Categoria: Saúde

  • 10 casos que correram mal: quando a Ciência falha ou a Ganância fala mais alto

    10 casos que correram mal: quando a Ciência falha ou a Ganância fala mais alto

    Salvam vidas, mas podem tornar-se venenos. Para evitar vítimas indesejáveis, mas também controlar a cobiça da indústria farmacêutica, os ensaios clínicos dos medicamentos são uma prática comum, cada vez mais exigentes. Mas nem sempre este sector tem só bons samaritanos, e por falhas (mais ou menos intencionais) das companhias, ou por deficiências na regulação, há casos que dão para o torto. O PÁGINA UM recorda 10. Podiam ser mais, podiam ser menos. Mas, em época de pandemia, convém recordar que nunca outro fármaco teve uma utilização tão massiva como as vacinas contra a covid-19, utilizadas num regime de emergência.


    Todos os anos, as farmacêuticas disponibilizam para o mercado centenas de novos medicamentos, que salvam e prolongam vidas. Mas, para que não suceda o oposto – ou seja, para que não se morra da cura –, e porque cada medicamento comporta um investimento enorme – que será deitado fora se a sua eficácia e segurança não ficarem demonstradas –, esses fármacos têm de passar por várias fases até finalmente chegarem ao balcão das farmácias.

    Por norma, sempre acompanhados pelos reguladores – que vão autorizando ou não há etapa seguinte –, os potenciais fármacos passam por quatro fases de ensaios clínicos. Na chamada Fase I estuda-se sobretudo a segurança e a tolerabilidade do medicamento, recorrendo a voluntários saudáveis. Em circunstâncias especiais podem ser admitidos doentes nesta fase, se existir risco de morte evidente. Quando se fala de alguém que se encontra a tomar um medicamento experimental, geralmente trata-se de um novo medicamento que ainda se encontra na Fase I.

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    Caso se confirme que o medicamento não é tóxico, então passa-se para a Fase II, que tem como objectivo avaliar a terapêutica e dose terapêutica mais adequada. Neste caso, usam-se já apenas doentes com a patologia que será “atacada” pelo fármaco, abrangendo algumas dezenas de voluntários e podendo demorar alguns meses.

    Se os objectivos forem alcançados, então passa-se para a Fase III, que constitui um ponto crucial para o sucesso comercial do medicamento, porque aí já se aplica um estudo comparativo.

    Além de confirmar os resultados obtidos nas fases anteriores (segurança e terapêutica), na Fase III compara-se sobretudo o novo medicamento com um placebo ou com uma terapêutica já comercializada, avaliando-se os efeitos tanto positivos como negativos.

    Esta fase pode demorar mesmo vários anos, em função do medicamento e da patologia, e exige assim pelo menos dois grupos de indivíduos e um número de voluntários que podem chegar aos vários milhares.

    Para garantir um elevado rigor, estes estudos têm normas muito rígidas para evitar manipulação e enviesamento dos resultados. Por isso, se ouvem, muitas vezes, “palavrões técnicos” como um certo ensaio clínico ter sido “multicêntrico, randomizado, duplo-cego, duplo-mascarado”.

    Na verdade, isso significa que, na maioria dos casos, ninguém sabe, no início, quem tomou o novo medicamento ou o comparativo, incluindo o voluntário, quem administra, quem escolhe em que grupo são colocados os voluntários nem que grupo está o investigador a analisar os resultados. Apenas no fim, com os resultados, isso se conhecerá.

    Contudo, isto é a teoria. Na prática, se não existir transparência, e o regulador for pouco exigente, tudo se mostra possível.

    Se tiver aprovação do regulador, a farmacêutica pode respirar de alívio e fazer a festa, porque começa a comercializar o novo medicamento. Porém, não escapa à Fase IV – a da farmacovigilância –, que é onde ocorrem as surpresas mais desagradáveis. Ou até agradáveis, se porventura se descobrirem, afinal, que o novo medicamento tem efeitos benéficos ainda mais estupendos para solucionar que inicialmente não estavam previstos. Nunca é demais invocar, e evocar, o famoso Viagra.

    A farmacovigilância é uma fase extraordinariamente importante, porque se passa da aplicação de um medicamento em poucas centenas de milhares de pessoas para um uso que pode ser mais ou menos massivo. Veja-se o caso, por exemplo, das vacinas contra a covid-19.

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    Na Fase IV, que pode decorrer ao longo dos anos, os episódios de reacções adversas são individualmente reportados pelos profissionais de saúde junto dos reguladores – em Portugal, é o Infarmed.

    Cada reacção adversa nunca é uma boa notícia para a farmacêutica, e aqui entra em jogo as potenciais promiscuidades ou conflitos de interesse que possam ocorrer entre farmacêuticas e peritos que colaboram com os reguladores.

    Além disso, nunca esquecer que as receitas dos reguladores provêm, em grande medida, das comparticipações do sector farmacêutico. E estamos a falar das comparticipações legais, estabelecidas em diplomas legais…

    Enquanto até à Fase III, um insucesso – e há muitos, daí a necessidade de o preço dos medicamentos bem-sucedidos suportarem os investimentos falhados – pode ocorrer de forma discreta, na Fase IV pode ser uma “facada”, letal até, na credibilidade de uma farmacêutica.

    E redundar em prejuízos astronómicos, sem falar em potenciais indemnizações. Se forem nos Estados Unidos podem ser chorudas. No limite, um rombo financeiro ou mesmo a falência. Já sucedeu.

    Assim, em abono da verdade, embora possam existir imponderáveis – porque na farmacovigilância detectam-se efeitos adversos adicionais, por interacções medicamentosas ou factores imprevisíveis –, as evidentes falcatruas são de evitar em demasia. Como o azeite em água, mais tarde ou mais cedo acabam por se saber eventuais enviesamentos, ou mesmo fraudes, cometidos em ensaios clínicos das fases anteriores.

    O regulador também não aprecia ser surpreendido com más notícias, porque são reveladoras, muitas vezes, de desempenhos fracos nas suas funções. E, por outro lado, sucedem sempre muitas oportunidades de funcionários do regulador saltarem para as farmacêuticas, e vice-versa. A promiscuidade existe neste sector.

    Por isso, estas questões são sempre tratadas com pinças. E, por isso, bastas vezes joga-se sujo, com sonegação de estudos, campanhas de marketing enganosas, subornos à classe médica, tudo em nome das receitas. Nos casos mais graves fica em causa a independência dos reguladores. A História tem mostrado que nem sempre a regulação defende os interesses dos consumidores.

    No entanto, um alerta: na esmagadora maioria dos medicamentos, o sistema funciona. Felizmente, poucas são as vezes que temos conhecimento de problema relevante em redor de uma das 2.937 substâncias activas e 36.803 medicamentos registados em Portugal no Infomed, o portal dos medicamentos de uso humano gerido pelo Infarmed.

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    Mas, é exactamente por os casos escandalosos serem cada vez mais raros – e de um mais apertado controlo, embora ainda pouco transparente, nos ensaios clínicos e na farmacovigilância –, que convém estar sempre de sobreaviso quando, como sucedeu com as vacinas contra a covid-19, se saltam etapas.

    Ou se escondem dados dos efeitos adversos, como tem estado a acontecer com o Infarmed em relação a pedidos do PÁGINA UM, o que nos obrigará a recorrer a uma intimação junto do Tribunal Administrativo.

    Por isso, recordemos alguns dos casos mais tristemente famosos de medicamentos colocado no mercado, muitos usados massivamente, e cujas consequenciais se mostraram desastrosas.

    Avandia

    Concebido pela farmacêutica britânica GlaxoSmithKline e aprovado em 1999 pela Food and Drug Administration (FDA), Avandia foi a marca comercial do fármaco rosiglitazona, que visava controlar os níveis de açúcar no sangue e sobretudo para tratamento de diabetes mellitus tipo 2. Contudo, rapidamente, acabou por provar ser sobretudo desastroso para a saúde. 

    Em 2007, um estudo  de investigadores da Massachusetts Medical Society publicado no New England Medical Journal, apontava para um risco de ataque cardíaco em cerca de 43%.

    Três anos mais tarde, um outro estudo, desenvolvido por investigadores da FDA, publicado no Journal of the American Medical Association (JAMA) mostrava que, entre mais de 67 mil pessoas que tinham tomado Avandia, se tinham registado quase três mil ataques cardíacos, que resultaram em 814 mortes.

    Nesse mesmo ano, a EMA suspendeu a comercialização do fármaco.

    Também o Senado americano emitiu, também em 2010, um comunicado que revela que a GlaxoSmithKline já sabia dos riscos associados ao Avandia desde 2000.

    No início da década passada, a GlaxoSmithKline chegou a um acordo extrajudicial no valor de 770 milhões de dólares (cerca de 707 milhões de euros) para pôr fim a 16.200 processos por mortes e problemas cardíacos e hepáticos causados do fígado e morte.

    No entanto, a GlaxoSmithKline acabaria, em 2012, por ser condenada ao pagamento da maior multa até então aplicada pelo Departamento de Justiça norte-americano por “fraude sanitária”: 3 mil milhões de dólares por responsabilidade civil e criminal, por ocultação de dados sobre três medicamentos (além do Avantia, também do Paxil e do Wellbutrin) e por práticas ilegais de preços.

    No comunicado então emitido, Bill Corr, vice-secretário do Departamento de Saúde e Serviços Humanos, disse que “o acordo histórico (…) é um marco importante nos esforços para acabar com a fraude de saúde”, acrescentando que, “por muito tempo, o sistema de saúde norte-americano foi alvo de trapaceiros que pensavam que poderiam lucrar facilmente às custas da segurança pública, dos contribuintes e dos milhões de americanos que dependem de programas de saúde”.


    Elixir Sulfanilamide
    Criado sob a forma de comprimido em 1937, pela farmacêutica americana Massengil, sulfamilamida era um antibiótico revolucionário. Porém, para aumentar as vendas, decidiu transformar o medicamento em elixir, para lhe introduzir um sabor agradável a framboesa.

    Assim, a farmacêutica usou dietilenoglicol, um éter, e colocou o elixir no mercado sem qualquer teste de toxicidade. Os efeitos foram terríveis.

    De acordo com o Independent Policy Report, morreram mais de 107 pessoas, sobretudo crianças.  Em 1938, a Massengil deu-se como culpada, pagando 24 mil dólares de multa, a maior até então aplicada a uma farmacêutica.

    Em 18 de Janeiro de 1939, o engenheiro químico que criou o elixir, Harold Watkins, foi encontrado em casa com uma bala na cabeça. Tinha-se suicidado.

    Mediator
    Concebido pela farmacêutica francesa Servier em 1976, o benfluorex, comercializado sob a marca Mediator, destinava-se ao tratamento da diabetes, mas começou a ser usado como supressor de apetite para emagrecimento.
    Em 1998, a Agência Francesa da Segurança dos Produtos de Saúde (AFSPS) abriu uma investigação em redor do Mediator por suspeitas de efeitos adversos (valvopatia aórtica e hipertensão arterial pulmonar), mas apenas em 2003 a Servier deixa de comercializar Mediator em Espanha e Itália.

    Contudo, demoraria ainda mais anos até que os reguladores cumprissem o seu dever, pois apenas em 2010 a AFSPS assumiu que as mortes relacionadas com o Mediator ascendiam então às cinco centenas. No entanto, estimativas mais recentes apontam para mais de duas milhares de mortes.

    Em Março do ano passado, a Servier seria multada em 2,7 milhões de euros e a AFSPS em 303 mil euros por falhas na regulação. Um dos executivos da farmacêutica francesa, Jean-Philippe Seta, foi condenado a quatro anos de prisão de pena suspensa.

    No rescaldo deste escândalo, seria criada em 2018, pela AFSPS e pelo Seguro Nacional de Saúde (CNAM) a EPI-PHARE, uma entidade para melhorar a farmacovigilância.

    OxyContin

    Deu origem à falência de uma farmacêutica, e serviu como mote de uma mini-série (Dopesick), estreada no ano passado, protagonizada por Michael Keaton e realizada por Barry Levinson. E, na realidade, tem todos os ingredientes de um filme: droga, conspiração, dinheiro e tribunais.

    A oxicodona – comercializada sob a marca OxyContin – é um analgésico da classe dos opioides, usada para atenuar as dores severas. Embora tivesse sido sintetizada em 1917 na Alemanha, a farmacêutica norte-americana Purdue Pharma desenvolveu-a como analgésico de libertação prolongada, tendo sido aprovada pela FDA em 1995. A comercialização desta marca de oxicodona começou no ano seguinte.

    Porém, a farmacêutica escondeu dos reguladores, algo que os traficantes e utilizadores rapidamente descobriram: esmagando os comprimidos facilmente retiravam a componente pura de oxicodona, para cheirar ou injectar, sendo tão poderosa como a heroína. Dessa forma, o OxyContin foi um dos principais contribuidores para a denominada “epidemia dos opioides” nos Estados Unidos. E a Purdue Pharma teve receitas recorde.

    Segundo a FDA, em 2003 havia já 2,8 milhões de norte-americanos que admitiam usar OxyContin para usos não-médicos, quando quatro anos antes eram apenas 400 mil. Mas nesse ano, o regulador apenas emitiu uma carta de advertência contra a Purdue Pharma por publicidade enganosa, porque os anúncios excluíam os sérios riscos de dependência e danos para a saúde.

    Somente em 2007 o cerco à farmacêutica começou a apertar, quando foi condenada a pagar 634 milhões de dólares (cerca de 582 milhões de euros) por publicidade enganosa, mas apesar de três executivos da companhia terem sido também multados, o OxyContin manteve a sua comercialização. E em 2010 seria mesmo autorizada uma nova fórmula que visava diminuir a possibilidade do seu uso não-médico, sendo retirada a versão original.

    Apesar da FDA ter sempre tentado proteger a estabilidade financeira da farmacêutica, os processos judiciais em diversas partes dos Estados Unidos fizeram a Purdue Pharma caminhar para o descalabro. E em 2019, a Purdue Pharma abriu falência.

    No mês passado, no dia 11 de Março, os executivos da Purdue Pharma conseguiram um acordo extrajudicial envolvendo oitos estados norte-americanos (Califórnia, Connecticut, Delaware, Maryland, Oregon, Rhode Island, Vermont e Washington) e milhares de requerentes individuais no valor de 6 mil milhões de dólares (cerca de 5,5 mil milhões de euros). Os executivos da companhia, grande parte dos quais da família Sackler, poderão ainda ser, contudo, julgados em processo criminal.

    No processo de falência – que será sobretudo de plano de reorganização –, grande parte das futuras receitas serão destinadas a diminuir a crise dos opiáceos e de dependência de opioides, devendo ser propriedade principalmente da National Opioid Abatement Trust (MOAT).

    Ficou também determinado que as famílias Sackler não terão qualquer envolvimento na nova empresa, devendo ainda pagar 4,325 mil milhões de dólares, além dos 225 milhões anteriormente pagos para resolver ações civis.

    Talidomida

    Criado pela farmacêutica alemã Chemie Grunenthal em 1954, inicialmente como um sedativo de uso geral, passou a ser muito popular entre grávidas por ser eficaz nos enjoos matinais, dores de cabeça e insónias.

    O seu sucesso fez com que se disseminasse rapidamente por quase meia centena de países sob a forma de mais de três dezenas de marcas comerciais. Em Portugal foi comercializado com o nome Softenon, mas na maior parte dos países foi vendida sob a marca Contergan.

    O seu uso massivo entre as grávidas de todo o Mundo veio a revelar um trágico efeito secundário: malformações congénitas gravíssimas. Em 1961, o medicamento começou a ser retirado do mercado, mas em Portugal somente no ano seguinte surgiram as primeiras notícias em jornais médicos sobre os graves efeitos da talidomida quando tomado entre os dias 14 e 50 da gravidez.

    Estima-se que, pelo menos, 100 mil fetos foram afectados, dos quais 80% não se desenvolveram. Aqueles que nasceram mostravam malformações terríveis nos membros superiores e inferiores, incluindo mesmo a ausência de braços e pernas, em órgãos internos, nos olhos e ouvidos, e paralisia cerebral.

    Cerca de 25% das crianças nascidas sob efeito da talidomida morreram nos primeiros meses de vida. No início da década passada, estimava-se que ainda estariam vivas entre 10 mil e 15 mil pessoas afectadas por este fármaco.

    Os Governos dos diferentes países lidaram de forma muito distinta com este assunto ao longo do tempo, havendo processos judiciais em diversos países. Na Austrália, cerca de uma centena de vítimas receberam, em 2014, um total de 89 milhões de dólares pagos pela distribuidora Diageo. Dois anos antes, a Grunenthal pediu, pela primeira vez, desculpas às vítimas.

    Na altura, o director executivo Harald Stock – durante a inauguração de uma escultura evocando o desastre da talidomida, na cidade de Stolberg, sede da farmacêutica – garantiu que tinham sido doados quase 500 milhões de euros às vítimas até 2010. Na Alemanha, os sobreviventes recebem uma pensão mensal de até 1116 euros de um fundo para o qual a farmacêutica contribui.

    A talidomida continua, contudo, a ser usada actualmente para determinadas doenças, como o mieloma múltiplo.

    Trasylol

    Desenvolvido pela farmacêutica alemã Bayer, a aprotinina, comercializada sob o nome Trasylol, foi aprovada pela FDA em 1993 para ser usada em blocos operatórios para reduzir no sangramento em cirurgias cardíacas e hepáticas.

    Apesar de existirem já avisos preocupantes envolvendo a morte de mais de 200 pessoas em que se usara este fármaco, a FDA foi pouco lesta nas investigações.

    Entretanto, um estudo científico observacional publicado no New England Journal of Medicine, tirou qualquer dúvida, ao concluir que “a associação entre aprotinina e lesões graves em órgãos-alvo indica que o uso continuado não é prudente”, acrescentando mesmo que “em contraste, os medicamentos genéricos menos caros, como ácido aminocapróico e ácido tranexâmico, são alternativas seguras”.

    O primeiro autor deste estudo, Dennis Mangano diria mesmo que mais de 22 mil pessoas poderiam ter sido salvas se o Trasylo tivesse sido retirado do mercado atempadamente.

    A partir deste estudo, a FDA pressionou a Bayer, que acabou por confessar a existência de um estudo interno, baseado em dados com 67 mil pacientes, onde se detectara casos graves. A farmacêutica alegou “erro humano” para o atraso no envio desse comprometedor relatório.
    Em 2010, a Bayer conseguiu um acordo extrajudicial, pagando 60 milhões de dólares (cerca de 55 milhões de euros) para arquivamento de 150 processos judiciais.

    Trovan

    Antibiótico de amplo espectro, a trovafloxacina foi desenvolvida pela farmacêutica norte-americana Pfizer, sob a marca comercial Trovan, tendo vida curta e polémica, antes de ser retirado do mercado por efeitos hepáticos adversos muito graves.

    Mas, antes de ser abandonado, esteve envolvido num escândalo da Pfizer que aproveitou uma epidemia de meningite na Nigéria, em 1996, para proceder a um ensaio clínico não autorizado.

    A empresa, sem conhecimento prévio, inoculou 100 crianças dos 3 meses aos 18 anos de idade para um tratamento com duração de duas semanas. Destas,11 morreram e dezenas soferam efeitos secundários graves, como paralisia e insuficiência hepática.

    Mesmo assim, a FDA aprovou este medicamento em 1998 para o tratamento de vários tipos de infecção, como peritonites e sinusites. O sucesso comercial nunca veio, porque o regulador foi contabilizando efeitos adversos, e recomendando o seu uso de forma cada vez mais restrita. Em 1998, a Pfizer teve apenas uma receita de 160 milhões de dólares, quando previa pelo menos mil milhões de dólares.

    Após terem sido registados em 1999, 14 casos de insuficiência hepática e seis mortes, a FDA viria a suspender o uso de trovafloxacina no ano 2000. Medida similar tomou a Agência Europeia do Medicamento (EA). De acordo com a declaração publicada, esta suspensão foi efectuada depois da recepção de 152 relatórios de insuficiências hepáticas.

    Apenas em 2011, quinze anos após os ensaios clínicos, a Pfizer se predispôs a a assinar um acordo extrajudicial para arquivar o escândalo na Nigéria, envolvendo 175 mil dólares (cerca de 160 mil euros) por família. A farmacêutica concordou ainda em criar um fundo de 35 milhões de dólares (32 milhões de euros) para compensar os possíveis afectados pelo uso do Trovan.

    Vioxx
    Desenvolvido pela farmacêutica americana Merck Sharpe & Dohme, e aprovado pela FDA em 1999, o rofecoxib – comercializado sob a marca Vioxx – era um anti-inflamatório destinado sobretudo ao tratamento da artrite.

    Em Portugal chegou a ser o anti-inflamatório mais vendido em Portugal.

    Em 2004 começaram a surgir estudos com resultados preocupantes, que revelavam um elevado risco de enfartes do miocárdio ao fim de apenas alguns meses de tratamento com Vioxx, independentemente da dose. David Graham, investigador da FDA, estimou numa declaração ao Senado norte-americano que teriam ocorrido, por causa do rofecoxib, pelo menos 139 mil casos de ataques cardíacos, que culminaram em 55 mil mortes.

    Confirmou-se também que a empresa tinha contratado médicos para assinar artigos científicos, para os credibilizar, que não tinham sido por eles elaborados.

    Em 2017, a Union of Concerned Scientists denunciaria que a Merck Sharpe & Dohme manipulou os resultados sobre os riscos de ataque cardíaco e exagerou os efeitos positivos do Vioxx.

    Para evitar um julgamento, a Merck Sharpe & Dohme conseguiu um acordo extrajudicial em 2007, pagando 4,85 mil milhões de dólares em indemnizações, ou seja, mais de 3,75 mil milhões de euros.

    Xarelto
    Produzido pela Bayer e comercializado pela Johnson & Johnson, o Xarelto é o nome comercial do fármaco rivaroxabana, um anticoagulante oral utilizado sobretudo no tratamento de trombose venosa profunda. Foi aprovado pela FDA em 2011.

    Porém, logo no ano seguinte, vários estudos alertaram para efeitos adversos graves. Por exemplo, o Institute for Safe Medical Practices – uma organização não-governamental norte-americana vocacionada para a prevenção de erros farmacológicos – contabilizou 356 casos graves associados ao Xarelto, dos quais 158 embolias e 121 hemorragias.

    Uma outra entidade similar, o DrugWatch, indicava também que uma pesquisa em Outubro de 2018 do Sistema de Relatórios de Eventos Adversos da FDA indicava que, pelo uso de Xarelto, tinham ocorrido 92.125 casos de hemorragias, grande parte dos quais gastrointestinais.

    Em 2019, a Bayer e a Janssen Pharmaceuticals chegaram a um acordo extrajudicial, comprometendo-se a pagar 775 milhões de dólares (cerca de 710 milhões de euros) para encerrar 25 mil processos de litígio, assumindo que não tinham feito os avisos necessários sobre efeitos adversos.

    Zantac

    Desenvolvido pela farmacêutica britânica GlaxoSmithKline em 1977, e aprovado para comercialização pela FDA em 1983, o Zantac chegou a ser o medicamento mais vendido do Mundo em 1988, superando mil milhões de euros. Sob licença ou como genérico por outras farmacêuticas, este medicamento – que tem a ranitidina como princípio activo – uma eficácia rápida no tratamento de úlcera duodenal e gástrica e sobretudo contra a azia.

    Apesar das garantias de segurança, tanto assim que podia ser usado sem prescrição médica, em 2019 uma farmácia online alertou a FDA da presença de elevados níveis de N-nitrosodimetilamina (NDMA), um perigoso cancerígeno.

    Na segunda metade desse ano chegou-se à conclusão que o NDMA não era apenas uma impureza, mas que advinha do próprio processo de fabrico da ranitidina. Em consequência, a esmagadora maioria dos países retiraram o medicamento de circulação nos últimos dois anos.

    Em Portugal, a retirada da autorização de introdução do mercado (AIM) verificou-se em Janeiro do ano passado, mas já houvera uma retirada preventiva dos lotes em Setembro de 2019.

    De acordo com o Shapiro Legal Group – um escritório de advogado norte-americano especializado em litígios contra farmacêuticas –, o Zantac terá causado 55,891 efeitos adversos graves, dos quais 66% foram cancros, alegando que já se registaram 4.926 mortes.

    Nos próximos anos será provável que os casos ainda disparem mais à medida que se foram associando uma relação causa-efeito. O Shapiro Legal Group estima que só em 2018 o Zantac tenha sido usado por quase 19 milhões de norte-americanos. Prevê-se assim processos judiciais envolvendo muitos e muitos milhões.

  • Quatro em cada 10 crianças com primeira dose não levaram (ainda) a segunda

    Quatro em cada 10 crianças com primeira dose não levaram (ainda) a segunda

    Os portugueses parecem ter-se fartado das vacinas contra a covid-19. Apenas um terço dos pais decidiram vacinar as suas crianças com duas doses, e uma parte considerável (22%) ponderou e decidiu não dar a segunda dose. Nos adultos jovens, a dose de reforço não está também a ter grande adesão. No grupo entre os 18 e os 24 anos já são mais aqueles que desistiram da vacina.


    O programa de vacinação contra a covid-19 está a perder gás, sobretudo na população mais jovem. Quatro em cada 10 crianças vacinadas com a primeira dose contra a covid-19 nos primeiros meses do ano não receberam a segunda dose.

    Mesmo considerando que as infecções pela variante Ómicron, sobretudo durante o mês de Janeiro, tenha levado à não promoção, por parte da Direcção-Geral da Saúde (DGS), da segunda dose nas crianças que tiveram entretanto contacto com o vírus, mostra-se já notório que muitos pais terão desistido da segunda toma.

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    Embora a DGS não divulgue dados absolutos – para dificultar análises independentes –, terão sido vacinadas com a primeira dose cerca de 55% das crianças entre os 5 e os 11 anos, mas até ao dia 11 de Abril (últimos dados disponíveis), somente 33% estavam com a vacinação completa.

    Assim, como 45% das crianças nunca foram vacinadas contra a covid-19, e os pais de 22% decidiram não lhes dar (ainda) a segunda dose, então significa que apenas seis em cada 10 pais que autorizaram a primeira toma quiseram depois que lhes dessem a segunda.

    A análise do PÁGINA UM aos dados da DGS também permitem aferir que não é expectável uma evolução significativa deste rácio nesta faixa etária nos próximos tempos. Entre 7 de Março e 11 de Abril a taxa de vacinação completa somente subiu de 28% para 33%, o que deverá corresponder a pouco mais de 30 mil vacinas numa faixa etária que integra quase 650 mil pessoas.

    Por outro lado, nota-se que a adesão dos adolescentes e adultos em idade activa às doses de reforço está muito longe de atingir os níveis da vacinação com as duas primeiras doses.

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    No caso dos adolescentes, com idades entre os 12 e 17 anos, os dados da DGS nem indicam que estejam a ser feitas inoculações de reforço. Aparentemente, esta entidade, que no Verão passado tanto defendia a relevância de se vacinar adolescentes para defender os mais idosos, deixou agora de considerar relevante repetir doses, mesmo sabendo-se que a imunidade vacinal se perde passado poucos meses.

    No entanto, Graça Freitas continua a manter a obrigatoriedade do uso de máscaras no interior dos estabelecimentos de ensino.

    Também nas faixas etárias entre os 18 e os 65 anos, onde o programa vacinal inicial teve uma adesão praticamente total (entre os 98% na faixa dos 18-24 anos e os 100% na faixa dos 50-64 anos), a dose de reforço não está agora a ser procurada com grande intensidade. E sobretudo nos adultos jovens.

    Assim, até 11 de Abril, apenas 43% do grupo etário entre os 18 e 24 anos quiseram levar dose de reforço, valor que sobe para os 58% na faixa etária dos 25 aos 49 anos e para 83% para a faixa dos 50 aos 64 anos. Mesmo nos mais idosos, a taxa de reforço não atinge os mesmos patamares, embora muito próximo dos 100%. A diferença pode advir do facto de muitas pessoas idosas que tomaram as duas primeiras doses terem entretanto falecido de causas diversas.

    Apesar da ausência de dados absolutos de vacinação no último mês – por opção intencional da DGS –, considerando as estimativas da população calculadas pelo Instituto Nacional de Estatística e a evolução da percentagem de vacinados por grupo etário, terão sido inoculadas entre 7 de Março e 11 de Abril quase 215 mil pessoas. Ou seja, menos de seis mil vacinas administradas por dia.

  • Covid-19: Comissão Europeia ‘apanha’ com mais de 333 mil protestos contra certificado digital

    Covid-19: Comissão Europeia ‘apanha’ com mais de 333 mil protestos contra certificado digital

    Nunca antes se viu tanta participação num procedimento de consulta pública a um regulamento comunitário. Comissão von der Leyen quer manter certificado discriminatório de não-vacinados, incluindo recuperados, até Junho de 2023, A Alemanha, que ontem chumbou um projecto para tornar a vacina obrigatória para os maiores de 60 anos, lidera os países com maior número de comentário. Em Portugal, o debate sobre esta matéria tem sido inexistente.


    Está ao rubro o último dia da consulta pública do regulamento que visa prolongar o uso do certificado digital da covid-19 por mais um ano. De acordo com a consulta do PÁGINA UM pelas 17:30 horas ao site da Comissão Europeia, onde se encontra a plataforma que permite formalmente apresentar os comentários à proposta, estavam já contabilizados 333.596 comentários de cidadãos, empresas e entidades diversas, um aumento extraordinário face aos registados no início desta semana.

    Quase todos os comentários, convenientemente identificados e registados, contestam a possibilidade de se manter o sistema de controlo da pandemia da covid-19, já em fase endémica, através de restrições discriminatórias aos não-vacinados.

    No domingo passado, o PÁGINA UM destacava já a existência de mais de 136 mil comentários, o que colocava esta proposta da Comissão von der Leyen como a mais polémica de sempre.

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    Em contraciclo com as decisões de diversos países europeus em cessar a discriminação dos cidadãos em função do seu estado vacinal contra a covid-19, e tendo em conta a evidência de as vacinas não funcionarem como “barreira” segura contra a transmissão do coronavírus, a Comissão Europeia insiste estender por mais um ano a aplicação dos certificados digitais para condicionar ou proibir a circulação aérea e o acesso a certos lugares públicos por não-vacinados.

    Ursula von der Leyen, que é uma adepta da imposição da vacinação obrigatória universal, incluindo a jovens e crianças, tem já pronta uma proposta de regulamento para prolongar até 30 Junho de 2023 o controlo de entradas através deste certificado, que apenas atesta a toma de vacinas ou a ocorrência de uma infecção recente.

    Como os certificados têm agora uma validade de nove meses, a implementação desta medida garante às farmacêuticas pelo menos mais um reforço vacinal. No limite, quem tomou a chamada “dose de reforço” até finais de Novembro do ano passado terá de receber uma quinta dose para não sofrer restrições de circulação até ao meio do próximo ano.

    man sitting on gang chair with feet on luggage looking at airplane

    Porém, anteontem, o Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças (ECDC) e a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) vieram recomendar que, por agora, fossem vacinadas com a quarta dose apenas as pessoas com mais de 80 anos.

    Curiosamente, nos últimos dias, a origem de uma parte muito significativa dos comentários à consulta pública é a Alemanha, o país de Ursula von der Leyem, cujo Parlamento rejeitou ontem uma proposta do chanceler Olaf Scholz de tornar a vacinação obrigatória para os maiores de 60 anos. No Bundestag, a medida foi rejeitado por 378 deputados, tendo 296 votado a favor.

    Pelas 17:30 horas de hoje, provenientes da Alemanha estavam contabilizados 123.888 comentários – no domingo passado eram apenas 22.592 –, enquanto a Itália, que liderou na “contestação” à medida durante a maior parte do tempo da consulta pública, contava 37.334 comentários.

    A Áustria – que chegou a implementar um sistema que visava tornar a vacinação obrigatória, sob pena de pesadas multas, mas acabou por suspender a medida por ter tido um efeito oposto – ocupa agora a terceira posição dos comentários (33.143) sobre o prolongamento da vigência do certificado digital. Com um número superior a 10 mil comentários encontram-se ainda a Holanda (28.458), França (19.704), República Checa (19.190), Eslováquia (18.235) e Bélgica (10.174).

    No caso de Portugal, contabilizam-se, por agora, somente 1.947 comentários, ocupando a 16ª posição. No passado domingo eram 1.257.

    Número de comentários por país no site da Comissão Europeia (17h30 de hoje) sobre a proposta de regulamento para prolongamento do certificado digital até Junho de 2023

    Com o fim da consulta pública, à meia-noite de hoje, hora da Europa Central, as próximas semanas serão fundamentais para saber se a Comissão von der Leyen manterá a intenção de avançar mesmo com a renovação do certificado digital, uma vez que nunca antes houve uma tão grande participação pública contra um regulamento comunitário. Por norma, antes da decisão final, as propostas recebem poucas dezenas ou centenas de comentários.

    Apesar desta contestação, em Portugal o tema dos certificados digitais, cujo uso discriminatório ainda se mantém, não tem merecido a mínima atenção da imprensa mainstream e dos partidos políticos. Na semana passada, o PÁGINA UM quis saber, por duas vezes, a opinião dos partidos políticos com assento parlamentar, mas apenas o PCP respondeu.

    Partido Socialista, Partido Social Democrata, Chega, Bloco de Esquerda, PAN e Livre alhearam-se, não revelando a respectiva opinião, se é que a têm, sobre um tema que marcou indelevelmente a sociedade nos últimos dois anos.

  • Infarmed recusa informação detalhada sobre efeitos adversos das vacinas contra a covid-19. PÁGINA UM vai apelar ao Tribunal Administrativo para se saber a verdade

    Infarmed recusa informação detalhada sobre efeitos adversos das vacinas contra a covid-19. PÁGINA UM vai apelar ao Tribunal Administrativo para se saber a verdade

    Contrariando um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, a entidade reguladora dos medicamentos insiste em não permitir o acesso independente à base de dados dos efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 e também do remdesivir, o polémico antviral da Gilead. A derradeira hipótese de se saber a verdade é através de uma intimação junto do Tribunal Administrativo. O PÁGINA UM inicia hoje uma campanha de angariação no MightyCause denominada “INFARMED – UMA LUZ PARA A TRANSPARÊNCIA” com o objectivo específico de suportar custos de patrocínio jurídico e demais despesas correlacionadas.


    O Infarmed mantém a recusa em permitir o acesso à base de dados do Portal RAM, onde constam os dados brutos dos efeitos adversos das vacinas contra a covid-19, apesar de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA).

    Em carta endereçada ao PÁGINA UM esta tarde, assinada por toda a sua direcção – o presidente Rui dos Santos Ivo e os vice-presidentes António Manuel Faria Vaz e Cláudia Susana Belo Ferreira –, o Infarmed não quer permitir que se tenha acesso directo aos dados anonimizados com toda a informação detalhada, e que permitira aferir para Portugal os verdadeiros impactes das vacinas, bem como a forma como são definidos os critérios para a inclusão dos efeitos adversos em cada idade.

    O Infarmed defende que devem ser apenas disponibilizados ao público “os dados constantes da base de dados EudraVigilance”, mas que são apenas apresentados em formato agregado, não sendo possível um grande detalhe informativo. Na sua deliberação, onde recusa o acesso de informação a um órgão de comunicação social – violando assim a Lei da Imprensa –, a direcção do Infarmed conclui que, “face ao parecer emitido [pela CADA] e no quadro dos regimes legislativos e regulamentares supra expostos, é [nosso] entendimento (…) que os dados solicitados devem ser obtidos por consulta à base de dados EudraVigilance.”

    Como o entendimento do PÁGINA UM é diferente, procuraremos criar condições para apresentar uma intimação ao Tribunal Administrativo contra este obscurantismo do Infarmed e das suas ligações pouco transparentes com a indústria farmacêutica. Em prol da verdade.

    Os apoios podem ser encaminhados directamente para a plataforna de angariação no MightyCause denominada “INFARMED – UMA LUZ PARA A TRANSPARÊNCIA” com o objectivo específico de suportar custos de patrocínio jurídico e demais despesas correlacionadas.

  • Calor matará mais nas áreas metropolitanas de Portugal, mas frio será menos mortífero

    Calor matará mais nas áreas metropolitanas de Portugal, mas frio será menos mortífero

    Estudo de modelação matemática prevê cenários das alterações climáticas por via do aumento da temperatura do ar na segunda metade do século XXI para as Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto. Mais mortes por causa de ondas de calor, sobretudo nos idosos, mas havendo menos frio no Inverno a mortalidade associada também aos surtos gripais e outras afecções típicas desta estação do ano diminuirão.


    As ondas de calor no Verão causarão na segunda metade do século XXI um acréscimo na mortalidade da população idosa na Área Metropolitana de Lisboa que pode superar os 2%. No entanto, o aquecimento global terá, em contraponto, um efeito positivo no Inverno: as vagas de frio poderão ser menos intensas e frequentes, resultando numa redução das mortes.

    Estas são as principais conclusões de um estudo, com recurso a modelos matemáticos, realizado por Mónica Rodrigues, investigadora no Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT) da Universidade de Coimbra, que previu o impacto das alterações climáticas entre 2051 e 2065 (curto prazo), e entre 2085 e 2099 (longo prazo) das duas áreas metropolitanas do país: Lisboa (AML) e Porto (AMP).

    Embora os mais vulneráveis aos efeitos climáticos sejam os idosos (maiores de 65 anos), o estudo estima que na AML todas as faixas etárias sejam afectadas por ondas de calor no Verão. Nesta região espera-se que a mortalidade aumente em 1,58% nos primeiros 15 anos da segunda metade deste século, e em 0,10% nos últimos 15 anos face ao período histórico de referência (1991-2005). No entanto, no caso dos idosos, esse excesso será de 2,2% no período 2085-2099 face a 1991-2005.

    Os efeitos na Área Metropolitana do Porto (AMP) serão, contudo, muito mais moderadas, e apenas incidindo nos maiores de 65 anos. Para os idosos estima-se um aumento de 0,23% e de 1,37%, a curto e a longo prazo, respectivamente, na mortalidade associada ao calor. Tal efeito distinto deve-se às menores temperaturas registadas no litoral Norte do país, onde mesmo no Verão, na actualidade, são pouco frequentes os dias acima dos 30 graus centígrados.

    Se, por um lado, se prevê um agravamento do impacto do calor no Verão, o frio extremo será menos frequente e isso resultará em menos mortes. Neste aspecto, o estudo da investigadora do CEGOT calcula uma redução na ordem de 0,55% para o primeiro período e de 0,45% para o segundo período face ao período de referência (1991-2005).

    O panorama para a AMP – onde faz mais frio no Inverno do que na AML – é até favorável neste aspecto, sendo previsível uma diminuição das mortes causadas pelas baixas temperaturas na ordem de 0,31% a curto prazo e de 0,49% a longo prazo.

    Apesar do clima mediterrânico com Inverno amenos, Portugal é um dos países da Europa com maior mortalidade causada pelo frio. A exposição a baixas temperaturas produz alterações na pressão arterial, causando vasoconstrição e aumentando os níveis plasmáticos de fibrinogénio e colesterol, enquanto a inalação de ar frio está relacionada um maior risco de bronquite, pneumonia e exacerbação aguda de doenças pulmonares crónicas, sobretudo em pessoas idosas.

    Num estudo publicado em 2015 na revista científica Journal of Public Health sobre o excesso de mortalidade no Inverno em três dezenas de países europeus, através do cálculo de um índice que incluía as mortes nas outras estações do ano, Portugal surgia como o segundo pior, apenas atrás de Malta, e logo seguido por Chipre e Espanha, um fenómeno conhecido por “paradoxo do excesso de mortalidade invernal”.

    Mesmo em cidades com clima mais agreste no Inverno, o saldo mostra-se pior em Portugal. Por exemplo, um estudo publicado há pouco mais de dois anos na revista científica Urban Climate estimou que a taxa de mortalidade associada ao frio em Lisboa era de 53,2 óbitos por 100.000 habitantes, enquanto em Londres era de 37,6.

    Além da mortalidade, os custos económicos são também bastante elevados. Um estudo também publicado em 2019 por quatro investigadores portugueses na revista científica International Journal of Biometereology apurou que, no período 2009-2012, os custos associados ao internamento de pessoas relacionadas com o excesso de frio do Inverno foram de 214 milhões de euros, atingindo os 226 milhões de euros no triénio 2013-2016.

    Em declarações à Lusa sobre este seu estudo, que culminou em tese de doutoramento, Mónica Rodrigues explicou que, nesta fase, teve uma abordagem apenas sobre as áreas metropolitanas “por serem as mais populosas”, mas que pretende alargar às “outras zonas do país”.

    Para esta especialista, que tem também desenvolvidos estudos de Epidemiologia e as suas relações com as alterações climáticas, este tipo de investigação “pode e deve influenciar a formulação de políticas [públicas], passando estas a “incluir uma abordagem preventiva”, uma vez que são disponibilizados dados para “a identificação de zonas/áreas geográficas onde o risco [de saúde pública] é mais elevado”.

    Texto editado por Pedro Almeida Vieira

  • Infecções respiratórias em alta e urgências entupidas, mas DGS nada diz porque não é covid-19

    Infecções respiratórias em alta e urgências entupidas, mas DGS nada diz porque não é covid-19

    A “normalidade” sanitária quase reapareceu com a Guerra da Ucrânia e um boletim semanal minimalistas sobre a covid-19. Mas essa “normalidade” está a significar, basicamente, o retorno às urgências entupidas com o Governo e as autoridades de saúde a assobiar para o ar. Os valores totais da procura por cuidados médicos nos hospitais estão em valores máximos dos últimos seis anos. E não são só falsas urgências, porque os casos graves estão em alta. Os indicadores mostram, aliás, que a saúde geral dos portugueses anda presa por arames.


    Tempos de espera superiores a seis horas. Este era o cenário ontem à noite das urgências nos hospitais de Almada e Vila Franca de Xira para doentes de menor gravidade. Este tem sido o cenário cada vez mais habitual nos hospitais portugueses que têm estado a retomam à “normalidade” pré-pandemia, paradoxalmente mais caótica do que durante a pandemia.

    Com os casos de covid-19 a desaparecerem do espaço público e mediático – com a guerra da Ucrânia a dominar a comunicação social e a Direcção-Geral da Saúde (DGS) a limitar a informação a um boletim semanal minimalista –, os portugueses aparentam estar a “redescobrir” que estão doentes. E que existem hospitais.

    person with band aid on middle finger

    Resultado: na última semana, uma “avalanche” de idas às urgências está a entupir muitos hospitais que estão também a ser invadidos por doentes com infecções não-covid, incluindo casos de gripe.

    De acordo com o levantamento realizado pelo PÁGINA UM, na semana de 15 a 21 de Março deste ano registaram-se 131.507 visitas às urgências hospitalares, uma média diária próxima dos 19 mil pessoas. No dia 21 ultrapassou-se, pela primeira vez desde a chegada do SARS-CoV-2 ao território português, a fasquia dos 20 mil episódios de urgência.

    Na verdade, embora as autoridades de Saúde tenham sempre tentado criar uma ideia contrária, o período pandémico acabou por retirar bastante pressão hospitalar, sobretudo nos serviços de urgência. A média diária em 2020 – logo no início da pandemia – e em 2021 na semana de 15 a 21 de Março foi, respectivamente, de 10.802 e 7.052 doentes.

    Somatório dos episódios de urgências no período 15-21 de Março entre 2017 e 2022. Fonte: SNS

    Nos três anos anteriores à pandemia, para o período referido, a afluência era muito maior do que em 2020 e 2021, mas bastante inferior à do presente ano. Em comparação entre 2017 e 2019, o actual fluxo de idas às urgências regista um acréscimo que ronda os 12%.

    Mas existe um outro factor de preocupação. Ao invés de se observar uma tendência decrescente na procura de ajuda hospitalar com a entrada da Primavera, este ano observa-se uma tendência em contra-ciclo.

    Poder-se-ia pensar que advém de uma maior sensação de segurança para se correr aos hospitais, derivada da perda de mediatismo em redor da covid-19, mas existem outros sinais, a começar pelo ressurgimento em força de outras infecções respiratórias, incluindo a gripe. O vírus da influenza esteve, aliás, “incógnito” durante mais de um ano, a tal ponto que uma gripe se tornou quase doença rara no SNS.

    Segundo os dados de monitorização do Serviço Nacional de Saúde (SNS), desde 2017, a recente semana de 15-21 de Março foi aquela com maior número de registos de infecções respiratórias não-gripais ou não-covid: 7.613. São valores acima daqueles que se encontram antes da pandemia, e supera largamente os casos contabilizados no período homólogo de 2020 e 2021: no ano passado registaram-se apenas 1.135 casos; em 2020 somente 3.788. A gripe, por sua vez, foi identificada em 602 casos que chegaram ao SNS; no ano passado, em período homólogo, foi apenas um.

    Em suma, aparentemente desapareceu o SARS-Cov-2, mas reaparecerem todos os outros vírus e também bactérias que afligiam antes os seres humanos. Por onde andavam, a Ciência tratará de responder.

    Somatório dos casos registados de gripe e de outras infecções respiratórias no período 15-21 de Março entre 2017 e 2022. Fonte: SNS

    Certo é que, sobre esta matéria, a DGS mantém-se em silêncio, e não se encontra qualquer despacho ou informação relevante no seu site sobre quais os agentes infecciosos responsáveis. Os dados do SNS revelam apenas que a gripe reapareceu, após dois anos “escondida”: entre 15 e 21 de Março último contabilizaram-se 602 casos de gripe, valores mesmo assim em linha expectável com o esperado em anos anteriores ao surgimento do SARS-CoV-2.

    Não se julgue, porém, que a subida nos números de urgência se deva sobretudo à crónica postura dos portugueses em recorrerem aos hospitais por qualquer motivo. Sendo certo que apenas 2,5% das idas às urgências na semana de 15-21 de Março de 2022 resultaram em internamento, o número de casos mais graves (emergência, muito urgente e urgente) é bastante elevado.

    De facto, considerando a Triagem de Manchester, no período em análise deste ano contabilizaram-se 62.445 doentes triados nas urgências, dos quais 376 com pulseira vermelha (emergência), 11.069 com pulseira laranja (muito urgente) e 51.000 com pulseira amarela (urgente). Em termos absolutos, estes valores são os mais elevados face ao período homólogo entre 2017 e 2021.

    Indicadores de urgência hospitalar no período de 15-21 de Março entre 2017 e 2022. Fonte: SNS

    Este cenário indicia sobretudo que o estado de saúde geral dos portugueses é deplorável no “rescaldo” da pandemia. Recorde-se que nos últimos dois anos registou-se um excesso de mortalidade da ordem dos 27 mil óbitos, sendo Portugal o país da Europa Ocidental com saldo mais desfavorável em comparação com os cinco anos anteriores à pandemia.

    Ora, aparentemente, essa sangria populacional, que “sacrificou” os mais vulneráveis, afinal nem trouxe qualquer “robustecimento” na saúde geral. Pelo contrário, observando-se agora mais pessoas a necessitarem de atendimento médico urgente – e com menos população idosa –, uma triste conclusão terá de se retirar: a gestão da pandemia e a estratégia governamental de suspender muitos serviços médicos nos últimos dois anos deixou muitas mazelas aos “sobreviventes”.

    Uma população com a saúde “presa por arames”. As urgências, agora, que o digam.

  • Ontem foi o dia com mais urgências hospitalares desde 26 de Dezembro de 2019

    Ontem foi o dia com mais urgências hospitalares desde 26 de Dezembro de 2019

    notícia actualizada e desenvolvida AQUI.


    A pandemia parece estar no seu epílogo, mas as outras doenças não estão a dar tréguas aos portugueses.

    Durante o dia de ontem, 21 de Março, os hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) atenderam 20.742 doentes nas urgência, um valor nunca visto durante toda a pandemia da covid-19. É preciso recuar ao dia seguinte do Natal de 2019 para se encontrar um valor a superar a fasquia dos 20 mil e mais elevado: em 26 de Dezembro daquele ano, as urgências atingiram os 21.209 atendimentos.

    Raramente em Portugal se observam valores acima dos 20 mil serviços de urgência, algo que ocorre em períodos críticos do Inverno (e especialmente logo após o dia de Natal) ou quando ocorrem ondas de calor no Verão, como sucedeu em 7 de Agosto de 2018. Desde que existem registos diários (a partir de 2017), nunca houve nenhum dia de Primavera com tantas urgências.

    Evolução dos episódios de urgência desde 1 de Novembro de 2016 até 21 de Março de 2022. Fonte: SNS.

    Pela evolução mais recente, o máximo atingido ontem indicia um agravamento do estado geral da população portuguesa, pese embora a elevada mortandade dos últimos dois anos. Analisando o período de 15-21 de Março deste ano, com um total de 62.445 atendimentos em urgência, constata-se que representa um acréscimo de 74% face ao ano passado e de 166% em comparação com 2020.

    Saliente-se que há exactamente dois anos Portugal vivia uma onda de pânico no decurso da declaração do primeiro estado de emergência pelo presidente da República que mais não fez que provocar uma literal fuga aos hospitais. Curiosamente, o dia 21 de Março de 2020 foi aquele com o mais baixo número de urgências no SNS desde que existem registos diários: somente 5.883 atendimentos, ou seja, 28% do valor alcançado ontem.

    Somatório dos episódios de urgências no período 15-21 de Março entre 2017 e 2022. Fonte: SNS

    Estes dados constam do Sistema de Monitorização dos Serviços de Urgência, que estão a ser analisados pelo PÁGINA UM, que amanhã em detalhe uma situação que deveria merece especial atenção das autoridades de saúde, tanto mais que se está a observar um incremento preocupantes das infecções respiratórias não-covid nas últimas semanas.

  • Como convencer um povo pouco adepto das vacinas a vacinar-se agora?

    Como convencer um povo pouco adepto das vacinas a vacinar-se agora?

    A Ucrânia é um dos países europeus com mais baixas taxas de vacinação. Não apenas contra a covid-19, mas contra praticamente todas as outras doenças com imunizantes de eficácia histórica comprovada, por razões socio-económicas, por via dos conflitos internos e com a Rússia, e ainda pela influência dos movimentos anti-vacinas. A Direcção-Geral da Saúde publicou agora uma norma com um plano para vacinar os refugiados ucranianos, mas nem os cita. E nem diz como vai convencer um povo pouco atreito a “picas”.


    É tema quase tabu, sensível e manejado com pinças. No (quase) epílogo de dois anos de fortes restrições, muitas das quais polémicas e ainda em vigor, para controlo da pandemia causada pelo SARS-CoV-2, a Direcção-Geral da Saúde está agora perante um problema bicudo: controlar eventuais surtos de sarampo, poliomielite e tuberculose, além da própria covid-19, provenientes dos refugiados da Ucrânia.

    O problema é real, mas muito sensível do ponto de vista político e social, tanto assim que a palavra “Ucrânia” e “ucranianos” não consta na norma que a DGS fez sair discretamente, no sábado passado, sobre “vacinação de cidadãos estrangeiros no contexto de protecção temporária”.

    Refugiados ucranianos num centro de refugiados junto à fronteira polaca.

    A norma homologada por Graça Freitas refere apenas que “Portugal tem vindo a receber milhares de pessoas provenientes de países em conflito armado ou noutras situações muito desfavoráveis”, acrescentando que “uma das prioridades à chegada desses cidadãos”, nunca citando a nacionalidade, “é a vacinação”.

    Não os citando, porém, na prática esta norma visa implementar com urgência um plano para maximizar a inoculação em refugiados provenientes da Ucrânia com vacinas contra a covid-19, a gripe, o sarampo, a poliomielite e a tuberculose. E a razão é simples: a DGS, tal como outras congéneres europeias, teme surtos já há muito não vistos na Europa mais modernizada.

    O assunto é melindroso, mas já debatido de forma pela comunidade científica, como se observa por um artigo de investigadores italianos publicado na semana passado na Lancet.

    No caso da covid-19, sabia-se já que a situação ucraniana em finais de Fevereiro passado era de grande atraso no programa de vacinação, com apenas 34,5% da sua população com dose duplas. E naquele mês, a Ucrânia estava ainda a atravessar um surto, com 240 óbitos diários – equivalente a cerca de 55 mortes em Portugal –, aquando do início das hostilidades.

    Porém, o problema sanitário naquele país – e em consequência dos refugiados ucranianos – assume uma maior dimensão, e decorre em parte do atraso histórico de desenvolvimento, mas também muito dos conflitos internos iniciados em 2014.

    Há ainda outro factor delicado: por razões variadas, os ucranianos não são indefectíveis adeptos das vacinas. Não só daquela contra a covid-19, mas de todas. E por esses e outros motivos estão na cauda da Europa em muitos indicadores de saúde.

    Desde a desagregação da União Soviética, a Ucrânia tem sofrido um dramático decréscimo das condições de vida da sua população, agravado pelos conflitos a leste do país e a uma emigração massiva.

    A consequência mais visível foi uma brutal redução populacional, passando de quase 52 milhões de habitantes em 1991 para apenas 42 milhões no final da década passada. O número de nascimentos diminuiu de 641 mil, em 1991, para um pouco menos de 364 mil em 2017.

    Colocado na 40ª posição a nível europeu no Índice de Desenvolvimento Humano, e no lugar 74 à escala mundial, a Ucrânia enfrentava já uma crise humanitária atingindo cinco milhões de pessoas, das quais 3,8 milhões a precisar de serviços de saúde de emergência, de acordo com o Escritório Regional para a Europa da Organização Mundial da Saúde (OMS-ERE). A taxa de mortalidade infantil é ainda extremamente elevada: 8,1 óbitos por 1.000 nascimentos, mais de três vezes superior à portuguesa (2,4).

    O sarampo é hoje ainda endémico na Ucrânia, causada por bolsas de não-vacinados.

    Em 2012 um surto atingiu cerca de 12 mil pessoas, e mais tarde um ainda mais grave, iniciado em 2017 e que se prolongou por até 2020, afectou mais de 115.000 pessoas, tendo causado a morte de 41, incluindo 25 crianças.
    Este foi considerado um dos maiores surtos na Europa desde o início do presente século.

    Uma das regiões mais atingida foi Chernivtsi, no sudoeste da Ucrânia, próximo da Roménia, com 6.427 casos, dos quais dois terços eram crianças. De entre os doentes, 63% não estavam vacinados.

    Num artigo científico publicado em 2019 por Roman Rodyna, vice-director do Departamento de Vigilância Epidemiológica do Centro de Saúde Pública da Ucrânia, são apontadas as causas: a taxa de vacinação “diminuiu significativamente, durante o período 2008-2016, passando de 96% para 45%, devido a problemas na aquisição de vacinas no país e a campanhas de antivacinação”. Em 2016, apenas 31% das crianças elegíveis tinham sido vacinadas contra o sarampo, a papeira e a rubéola.

    Outro problema é a tuberculose. Há cerca de um ano, a OMS-ERE alertava que, embora em tendência decrescente, a incidência de tuberculose na Ucrânia era ainda de 42,2 casos por 100.000 habitantes, isto é, três vezes superior à de Portugal (14,2 casos).

    Direcção-Geral da Saúde tem novo e espinhoso desafio.

    O organismo internacional estimava que em 2018, entre os casos confirmados bacteriologicamente na Ucrânia, 6.900 pessoas tinham tido tuberculose resistente a medicamentos, representando 29% dos novos pacientes e 46% dos doentes previamente tratados. Essas taxas eram consideradas “altas” em comparação com outros países do leste europeu.

    Os dados mais recentes disponíveis mostram que a taxa de vacinação na Ucrânia com uma dose da vacina Bacillus Calmette-Guérin (BCG) foi de 75% em 2016, subindo para os 84% em 2017, ainda aquém dos níveis recomendados pela OMS (90%).

    As taxas de vacinação na Ucrânia contra outras doenças transmissíveis também são genericamente baixas ou mesmo muito baixas, sobretudo no decurso dos conflitos no leste da Ucrânia, na região de Donbass.

    De acordo com um artigo de investigadores do Departamento de Pediatria da Universidade ucraniana de Samy, em 2016 apenas 3% das crianças daquele país foram vacinadas contra a difteria, tosse convulsa e tétano durante os dois primeiros anos de vida.

    Também somente 44% das crianças menores de 18 meses de idade foram totalmente imunizadas contra a poliomielite.

    Por fim, a percentagem de bebés que receberam a vacinação completa contra o Haemophilus influenzae tipo b – causadora de graves infecções como a pneumonia e a meningite em crianças – também sofreu uma drástica diminuição com os conflitos iniciados há oito anos. Em 2013 a cobertura vacinal era de 83% e caiu para apenas 39% quatro anos mais tarde.

  • Antigos bastonários da Ordem dos Médicos não poupam (agora) críticas à Direcção-Geral da Saúde

    Antigos bastonários da Ordem dos Médicos não poupam (agora) críticas à Direcção-Geral da Saúde

    Num debate organizado pela Cidadania XXI, na passada quarta-feira, Germano de Sousa e José Manuel Silva criticaram papel da Direcção-Geral da Saúde sobre a gestão da pandemia, e nem sequer se furtaram a abordar o tema dos processos intentados pela Ordem dos Médicos que já lideraram.


    José Manuel Silva, antigo bastonário da Ordem dos Médicos e actual presidente da autarquia de Coimbra, acusa a Direcção-Geral da Saúde (DGS) de se ter “transformado num órgão político” em vez de funcionar “um órgão exclusivamente técnico, como era suposto”.

    Num debate realizado na passada semana em Lisboa, o também antigo presidente da Sociedade Portuguesa de Aterosclerose, e que ocupou ainda o cargo de pró-reitor da Universidade de Coimbra, lamentou ainda que “muitas das decisões [no âmbito da gestão da pandemia] foram baseadas em política e não em evidência científica“, por via de uma demasiada centralização.

    Neste debate em torno da gestão da pandemia, promovido pela Cidadania XXI, outro antigo bastonário, Germano de Sousa, salientou a “impreparação indiscutível do Estado português para fazer face a esta epidemia”, exemplificando com o caso dos testes PCR e de antigénio, onde foram os laboratórios privados que os asseguraram.

    Debate da Cidadania XXI com a presença de Germano de Sousa (ao centro) e José Manuel Silva (à direita), com moderação de Carlos Alberto Gomes, colaborador do PÁGINA UM (à esquerda)

    Um dos aspectos que ambos os bastonários consideraram marcante ao longo dos dois anos da pandemia foi o medo, vindo desde o início com a chegada da covid-19 à Europa. Para José Manuel Silva, instalou-se, injustificadamente, “um clima de pânico, e houve uma dramatização excessiva com as imagens vindas de Itália“. E salientou ainda alguns erros iniciais, mesmo terapêuticos, que levaram a uma maior letalidade inicial da doença.

    Na sua opinião, houve algum “experimentalismo terapêutico“, evidenciado, por exemplo, na ventilação quase universal dos doentes, independentemente da idade. Recorde-se que, nos primeiros meses, mesmo idosos foram ventilados em unidades de cuidados intensivos, uma prática que se reveliu fatal e se modificou ao longo do tempo.

    Para agravar a sensação de medo e pânico na sociedade, a DGS e a comunicação social também deram um importante contributo, segundo estes dois antigos bastonários. José Manuel Silva considerou que as estatísticas oficiais da covid-19 foram divulgadas com o intuito de “fomentar o medo da população”, mas o seu maior impacte social deveu-se muito à falta de “cultura médica” da população quando essa informação chegava pelos media.

    person lying on bed and another person standing

    Germano de Sousa qualificou mesmo a cobertura da pandemia pela imprensa como “chocante“. “Eu abria a televisão e via o Rodrigo Guedes de Carvalho a contar-nos histórias arrepiantes, mudava de canal e era la même chose“, afirmou. “Eu percebo que tenha dado para vender jornais, se eu fosse dono de uma empresa de televisão se calhar também tinha feito o mesmo, mas criou-se um ambiente terrível“, lamentou.

    A utilidade da testagem massiva da população, defendida como medida central no controlo da pandemia, também foi posta em causa por estes antigos líderes dos médicos portugueses. Germano de Sousa defendeu que este método só faz sentido “se for possível controlar e isolar os infectados“, algo que nem sempre foi possível. “Na verdade, gostava que me explicassem se [a testagem massiva] serviu de alguma coisa“, reforçou.

    No entanto, convém referir que Germano de Sousa é fundador e administrador de um dos principais laboratórios de diagnóstico e análises clínicas de Portugal. Conforme o PÁGINA UM revelou, no primeiro ano da pandemia, em 2020, e muito em virtude dos testes para a covid-19, a sua empresa apresentou um lucro de 31,1 milhões de euros, cerca de quatro vezes mais do que no ano anterior.

    Sobre a eficácia dos testes como opção adequada para diagnóstico da covid-19, José Manuel Silva também salientou a polémica em redor dos ciclos de amplificação nos testes PCR. Este antigo bastonário revelou ter chegado a pedir que lhe fosse indicado o número de ciclos utilizados, mas ter-lhe-ão dito que “os médicos não sabiam interpretar essa informação“.

    José Manuel Silva considerou que o problema dos testes positivos não se circunscreveu ao diagnóstico, mas também à própria gestão hospitalar ou das pessoas em quarentena. “Houve casos de pessoas já recuperadas, mas que continuaram isoladas ou internadas, porque tinham ainda testes positivo; e isso quando já existia evidência científica de que um resultado positivo não significava que a pessoa tivesse material genético viável ou que contagiasse“, salientou.

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    A polémica vacinação de crianças para a covid-19 – que motivou, no final de Janeiro passado, um abaixo-assinado por 27 médicos a pedir a suspensão imediata da inoculação de jovens e crianças – foi considerada “desnecessária“ por estes dois ex-bastonários.

    Germano de Sousa considerou ser “inaceitável, do ponto de vista deontológico, vacinar crianças para proteger os mais velhos“, isto mesmo sabendo-se que o programa de vacinação não concederia qualquer imunidade de grupo.

    Além disto, José Manuel Silva reforçou que, aquando da decisão da DGS, “não havia evidência científica de que vacinar os mais novos mudasse o curso da pandemia“.

    Para a insistência em se vacinarem crianças, o também presidente da Câmara de Coimbra lamentou que a DGS seja, em Portugal, “uma entidade de saúde que se limita a imitar com atraso o que os outros países determinam“. E advoga ainda que os portugueses deviam estar já a fazer uma vida normal desde Setembro – mês em que se atingiu uma cobertura vacinal de 84% da população –, lamentando a lentidão no alívio das restrições.

    Também em debate esteve a actuação da Ordem dos Médicos durante a pandemia, com Miguel Guimarães como bastonário, pautada pela abertura de diversos processos disciplinares a médicos, entre os quais Fernando Nobre, fundador da AMI e antigo candidato a presidente da República. Sobre este ponto, Germano de Sousa frisou que, por princípio, “não se deve punir ninguém por delitos de opinião“.

    Por sua vez, José Manuel Silva posicionou-se contra qualquer “unanimismos“, defendendo que a Ordem dos Médicos “deve promover o debate sem receios“, pese embora se tenha de cumprir a “leges artis” (métodos e procedimentos, comprovados pela ciência médica), que a “liberdade não é total”.

    Texto editado por Pedro Almeida Vieira

  • Excesso de mortes em crianças norte-americanas foi afinal um erro informático

    Excesso de mortes em crianças norte-americanas foi afinal um erro informático

    Organismo norte-americano que faz gestão da covid-19 corrigiu número de óbitos, que caíram em todos os grupos etários, mas especialmente nas idades pediátricas. Porém, desde o início do ano, os números alarmantes de supostos internamentos e mortes de menores nos Estados Unidos fizeram parte da campanha comunicacional para convencer pais a vacinarem as crianças contra a covid-19.


    Um alegado erro informático “limpou” mais de 72 mil mortes indevidamente atribuídas à covid-19 em 26 estados norte-americanos, incluindo 416 óbitos em crianças, admitiu ontem o Centers for Disease Control and Prevention (CDC), o organismo federal que supervisiona a gestão da pandemia naquele país da América do Norte. A justificação do CDC, apresentada em comunicado à agência Reuters, remete para “ajustes de mortalidade do Covid Data Tracker em 14 de Março, porque o algoritmo estava contando acidentalmente mortes que não estavam, relacionadas com a covid-19”.

    A correcção administrativa das mortes atribuídas à covid-19 atingiu todas as faixas etárias, mas no caso dos menores de 18 anos a redução foi de 24%, passando de 1.757 óbitos para 1.341.

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    Tendo em conta que a população menor de idade nos Estados Unidos ronda os 74 milhões (22,3% do total), segundo o United States Census Bureau, o número de mortes nesta faixa etária é o equivalente a 31 óbitos em Portugal para o grupo homólogo.

    Recorde-se que, em Portugal, apenas se registaram até ao momento a morte de quatro menores de idade, todos com graves comorbilidades. E saliente-se também que os Estados Unidos tem sido um dos países desenvolvidos que mostra maiores disparidades sociais em termos de impacte da covid-19, com a incidência da hospitalização a ser quatro vezes superior na população negra adulta em comparação com a população branca.

    O jornal digital Washington Examiner, de postura política conservadora, adiantou, entretanto, que a Covid Data Tracker empolou sobretudo as mortes de menores nas primeiras semanas de 2022, numa altura em que se intensificavam os programas de vacinação. Muitos órgãos de comunicação social, também em Portugal, foram aliás lestos a divulgar uma onda de internamentos de crianças nos Estados Unidos, que aparenta agora ter sido falsa.

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    Uma notícia da Agência Lusa no início de Janeiro, reportando o internamento de “cerca de 1.000 crianças” norte-americanas num só dia, teve eco, por exemplo, no Diário de Notícias, no Observador e na SIC.

    Com um título mais alarmante, o canal televisivo da Impresa noticiaria, em 17 de Janeiro, que a Ómicron seria a responsável por aquela situação.

    Ainda recentemente, na edição de 11 de Março, o jornal britânico The Guardian relatava que “um terço de todas as mortes infantis” por covid-19 nos Estados Unidos tinham ocorrido durante o surto da Ómicron. Fazia crer assim que esta variante, claramente menos letal para a população mais vulnerável, poderia ser afinal mais perigosa para crianças e adolescentes.

    Algo que, com a correcção do CDC, mostrou ser falso. O jornal do Reino Unido viria mesmo a rectificar a notícia original anteontem, passando a titular que afinal, em vez de um terço (33%) das mortes era “um quinto” (20%), anotando também que o erro da notícia se devera a “um erro de codificação” do CDC.

    Apesar do alarmismo em redor da covid-19 em idade pediátrica, o impacte efectivo neste grupo populacional é irrelevante no ponto de vista da saúde pública. De acordo com dados do CDC, os menores de 5 anos representam 6% da população e apenas constituem 0,1% dos óbitos causados pela pandemia, o que contrasta com a situação dos maiores de 85 anos: são apenas 2% da população dos Estados Unidos, mas aí se concentraram 26,7% dos óbitos. A população com mais de 65 anos (16,5% do total) registou 75,2% de todas as mortes por covid-19.

    Em Portugal, a mortalidade por covid-19 ainda é mais residual nas faixas etárias inferiores. Os menores de idade representam cerca de 17% da população, e os quatro óbitos registados constituem 0,02% do total. Já a população com mais de 60 anos concentra 95,5% da mortalidade atribuída à covid-19, representando 30% da população.