: queda de doente acamado com doença de Alzheimer. Unidade de saúde: Centro Hospitalar de Setúbal
Mulher, 65 anos Data de internamento: 24/11/2020 Causa do internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico hemorrágico. Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de São João (Porto)
Homem, 60 anos Data de internamento: 27/01/2021 Causa de internamento: queda de janela do hospital (suicídio?) de doente terminal com tumor de pâncreas e fígado, apresentando covid-19. Unidade de saúde: conhecida, mas não revelada
Óbitos atribuídos à covid-19 de pessoas internadas após quedas e outros acidentes similares e que morreram no dia seguinte
Mulher, 99 anos Data de internamento: 17/06/2020 Causa de internamento: queda de cadeira de rodas resultando laceração periocular e coma subsequente. Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte
Homem, 97 anos Data de internamento: 01/11/2020 Causa de internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural. Unidade de saúde: Centro Hospitalar Tâmega e Sousa
Mulher, 97 anos Data de internamento: 23/01/2021 Causa de internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural Unidade de saúde: Centro Hospitalar Tâmega e Sousa
Mulher, 89 anos Data de internamento: 05/02/2021 Causa do internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural e hemiplegia afectando o lado esquerdo do doente. Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra
Mulher, 87 anos Data de internamento: 29/01/2021 Causa de internamento: queda resultando em traumatismo intracraniano e perda de consciência de doente crónico renal, que vivia em lar de idosos Unidade de saúde: Centro Hospitalar Barreiro-Montijo
Homem, 87 anos Data de internamento: 03/04/2020 Causa de internamento: queda de doente em lar de idosos com cancro da bexiga, diabetes. Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra
Homem, 86 anos Data de internamento: 30/12/2020 Causa do internamento: queda resultando em fractura do fémur esquerdo de doente com demência e estenose da válvula aórtica, que vivia em lar de idosos. Unidade de saúde: Centro Hospitalar Lisboa Ocidental
Mulher, 85 anos Data de internamento: 12/12/2020 Causa de internamento: queda resultando numa contusão não especificada da cabeça. Unidade de saúde: Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro
Homem, 85 anos Data de internamento: 18/01/2021 Causa de internamento: queda resultando em traumatismo intracraniano em doente com grave desidratação. Unidade de saúde: Unidade Local de Saúde do Norte Alentejano
Homem, 84 anos Data de internamento: 28/10/2020 Causa de internamento: queda resultando em fractura do fémur direito de doente com doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC), cancro do pulmão e dependência de oxigénio suplementar. Unidade de saúde: Centro Hospitalar do Oeste
Mulher, 78 anos Data de internamento: 17/01/2021 Causa de internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural e coma de doente com diabetes e antigo enfarte do miocárdio. Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra
Homem, 77 anos Data de internamento: 06/01/2021 Causa do internamento: queda envolvendo doente com rabdomiólise e hipopotassemia. Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra
Mulher, 75 anos Data de internamento: 25/01/2021 Causa de internamento: queda resultando em fractura do colo do fémur de uma doente com obesidade mórbida e insuficiência cardíaca que sofreu ataque cardíaco. Unidade de saúde: Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca (Amadora-Sintra)
Homem, 70 anos Data de internamento: 16/11/2020 Causa de internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural, compressão do encéfalo, edema cerebral e coma em doente com diabetes e estenose aórtica. Unidade de saúde: Hospital de Braga
Homem, 67 anos Data de internamento: 17/01/2021 Causa de internamento: queda resultando fractura da base do crânio e em hemorragia epidural, e ainda fractura das costelas. Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra
Para o Serviço Nacional de Saúde tudo conta para aumentar os números de internados por covid-19 em jovens. O PÁGINA UM, através de uma base de dados oficial a que teve acesso, revela como fracturas, apendicites, diabetes, cancros, infecções diversas, problemas congénitos, envenenamentos por inalação de monóxido de carbono, ideação suicida, complicações pós-parto em adolescentes e até torções de testículos são apanhados pelas “malhas” das autoridades de Saúde para classificar jovens como doentes-covid. Basta que tenham tido teste positivo na admissão ao hospital ou durante o internamento.
Uma parte significativa dos menores de idade contabilizada na base de dados do Ministério da Saúde relativa aos doentes-covid esteve internada por causas não relacionadas com o SARS-CoV-2. De acordo com os registos hospitalares dos primeiros 15 meses da pandemia, de entre os 810 menores hospitalizados nas unidades do Serviço Nacional de Saúde entre Março de 2020 e Maio de 2021, cerca de 42% (342 bebés, crianças e adolescentes) foram contabilizados apenas porque, por regra, testaram positivo na unidade de saúde onde se deslocaram para receber tratamento a outros problemas, imediatamente no momento da admissão ou durante a hospitalização. Ou seja, a covid-19 foi detectada após a patologia ou afecção que justificou o internamento.
Estes números não incluem os recém-nascidos – pelo menos 38 – que surgem contabilizados como doentes-covid por terem sido infectados pelas respectivas mães, sem daí ter advindo problemas de saúde relevantes.
Tendo em consideração que a Direcção-Geral da Saúde (DGS) mantém uma opacidade absoluta sobre dados fundamentais relacionados com o impacte da covid-19 nos menores de idade – recusando mesmo conceder acesso à base de dados do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE) –, o PÁGINA UM decidiu começar a divulgar dados confidenciais a que teve acesso. E a análise detalhada aos registos clínicos, anonimizados, permite denunciar, desde já, que a gravidade da pandemia, sendo evidente nos idosos, está a ser empolada pela DGS e Governo em relação à população mais jovem, com o objectivo de pressionar e incentivar os pais a vacinarem os seus filhos.
Com efeito, de acordo com a base de dados consultada pelo PÁGINA UM, até Maio de 2021 foram registados apenas 468 internamentos de menores cuja hospitalização se deveu directamente à covid-19, o que representava uma taxa de internamento de cerca de 0,4% dos casos positivos nesta faixa etária. Se se considerar a população total dos menores de idade (1,7 milhões, segundo as estimativas do INE), esse rácio de internamentos (em 15 meses) foi de 0,027%. Mesmo que se contabilizem os 810 menores internados com teste positivo, então esse rácio sobe para 0,048%.
As causas de internamento dos 342 menores de idade que acabaram nas “malhas” do registo do SNS da pandemia – apenas por terem tido um teste positivo aquando da sua admissão hospitalar – são as mais diversas. Na verdade, reflectem as situações do quotidiano anteriores à pandemia, com toda uma panóplia de doenças e outras afecções pediátricas.
Na base de dados do SNS constam, como sendo doentes-covid, 44 menores com apendicites como justificação para internamento. Na admissão, como tiveram caso positivo à covid-19, ficaram nos registos. Houve ainda 22 hospitalizações deste género por pielonefrite aguda. Nos registos individuais, convenientemente anonimizados, observados pelo PÁGINA UM, contam-se 17 bebés com menos de dois anos internados por causa desta infecção do sistema urinário.
Casos de anemia falciforme foram uma dezena (todos na região de Lisboa e Coimbra), destacando-se também a hospitalização para tratamento médico de 11 menores com diabetes tipo I, outros tantos com diagnóstico de sepsis, nove com meningites e cinco com inflamações dos nódulos linfáticos (linfadenites do pescoço e da cabeça). Foram ainda internados quatro jovens, entre os 7 e os 14 anos, com síndrome inflamatória multissistémica – a única doença, entre estes 342 casos, que pode estar associada a uma complicação por covid-19.
Recorde-se que, até agora, morreram três menores de idade: dois bebés com menos de um ano e uma criança de quatro anos, todos com gravíssimas comorbilidades. Na faixa dos 10 aos 19 anos, de acordo com o intervalo de idade usados pela DGS, estão mais três óbitos, mas já de maiores de 18 anos e com graves comorbilidades. A mais recente morte neste grupo ocorreu em 14 de Dezembro passado: o de uma jovem de Braga que sofria de síndrome de Dravet. Relembre-se que a DGS, desrespeitando a confidencialidade de dados clínicos, divulgou que a jovem de Braga não estava vacinada.
A lista de patologias que justificam internamentos directos, mas que são depois transformados em hospitalizações por covid-19, é quase interminável. De entre as patologias detectadas pelo PÁGINA UM, estão cancros em quatro menores, entre os quais uma criança de três anos hospitalizada devido a um tumor cerebral no Hospital de São João.
E depois há uma gama de problemas que sempre preocuparam os pais antes da pandemia: 28 internamentos por fracturas diversas, quase sempre acidentais; cinco casos de intoxicação por inalação de monóxido de carbono; seis envenenamentos (entre os quais um bebé de um ano com derivado de canábis e outro com ansiolíticos); um caso de alcoolismo (um jovem de 17 anos); quatro por ideação suicida; dois por anorexia nervosa (duas adolescentes de 16 e 17 anos); um caso de transtorno ansioso; dois casos de hospitalização por torção dos testículos; um por laceração do tendão de Aquiles do pé esquerdo (um jovem de 14 anos em Lisboa); e um internamento por laceração do sobrolho (uma criança quatro anos em Coimbra).
Ainda se destacam, em particular, uma dezena de casos de adolescentes consideradas doentes-covid que foram parar ao hospital por razões mais relevantes: complicações pós-parto, que atingiram cinco jovens de 17 anos, quatro de 16 anos e uma de 15 anos.
Mesmo em muitos internamentos em que a covid-19 surge no topo hierárquico dos diagnósticos no boletim clínico de internamento, mostra-se discutível se esta doença foi, efectivamente, a causa directa de hospitalização. Por uma razão simples: um grande número são recém-nascidos – ou seja, em concreto, nem sequer foram “admitidos” na unidade de saúde –, ou então menores de um ano. A base de dados do SNS contabiliza, porém, não deixou “escapar” 168 bebés dentro deste grupo etário, grande parte dos quais “apanharam” covid-19 das mães.
Quase na totalidade destes casos, a covid-19 não teve qualquer relevância na situação clínica, mesmo quando houve necessidade de internamento em cuidados intensivos (UCI). Com efeito, nos menores de um ano, apenas cinco estiveram em UCI, mas devido à condição de prematuro ou por afecções congénitas. Foi o caso de um bebé internado durante três meses e uma semana, incluindo em UCI, no Hospital Garcia da Orta, porque nasceu com 27 semanas. Mesmo com covid-19 sobreviveu.
Houve também dois recém-nascidos que estiveram em UCI no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental: um em observação por três dias; e outro em situação mais grave, por sofrer de síndrome da angústia respiratória aguda (SARA), e que acabou por ter alta apenas ao fim de um mês e meio. Também dois casos de prematuros em UCI estiveram internados no Hospital do Espírito Santo de Évora. Ambos tiveram uma hospitalização de quatro dias, em observação. Curiosamente, um desses bebés nasceu na véspera de Natal de 2020.
O caso clínico mais grave passou pelo Hospital Dona Estefânia: um prematuro de 24 semanas – que também surge nos registos de doentes-covid – esteve internado seis meses por nascer com 24 semanas e gravíssimas malformações congénitas cardíacas e neurológicas. Aliás, sobreviveu à covid-19 “nas calmas” face à gravidade inicial do seu estado clínico. Na verdade, até a apanhou no hospital, já que nasceu em Janeiro de 2020 – antes da “chegada” do SARS-CoV-2 a Portugal – e só viu pela primeira vez na vida a luz fora do hospital em Julho desse ano.
A partir do primeiro ano de vida, a taxa de internamento hospitalar por covid-19 mostrou-se ainda mais diminuta, mesmo quando esta doença foi a causa directa de hospitalização. De acordo com a base da dados consultada pelo PÁGINA UM, entre os 1 e os 2 anos de idade, apenas se contabilizaram, no período em análise, 41 internamentos em que a covid-19 foi considerada a responsável directa pela hospitalização, independentemente das comorbilidades pré-existentes. Somente um destes bebés esteve em UCI.
No extenso grupo etário dos 2 aos 17 anos – que agrupam mais de 1,5 milhões de jovens – contam-se somente 259 internamentos “directos” por covid-19, dos quais 18 necessitaram de internamento em UCI, mas nem todos entubados. Nenhum destes jovens e crianças morreu.
Nascido em 2019, o SARS-CoV-2 deixou, até agora, muito mais do que as cerca de 5,45 milhões de mortes. Ao entrar pelo quarto ano da sua existência confirmada (2019, 2020, 2021 e 2022), a covid-19 transformou o Mundo em algo diferente, atulhado em pânico e medo, em medidas cada vez mais autoritárias mesmo em países democráticos, acentuando a falta de solidariedade dos países ricos com os pobres, e a Ciência – esse outrora bastião do conhecimento dinâmico e do perpétuo questionamento – por bolandas anda agora, ora demonstrando ser a solução, ora rodando ao sabor dos interesses financeiros, ora rodopiando pelos circunstancialismos políticos.
No novo mundo distópico, o ano 2022 anuncia-se incerto, e despediu-se de um ano de 2021, que terminou paradoxal. O PÁGINA UM mostra como, através de uma análise detalhada à situação pandémica na Europa, incidindo sobre os países da União Europeia, onde também se incluiu, neste lote o Reino Unido.
Quase com dois anos completos de uma pandemia em pleno, que já atingiu 290 milhões de pessoas, mesmo com vacinas supostamente milagrosas a proteger 48% da população mundial, os últimos dias de 2021 mostraram novos recordes de casos positivos. A culpa – pelo que argumenta a esmagadora maioria dos políticos – justifica-se pelos não-vacinados e pela nova variante Ómicron, mas a evidência mostra outras realidades.
A vacina acabou por não apresentar o desempenho prometido – e muito menos na inicialmente prometida capacidade de criar imunidade de grupo. A duração da protecção também se mostrou demasiado curta. Por outro lado, a suposta elevada transmissibilidade da variante Ómicron trouxe o resto: o ritmo de testagem subiu para níveis quase estratosféricos na última semana. Em Portugal, por exemplo, o máximo de testes por dia em 2020 foi ligeiramente inferior a 60 mil. Ao longo dos 11 primeiros meses de 2021 nunca superou a centena de milhar. No passado dia 30 de Dezembro foram feitos 402.756 testes.
Mais testes sempre darão mais casos em termos absolutos, sabendo-se que uma parte significativa das pessoas infectadas não apresenta sequer sintomas, pelo que somente uma testagem massiva a apanharia. A nível mundial, em termos de média móvel de sete dias, o dia 31 de Dezembro passado registou 1.323.362 casos positivos– um valor jamais antes alcançado desde o início da pandemia. Fogo fátuo, mesmo tendo em conta o desfasamento entre casos e eventuais desfechos fatais. Com efeito, nesse dia, os óbitos contabilizados à escala mundial foram apenas de 5.919 – o valor mais baixo desde 24 de Outubro de 2020 –, evidenciando a consistente tendência decrescente da mortalidade por covid-19 desde finais de Agosto. Em contra-ciclo com aquilo que ocorrera no ano anterior.
De facto, em contraste com o dia homólogo de 2020 (com 11.768 óbitos), o último dia de 2021 registou metade do número de mortes. Mais relevante se mostra essa tendência decrescente por ocorrer com a chegada do Inverno no Hemisfério do Norte – onde vive 87% da população mundial.
Taxa de vacinação e óbitos por covid-19 em 28 de Dezembro de 2021 (padronizada à população portuguesa, e média móvel de 7 dias). Fontes: Worldometers e Our World in Data.
Recorde-se que o Inverno de 2020-2021 registou um padrão muito similar ao que ocorre com as épocas gripais, independentemente de mostrar um maior impacte. As infecções e a mortalidade por covid-19 começaram a subir, de forma consistente, a partir de Outubro, e agravou-se em Janeiro de 2021, com o pico de óbitos a nível mundial a ser atingido a 28 daquele mês (14.815, em média móvel de sete dias).
Analisando a situação dos países da União Europeia – incluindo, neste lote, ainda o Reino Unido –, e tendo como referência a média móvel de sete dias em 28 de Dezembro, confirma-se, de uma forma ainda mais marcante, a falta de “sintonia” entre casos de infecção e mortes, o que pode, afinal, evidenciar a transição da pandemia para a endemia. Ou seja, mais infecções por um vírus menos letal.
Com efeito, para o período de referência, observa-se que apenas a Espanha, Suécia, Roménia, Letónia, Hungria e Eslovénia apresentavam uma menor incidência (percentagem de casos positivos na sua população) em 2021 do que em 2020. Em alguns casos, a subida foi enorme. Por exemplo, a Grécia tinha uma incidência de 0,07% em 2020 e era de 1,0% em 2021, enquanto na Irlanda aumentou mais de 10 vezes: passou de 0,34%, em 2020, para 3,74%, em 2021. No entanto, a Finlândia – que é, de entre os países da União Europeia, aquele com menor impacte da pandemia em termos de mortalidade – registou nas últimas semanas um aumento muito significativo dos casos positivos. Se em 2020 este país escandinavo tinha, no período em análise, apenas 0,16% da sua população infectada, agora está com 3,48%, sendo apenas ultrapassada pela Irlanda.
Em termos gerais, quase todos os países em análise registavam, no final de 2021, mais de 1% da respectiva população infectada. As únicas excepções eram a Suécia (0,98%), a Eslováquia e a Lituânia (0,91%, ambas), a Alemanha (0,86%), Eslovénia (0,80%), a Espanha (0,58%), a Letónia (0,57%), a Croácia (0,55%) e a Áustria (0,32%). No outro extremo, cinco países contabilizavam 3% ou mais da população infectada: Chipre (3,79%), Finlândia (3,48%), Irlanda (3,74%), Reino Unido (3,21%) e Bélgica (3,00%). Ao invés, em período homólogo de 2020, apenas a Espanha (2,11%) tinha mais de 2% da população infectada, registando-se mesmo 21 países com menos de 1%, dos quais nove abaixo dos 0,5% (Finlândia, Grécia, Malta, Roménia, Áustria, Croácia, França, Alemanha e Irlanda).
Incidência cumulativa desde o início da pandemia e mortes por covid-19 em 28 de Dezembro de 2021 (padronizada à população portuguesa, e média móvel de 7 dias). Fontes: Worldometers e Our World in Data.
Embora haja um desfasamento temporal entre um pico de casos e a ocorrência de um pico de óbitos – geralmente, duas semanas –, a “agressividade” do SARS-CoV-2 aparenta agora ser francamente menor.
Note-se, porém, que se deve ter em consideração que a política de testagem de assintomáticos tende, em princípio, a diminuir a taxa de letalidade, sobretudo se se concentra em população jovem, onde a gravidade da doença foi sempre estatisticamente irrelevante.
Com efeito, padronizando os óbitos de todos os países da União Europeia (mais Reino Unido) à população portuguesa – de modo a se ter uma melhor percepção comparativa da actual situação pandémica na Europa –, constata-se uma redução quase generalizada, e muito significativa, das mortes no final de 2021 em relação ao final de 2020. De facto, apenas a Grécia, a Polónia e a Hungria apresentavam nos últimos dias de 2021 uma situação pior do que em período homólogo de 2020.
A norma foi uma descida muito significativa. A maior redução relativa registou-se no Luxemburgo, um pequeno país de 630 mil habitantes. No final de 2020, os óbitos diários (padronizados à população portuguesa) foram 84; no final de 2021 nenhum. Outras reduções muito relevantes (superiores a 60%) observam-se em Portugal (71 óbitos em 2020 vs. 14 em 2021), no Reino Unido (70 vs. 11), na Suécia (95 vs. 2), Bélgica (81 vs. 23), Áustria (86 vs. 20), Itália (78 vs. 24), Malta (66 vs. 21), Eslovénia (148 vs. 40).
Note-se, porém, que em alguns destes países, sobretudo no Leste europeu, verificou-se um pico muito relevante de mortalidade em Novembro, seguido de uma descida abrupta.
Em todo o caso, aparentando ser um padrão sobretudo regional, a mortalidade atribuída à covid-19 ainda atingia valores elevados no final de 2021 na parte oriental da Europa.
Incidência cumulativa e taxa de mortalidade por covid-19 desde o iníco da pandemia. Fontes: Worldometers e Our World in Data.
Numa altura em que os óbitos por esta doença em Portugal se situavam nos 14 por dia (média móvel de sete dias), três países superavam os 100 óbitos diários (padronizados à população portuguesa): Croácia (129), Hungria (126) e Polónia (111). Mais cinco registavam mais de 50 óbitos: Bulgária (97), Eslováquia (96), Lituânia (77), Grécia (70) e Letónia (59).
A influência directa da vacinação na letalidade da covid-19 nos diversos países europeus tem sido uma discussão recorrente nos últimos meses. Ou seja, será que os países com maior taxa de vacinação automaticamente registarão uma menor mortalidade?
Essa suposta evidência colocou-se sobretudo durante o mês de Novembro do ano passado, quando o Leste europeu foi “varrido” por um número inusitado de casos, enquanto os países ocidentais continuavam num Outono bastante ameno em termos de infecções e mortes.
Porém, nessa “evidência” havia sempre um aspecto esquecido: a partir de níveis razoavelmente elevados de taxa de vacinação – dir-se-ia acima dos 60% da população do país –, mostra-se admissível supor que a quase totalidade das pessoas idosas e vulneráveis estarão já vacinadas. Recorde-se que, por norma, entre 25% e 30% da população de um país europeu tem mais de 65 anos, e é esta a faixa etária mais vulnerável à covid-19 e com prioridade na vacinação.
Se se considerar os últimos dias de 2021, a relação directa entre a taxa de vacinação (com duas doses) e os óbitos por covid-19 (padronizados à população portuguesa) já não parece muito evidente. Na aparência os países com menor taxa de vacinação têm mais óbitos, mas existe também, de uma forma bastante clara, um padrão regional: Leste europeu tem mais mortes do que o Oeste europeu. Qual o factor que conta mais?
Além disso, existem muitas excepções. Por exemplo, a Roménia, o Chipre e mesmo a Eslovénia estavam, no final de 2021, com níveis de mortalidade relativamente baixos, mas ainda com taxas de vacinação da população abaixo dos 65%. A Roménia, apesar de ter apenas 40,1% da sua população vacinada, apresentava mortalidade abaixo de seis países com taxas de vacinação superiores a 70%.
Um outro aspecto interessante de observar é a evolução da pandemia na Europa desde 2020, e de como a maior ou menor incidência cumulativa nos diversos países se repercutiu em termos de mortalidade acumulada e actual por esta doença.
Convém notar que estas comparações devem ser observadas com algumas reticências, por três razões. Primeiro, a incidência da covid-19 dependeu das distintas medidas não-farmacológicas adoptadas pelos diversos países, e da sua verdadeira eficácia, e também das respectivas estratégias de detecção das infecções (maior ou menor testagem de assintomáticos). Segundo, a introdução da vacinação, e a sua eficácia, pode ter alterado, de uma forma mais ou menos significativa, a taxa de letalidade ao longo do período pandémico. Terceiro, ignora-se ainda, em grande medida, a relevância de factores ambientais ou mesmo populacionais (ou sociais) que possam determinar uma menor ou maior mortalidade.
Ponderado tudo isto, uma coisa parece certa: uma menor incidência cumulativa não constituiu, até agora, uma garantia de baixa mortalidade na população, nem ao longo da pandemia nem em relação à situação mais recente.
Mas antes de dissecar esta questão, talvez seja mais importante relevar primeiro que o SARS-CoV-2 atingiu de forma muito distinta o continente europeu. Considerando a população respectiva dos 28 países em análise, a incidência vai desde os 4,3% na Finlândia até aos 23,1% da República Checa (ou seja, quase um em cada quatro checos tiveram covid-19 em menos de dois anos). Portugal regista 12,9% – isto é, quase 1 em cada 8 pessoas teve um teste positivo. Em todo o caso, a maioria dos países apresenta incidências relativamente próximas: 18 países estão com este rácio entre os 12,5% e os 18,5%.
O senso comum diria que uma menor incidência resultaria, de imediato, numa menor mortalidade. O caso da Finlândia aparenta indiciar isso. Com apenas 4,3% da sua população com teste positivo desde o início da pandemia, a taxa de mortalidade por covid-19 é, até agora, a mais baixa da União Europeia: 2,8 por 10.000 habitantes. Porém, este país escandinavo é uma excepção.
Taxa de vacinação e incidência em 28 de Dezembro de 2021 (média móvel de 7 dias). Fontes: Worldometers e Our World in Data.
De facto, alguns países com incidência cumulativa relativamente baixa (em comparação aos outros países) apresentam taxas de mortalidade muito mais elevada. São os casos, sobretudo, da Roménia (terceiro país com menor incidência, mas quarto com maior taxa de mortalidade), da Bulgária (sexto país com menor incidência, mas com a pior taxa de mortalidade) e da Hungria (décimo com menor incidência, mas a segunda pior taxa de mortalidade).
Portugal – com uma incidência de 12,9% (12º maior no grupo de 28 países em análise) e uma taxa de mortalidade de 12,9 óbitos por 10.000 habitantes (17ª posição) – encontra-se numa situação intermédia.
Existem muitos factores que podem explicar a ausência de relação directa entre incidência e mortalidade causada pelo SARS-CoV-2. Por um lado, a incidência pode ser muito distinta entre grupos etários, o que produz efeitos muito distintos. Ou seja, enquanto 1.000 casos positivos no grupo dos mais idosos pode resultar em muito mais de 100 óbitos, o mesmo número em jovens terá consequências irrelevantes, ou mesmo nulas.
Nesse aspecto, a maior ou menor incidência da doença nos idosos, e particularmente nos lares, é um aspecto determinante para o impacte da doença em cada país. Além disso, cada país – e mesmo nas distintas regiões de um mesmo país – registaram-se níveis distintos de resposta à pandemia, incluindo ao nível do tratamento hospitalar, com efeitos directos muito relevantes na mortalidade.
Por fim, a incidência cumulativa desde o início da pandemia não aparenta ser relevante nos níveis de mortalidade por covid-19 no período mais recente. Com referência aos óbitos de 28 de Dezembro de 2021 (média móvel de sete dias), e padronizados à população portuguesa, não se observa de forma directa um padrão de menor mortalidade nos países com maior incidência cumulativa desde o início da pandemia.
A Croácia é o país que apresenta maior mortalidade na União Europeia (129 óbitos padronizados no dia 28 de Dezembro), mas contava já com 17,3% da sua população com teste positivo à covi-19. A República Checa, o país com maior incidência cumulativa na União Europeia (23,1%), apresentava mesmo assim o 9º valor mais elevado de mortalidade (58 óbitos).
A unidade de saúde de Cascais, integrada no SNS, mas gerida pelo Grupo Lusíadas, registou o pior desempenho no controlo de infecções hospitalares durante o primeiro ano da pandemia. O risco de morte de doentes com covid-19 que desenvolveram sépsis triplica em comparação com os outros. O ex-director da Visão, Pedro Camacho, foi uma das vítimas mortais.
O Hospital de Cascais recebeu em Dezembro do ano passado um destaque da Federação Internacional dos Hospitais – ficando integrado numa lista de 103 unidades de saúde mundiais que prestariam “serviços de excelência no combate à pandemia” –, mas estava então a atravessar, no denominado “covidário”, um surto de septicémia – uma gravíssima infecção geralmente nosocomial (de origem hospitalar) da corrente sanguínea – que se prolongaria até Fevereiro deste ano.
Na esmagadora maioria dos casos desta infecção de elevada letalidade – associada, em parte, a deficiências de higienização hospitalar – não foi identificada a bactéria na sua origem. Existem, porém, vários registos de sépsis causada por Escherichia coli, Staphylococcus aureus, pseudomonas e enterococos.
De acordo com registos anonimizados do Hospital de Cascais, a que o PÁGINA UM teve acesso, contabilizam-se 119 doentes internados com covid-19 que desenvolveram sépsis entre Março de 2020 e Abril deste ano. Grande parte destes doentes eram idosos (mediana de 73 anos), havendo 78 homens e 41 mulheres. O mais novo doente tinha 31 anos e o mais idoso contava 98. Ao longo destes 14 meses, no decurso dessas altamente letais infecções, acabariam por morrer 72 destes doentes, mas a covid-19 ficou com a “culpa” exclusiva.
Hospital de Cascais é gerido em PPP pelo Grupo Lusíadas Saúde.
O impacte de uma sépsis num doente-covid – tal como em outros doentes internados com o sistema imunitário debilitado – é geralmente devastador, tanto mais que a sua evolução é “silenciosa”, e muitas das bactérias causadoras são multirresistentes a antibióticos.
No caso particular dos doentes-covid internados no hospital de Cascais, a taxa de mortalidade daqueles que não tiveram sepsis foi de 19%; com sépsis subiu para 61% – ou seja, três vezes mais.
Considerando a totalidade dos hospitalizados por covid-19 em Cascais entre Março de 2020 e Abril de 2021 (cerca de 1.400 doentes), a probabilidade de desenvolver sépsis foi de 8%. A nível nacional, segundo apurou o PÁGINA UM, a esmagadora maioria dos hospitais do SNS registou uma taxa de prevalência de sépsis a rondar os 2%. Ou seja, a prevalência, ou risco, nesta unidade de saúde da Grande Lisboa foi quatro vezes superior.
Os casos fatais de sépsis no “covidário” do Hospital de Cascais começaram desde o início da pandemia, sempre em enfermaria – isto é, não estiveram associados às unidades de cuidados intensivos (UCI) –, mas em número diminuto. A situação agudizou-se sobretudo em Novembro do ano passado. Nesse mês já se registaram cinco mortes de doentes-covid associadas a sépsis – em parte de pessoas ainda internadas em Outubro. A partir de Dezembro aumentaram ainda mais. No último mês de 2020 contabilizaram-se nove óbitos, subindo para 15 em Janeiro deste ano. Em Fevereiro fixaram-se em 12.
Nos meses seguintes, em parte também pela redução significativa dos internamentos, os óbitos associados à sépsis em doentes-covid desceram para seis e dois, respectivamente em Março e Abril.
Uma das vítimas destes surtos no Hospital de Cascais terá sido o conhecido jornalista Pedro Camacho, ex-director da Visão e então director de inovação e novos projectos da Lusa. Falecido em 5 de Dezembro de 2020, após um longo internamento de cinco semanas por covid-19, as notícias de diversos órgãos de comunicação social – como o Público e o Expresso – revelaram que o seu estado clínico se agravara fatalmente “por duas infecções causadas por bactérias hospitalares”. Foi, no entanto, considerado um óbito por covid-19.
Registo de doentes-covid com sépsis por data de início de internamento e número de óbitos.
O PÁGINA UM apurou que, de facto, após ter sido internado no Hospital de Cascais em 29 de Outubro do ano passado, Pedro Camacho sofreu diversas complicações não directamente associada à covid-19, entre as quais duas septicémias distintas, incluindo um choque séptico.
Os dados anonimizados que o PÁGINA UM consultou não permitem identificar em concreto as datas de detecção destas infecções nosocomiais, mas, mesmo que tal fosse possível, não seriam obviamente aqui reveladas.
Em parte por ter sido um período crítico de internamentos, e de ainda estar em curso um problema de higienização, o mês de Janeiro deste ano foi aquele com maior número de internados por covid-19 que desenvolveram depois sépsis. No total contabilizaram-se 31 casos, mais 13 do que em Dezembro de 2020 e mais 14 do que em Fevereiro deste ano. Em Março e Abril, os casos passaram a ser pontuais. A partir desse período, o PÁGINA ainda não conseguiu obter mais dados.
Oficialmente denominado Hospital de Cascais Dr. José de Almeida, esta unidade de saúde é gerida pelo Grupo Lusíadas Saúde, através de uma parceria público-privada (PPP) desde 2010. Este contrato deveria terminar dentro de dias, no final deste mês, mas foi prolongado por mais um ano por Resolução do Conselho de Ministros com um custo máximo para o erário público de 80 milhões de euros.
Recorde-se, no entanto, que em Maio deste ano, em comunicado, Lusíadas Saúde anunciara não estar interessada em concorrer ao novo concurso de gestão no âmbito da PPP nos moldes estabelecidos num despacho de Maio do ano passado dos Ministérios das Finanças e da Saúde, por não ser possível “construir uma proposta sustentável que assegure a qualidade e excelência de cuidados que pautam a atuação do Grupo”.
O PÁGINA UM enviou um conjunto de seis questões à administração do Hospital de Cascais, presidida por José Bento, mas não obteve qualquer reacção.
Nunca é tema fácil, mas acaba por ser reconfortante saber que a perda prematura de bebés, crianças e adolescentes é cada vez mais rara. A evolução médica e das condições de vida transformaram um triste “hábito” ancestral – pais a assistirem à morte de filhos – numa raridade. No momento em que, muito por pânico, dezenas milhares de pais anseiam por vacinar as suas crianças contra a covid-19 – que ainda não matou nenhuma em Portugal –, o PÁGINA UM analisa um tema pouco apetecível mas necessário para um debate sobre Saúde Pública, e onde se revela que a gripe e as pneumonias, apesar de muito pouco frequentes, já causaram mais “baixas” nos mais jovens do que o SARS-CoV-2.
Neste fim-de-semana, os pais de cerca de 77 mil crianças portuguesas correram a vacinar os seus filhos contra a covid-19. Correram, em sentido literal, porque a esmagadora maioria acha que estão em perigo de vida.
Uma questão inquietante, no meio deste movimento social de forte pendor psicológico, e que levou muitos progenitores à beira de um ataque de pânicos, ou de nervos, deve ser colocada: esse perigo, decorrente de um risco, é real?
A resposta é fácil: não.
Neste momento, o risco de uma criança dos 5 aos 11 anos de morrer por covid-19 é zero, porque o risco é uma probabilidade. Até agora, desde a chegada do SARS-CoV-2 ao território nacional em Março de 2020, a pandemia não matou qualquer criança (entre os 5 e os 11 anos), o grupo agora prioritário no programa vacinal. As taxas de internamento situam-se em números baixíssimos: 0,2% dos casos positivos, segundo dados da Direcção-Geral da Saúde.
Não há, porém, risco zero absoluto. Donde existe uma incerteza quanto ao futuro. E pode sempre dizer-se que pode (ou não) ocorrer mortes de crianças dos 5 aos 11 anos, se até já se registaram três mortes de menores de idade: dois recém-nascidos e um bebé de quatro anos. Mas todos com gravíssimas comorbilidades.
Poder, pode sempre. Ou não. Na verdade, pode sempre especular-se, mas até aí deve fazer-se com algum critério científico. Uma doença não deve ser olhada apenas em si mesma, mas também na pessoa que “ataca”, sobretudo porque a incidência e a letalidade variam. Por exemplo, no caso da covid-19 não é a mesma coisa estar a investir para se evitar uma infecção em crianças ou em idosos. Mil infectados com mais de 85 anos não-vacinados resulta, segundo dados oficiais, em 15% de mortes; no caso de menores de idade é necessário usar três casas decimais para evitar o 0%.
Sendo certo que uma vida é uma vida, outra questão mais perturbadora tem, em todo o caso, e obrigatoriamente, que se colocar: deve lutar-se com todas as “armas”, a todo e qualquer custo, para salvar mais de 600 mil crianças de um desfecho fatal que é um pouco mais do que hipotético?
A resposta é também deveria ser simples, mas foi complexificada com a covid-19. Uns defendem que sim; outros que não. Qualquer que seja, tem que haver sempre um “mas”.
Com efeito, qualquer decisão para um programa vacinal deveria ter em consideração não apenas o risco absoluto de uma doença, mas também o seu risco comparativo em relação a outras doenças. Ora, a covid-19 até pode hipoteticamente matar, mas será a única com “capacidade” de tirar uma vida a quem agora começou essa “viagem”? Ou seja, será que, tendo em consideração as limitações da vacina contra a covid-19, se justifica priorizar a vacinação quando existem outras doenças que até matam, e onde haveria melhor retorno (em vidas) com maior investimento?
Para haver esse debate teria de se conhecer melhor um tema tabu: as mortes dos recém-nascidos, bebés, crianças e jovens adolescentes, para em seguida saber qual a margem de melhoria que se tem. E o que é necessário fazer, se for possível.
Uma evolução espectacular
Não é um tema particularmente delicioso e atraente, confessa-se. Mas é necessário conhecer-se, saber-se. Até para enquadrar a covid-19 na sua verdadeira dimensão em relação aos mais jovens. E para saber se se justifica todo o pânico criado nos últimos meses junto dos pais e da sociedade em geral.
Mas o PÁGINA UM meteu mãos à obra neste pouco apetecível tema, e foi desvendar como tragicamente podem morrer as crianças em Portugal, e também como tem sido a evolução nas últimas décadas e nos anos mais recentes.
Comece-se então por uma boa notícia: nunca como nos últimos anos – e anos desta pandemia incluídos – se perderam tão poucas vidas de bebés, crianças e adolescentes jovens.
Na verdade, seguindo a feliz tendência de decréscimo da mortalidade nestas faixas etárias, fruto da melhoria dos diagnósticos de detecção de malformações, da evolução da medicina – incluindo a proliferação de programas vacinais eficazes e comprovadamente seguros – e da melhoria das condições de vida, Portugal apresenta invejáveis indicadores de saúde. Encontra-se no clube dos países, quase todos europeus, com melhores indicadores de saúde, medidos por taxas de mortalidade. Neste aspecto, Portugal consegue estar muito melhor do que países mais ricos, como os Estados Unidos.
Evolução da taxa de mortalidade (óbitos por 1.000 nascimentos) neonatal e infantil em Portugal entre 1970 e 2019 (Fonte: UNICEF)
Por exemplo, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o nosso país apresentou em 2019 uma taxa de mortalidade neonatal de dois óbitos por 1.000 nascimentos. Os Estados Unidos tinham praticamente o dobro (3,7) e o Brasil quatro vezes mais (7,87). Países como a Índia e Angola estavam noutro “desgraçado campeonato”: no país asiático morreram quase 22 em cada 1.000 bebés, enquanto no país africano 28.
Nas idades subsequentes, esta relação mantém-se similar. Os últimos dados da UNICEF colocam Portugal também no “primeiro mundo”, com taxas muito baixas de mortalidade infantil (3,05 óbitos até aos 5 anos por 1.000 nascimentos) e de crianças e jovens adolescentes (0,78 óbitos entre os 5 e os 14 anos por 1.000 crianças com 5 anos). Neste último indicador, os Estados Unidos apresentam quase o dobro desta taxa (1,37) e o Brasil três vezes mais.
Se os pais portugueses com crianças e adolescentes podem dormir mais descansados do que os norte-americanos, e ainda mais em comparação com os dos países menos desenvolvidos, então nem vale a pena recuar para o tempo dos respectivos pais e avós. E muito menos olhar para passados longínquos. Em finais do século XIX, por exemplo, a taxa de mortalidade infantil chegava a ultrapassar os 30% – ou seja, havia 300 mortes em cada 1.000 nascimentos. O risco de um bebé morrer naquela altura era pelo menos 100 vezes superior ao dos nossos dias. Eram outros tempos.
Porém, mesmo nos tempos modernos, chamemos assim, a morte esteve bem mais presente sobre os berços e pequenas camas do que hoje. Em Portugal, a taxa de mortalidade neonatal era em 1970 de 23,7 em 1.000 nascimentos, ou seja, 12 vezes superior à de 2019. No caso da taxa de mortalidade infantil, a descida foi ainda mais acentuada: em 1970 situava-se nos 55,7 óbitos por 1.000 nascimentos – significando que quase 6 em cada 100 crianças sucumbiam antes de perfazerem 5 anos –, enquanto agora está em aproximadamente três óbitos em 1.000 nascimentos.
Evolução da taxa de mortalidade (óbitos por 1.000 crianças com 5 anos) no grupo etário 5-14 anos em Portugal entre 1900 e 2019 (Fonte: UNICEF)
Embora a UNICEF não apresente dados anteriores a 1990 para a taxa de mortalidade no grupo etário dos 5 aos 14 anos, a evolução nas últimas três décadas impressiona: passou de 3,9 óbitos em 1.000 crianças (com 5 anos) para apenas 0,8. Estamos a falar de uma descida de 80% numa taxa de mortalidade já então bastante baixa em 1990.
Em Portugal, a pandemia da covid-19 trouxe, quer directa quer indirectamente, praticamente zero impacte na sobrevivência de bebés, crianças e jovens adolescentes. Ou mesmo talvez tenha trazido um paradoxal benefício. Com efeito, em 2019 morreram 265 bebés com menos de um ano, e no ano passado apenas 214. Este ano, até 17 de Dezembro, foram registados 183 óbitos, devendo assim ser o ano menos mortífero em termos absolutos desde que há registos estatísticos.
O número de óbitos na faixa etária seguinte – entre 1 e 4 anos – deverá em 2021 ser ligeiramente superior ao ano passado (53 mortes), mas ainda inferior a 2019. Nesse ano registaram-se 87 mortes neste grupo, enquanto este ano, até 17 de Dezembro, já se registaram 53.
Apenas no caso do grupo etário das crianças entre os 5 e os 14 anos se verificará previsivelmente um ligeiro agravamento em relação ao período de 2019. Neste momento, os anos de 2021 e 2019 contabilizam o mesmo número de desfechos fatais em crianças, o que significa que, pelas lamentáveis leis na probabilidade, o presente ano terminará com um pouco mais de 90 óbitos neste grupo etário. Em todo o caso, no primeiro ano da pandemia, em 2020, tinha-se registado um número bastante baixo de óbitos (apenas 75).
Enfim, mesmo num período distópico em que nunca se falou tanto em morte, “que se tenha noção” – como diria, embora noutra circunstância, o jornalista da SIC Rodrigo Guedes de Carvalho – de que se antes era frequente os pais verem filhos morrer, agora esses pais, como avós, raramente assistem a um desfecho fatal dos seus netos.
Sempre más, mas raras
Sigamos para a parte mais lamentável deste longo artigo: as causas das sempre e mais compreensivelmente tristes mortes de bebés, crianças e jovens adolescentes. Defenda-se, contudo, desde já que sendo certo serem todas as horas de vida importantes para todas as pessoas de todas das idades – como defendeu o vice-almirante Gouveia e Melo –, a razão dirá, se não se quiser ser populista ou demagógico, que as muitas e muitas horas já vividas por um idoso a morte não as tirará. Porém, ceifando a morte uma criança, muitas e muitas horas de vida, e de esperança, serão perdidas por aqueles que mereciam chegar a velho, tendo uma vida plena. Triste não é ser velho: triste é não chegar a velho.
Não por acaso, aliás, os estatísticos – sempre classificados de insensíveis – usam um indicador aparentemente frio, mas que mostra bem o estado das políticas de saúde de um país: a taxa de anos perdidos por 100.000 habitantes. Quem deixa morrer as suas crianças, por um lado tem menos gente a chegar a velha, e a que chega maltratada será até à morte.
Enfim, mas afinal, vejamos, em concreto, quais são as malfadadas doenças e enfermidades que ainda matam, por ano, algumas centenas de bebés e várias dezenas de crianças e jovens adolescentes – ao contrário da covid-19, que, em abono da verdade, e apesar do alarme social ceifou três vidas de menores de idade em quase dois anos.
De acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), nos últimos cinco anos com registos (2015-2019) faleceram 1.314 bebés com menos de um ano. A parte substancial destas mortes são derivadas de afecções originadas no período perinatal (775) – que corresponde ao período entre as 22 semanas de gestação e a primeira semana após o nascimento – ou de malformações congénitas de anomalias cromossómicas (313). Por causas mal definidas foram reportados 41 óbitos.
Em todo o caso, estas mortes – que se diriam quase inevitáveis – têm registado um decréscimo acentuado, em parte como reflexo da melhoria na detecção de malformações em ecografias e outros diagnósticos complementares durante as gravidezes, mas também pela evolução da medicina.
Com efeito, os óbitos perinatais eram ainda bastante elevados há algumas décadas. Por exemplo, em 1989 contaram-se 1.919 óbitos perinatais, segundo dados do INE, mas desde 1997 baixaram a fasquia dos mil. Em 2019 já foram apenas 104, o que representa uma evolução positiva espantosa.
Por outro lado, torna-se notório que algumas afecções graves já não matam agora tantos bebés como no início do século XXI, mesmo se os primeiros 12 meses de vida continuam a ser “delicados”. Na verdade, a taxa de mortalidade nestes “primeiros passos” é similar à das pessoas com 51 anos.
Se se comparar as causas dos óbitos infantis em 2002 com os registados em 2019 constata-se uma redução muito significativa naqueles associados à duração da gravidez e ao crescimento fetal (passaram de 83 para apenas oito), à hipoxia intra-uterina e asfixia ao nascer (passaram de 49 para 3) e a uma infinidade de outras enfermidades ou malformações congénitas. Segundo os dados do INE, os óbitos infantis entre aqueles dois anos reduziram-se de 580 para 255. Convém referir, no entanto, que no início do presente século nasciam ainda mais de 110 mil crianças por ano, cerca de 40% superior ao número que se registará este ano. De facto, tendo em conta os nascimentos até Outubro, nascerão este ano menos de 80 mil bebés, o valor mais baixo desde que meados do século XIX.
Se excluirmos as causas decorrentes de malformações e doenças congénitas fatais nos primeiros meses, os óbitos de bebés com menos de um ano são cada vez mais uma raridade. No quinquénio 2015-2019, as doenças do sistema nervoso e dos órgãos encabeçam o grupo de enfermidades mais fatais, embora com um número muito baixo: 36 óbitos, o que representa cerca de sete por ano. Seguem-se as doenças do aparelho respiratório (29, no quinquénio), das quais 16 por pneumonia. Isto é, a pneumonia causou, em média anual, a morte de três menores de um ano – um valor muito baixo, mas superior ao registado para a covid-19 na mesma faixa etária.
As causas externas – grosso modo, ferimentos de origem diversa – são outra relevante causa de morte, no período analisado, com 41 óbitos. Destes, 23 deveram-se a acidentes (ou suas sequelas), dos quais quatro foram acidentes de transporte. Houve também três mortes por agressão.
Ultrapassado o primeiro ano de vida – em que as malformações mais graves acabam lamentavelmente por levar os mais infelizes na “sorte da vida” –, os óbitos decaem bastante na faixa etária até aos quatro anos: apenas 300 registos no quinquénio 2015-2019. E começam então a ganhar preponderância relativa outras causas, embora seja importante não esquecer que este grupo etário não pode ser comparado directamente com os bebés menores de um ano, uma vez que agregando crianças de 1, 2, e 4 anos – ou seja, é um grupo etário de quatro vezes superior. E há outro factor: os menores de um ano são muitíssimo mais frágeis. Mas mesmo muito mais.
Se seguirmos as tábuas completas de mortalidade do INE, em cada 100.000 crianças nascidas nos anos mais recentes, 99.703 ultrapassaram o primeiro ano de vida – ou seja, a taxa de mortalidade é de 0,30%. Já entre o primeiro e o segundo ano de vida, essa taxa desce muito: em 100.000 bebés com 1 ano, 99.968 completam o segundo ano de vida – ou seja, a taxa de mortalidade já só é de 0,032%. E continua a descer até estabilizar em redor dos cinco anos, aumentando a partir daí, mas até à próximo da idade da reforma com grande suavidade.
Por exemplo, aos 20 anos, a probabilidade de se chegar aos 21 anos continua a ser quase total: 99,98% alcançam essa meta, o que significa uma taxa de mortalidade de 0,02%. Aos 30 anos essa taxa continua quase inalterada, situando-se em 99,96%. E aos 40 anos é de 99,91%. Somente a partir dos 67 anos, a taxa de sobrevivência ao fim de um ano fica abaixo dos 99%, embora no caso das mulheres essa fasquia ocorra em idade mais avançada. Os homens, apesar dos músculos, são na verdade o sexo fraco em termos de sobrevivência.
Depois dos 70 e sobretudo dos 80 anos, convenhamos que a vida começa então a andar para trás. Por cada 1.000 idosos com 80 anos haverá cerca de 38 que não chegam aos 81. E por aí fora, crescendo abruptamente à medida que se ultrapassa a esperança média de vida. Dos felizardos que chegam aos 100 anos – na verdade, apenas 0,62% das pessoas que nasceram há 100 anos –, as probabilidades já são muito tramadas: um pouco mais de metade (52%) não vai festejar o próximo aniversário.
Mas voltemos à infância. E às malfadadas mortes dos mais pequeninos, até aos quatro anos. Embora praticamente já todos sobrevivam, o INE ainda contabilizou 300 mortes ao longo de todo o quinquénio 2015-2019. Todas contam, apesar de, em abono da verdade, constituírem eventos trágicos muito raros face ao período (cinco anos) e à população abrangida (cerca de 425 mil pessoas).
Sendo certo que nesta faixa etária (1-4 anos) as malformações e outras causas congénitas ou mal definidas continuam, em conjunto, a ser o principal risco de morte – embora com apenas por 70 óbitos no quinquénio em análise –, os tumores infantis sobressaem. Entre 2015 e 2019 sucumbiram 57 neste grupo etário. No caso de leucemias – sempre uma temida e mediática doença nestas idades, mas muitíssimo rara – registaram-se 21 mortes neste período.
Os acidentes e suas sequelas seguem atrás: 55 óbitos no quinquénio – ou cerca de 10 por ano. De entre estas, o INE reporta 17 mortes por acidentes de transporte e cinco por agressões. As doenças do sistema nervoso e afins causaram, neste grupo, 32 mortes, enquanto as doenças do aparelho respiratório provocaram 20 óbitos.
Curiosamente, três dessas mortes no quinquénio foram directamente por gripe (influenza) e 10 por pneumonias. Mesmo considerando-se que estamos perante um período de cinco anos – e os “danos” destas doenças respiratórias são baixíssimos em termos relativos –, estramos perante números superiores aos da covid-19. Recorde-se que nunca houve qualquer programa intensivo de vacinação contra a gripe em crianças, sendo que apenas em casos especiais (comorbilidades graves se recomenda, sem alarido, a toma de vacina). E relembre-se ainda que em quase dois anos, a infecção causada pelo SARS-CoV-2 foi considerada como responsável pela morte de uma única criança de quatro anos.
Os desfechos demasiado precoces da vida de crianças e jovens adolescentes (grupo etário dos 5 aos 14 anos) são também, felizmente, muito escassos. O INE aponta 452 óbitos entre 2015 e 2019, ou seja, menos de uma centena por ano. Os tumores representaram 30% do total. As leucemias causaram 42 mortes nestes cinco anos, embora este grupo etário ronda as 850 mil pessoas.
Os acidentes, embora também muito raros, constituem um risco relevante nestas idades. No período em análise, faleceram 99 crianças e adolescentes deste grupo etário, dos quais 38 de acidentes de transporte e sete de agressões. Embora com um valor estatisticamente residual, impressiona saber-se que entre 2015 e 2019 houve seis crianças e/ou adolescentes desta faixa etária que morreram por “lesões autoprovocadas intencionalmente”.
Por outro lado, as malformações congénitas como causa de morte perdem peso neste grupo, o que se mostra compreensível, uma vez que os casos mais graves têm desfechos fatais em idades mais jovens. Em todo o caso, os dados do INE revelam a ocorrência de 45 óbitos resultantes deste tipo de afecções naquele quinquénio.
Menos letais neste grupo etário são as doenças do aparelho respiratório. Em cinco anos, e para uma faixa etária de 10 anos, apenas originaram 16 mortes, sendo cinco por gripe (influenza) e oito por pneumonias. Embora trágicos para as vítimas, familiares e comunidade próxima, estes valores são bastante baixos do ponto de vista de Saúde Pública, e sobretudo reflectem uma excelente evolução da medicina e da Ciência.
Poderiam ser mais baixos? Claro que sim. É para isso que as políticas públicas servem. Aliás, a evolução das últimas décadas, que aqui se retratou, demonstram que pode sempre melhorar-se quando o risco, mesmo que baixo, se pode reduzir ainda mais. Com investimento e estratégias adequadas.
Porém, no caso da covid-19, pouco ou nada se pode baixar, em parte devido a uma relativa benignidade do SARS-CoV-2 nas idades mais jovens. Porém, mesmo assim, o Governo preferiu investir um programa de vacinação de muitos milhões de euros – talvez mais de 10 milhões (não foram ainda tornados públicos os contratos com a Pfizer) – para afinal combater uma doença que não matou qualquer pessoa no grupo etário jovem que neste fim-de-semana começou a ser vacinado.
Será que não haveria outras prioridades em sectores onde se pudesse obter melhores desempenho do ponto de vista do investimento por redução potencial de mortes? A resposta parece, mais uma vez óbvia: sim, havia. Como parece lógica.
Mas a pandemia causada pelo SARS-CoV-2 já nos mostrou à saciedade que a lógica é já uma batata. Podre.
O cenário mais favorável da eficácia do programa vacinal proposto pela Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC) empola o número previsível de infecções, de modo a maximizar os benefícios absolutos da vacina nas crianças. Na verdade, se a actividade viral for baixa durante o próximo Inverno, a “cura” pode vir a ser pior do que a doença para os mais novos. O PÁGINA UM analisou com detalhe o parecer da CTVC, que admite que os riscos a longo prazo das vacinas para crianças não são conhecidos, e utiliza apenas estudos, incidindo em adolescentes, que nem sequer estão publicados ou revistos por cientistas independentes. A CTVC também não garante que o programa de vacinação das crianças salvará qualquer vida. Neste caso, por uma razão simples: mesmo sem vacinação, até agora nenhuma criança morreu por causa da covid-19.
A Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC) recomendou a vacinação universal de crianças apesar de admitir que “os riscos, a longo prazo, associados à administração da vacina, nas idades 5-11 anos, não são ainda definitivamente conhecidos”. Esta incerteza está discretamente inserida no final da página 18 do parecer (com um total de 32), no capítulo intitulado “Sinal de Segurança: Miocardites e Pericardites”.
Apenas divulgado na tarde da passada sexta-feira pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) – após fortes críticas ao secretismo que Graça Freitas desejava –, o parecer da CTVC confessa, de forma taxativa, que recomendou as vacinas em crianças mesmo ignorando as consequências a longo prazo. Isto para um grupo etário que não regista até agora qualquer morte.
Mesmo assim, a CTVC disserta sobre a segurança baseando-se em estudos e ensaios aplicados a adolescentes. Porém, esses estudos não estão sequer publicados nem acessíveis, mesmo a investigadores, ou ainda nem foram sujeitos à revisão pelos pares (peer review) – um processo imprescindível em Ciência para garantir o seu rigor e integridade.
Um dos casos passa-se com o estudo intitulado “SARS-CoV-2 Vaccination and Myocarditis in a Nordic Cohort Study of 23 Million Residents”, cujo primeiro autor somente é identificado no parecer da CTVC pelo seu apelido. Será eventualmente o fármaco-epidemiologista norueguês Øystein Karlstad, que estudou este ano os efeitos de tromboembolismos e eventos similares causados pela vacina da AstraZeneca em adultos escandinavos.
De acordo com o parecer da CTVC, uma equipa liderada por Karlstad terá concluído existir um risco acrescido de miocardite em adolescentes do sexo masculino com um excesso de 2,2 e 36,5 casos por 100 mil doses passados 28 dias do início do esquema vacinal, respectivamente para as vacinas da Pfizer (Comirnaty) e da Moderna (Spikevax). No entanto, como esse risco terá sido estudado apenas em jovens entre os 12 e os 15 anos, não se aplica obviamente às crianças.
Um outro estudo citado pela CTVC, da responsabilidade do Ministério da Saúde de Israel, sofre do mesmo problema: apresenta resultados de farmacovigilância da vacina da Pfizer apenas em adolescentes vacinados, com idades entre os 12 e 15 anos.
Um terceiro estudo, realizado no Canadá, e também referenciado pela CTVC, segue o mesmo padrão. Liderado por Jennifer Pillay, do Departamento de Pediatria da Universidade de Alberta, o estudo – que consiste sobretudo numa “revisão sistemática rápida” – conclui que a vacina da Pfizer causa uma maior incidência de miocardites em homens dos 12 aos 29 anos. Nada diz sobre crianças (5 aos 11 anos). E salienta mesmo que “pesquisas futuras são necessárias para examinar outros factores de risco e efeitos de longo prazo”.
Este estudo tem outra “deficiência”: encontra-se publicado apenas no medRxiv – um site da Internet que distribui versões pré-publicadas de artigos científicos sobre ciências da saúde.
Como habitualmente sucede, um aviso de entrada neste site alerta que o artigo em causa “não foi revisto pelos pares”, acrescentando-se ainda que se está em face de “novas pesquisas médicas que ainda não foram avaliadas e, portanto, não devem ser usadas para orientar a prática clínica”. Para os peritos da CTVC este aspecto não será relevante. Mas é.
Um quarto estudo referenciado pela CTVC é, como os outros, uma análise do impacte de curto prazo em não-crianças, podendo-se somente saber o que sucedeu num grupo etário “próximo”: adolescentes e jovens adultos dos 12 aos 29 anos. Desenvolvido em França, este estudo também não está revisto pelos pares.
Quase por ironia, o estudo francês encontra-se publicado no site do EPI-PHARE, uma entidade criada em 2018 pela Agência Nacional para a Segurança de Medicamentos e Produtos de Saúde (ANSM) e pelo Seguro Nacional de Saúde (CNAM), em consequência do escândalo do Mediator, e para melhorar a farmacovigilância.
Recorde-se que este medicamento, da farmacêutica Servier, destinava-se inicialmente para tratamento de diabetes, mas passou a ser comercializado como produto de emagrecimento. Acabou suspenso em 2009 por se provar ter causado a morte de entre 1.500 e 2.100 pessoas.
O julgamento deste processo ficou concluído em Março deste ano, tendo-se sentado no banco dos réus os responsáveis da Servier, por manipulação de informação sobre segurança, e a própria ANSM, por não ter actuado em devido tempo. A farmacêutica foi condenada a pagar indemnizações no valor de 2,7 milhões, e a agência estatal foi multada em 303 mil euros.
Estimativas vista à lupa
Os benefícios da vacinação de crianças em Portugal previstos pelos peritos da CTVC constitui também um exercício interessante de análise. O PÁGINA UM meteu-se nesta tarefa.
Assumindo que “os benefícios da vacinação dependem da incidência da infecção por SARS-CoV-2” –, a CTCV propôs três cenários: optimista, mediano e pessimista, em função da actividade viral ao longo da pandemia. Curiosamente, o período em análise foi de apenas quatro meses, indiciando-se assim que a CTVC não acredita que eficácia da vacina se prolongará por mais do que esse período, necessitando de novo reforço no final da Primavera.
Outro facto estranho: a CTVC considera, como efeito adverso das vacinas, o risco de miocardites e pericardites em crianças, mas para estimar o seu número potencial utiliza as incidências conhecidas em adolescentes. Essa extrapolação coloca sérias dúvidas de índole científica e mesmo ética.
Assim, face aos pressupostos teóricos da eficácia do programa vacinal para as crianças – cobertura de 85%, uma efectividade vacinal contra infeção entre 70% e 85% e uma efectividade contra doença grave de 95% –, a CTVC compara, para cada um dos cenários, duas situações distintas: sem vacinação e com vacinação.
Deste modo, no cenário optimista sem vacinação, a CTVC aponta para a possibilidade de ocorrência de 5.551 casos positivos entre Dezembro de 2021 e Março de 2022, que desceria para apenas 1.540 casos naquele período se 85% das crianças fossem vacinadas.
No cenário pessimista – ou seja, com elevada incidência –, sem vacinação a CTVC estimou que houvesse 45.442 casos positivos, reduzindo-se para 18.404 com o programa de vacinação. No cenário intermédio (mediano) foi estimado pela CTVC a existência de 21.189 casos positivos sem vacinação, baixando para 7.681 casos com vacinação.
Estranhamente, a CTVC não explica no parecer a razão para, assumindo similar capacidade das vacinas em evitar as transmissões, se estimarem reduções relativas diferentes nos diversos cenários. Com efeito, para o cenário optimista com vacinação, a redução estimada das infecções é de 72% face à situação sem vacinação, mas desce apenas para os 64% no cenário mediano e para os 61% no cenário pessimista.
Compreensivelmente, o cenário pessimista, que representa uma maior actividade viral no próximo Inverno, é aquele que mostra um maior benefício absoluto das vacinas. A razão é simples: se houver mais infecções, numa situação sem aplicação do programa vacinal em crianças, em termos absolutos maiores serão, em princípio, as hospitalizações e os internamentos em unidades de cuidados intensivos (UCI), e assim maior o diferencial quando se confronta com a situação de vacinação de 85% deste grupo etário.
Contudo, o cenário mais pessimista (45.442 infecções) – aquele em que a vacinação potencialmente trará mais vantagens, com menos 147 hospitalizações, menos 16 internamentos em UCI e menos 15 casos de síndrome inflamatório multissistémico (MIS-C) – mostra-se muito pouco provável. Com efeito, face ao período considerado na avaliação da CTVC (Dezembro de 2021 a Março de 2022), significaria a ocorrência de 11.360 casos positivos por mês em crianças se o plano de vacinação não avançasse, mais do dobro da actual média mensal ao longo de 2021 (4.674 casos positivos) para este grupo etário.
Mais sensato aparenta ser o cenário mediano. Neste caso, a média mensal é de quase 5.300 casos positivos, um valor mais consentâneo com a realidade e a época do ano (Inverno). Porém, com menos infecções, também os benefícios potenciais se tornam bem mais modestos. De facto, neste cenário os peritos da CTVC já só antevêem uma redução de 51 hospitalizações e de cinco internamentos em UCI.
Se o cenário (mais) optimista estimado pelo CTVC se concretizasse – ou seja, uma menor actividade viral durante o próximo Inverno –, o programa vacinal ameaçaria então “parir um rato”. Nesse cenário, o programa vacinal – que poderá atingir um investimento superior a 10 milhões de euros, no pressuposto do preço unitário da dose infantil ser metade da dos adultos –, a vacina apenas causaria uma redução de nove hospitalizações, um internamento em UCI e um evento de MIS-C.
Em todo o caso, saliente-se que não é líquido que um maior número de infecções resulte num aumento proporcional de hospitalizações e internamentos em UCI. Ou seja, mesmo que a variante Ómicron ganhe prevalência, e um maior número de casos, tal não significará automaticamente um aumento proporcional de internamentos.
Aliás, essa questão revela-se mesmo na página 10 do parecer da CTVC, onde se compara as hospitalizações em idade pediátrica em 2020 (quando a variante dominante era a Alfa) e em 2021 (com a Delta já dominante). Em todos os grupos etários a percentagem de hospitalização em função dos casos positivos diminuiu consideravelmente. Nas crianças (5-11 anos) passou de 0,61% (112 hospitalizações em 18.358 casos) em 2020 para apenas 0,21% (84 hospitalizações em 39.215 casos) este ano.
Ou seja, numa faixa etária em que a prevalência de assintomáticos ou de sintomatologia ligeira é muito elevada, a subida de casos positivos em crianças pode estar intimamente associada sobretudo à estratégia de testagem. Em suma, se se aumentar consideravelmente a realização de testes em crianças sem que estas estejam com sintomas, o potencial aumento de casos positivos poderá estar relacionado sobretudo à maior detecção de assintomáticos, e sem necessidade de hospitalização.
Ora, neste caso, uma consequência imediata é a redução da percentagem das hospitalizações (internamentos por 100 casos positivos), mesmo se houver um aumento absoluto no número de internados em relação ao período anterior, tal como se evidencia na situação das crianças quando se compara o ano de 2020 com 2021.
Um último aspecto particularmente estranho das estimativas da CTVC observa-se também em relação às miocardites vacinais – que, recorde-se, são reportadas à incidência conhecida em adolescentes, e não a crianças. Embora todos os três cenários estabelecidos pelos peritos pressupõem uma cobertura vacinal de 85%, o número estimado de miocardites vacinais é de 12 para o cenário pessimista, mas de sete para os cenários mediano e optimista.
Como as miocardites vacinais são, como a denominação indica, um efeito adverso apenas associado à vacina – e nada tem a ver com a maior ou menor actividade viral –, esse número distinto entre os cenários poderá ser ou um engano absurdo – por o parecer ser assinado por 13 peritos – ou uma forma de mascarar uma possibilidade atroz. De facto, se o SARS-CoV-2 estiver pouco activo neste Inverno – e se concretizar o cenário optimista –, a “cura” (leia-se, a vacina) será pior do que a doença.
O PÁGINA UM revela as taxas de internamento e apresenta os casos clínicos mais graves em crianças durante o primeiro ano da pandemia. Num grupo que envolve mais de 600 mil pessoas, por agora contabilizam-se zero mortes, uma taxa de hospitalização que rondará os 0,5% dos infectados (quase 37 mil entre Março de 2020 e Abril deste ano) e um rácio de internamento em cuidados intensivos de 0,03%. Este é o cenário de uma faixa etária que pouco tem a beneficiar de um programa de vacinação em massa. Apenas ganha incerteza no longo prazo.
No primeiro ano da pandemia, nenhuma criança morreu em Portugal por causa da covid-19, e apenas 11 – num total de quase 37 mil que testaram positivo à covid-19 entre Março de 2020 e 21 de Abril deste ano – tiveram necessidade de cuidados intensivos. Por outro lado, cerca de 995 em cada 1.000 crianças (com idades entre os 5 e os 11 anos) com teste positivo ao SARS-CoV-2 apresentaram sintomas ligeiros ou manifestaram-se assintomáticos, uma vez que somente 179 precisaram de internamento por curtos períodos (0,49% do total dos infectados.
Confirma-se assim o muito reduzido risco da covid-19 – quase irrelevante – para um grupo etário que estará agora sujeito à campanha de vacinação decidida esta semana pelo Governo.
Esta informação – até agora desconhecida pelo público em geral, e apenas acessível a um estrito grupo de peritos – obtém-se pelo cruzamento de duas bases de dados: o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE) e o registo das hospitalizações de doentes-covid.
A primeira base de dados identifica todos os casos positivos, desagregados por idade, sexo e concelho. O segundo elenca, após anonimização, os internamentos de todas as pessoas, incluindo idade, sexo, unidade de saúde, período de internamento, eventual encaminhamento para cuidados intensivos (UCI), desfecho (outcome) e também as comorbilidades e/ou agravamentos no decurso da hospitalização.
A Direcção-Geral da Saúde (DGS), autoridade com a máxima responsabilidade na gestão da pandemia, tem recusado a conceder acesso a informação essencial para calcular o risco e taxas de internamento e de letalidade de forma estratificada. Contudo, o PÁGINA UM obteve acesso confidencial a estas duas bases de dados, embora contendo apenas informação até 21 de Abril deste ano.
Em todo o caso, o reduzido impacte dos primeiros 14 meses da pandemia sobre as crianças – e muito provavelmente sem alterações relevantes nos últimos sete meses – mostra-se sobretudo numa taxa efectiva de internamento muito baixa.
CASOS POSITIVOS E INTERNAMENTOS EM CRIANÇAS – MARÇO DE 2020 E ABRIL DE 2021 (Fonte: Ministério da Saúde; dados tratados por PAV)
Enquanto até Abril deste ano, este rácio rondava os 6% para toda a população (cerca de 54 mil internamentos em cerca de 834 mil infectados, até àquela data), no grupo das crianças situou-se entre um mínimo de 0,27% (aos 7 anos) e um máximo de 0,7% (aos 8 anos). Globalmente, apenas aproximadamente 0,5% das crianças infectadas precisaram de tratamento hospitalar.
Considerando os casos de maior gravidade, a necessitarem de cuidados intensivos, não existe qualquer justificação para alarmismos. De acordo com o registo de internamentos, até Abril deste ano passaram por UCI um total de 5.458 pessoas, ou seja, cerca de 10% do total das hospitalizações e 0,65% das pessoas infectadas. No caso das crianças, essas taxas situaram-se em 6% e 0,03%, respectivamente.
No entanto, a esmagadora maioria dos casos de hospitalização de crianças, e sobretudo daquelas que necessitaram de cuidados intensivos, envolveram comorbilidades graves de natureza diversas. Por exemplo, de entre os 11 internamentos de crianças em UCI – apenas em hospitais da Grande Lisboa e no hospital de São João, no Porto –, somente quatro não tinham um quadro prévio de enfermidades graves.
TAXA DE LETALIDADE (%) DA COVID-19 POR GRUPO ETÁRIO (até 9 de Dezembro de 2021) (Fonte: Direcção-Geral da Saúde; dados tratados por PAV)
Nem todos – incluindo os quatro que registaram síndrome inflamatório do sistema múltiplo ou miocardites, efectivamente associados a complicações da covid-19 – tiveram necessidade de ventilação, tendo bastado um acompanhamento contínuo de monitorização do estado de saúde. Todos estes 11 casos clínicos mais complexos tiveram desfecho favorável: nenhuma destas crianças morreu. E os internamentos foram, por regra, de curta duração, inferior a duas semanas. Apenas um menino de 8 anos, que sofria já de um melanoma maligno, teve um internamento mais prolongado (41 dias), em parte para recuperar de uma infecção bacteriana apanhada no hospital (ver lista em baixo).
Embora se ignore os dados de internamentos posteriores a Abril deste ano, certo é que a faixa etária dos 5 anos 11 anos continua sem registo de mortes atribuídas à covid-19. Até agora, apenas se contabilizam dois óbitos de bebés com menos de 1 ano, e de outra com menos de 4 anos. Além destes, contam-se duas mortes de jovens com 19 anos. Todos apresentavam gravíssimas comorbilidades.
Nesse sentido, o grupo etário que o Governo se apresta a vacinar – envolvendo mais de 600 mil crianças, com um investimento ainda desconhecido, uma vez que o contrato com a Pfizer não consta ainda do Portal BASE – apresenta assim uma taxa de letalidade ainda de 0%.
Mesmo agregando as idades, segundo os grupos etários usados pela DGS, o risco de morte nas faixas dos 0-9 anos e dos 10-19 anos é incomensuravelmente inferior aos dos mais idosos. Por exemplo, observando a taxa de letalidade da covid-19 para os maiores de 80 anos (15,1% até à data), conclui-se que a probabilidade de um desfecho fatal naquela faixa etária é mais de 4.000 vezes superior ao de um menor de 10 anos. E chega a ser superior a 9.500 vezes se confrontada com o grupo dos 10-19 anos.
LISTA DE CASOS DE INTERNAMENTO DE CRIANÇAS EM CUIDADOS INTENSIVOS
CASO 1
Idade: 8 anos Sexo: Masculino Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central Período de internamento: 19/04/2020 – 29/05/2020 Principais comorbilidades e/ou agravamentos associados: melanoma maligno do couro cabeludo e do pescoço; e infecção bacteriana por Staphylococcus aureus Outcome: Alta médica
CASO 2
Idade: 10 anos Sexo: Masculino Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte Período de internamento: 15/05/2020 – 25/05/2020 Principais comorbilidades e/ou agravamentos associados: hipopotassemia; miocardite infecciosa Outcome: Alta médica
CASO 3
Idade: 5 anos Sexo: Masculino Unidade de saúde: Centro Hospitalar Lisboa Ocidental Período de internamento: 01/06/2020 – 07/06/2020 Principais comorbilidades e/ou agravamentos associados: defeito do septro ventricular, insuficiência (da válvula) aórtica, insuficiência congénita da válvula aórtica e anemia. Outcome: Alta médica
CASO 4
Idade:10 anos Sexo: Feminino Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central e Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental Período de internamento: 15/06/2020 – 27/06/2020 Principais comorbilidades e/ou agravamentos associados: miocardite aguda; e cardiomiopatia dilatada. Outcome: Alta médica
CASO 5 Idade: 10 anos Sexo: Feminino Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de São João (Porto) Período de internamento: 13/10/2020 – 03/11/2020 Principais comorbilidades e/ou agravamentos associados: Distúrbios do metabolismo das proteínas plasmáticas; e anemia. Outcome: Alta médica
CASO 6
Idade:8 anos Sexo: Feminino Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte Período de internamento: 01/11/2020 – 17/11/2020 Principais comorbilidades e/ou agravamentos associados: síndrome inflamatório do sistema múltiplo (associado à covid-19), síndrome de choque tóxico e pericardite viral Outocome: Alta médica
CASO 7
Idade: 11 anos Sexo: Feminino Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte Período de internamento: 21/12/2020 – 28/12/2020 Principais comorbilidades e/ou agravamentos associados: anemia hemolítica auto-imune Outcome: Alta médica
CASO 8
Idade: 10 anos Sexo: Feminino Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de São João (Porto) Período de internamento: 24/01/2021 – 05/02/2021 Principais comorbilidades e/ou agravamentos associados: síndrome inflamatório do sistema múltiplo (associado à covid-19); insuficiência ventricular esquerda; taquicardia supraventricular; e choque cardiogénico Outcome: Alta médica
CASO 9
Idade: 8 anos Sexo: Masculino Unidade de saúde: Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca (Amadora-Sintra) Período de internamento: 25/01/2021 – 26/01/2021 Principais comorbilidades e/ou agravamentos associados: diabetes mellitus tipo 1 Outcome: Alta médica
CASO 10
Idade: 11 anos Sexo: Masculino Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central Período de internamento: 30/01/2021 – 11/02/2021 Principais comorbilidades e/ou agravamentos associados: paralisia cerebral quadriplágica espástica; doença de refluxo gastroesofágico sem esofagite, alimentado por gastrostomia Outcome: Alta médica
CASO 11
Idade: 5 anos Sexo: Masculino Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de São João (Porto) Período de internamento: 12/02/2021 – 03/03/2021 Principais comorbilidades e/ou agravamentos associados: aneurisma, hipotensão, trombocitopenia, hiperlipidemia e sepsis Outcome: Alta médica