O PÁGINA UM analisou o desempenho do Serviço Nacional de Saúde (SNS) ao longo da pandemia, entre Março de 2020 e Janeiro de 2022, face aos períodos anteriores. Duas evidências: Janeiro de 2021 foi um descalabro inimaginável nos hospitais portugueses; e a culpa não foi apenas da covid-19. Houve “departamentos” hospitalares importantes que pioraram as taxas de mortalidade ao longo da pandemia, mesmo com muito menos doentes.
O colapso do Serviço Nacional de Saúde durante a pandemia, sobretudo no Inverno de 2020-2021 – em que se assistiu a um recorde de mortes nos hospitais portugueses –, não se deveu somente aos casos de covid-19.
Mais uma análise do PÁGINA UM à base de dados da morbilidade e mortalidade do Portal da Transparência do SNS revela, desta vez, que o incremento na mortalidade hospitalar, em especial em Janeiro de 2021, atingiu níveis elevados sobre os internados com covid-19. Mas também os internados por doenças do aparelho respiratório e por doenças infecciosas e parasitárias (códigos A e B da CID – Classificação Internacional de Doenças), e outras doenças, tiveram menores chances de sobrevivência do que aqueles que sofreram dos mesmos males antes da pandemia.
De acordo com os registos dos internamentos e dos óbitos por mês, desde 2017, para cada grupo de doenças, o mês de Janeiro do ano passado mostrou uma situação catastrófica nos hospitais portugueses, com uma taxa de mortalidade global de 14,1%. Em termos comparativos, o mês homólogo nos quatro anos anteriores situou-se entre 6,9% em 2020 e 7,6% em 2017. Este ano, este rácio “normalizou”, fixando-se em 7,5%.
O peso da covid-19 para este descalabro foi importante, mas longe de ser único. Com efeito, em Janeiro de 2021, efectivamente a mortalidade hospitalar dos internados atingiu valores máximos (31,7%), muito acima do valor médio desta doença desde que surgiu em Portugal a partir de Março de 2020 (22,4%).
Variação da taxa de mortalidade hospitalar (%) por mês para a covid-19 e para todas as doenças. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Porém, sobretudo nas doenças infecciosas e parasitárias, e também nas doenças do aparelho respiratório, o mês de Janeiro de 2021 foi também de hecatombe. Ou seja, quem esteve internado com doenças daqueles tipos nos hospitais viu a sua chance de sobrevivência baixar significativamente.
No caso dos internados por doenças do aparelho respiratório, a taxa de mortalidade em Janeiro de 2021 foi de 27,8%, muito mais do dobro dos valores registados no mês homólogo dos quatros anos anteriores.
De facto, no ano imediatamente anterior – em vésperas da chegada da covid-19 e num período em que a gripe e subsequentes infecções respiratórias estavam pouco agressivas –, a taxa de mortalidade hospitalar situou-se apenas nos 11,8%. Nos anos anteriores foi um pouco mais elevada, mas longe do desastre de 2021: atingiu os 14,2% em 2017 (com um surto gripal de alguma agressividade), e foi de 12,7% e 12,9% em 2018 e 2019, respectivamente.
Variação da taxa de mortalidade hospitalar (%) por mês para a covid-19 e para as doenças do aparelho respiratório. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Este ano, a taxa de mortalidade hospitalar por doenças respiratórias foi de 16,1%, muito inferior ao valor do ano passado, mas mesmo assim bastante superior aos valores normais para esta época do ano.
Relativamente às doenças infecciosas e parasitárias dos grupos A e B do CID, a situação em Janeiro de 2021 foi também dramática, tendo a taxa de mortalidade hospitalar atingido os 38,7%, ou seja, mesmo acima da covid-19 para aquele mês. No mês homólogo de 2017 a 2020, esta taxa situou-se no intervalo entre 24,5% e 27,0%. Em Janeiro deste ano, este rácio já se normalizou, tendo ficado nos 27,1%.
Embora o mês de Janeiro de 2021 evidencie um agravamento colossal – na verdade, um colapso – da capacidade de resposta do SNS, apesar da redução de 270 mil internados em 2020 e 2021 face ao biénio anterior, ao longo da pandemia as taxas de mortalidade pioraram em quase todos os grupos de doenças.
Variação da taxa de mortalidade hospitalar (%) por mês para a covid-19 e para as doenças infecciosas e parasitárias (códigos A e B). Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Com efeito, de entre os grupos de doenças de prognóstico de internamento mais incerto – com taxa de mortalidade hospitalar acima dos 10% antes da pandemia –, apenas nas neoplasias se observou uma ligeira redução, passando de 12,5% nos 23 meses anteriores à pandemia (Abril de 2018 a Fevereiro de 2020) para os 11,9% entre Março de 2020 e Janeiro de 2022 (23 meses).
Contudo, durante a pandemia, face ao período anterior, foram internadas menos 33.175 pessoas com doenças oncológicas. Ou, pelo menos, não foram internadas como sofrendo de cancros. Nem os óbitos, se ocorreram, tiveram essa causa apontada.
Variação da taxa de mortalidade hospitalar (%) por mês para a covid-19 e para as neoplasias. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Mas nos casos das doenças infecciosas e parasitárias dos grupos A e B e das doenças do aparelho respiratório a taxa de mortalidade média durante a pandemia foi substancialmente superior à do período anterior. No primeiro grupo subiu de 20,0% para 25,6%; no segundo grupo cresceu de 13,1% para 17,2%.
Em termos globais, incluindo a covid-19, e confrontando os dois períodos acima referidos, a taxa de mortalidade hospitalar subiu de 6,1% para 7,3%. Significa que a taxa de mortalidade hospitalar sofreu um agravamento de 20%. Porém, se se retirar os internamentos e óbitos da covid-19, o agravamento para as outras doenças também se verifica, embora em menor grau (mais 9%), passando de 6,1% para 6,6%.
Taxas de mortalidade hospitalar por grupo de doenças no período pré-pandémico (Abril de 2018 a Fevereiro de 2020) e pandémico (Março de 2020 a Janeiro de 2022) e variações de internados e de óbitos. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Convém, contudo, destacar que, se se não contabilizar os internados-covid, os internamentos por todas as outras doenças entre Março de 2020 e Janeiro de 2022 decaíram 21,4% (menos 360.266 internamentos) face ao período entre Abril de 2018 e Fevereiro de 2020.
Essa variação deve-se sobretudo à queda nos internamentos das doençasdo aparelho respiratório, em parte devido ao “desaparecimento”da gripe (e das pneumonias associadas) durante a pandemia.
Mas assistimos asima um estranho paradoxo: uma menor pressão hospitalar nas áreas dedicadas a doenças não-covid acabou por resultar, afinal, num agravamento das respectivas taxas de mortalidade, o que mostra que nem todas as responsabilidades sobre o excesso de mortalidade se pode assacar ao SARS-CoV-2 e à covid-19.
Existe, contudo, um aspecto que deverá merecer maior investigação.
O agravamento das taxas de mortalidade nas outras doenças não se deveu a um maior número de óbitos – na maior parte dos grupos de doenças houve um decréscimo absoluto –, o que pode indiciar que tanto os internamentos como os óbitos em determinadas doenças estarão subestimados porque foram “endossados” à covid-19 apenas devido a, no momento da hospitalização, os doentes estavam com teste positivo.
Nota: Nesta análise, as taxas de mortalidade foram calculadas em função do número de óbitos e de internamentos ocorridos em cada mês. Obviamente, este indicador mensal não reflecte a taxa efectiva de mortalidade durante cada um dos períodos (ou, se assim se desejar, o risco de morte por internamento), porque os óbitos ocorridos em determinado mês são também de doentes internados em meses anteriores. No entanto, este rácio, assim calculado, e na falta de dados mais discriminados, constitui um adequado indicador de desempenho do SNS.
Uma análise de dados oficiais feita pelo PÁGINA UM revela que dar prioridade máxima ao tratamento da covid-19 teve um efeito secundário inesperado (ou não): os internados por doenças respiratórias não-covid tiveram um risco acrescido de morte. E a grande surpresa é que, em determinados períodos, sobretudo na Primavera e Verão de 2020 e 2021, as doenças respiratórias até registaram taxas de mortalidade hospitalar superiores à da covid-19. E mais: a opção inicial de entubar doentes idosos terá sido catastrófica.
Durante a pandemia, entre Março de 2020 e Janeiro de 2022, a taxa de mortalidade hospitalar dos doentes-covid foi apenas 30% superior à registada nos internados com doenças respiratórias. Esta é uma das principais revelações da análise feita pelo PÁGINA UM aos dados da morbilidade e mortalidade do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Mas esta situação deveu-se também a um outro problema: com a pandemia, e uma priorização à covid-19, os doentes com doenças respiratórias não-covid viram a sua chance de sobrevivência diminuir.
De acordo com a análise, a taxa de mortalidade hospitalar dos internados-covid – medida de uma forma simplista, face à ausência de informação mais detalhada, pelo número de mortes em cada mês em função dos internados nesse mês – foi de 22,4% entre Março de 2020 e Janeiro deste ano. Ou seja, em cada 1.000 internados acabaram por morrer 224.
Essa taxa é calculada face ao número oficial de internamentos por covid-19 nos hospitais públicos naquele período (59.916 pessoas) e ao número efectivo de óbitos nos hospitais do SNS causados por covid-19 (13.397 mortes).
Convém referir que o Ministério da Saúde não explicou ainda como cerca de um terço dos óbitos por covid-19 anunciados pela Direcção-Geral da Saúde não ocorreram afinal numa unidade de saúde, face à infecciosidade da doença e ao facto de o agravamento do estado de saúde recomendar sempre um internamento.
Em todo o caso, esta taxa de mortalidade hospitalar da covid-19 (22,4%) pode ser considerada bastante mais elevada face ao que se registava no período pré-pandemia para as outras doenças respiratórias, mas já não tanto naquilo que veio a suceder durante o período pandémico.
Com efeito, segundo os dados do SNS, entre Janeiro de 2017 e Fevereiro de 2020 (38 meses), a taxa de mortalidade hospitalar em internados por doenças respiratórias foi de 13,2%, correspondente a 43.715 óbitos em 330.341 internados.
No entanto, com o surgimento da pandemia – e a menor atenção concedida a todas as outras afecções –, a taxa de mortalidade hospitalar por doenças respiratórias deu um pulo, atingindo um agravamento de 4 pontos percentuais.
Ou seja, se antes da pandemia, por cada 1.000 internados por doenças respiratórias morriam 132 pessoas, após Março de 2020 passaram a morrer 173 por cada mil. Este agravamento também se observa pela variabilidade da taxa de mortalidade.
Taxa de mortalidade (%) geral dos internados nos hospitais do SNS por mês desde Janeiro de 2017 por doenças do aparelho respiratório e por covid-19. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Se antes da pandemia, o risco de mortes nos hospitais por doenças respiratórias não sofria grandes variações ao longo do ano – variando entre os 11% e os 16% –, os “desarranjos” nos hospitais do SNS causaram oscilações caóticas, superando em alguns meses os 20%.
Em determinados períodos, a taxa de letalidade das doenças respiratórias chegou a ser mesmo superior à da covid-19 em dois períodos longos: entre Março e Setembro de 2020 e entre Março e Agosto de 2021.
Mesmo no pico da letalidade da covid-19 – Janeiro de 2021 –, em que a taxa de mortalidade desta doença atingiu um máximo de 31,7% (ou seja, quase uma em cada três pessoas internadas por causa do SARS-CoV-2 acabaram por não sobreviver), a taxa de mortalidade hospitalar por doenças respiratórias alcançou os 24%, isto é, o dobro da situação habitual num Inverno.
Mas a análise do PÁGINA UM também conseguiu destacar os níveis diferentes de letalidade em função da idade dos internados, confirmando não apenas que o risco é incomensuravelmente superior nos mais idosos, mas também indiciando que, na fase inicial da pandemia, algo terá corrido mesmo muito mal nas decisões terapêuticas, sobretudo nos maiores de 65 anos.
De facto, se se confrontar a taxa de mortalidade dos menores de 65 anos, a covid-19 não se mostrou uma catástrofe em termos efectivos nesta faixa etária: em cada 1.000 internados, 58 não sobreviviam. Se se analisar os mais jovens, então o risco de morte foi extremamente baixo.
Taxa de mortalidade (%) dos internados com menos de 65 anos nos hospitais do SNS por mês desde Janeiro de 2017 por doenças do aparelho respiratório e por covid-19. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Contudo, mesmo assim também a gestão hospitalar no período pandémico permitiu que as doenças respiratórias neste grupo etário se agravassem. Se antes da pandemia, raramente a taxa de mortalidade hospitalar por doenças respiratórias nos menores de 65 anos se situava acima dos 3%, com o surgimento do SARS-CoV-2 o panorama mudou.
Em alguns meses, as doenças respiratórias não-covid registaram uma taxa de letalidade nesta faixa etária acima dos 5%, atingindo mesmo os 8,3% em Janeiro de 2021. Releve-se, contudo, que naquele mês a covid-19 atingiu um pico de 9,9% de mortalidade nos internados nesta faixa etária, mas esse foi um período de completo colapso do SNS.
Quanto ao risco de morte por covid-19 nos internados com mais de 65 anos, a análise do PÁGINA UM apurou que foi mais de cinco vezes superior (12.178 óbitos em 38.797 internados, ou seja, 31,4%) ao da faixa etária dos menores de 65 anos. Neste caso, se se comparar com a letalidade das doenças respiratórias, a covid-19 teve, sem dúvida um impacte significativo, mas longe de constituir uma catástrofe inédita.
Com efeito, no período de Janeiro de 2017 a Fevereiro de 2020, a taxa de mortalidade destas doenças rondavam os 192 óbitos por 1.000 internamentos. Significa, assim, que a covid-19 constituiu um acréscimo de risco de morte 64% face às doenças do aparelho respiratório para o grupo dos mais vulneráveis.
Taxa de mortalidade (%) dos internados com mais de 65 anos nos hospitais do SNS por mês desde Janeiro de 2017 por doenças do aparelho respiratório e por covid-19. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Porém, a pandemia trouxe também, como atrás referido, um agravamento significativo do risco de morte pelas habituais doenças respiratórias, uma vez que a taxa de mortalidade hospitalar subiu, nesta faixa etária, para 24,5%, quando antes da pandemia se situava nos 19,2%.
Relevante também é observar que a taxa de mortalidade atingiu valores perfeitamente absurdos em dois períodos para os maiores de 65 anos: em Janeiro de 2021 (com uma taxa de 40,1%) e em Março de 2020 (55,9%). No primeiro caso, deveu-se, em grande medida ao enorme fluxo de internamentos, a par de uma vaga de frio e do colapso do SNS.
Já quanto a Março de 2020 – o primeiro mês da pandemia em Portugal –, a elevada taxa de mortalidade hospitalar terá sido devido à opção, então seguida em outros países, como a Itália, de colocar todos os doentes com dificuldades respiratórias, mesmo idosos, em ventilação mecânica. A prática médica viria a revelar que esta foi uma opção com graves efeitos negativos.
Nota: Saliente-se que a taxa de mortalidade hospitalar não deve ser confundida com a taxa de letalidade de uma doença, que se mede em função dos óbitos por caso positivo, e independentemente do grau de gravidade. Não deve ser também confundido com a taxa de internamento. Destaque-se que até Janeiro deste ano se registaram cerca de 2,7 milhões de casos positivos, pelo que, tendo havido 59.916 internamentos, se contabiliza apenas uma taxa de internamento de 2,2%. Ou seja, por cada 1.000 casos positivos, 22 são internados. Se 22,4% dos internados acabam por não sobreviver, a taxa de letalidade é, deste modo, de 0,5%. Ou seja, 5 óbitos por cada 1.000 casos positivos.
A gestão da pandemia, com a criação dos “covidários” e o adiamento de muitas intervenções cirúrgicas não aliviou apenas os hospitais; fez “desaparecer” hospitalizações em todas as unidades de tratamento de doenças. Se nas alas covid e nas unidades de cuidados intensivos se deu o ‘litro’, em muitos outros departamentos houve médicos e outros profissionais de saúde que tiveram vida folgada durante a pandemia. Um paradoxo, porque em 2020 e 2021 se registou um acréscimo de mortalidade de 23 mil óbitos em Portugal, dos quase 19 mil atribuída à covid-19, embora para estes casos aplicando-se critérios muito discutíveis.
A covid-19 causou uma paradoxal redução generalizada dos internamentos em todas as valências hospitalares. De acordo com a análise do PÁGINA UM à base de dados da morbilidade e mortalidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS), durante 2020 e 2021 – os dois primeiros anos da pandemia – registaram-se quase menos 280 mil pessoas internadas do que nos dois anos anteriores (2018 e 2019).
Isto mesmo considerando que a covid-19 – a única doença que integra o grupo de “códigos para fins especiais” –, que só surgiu no final do primeiro trimestre de 2020 contribuiu com 57.227 internados entre Fevereiro de 2020 e Dezembro de 2021.
Um dos aspectos mais surpreendentes destes dados, agora analisados pelo PÁGINA UM, é a forte queda de internamentos por todas as causas, e envolvendo mesmo áreas sem qualquer ligação directa à covid-19.
Em certa medida, esta redução deveu-se à criação dos “covidários”, para onde seguiam, independentemente da gravidade, todas as pessoas a necessitarem de cuidados médicos, mesmo se sofressem de outros problemas de saúde mais prementes.
Contudo, também se deveu muito à redução das intervenções cirúrgicas com internamento – que resultaram de uma estratégia política – e, de igual modo, ao medo incutido que afastou muitas pessoas de irem aos hospitais mesmo em caso de sintomas agudos de elevada gravidade. Muitos terão morrido por esta opção. Recorde-se que se registou um acréscimo de mortalidade no biénio 2020-2021, face a 2018-2019, de 23.017 óbitos, sendo que 18.974 foram atribuídos à covid-19.
A queda no número de internados por todas as causas observou-se de forma marcante logo em Março de 2020. Com efeito, nos três anos anteriores à pandemia, os hospitais do SNS recebiam habitualmente entre 70 mil e 80 mil pessoas a necessitarem de internamento em cada mês, mas no início da pandemia, em Março de 2021, baixou para um pouco menos de 65 mil. Curiosamente, os dados do SNS indicam que houve um doente internado com covid-19 ainda em Fevereiro de 2020.
Em Abril de 2020 ainda desceu mais: 46.558 pessoas foram hospitalizadas. Nos meses seguintes, e até Dezembro do ano passado, o número de pessoas hospitalizadas por mês nunca recuperaram para os níveis pré-pandémicos.
Durante a pandemia, o mês com mais internados por todas as causas foi Outubro de 2020 com 67.080 pessoas. Em Dezembro do ano passado foram hospitalizadas apenas de 55.070 pessoas, um valor atípico. Por exemplo, no último Dezembro antes da chegada da pandemia tinham sido internadas 74.087 pessoas.
Número de pessoas internadas por mês (entre Janeiro de 2017 e Dezembro de 2021) por todas as causas em hospitais públicos. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
As unidades de tratamento hospitalar das doenças do aparelho respiratório não-covid foram as que mais “beneficiaram” com o surgimento da pandemia, sem prejuízo da covid-19 exigir uma logística e tratamento mais complexo. No entanto, tendo em conta que o SARS-CoV-2, a par com as medidas não-farmacológicas – uma redução substancial (ou desaparecimento efectivo) de vírus e bactérias causadoras de doenças respiratórias, os hospitais acabaram por beneficiar, nesse aspecto, de uma redução significativa da procura para tratamento.
Com efeito, de acordo com os dados do SNS, no biénio 2020-2021 foram internadas por doenças respiratórias não-covid menos 76.119 pessoas do que em 2018-2019. Significa isto que se se juntar os internados por covid-19 em 2019 e 2020 (um total de 57.227) aos internados por doenças respiratórias não-covid nesse período, então conclui-se que em 2018-2019 as unidades de pneumologia do SNS tiveram um fluxo maior de doentes.
Número de internados por mês (desde Janeiro de 2017 a Dezembro de 2021) de doenças do aparelho respiratório e de covid-19. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Na verdade, embora com taxa de letalidade maior do que a das pneumonias vulgares para as populações mais idosas, a covid-19 não implicou uma pressão descomunalmente superior nos hospitais do SNS, uma vez que se registou uma profunda queda no número de internados por pneumonias e doenças afins.
Se no período de 2017-2019 o número de internados por mês devido a doenças respiratórias se situava entre os 5.000 e os 15.000 – com os valores mais baixos a ocorrerem no Verão e os mais elevados no Inverno –, este padrão modificou-se substancialmente nos últimos dois anos.
Com o surgimento da covid-19, mesmo no Verão o decréscimo de doentes foi brutal. E no Inverno, as quedas foram completamente atípicas. Aliás, os dois piores meses da pandemia – Janeiro e Fevereiro de 2021, com 10.137 e 10.457 internados, respectivamente – coincidiram com os mais baixos números de internados por doenças respiratórias: para aqueles dois meses foram de apenas 4.396 e 3.558, respectivamente.
Se se comparar o número de internados por doenças respiratórias nos dois primeiros meses de 2021 – um total de 7.954 – com os internados nos meses de Janeiro e Fevereiro 2017 – com um surto gripal relevante, que levou à hospitalizações de 25.821 pessoas –, fica-se com uma ideia clara do impacte ao nível da pressão hospitalar do “desaparecimento” da gripe durante a pandemia.
No entanto, a pandemia aliviou fortemente outras áreas hospitalares como foram sobretudo os casos das unidades de tratamento de doenças do aparelho circulatório e digestivo e também de neoplasias (cancros).
Segundo os dados do SNS, confrontando o período 2018-2019 com 2020-2021, houve menos 37.800 internados (redução de 15,7%) por doenças do aparelho circulatório, menos 34.443 internados (redução de 19,5%) por doenças do aparelho digestivo e menos 30.759 internados (redução de 17,4%) por neoplasias.
Número total de internados por grupo de doenças nos biénios 2018-2019 e 2020-2021. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
O cenário, contudo, foi generalizado para todas as doenças e afecções, mesmo até em internamentos por lesões, acidentes, transtornos mentais e doenças dos olhos. Na análise realizada pelo PÁGINA UM, observam-se nove grupos de doenças com reduções superiores a 20%
Esse efeito observou-se mesmo nos internamentos relacionados com a gravidez (menos 12,4%), malformações congénitas e similares (menos 17,8%) e condições originadas no período perinatal (-29,0%), mas aí a causa foi outra: as opções da estratégia política do Governo que resultou numa incerteza económica que retraiu os casais na decisão de terem filhos.
São 14 os gráficos. O PÁGINA UM faz nova análise à base de dados da morbilidade e mortalidade do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS), desta vez pesquisando um indicador fundamental da pressão hospitalar: o número de dias de internamentos por mês desde 2017. Vimos cada um dos hospitais… em, pois bem, durante os dois primeiros anos da pandemia, houve muitos hospitais do SNS, a começar pelos de Lisboa, que nunca tiveram tanto “descanso”. O Ministério da Saúde fez-nos crer o contrário.
A pressão hospitalar sempre foi tema quente desde a chegada da pandemia da covid-19 a Portugal. Está de novo na hora do dia, graças a um histriónico director das urgências do Hospital de São João do Porto a pré-anunciar uma catástrofe apenas por um ligeiro acréscimo no fluxo de doentes nas últimas semanas. Como noutras ocasiões, desde Março de 2020.
A mensagem política e social ao longo da pandemia foi sempre no sentido de a covid-19 não sobrecarregar os serviços hospitalares e sobretudo as urgências, num país com mais de um milhão de pessoas sem médico de família.
Ficaram mesmo célebres as ambulâncias em frente ao Hospital de Santa Maria. Meta-se as palavras “hospitais” e “entupidos” no Google News, e encontraremos uma lista de notícias, umas mais clássicas anteriores à pandemia, outras mais recentes, de 2020, 2021 e mesmo deste ano.
Mas será isto mesmo verdade? Teremos médicos, enfermeiros e mesmo administradores hospitalares à beira da exaustão, como se nada houvesse parecido àquilo que sucedeu nos últimos dois anos.
Fomos fazer contas à vida nos locais onde se evita a morte. Melhor dizendo, o PÁGINA UM foi analisar, em detalhe, um dos indicadores fundamentais da pressão hospitalar: o número de dias acumulados de internamento nas unidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Os dias de internamento constituem não um retrato, como sucede nos picos conjunturais de afluência, mas sim um balanço de um período alargado (geralmente, um mês, um trimestre, um ano), permitindo aferir se existe uma variação relevante na procura de recursos materiais e humanos (médicos, enfermeiros, técnicos de saúde e auxiliares) para tratamento de doentes em situação mais delicada.
Para isso, recorremos a dados indesmentíveis – ou, pelo menos não desmentíveis, porque oficiais – pelo Ministério da Saúde ou pela imprensa que segue a “espuma dos dias”: a base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Independentemente de ter ocorrido, efectivamente, uma maior pressão em diversos sectores hospitalares – sobretudo dos profissionais de saúde que estiveram alocados ao tratamento dos doentes-covid, em grande parte pela maior logística e disponibilidade que exigiu –, os dados do SNS afinal revelam, globalmente, uma evidência que destoa da visão mais “popular”: desde 2017 – período a partir do qual existem registos mensais contabilizando dias acumulados de internamento –, o ano com menor pressão foi o ano passado.
Com efeito, no total dos 12 meses de 2021, contabilizaram-se 5.931.618 dias de internamento, o que contrasta com 6.411.908 dias registados em 2020, que incorporou 10 meses (Março a Dezembro) já afectados pela pandemia. Se considerarmos a média mensal de 2020-2021 (cerca de 514.313 dias de internamento) com a de 2017-2019 (597.694 dias), a queda é de 14%.
Na verdade, antes da pandemia, a pressão hospitalar – medida pela “procura” (ou ocupação) de camas para internamento –, mantinha-se mais ou menos estável, até porque dependia da disponibilidade dos hospitais, tanto em camas “físicas” como em pessoal para tratar os doentes.
De acordo com a base de dados do SNS, os dias de internamento por mês entre Janeiro de 2017 até Fevereiro de 2020 – em vésperas da chegada do SARS-CoV-2 a Portugal – variavam entre os 540 mil e os 660 mil, com os valores mais elevados a ocorrerem, geralmente, no primeiro trimestre de cada ano.
Porém, com a chegada da pandemia em Março de 2020, tudo mudou, sobretudo no mês seguinte, onde quem estava doente via um hospital como se fosse o diabo a ver uma cruz: fugia. Por esse motivo, Abril de 2020 nem sequer contabilizou 440 mil dias de internamento, uma descida de quase 27% face ao mês anterior.
Número de dias de internamento em cada mês na totalidade das unidades do Serviço Nacional de Saúde desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Nos meses seguintes registar-se-ia um ligeiro aumento do número de dias de internamento, até que em Outubro de 2020 a pressão hospitalar atingiu valores considerados normais.
Contudo, com a intensificação da pandemia, e sobretudo com o surgimento da pior fase da covid-19 entre Dezembro de 2020 e Fevereiro de 2021, registou-se nova redução neste indicador.
Mas passada a tempestade, e apesar da manutenção das restrições, justificadas em parte para não sobrecarregar os hospitais com doentes-covid, o número de dias de internamento foram suavemente diminuindo. E mesmo com a chegada do último Inverno. Na verdade, desde Maio de 2021 o número acumulado de dias de internamento estiveram sempre abaixo dos 500 mil por mês. Ora, entre 2017 e 2019 contabilizam-se 16 meses acima de 600 mil dias de internamento.
As realidades foram, contudo, bastante distintas de unidade de saúde para unidade de saúde.
Para fazer uma análise mais fina, o PÁGINA UM seleccionou os centros hospitalares ou hospitais que, entre 2017 e 2019, registaram mais de 500 mil dias de internamento. De forma clara, evidenciam, em quase todos, um impacte brutal entre Março e Abril de 2020, no período de maior pânico, mas as evoluções são depois muito distintas.
Por exemplo, no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, a queda no internamento foi impressionante. Antes da pandemia, raramente havia um mês com menos de 40 mil dias de internamento. Em Abril de 2020 desceu para apenas 24.393 dias, uma redução da ordem dos 40%.
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Ao longo de 2020, a pressão hospitalar, medida por este indicador, aumentou mas nunca chegou ao patamar da “normalidade” anterior à pandemia. Em Dezembro ultrapassou-se ligeiramente os 36 mil dias. Em seguida, ao longo de todo o ano de 2021, observou-se uma tendência de decréscimo, bastante acentuada mês após mês, de sorte que, em Dezembro do ano passado, se atingiu um novo mínimo desde 2017: somente 23.468 dias de internamento.
Situação ainda mais drástica observou no Centro Hospitalar de Lisboa Central – que agrega, entre outros, os hospitais de São José, D. Estefânia, Curry Cabral e Santa Marta. Com número de dias de internamento por mês a situar-se, geralmente, entre os 30 mil e os 40 mil antes da pandemia, a quebra foi bastante acentuada logo em Abril de 2020: contabilizaram-se um pouco menos de 25 mil. Uma queda de quase 33% face ao mês anterior.
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Até Dezembro desse ano, o indicador manteve-se sempre em redor dos 25 mil dias, iniciando depois nova queda acentuada, com excepção de Março de 2021. O mês de Dezembro do ano passado foi um período nunca visto desde 2017: somente 11.566 dias de internamento. Face ao máximo mensal registado no período (40.609 dias em Março de 2018), significa uma queda de 72%.
O padrão do “vizinho” Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte – que integra, entre outros, os hospitais de Santa Maria e Pulido Valente – foi idêntico, embora com uma queda ainda mais acentuada após a chegada do SARS-CoV-2, que trouxe uma debandada geral às unidades de saúde.
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Se antes da pandemia, o fluxo de internamentos mensais situava-se entre os 25 mil e os 32 mil, em Abril de 2020 decaiu para baixo dos 16 mil, um tombo de 47% face ao mês anterior. Houve depois uma “recuperação” nos meses seguintes até Outubro desse ano, mas seguiu-se uma acentuada tendência de descida nos dias de internamento, incluindo mesmo nos meses de pico da pandemia do Inverno de 2020-2021, quando o Hospital de Santa Maria era palco mediático de ambulâncias em fila indiana para “despejar” doentes. Problemas de logística, na verdade. Os últimos dois meses de 2021 ficaram ambos abaixo dos 15 mil dias de internamento – valores que representam cerca de metade da “normalidade” pré-pandemia.
O Centro Hospitalar Lisboa Ocidental destoa deste padrão. Houve efectivamente uma queda abrupta entre Março e Abril de 2020, mas rapidamente se passou para um padrão de “normalidade” pré-pandemia, sobretudo ao longo do ano passado. Porém, até Dezembro de 2021 nunca se chegou a ultrapassar os 20 mil dias de internamento em qualquer mês, algo que sucedeu por vezes no período 2017-2019.
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Ocidental desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Fora dos grandes centros urbanos, alguns centros hospitalares também mostraram este padrão. Foi o caso do de Tondela-Viseu. Neste caso, a queda de dias de internamento no início da pandemia foi mais curto – apenas entre Abril e Setembro de 2020 –, mas quando se pensava que os valores deste indicador começariam a estar próximos da “normalidade”, houve nova e mais persistente queda. No último mês do ano passado contabilizaram-se apenas 8.241 dias de internamento, uma queda de 58% face ao mês com maior pressão hospitalar desde 2017 (Julho de 2019).
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Tondela-Viseu desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Muito parecida foi a evolução das unidades de saúde na Região Autónoma da Madeira: uma descida abrupta em Abril de 2020, seguindo-se uma “recuperação” para níveis próximos da “normalidade” pré-pandémica, que perdurou até Março de 2021. A partir desse mês registou-se uma queda acentuadíssima, com o valor de Dezembro do ano passado a rondar apenas os seis mil dias de internamento.
Número de dias de internamento em cada mês nas unidades de saúde da Madeira desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
No concelho do Porto observaram-se duas situação muito díspares. No Centro Hospitalar Universitário do Porto, que integra o Hospital de Santo António, registou-se mesmo, após o “susto” inicial de Abril de 2020, um aumento da média de dias de internamento, com um pico em Outubro daquele ano. Porém, a partir de Agosto do ano passado, este indicador desceu para valores bastante baixos, inferiores a 15 mil dias de internamento.
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Universitário do Porto desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Já no outro hospital da cidade do Porto, o do São João, o cenário foi bastante diferente: apenas os meses de Abril, Maio e Junho de 2020 se registaram dias de internamento abaixo da “normalidade” pré-pandemia, ficando depois sempre em valores sensivelmente idênticos ao período 2017-2019.
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Universitário de São João desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Na mesma linha se encontra o Centro Hospitalar Universitário do Algarve – que integra os hospitais de Faro, Portimão e Lagos –, que após uma repentina descida de um pouco mais de 20% nos dias de internamento entre Março e Abril de 2020, foi depois caminho para uma “normalidade” pré-pandémica.
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Universitário do Algarve desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
No Hospital Amadora-Sintra a situação também foi quase similar. Se antes da pandemia o número de dias de internamento se situava quase sempre entre os 20 mil e 25 mil dias por mês, a emergência da covid-19 provocou um abaixamento nas hospitalizações, com o mínimo a ser atingido em Junho de 2020 (16.381 dias). A partir desse mês, o crescimento tem sido gradual, mas ainda não chegou sequer aos 23 mil dias de internamento.
Número de dias de internamento em cada mês no Hospital Amadora-Sintra desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
No Hospital Garcia de Orta, em Almada, a pandemia não trouxe alterações relevantes na pressão hospitalar. É certo que houve uma queda percentualmente relevante logo no início da pandemia (entre Março e Abril de 2020), mas a a seguir as variações estão dentro de um padrão de “normalidade”.
Número de dias de internamento em cada mês no Hospital Garcia de Orta (Almada) desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Situação semelhante se viveu no Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro – que integra os hospitais de Vila Real, Chaves e Lamego. Houve, efectivamente, uma queda na pressão hospitalar acentuada nos primeiros meses da pandemia, passando de cerca de 14 mil dias de internamento em Março de 2020 para 10 mil em Maio daquele ano, mas depois os valores regressaram aos padrões de “normalidade”.
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Por fim, o Hospital de Braga foi o único, de entre os seleccionados, que acabou o ano de 2021 com níveis de pressão, medidos em termos de dias de internamento, ligeiramente acima do “normal” antes da pandemia. No mês de Dezembro do ano passado registaram-se 20.294 dias de internamento, o segundo valor mensal mais elevado desde 2017.
No entanto, o percurso deste hospital nortenho foi semelhante aos demais com a chegada da pandemia: queda abrupta dos internamentos entre Março e Abril de 2020. Depois continuou sempre em crescimento até atingir valores ligeiramente acima da “normalidade”.
Número de dias de internamento em cada mês no Hospital de Braga desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Em suma, a análise do PÁGINA UM mostra, com base em dados oficiais, que foi criado um mito em redor de uma alegada existência de uma pressão hospitalar incomportável criada pela pandemia, e que justificaria restrições sociais e a suspensão de operações programadas.
Na verdade, uma das explicações para esta quebra nos internamentos em grande parte dos hospitais será mesmo a redução de intervenções cirúrgicas programadas, e que resultariam em internamentos de recuperação. Quais as consequências destes adiamentos? O Ministério da Saúde poderá, certamente, responder. Ou melhor, deveria responder.
Os especialistas em oncologia têm estado a alertar para a elevada probabilidade de um aumento significativo de mortes por cancros devido à instabilidade e decisões do Serviço Nacional de Saúde (SNS) durante a pandemia, que levou à redução dos rastreios, diagnósticos e tratamentos. Porém, a análise do PÁGINA UM à base de dados da morbilidade e mortalidade do Portal da Transparência do SNS mostra um surpreendente paradoxo: nunca como nos últimos meses se morreu tão pouco nos hospitais por causa de cancros. Ou os doentes terminais andam a ser enviados para casa ou há embuste…
Em cerca de dois anos de presença da covid-19 em Portugal, não cessaram os alarmes nos últimos meses sobre as consequências da gestão da pandemia nos atrasos nos diagnósticos de cancros. No final do ano passado, a Organização Europeia contra o Cancro estimou que mais de 100 milhões de rastreios não se tinham realizado ao longo de 2020 e 2021 no Velho Continente.
Em Portugal, os especialistas na área Oncologia têm alertado para a iminência de uma “pandemia” de cancros, e de mortes, por via da suspensão e atraso de rastreios e diagnósticos, tanto por razões políticas como pelo medo de muitas pessoas em frequentarem unidades de saúde.
Porém, Portugal é um país suigeneris. De acordo com a base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar, disponível no Portal da Transparência, o mês com menos mortes causadas por neoplasias foi Janeiro deste ano, o último com informação desde 2017. Mas este não foi caso esporádico.
De acordo com a análise da informação realizada pelo PÁGINA UM, a redução da mortalidade causada pelos mais diversos cancros tem sido anormalmente baixa desde o início da pandemia da covid-19, em Março de 2020. Com efeito, no período pré-pandemia – e desde Janeiro de 2017, data do início do registo –, os óbitos em meio hospitalar por neoplasias situavam-se entre os 800 e os 1050 por mês. Ou seja, sem grandes oscilações.
Geralmente, os valores ligeiramente mais baixos observavam-se no Inverno, mas por uma razão simples: devido à fragilidade de muitos doentes oncológicos, muitas mortes são “antecipadas” por outro tipo de doenças, sobretudos infecções respiratórias como as pneumonias. Ora, tal significava que as doenças respiratórias acabavam por ser consideradas, em alguns casos, a causa do óbito, e não os cancros.
Em todo o caso, com a chegada da covid-19 em território português, as mortes por cancro tiveram uma queda acentuada. Em Março de 2020, os óbitos desceram para 758. Comparando com os meses homólogos do período anterior à pandemia foi uma descida significativa: em 2017 tinham morrido 914, em 2018 foram 873 e em 2019 situaram-se nos 955.
Óbitos totais por mês, por neoplasias, registados nas unidades do SNS entre Janeiro de 2017 e Dezembro de 2021. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Em Abril de 2020, os óbitos por cancros registados em meio hospitalar ainda desceram mais: somente 678. Nos meses seguintes, apesar de os valores subirem ligeiramente nunca superaram os 830 óbitos.
Com o Outono e Inverno de 2020-2021 – que marcaria o período mais crítico da pandemia, com as mortes por covid-19 a subirem, atingindo, em alguns dias de Janeiro valores a rondarem os 300 óbitos –, os desfechos fatais atribuídos aos cancros reduziram ainda mais. No período compreendido entre Novembro de 2020 e Janeiro de 2021, óbitos mensais situaram-se entre os 700 e os 750. No total, neste trimestre registaram-se 2.173 óbitos por cancro, uma descida de 22% em relação ao período homólogo anterior.
No mês de Fevereiro do ano passado, a queda ainda foi mais notória: 514 óbitos, um valor perfeitamente atípico. Nos meses seguintes, o padrão de anormalmente baixa mortalidade por cancros manteve-se. Sempre abaixo dos 750 óbitos até Agosto, e a partir de Setembro ainda mais baixo. No último mês do ano passado, em Dezembro, as mortes por cancro nas unidades de saúde foi de 554. E em Janeiro deste ano situar-se-ia nos 469 óbitos. Note-se que, nos anos anteriores à pandemia, esta doença matou 900, 967, 980 e 933 pessoas, respectivamente no primeiro mês dos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 – ou seja, antes da pandemia.
Óbitos por neoplasias registados no mês de Janeiro entre 2017 e 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
O absurdo está assim instalado em Portugal, e será provável que se mantenha, excepto se o Ministério da Saúde esclarecer este paradoxo, que se pode caricaturar: a pandemia “eliminou” mortes por cancro.
Obviamente, na verdade, haverá duas possíveis explicações, que poderão estar conjugadas, mas em qualquer dos casos são graves.
Por um lado, um número muito significativo de doentes oncológicos terminais tiveram – e, provavelmente, em muitos casos de forma injustificada – a covid-19 como causa de morte, inflacionado o impacte da pandemia. E, dessa forma, também de forma injustificada, a estatística dos cancros está enviesada, por subestimada.
Note-se que, nos três anos anteriores à pandemia, as neoplasias causavam por ano cerca de 11 mil óbitos, sem grandes variações, o que é normal face aos padrões epidemiológicos das doenças oncológicas em Portugal. Porém, em 2020 (com nove meses em pandemia) desceu para os 9.398 óbitos, e decaiu ainda mais em 2021: apenas 8.067 – uma descida de 28% face ao triénio anterior à pandemia. São mais de três mil mortes a menos.
No entanto, como estas estatísticas se referem somente aos óbitos registados em meio hospitalar – e, portanto, não se inclui as mortes de doentes oncológicos ocorridas em residências e lares –, poder-se-á sempre dizer – à falta da divulgação de dados oficiais pela Direcção-Geral da Saúde (DGS), apesar da existência do Sistema de Informação dos Certificados de Óbitos (SICO) – que os cancros passaram a dizimar menos nos hospitais, porque os doentes terminais foram enviados para casa.
Mas, se assim fosse – e significando assim que se abandonariam muito doentes à sua sorte nos derradeiros momentos de vida, o que parece pouco provável do ponto de vista humano –, deveriam então esses dados ser fornecidos de forma clara e transparente, permitindo avaliações independentes sobre o verdadeiro impacte da pandemia na evolução dos cancros.
Se assim não for, se não houver transparência, se o obscurantismo continuar a imperar, uma coisa é certa: o Governo vai anunciar daqui a uns tempos, com pompa e circunstância, que nunca como antes os problemas oncológicos estiveram controlados.
E que o Governo conseguiu recuperar todos os atrasos no rastreio, nos diagnósticos e no tratamento dos cancros. E a Estatística, se o Governo quiser, dirá que as pessoas, de facto, até morrem menos de cancro. Morreram de outras coisas, e cada vez mais, mas não de cancro… E isso será o embuste em todo o seu esplendor.
O PÁGINA UM começa, a partir de hoje, a apresentar um conjunto de análises à base de dados da morbilidade e mortalidade do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Neste primeiro artigo revela-se que, afinal, houve muitas mortes por covid-19 que “escaparam” a tratamento hospitalar, e que a pressão sobre o SNS foi, na verdade, com excepção de um curto período (Dezembro de 2020-Fevereiro de 2021), atipicamente baixo nos dois anos de pandemia. E essa situação mostra-se evidente sobretudo a partir de Março do ano passado.
São dados oficiais. Indesmentíveis pelo Ministério da Saúde. Os registos da morbilidade e mortalidade hospitalar do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS) revelam que, durante os dois anos da pandemia (2020-2021) morreram afinal menos pessoas nos hospitais portugueses do que nos dois anos anteriores (2018-2019).
E apesar de a covid-19 ter constituído um factor de mortalidade importante (12% dos óbitos nas unidades hospitalares) em 2020 e 2021, estranhamente, ou talvez não, uma parte relevante de doenças mortais acabaram por registar fortes quedas.
A análise do PÁGINA UM a esta base de dados do SNS – com informação detalhada por mês e mesmo por unidade de saúde, incluindo internamentos e óbitos ocorridos em unidades de saúde – desencadeia uma reflexão sobre a forma como decorreu a estratégia política de gestão da pandemia.
Nessa medida, vale a pena olhar para a evolução do registo mensal das mortes em meio hospitalar – que, sem prejuízo do aspecto humano relevante, ademais sabendo-se que houve um acréscimo importante de óbitos fora das unidades de saúde –, pois constitui sempre um indicador fundamental em termos de Saúde Pública. Neste caso, nem que seja por permitir aferir indirectamente o grau de pressão e complexidade dos casos a que sujeita o SNS e os seus profissionais.
Ora, aquilo que se verificou – pegando nos registos das mortes por todas as causas ocorridas em meio hospitalar – é que, com excepção de um curto período, entre Dezembro de 2020 e Fevereiro de 2021, o SNS não denotou uma sobrecarga. No caso de Janeiro de 2021 houve mesmo um evidente colapso com um recorde de 8.590 óbitos. No período anterior à pandemia – e desde 2017, com informação na base de dados do SNS –, nos piores meses contabilizavam-se cerca de seis mil óbitos em meio hospitalar, sobretudo no mês de Janeiro, estando associado aos surtos gripais (causadores de mais mortes por doenças respiratórias) e ao frio (adjuvante de doenças mortais do aparelho circulatório).
Óbitos totais por mês, por todas as causas, registados nas unidades do SNS entre Janeiro de 2017 e Dezembro de 2021. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Porém, excluído esse trimestre, ninguém que agora surgisse por aqui sem saber que houve uma pandemia poderia dizer que o SNS esteve sob pressão. Pelo contrário: desde Março do ano passado, o número de óbitos mensais registados nos hospitais do SNS foi sempre atipicamente baixo (sempre abaixo dos 4.000). E esta situação observou-se sobretudo com chegada das estações associadas a uma maior mortalidade (Outono e Inverno). Por exemplo, em Dezembro passado apenas se contabilizaram 3.793 óbitos. No mês homólogo dos três anos anteriores à pandemia, os óbitos em meio hospitalar foram muito superiores: 5.089 em 2017, 4.637 em 2018 e 4.561 em 2019.
O mês de Janeiro deste ano – que já consta da base de dados do SNS – surge com 3.461 óbitos, um valor extraordinariamente baixo, tanto mais que chega a ser inferior aos meses de Verão pré-pandemia.
Mas uma análise mais detalhada desta base de dados suscita ainda mais perplexidades, e muitos questionamentos.
E a começar pelo número de mortes causadas pela própria covid-19. Apesar de ter sido considerada uma doença de elevada infecciosidade – que obrigou, na esmagadora maioria dos casos ao internamento de casos moderados e graves –, constata-se que, afinal, morreram nas unidades de saúde até Dezembro de 2021 um total de 12.837 pessoas devido à acção directa do SARS-CoV-2. Este valor é “apenas” 68% do total dos óbitos contabilizados pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) em 2020 e 2021. Ou seja, dos 18.974 óbitos por covid-19 contabilizados até 31 de Dezembro de 2021, houve 6.137 que faleceram fora de unidades de saúde, em lares ou nas suas residências.
Óbitos totais por mês, causados por covid-19 (integrados no grupo “Códigos para fins especiais), registados nas unidades do SNS entre Janeiro de 2017 e Dezembro de 2021. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Saliente-se que, na base de dados do SNS, a covid-19 não surge explicitamente como a causa de morte, mas no grupo das doenças catalogada em “Códigos para fins especiais”. A covid-19 e sequelas associadas (código U) são praticamente as únicas doenças mortais inseridas neste grupo, razão pela qual apenas começaram a surgir a partir de Março de 2020.
Nesse mês, oficialmente morreram nos hospitais portugueses 147 pessoas com esta doença, chegando às 626 no mês seguinte. O período mais negro surgiu, como conhecido, entre Novembro de 2020 e Fevereiro de 2021: no primeiro mês deste período morreram 1.431, em Dezembro 1.643, em Janeiro 3.320 e em Fevereiro 2.512.
Até final de 2021, em mais nenhum mês se ultrapassaram os 500 óbitos. Em Janeiro deste ano – quando se registou uma vaga de casos positivos, com quase 1,3 milhões de casos –, nos hospitais morreram 560 pessoas por covid-19. No entanto, a DGS anunciou, para esse mês, um total de 1.002 óbitos, o que significa que 44% terão falecido fora de unidades de saúde. Ou então os números terão sido empolados.
Se causa estranheza esta relevante discrepância entre óbitos por covid-19 em meio hospitalar e fora das unidades de saúde – o que significará que muitos casos graves causados pelo SARS-CoV, susceptíveis de serem (como foram) letais, não terão assim tido tratamento hospitalar –, maior estupefacção surge quando se confronta a mortalidade por grupos de doenças durante a pandemia com o período homólogo anterior.
Nesta primeira parte, analisamos primeiro as doenças respiratórias – que, supostamente, “beneficiaram” do desaparecimento da gripe e, segundo a DGS, das medidas não-farmacológicas.
Óbitos totais por mês, causados por doenças do aparelho respiratório, registados nas unidades do SNS entre Janeiro de 2017 e Dezembro de 2021. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
No período 2018-2019, segundo a base de dados do SNS, contabiliza-se a ocorrência 27.285 óbitos por doenças respiratórias. Ou seja, ainda sem influência do SARS-CoV-2. Com a pandemia, durante os anos de 2020 e 2021, as doenças respiratórias não-covid decaíram para apenas 21.171, uma estrondosa queda de 22,4%. Ou, se se quiser, em valor absoluto 6.114 pessoas.
Deste modo, se se juntasse a covid-19 às doenças respiratórias, então durante a pandemia (2020-2021) terão ocorrido em meio hospitalar um total de 34.008 mortes, o que contrasta com 27.285 óbitos no período 2018-2019.
Nesta medida, só por aqui, o impacte líquido da pandemia será muito menor do que propalado: morreu-se muito por uma nova doença, mas, como em consequência “desapareceram” doenças respiratórias que tinham um impacte letal relevante, o saldo não se mostra assim tão elevado.
Óbitos por doenças do aparelho respiratório registados no mês de Janeiro entre 2017 e 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Contas feitas, em meio hospitalar, o acréscimo líquido é de 6.723 óbitos. Mas atenção: na segunda parte da análise, amanhã, veremos que é redutor estar apenas a usar, para calcular o impacte líquido do SARS-CoV-2, apenas as doenças respiratórias.
Aliás, nos últimos meses, a evolução da mortalidade das doenças respiratórias tem sido absurdamente atípica. No ano passado, houve apenas um mês (Janeiro) em que se ultrapassou a fasquia das mil mortes por este grupo de causas. Em 2017 houve sete meses; em 2018 registaram-se oito, em 2019 foram seis, e em 2020 foram apenas três, curiosamente os do primeiro trimestre, ou seja, imediatamente antes e no mês da chegada da covid-19 a Portugal.
Ou seja, literalmente, a covid-19 “sufocou” uma importante parte das doenças respiratórias.
No passado mês de Janeiro – que já consta na base de dados do SNS –, por doenças respiratórias não-covid foram contabilizadas 632 mortes, um valor completamente irrisório para um mês de Inverno. A título comparativo, em Janeiro de 2017 registaram-se, em meio hospitalar, 2.169 mortes por doenças respiratórias, ou seja, cerca de três vezes mais.
Os centros de vacinação COVID (CVC) no Alentejo não dão alternativa imediata a quem não queira ser inoculado com doses de lotes que beneficiaram de extensão ad hoc do prazo de validade. Infarmed diz agora que houve autorização da Agência Europeia do Medicamento, mas não disponibiliza o documento nem apresenta justificação para o secretismo da medida. Ministra da Saúde mantém silêncio, não se sabendo sequer quantas pessoas foram vacinadas nestas condições nem sequer como e quem avaliará eventuais efeitos adversos da decisão de maximizar o uso de vacinas apenas para, supostamente, se poupar algum dinheiro.
Diversos Centros de Vacinação COVID (CVC) do Alentejo que estão a usar lotes de vacina fora de prazo de validade – cuja administração obteve uma autorização informal do Infarmed, através de um simples e-mail enviado em Março, conforme ontem divulgado pelo PÁGINA UM – estão a recusar uma alternativa imediata aos utentes que não queiram ser injectados nessas condições. Se recusarem, as pessoas não são vacinadas com outro lote, e ficam a aguardar convocatória em data incerta.
Contudo, não é certo que todos os utentes estejam a ser avisados, uma vez que o consentimento informado para a administração destas vacinas é meramente oral, sem comprovativo escrito sobre as condições das vacinas e efeitos adversos previsíveis apresentados de forma quantitativa.
Em causa está assim um número indeterminado de doses pertencentes a três lotes específicos de vacinas contra a covid-19, e que receberam uma autorização ad hoc para continuarem a ser administradas após o prazo de validade. São os casos dos lotes FP9632 e 1F1047A da vacina Comirnaty/Pfizer (com prazo de validade até 14 de Março e 5 de Março, respectivamente), e ainda do lote 000063A da vacina Spikevax/Moderna. Para o lote desta segunda vacina, alguns frascos tinham expirado o prazo de validade em 27 de Fevereiro e outros em 4 de Março.
Em circunstâncias normais, os frascos destes lotes deveriam ser imediatamente destruídos após esgotar-se o prazo de validade, segundo as normas do “resumo das características do medicamento” – inseridas no Portal Infomed. Porém, em Março, através de uma simples comunicação por correio electrónico à Administração Regional de Saúde (ARS) do Alentejo, o Infarmed concedeu uma autorização de prorrogação do prazo de validade .
Essa autorização especial não consta, porém, em qualquer das habituais circulares informativas do Infarmed nem sequer foi introduzida, com identificação dos lotes em causa, no resumo das características do medicamento.
Ontem à noite, pelas 22:21 horas, o PÁGINA UM recebeu um esclarecimento do Infarmed – por “solicitação do gabinete de comunicação do Ministério da Saúde”, informando que “a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) aprovou, este ano, a extensão do prazo de alguns lotes de vacinas contra a COVID-19, em condições de ultracongelação”, acrescentando ainda que “a extensão de prazo, de três meses e de seis meses aplica-se a todos os Estados-membros e tem efeitos retroactivos relativamente a lotes de injetáveis produzidos antes da aprovação.”
Em vez de uma circular informativa, que esclarecesse e justificasse a medida de prorrogação do prazo de validade, o Infarmed decidiu apenas comunicar por correio electrónico a sua decisão ad hoc à ARS do Alentejo. Ignora-se quantas doses já foram usadas dos lotes em causa.
No entanto, apesar de reiterado o pedido de indicação dos lotes autorizados, o Infarmed não respondeu. O PÁGINA UM tentou obter informação no site da EMA, mas sem sucesso. Existem, no entanto, autorizações especiais de prorrogação de prazo para certos lotes da vacina da Pfizer pelo National Health Service (NHS), do Reino Unido, mas nenhum dos lotes são aqueles que o Infarmed autorizou ad hoc para o Alentejo.
O Infarmed também não quis explicar os motivos para não ter sido produzida qualquer circular – como é habitual sempre que formalmente existe uma decisão do Conselho Directivo – sobre esta matéria.
No seu esclarecimento de ontem, o INFARMED diz apenas que a decisão de “utilização das vacinas” fora do prazo se baseou em “estudos de estabilidade apresentados pelos laboratórios”, mas não os enviou nem nunca os disponibilizou.
Após a recepção deste esclarecimento, o PÁGINA UM questionou ainda o Infarmed no sentido de saber se o regulador informou a ministra da Saúde sobre a decisão de administrar vacinas fora do prazo sob autorização “especial”. E questionou também o Infarmed sobre se não se estaria perante um “ensaio clínico” ilegal, porquanto, como o PÁGINA UM salientou ontem, nos e-mails entre o Infarmed e a Administração Regional de Saúde do Alentejo prevê-se a monitorização específica das pessoas injectadas com vacinas fora do prazo inicial de modo a avaliar posteriormente os efeitos adversos e a efectividade vacinal.
O PÁGINA UM também insistiu, junto dos três assessores de imprensa da ministra da Saúde, Marta Temido, para saber se o Governo tinha conhecimento deste expediente autorizado pelo Infarmed, para conhecer se outras ARS foram abrangidas, quantas pessoas tinham sido vacinadas com estes lotes e se esta estratégia será mantida. Não houve, até agora, qualquer resposta.
No Alentejo, foram administradas a um número indeterminado de pessoas vacinas contra a covid-19 fora do prazo. A decisão foi tomada no passado mês de Março em articulação entre o Infarmed e a Administração Regional de Saúde daquela região, mas sem base legal e contra as normas dos fabricantes. Apesar de garantir ser um processo seguro, o Infarmed acabou por estabelecer a obrigatoriedade de recolha de informação sobre as pessoas injectadas com estes lotes para posterior avaliação de eventuais acréscimos dos efeitos adversos ou de redução da efectividade vacinal. O PÁGINA UM revela os lotes das vacinas da Pfizer e da Moderna que foram injectadas já depois de expirar o prazo de validade. O Ministério da Saúde (ainda) não comentou se sabia desta decisão nem esclareceu (ainda) se houve mais lotes fora do prazo usados em outras regiões do país.
O Infarmed autorizou o uso de três lotes de vacinas contra a covid-19 fora do prazo de validade em centros de vacinação do Alentejo durante o mês de Março e Abril, em condições que aparentam um ensaio clínico não autorizado, que não cumpre os mínimos princípios éticos e de consentimento informado.
De acordo com mensagens electrónicas a que PÁGINA UM teve acesso, na noite de 14 de Março passado a directora do Departamento de Contratualização da Administração Regional de Saúde (ARS) do Alentejo, Sandra Silva, informou diversos responsáveis daquela região que “tendo em consideração as quantidades de vacinas existentes nas ARS com prazo de validade excedido”, o Infarmed tinha autorizado a sua utilização.
Em causa estava um número indeterminado de frascos dos lotes FP9632 e 1F1047A da vacina Comirnaty/Pfizer, com prazo de validade até 14 de Março e 5 de Março, respectivamente, e ainda um lote 000063A da vacina Spikevax/Moderna, sendo que alguns frascos tinham expirado o prazo de validade em 27 de Fevereiro e outros em 4 de Março.
No e-mail daquela noite, além de acrescentar que seria enviada no dia seguinte “informação mais detalhada”, Sandra Silva transcrevia o parecer do Infarmed, constituído somente por duas frases escritas em português algo macarrónico: “Podem ser utilizadas as referidas vacinas dos lotes abaixo mencionadas por mais 15 a 30 dias apos o prazo de validade expirado de 30 dias referente ao prazo após descongelação, nas condições de 2C a 8C no entanto deverá ser preenchido no sistema Vacinas a administração das referidas vacinas mencionando validade e data de descongelação, de modo a monitorizar reações adversas se as mesmas existirem. Mais se informa que os referidos lotes de vacinas foram avaliados pelo Infarmed no que diz respeito à integridade do mRNA quando libertadas pelo fabricante da vacina”.
E-mail enviado pela directora do Departamento de Contratualização da ARS do Alentejo na noite de 14 de Março passado, informando sobre a decisão do Infarmed.
No site do Infarmed não consta qualquer aviso sobre esta matéria. Sobre as condições de conservação das vacinas covid-19, a última actualização é de 3 de Fevereiro deste ano, onde nada consta sobre a possibilidade de alargamento do prazo de validade.
E no Portal Infomed, e no caso do resumo das características do medicamento da vacina Comirnaty/Pfizer, além de se elencar de forma exaustiva as exigentes condições de conservação, salienta-se que, após descongelação, “os frascos para injectáveis por abrir podem ser conservados durante um total de 10 semanas a uma temperatura entre 2 oC e 8 oC, nunca ultrapassando o prazo de validade (VAL) impresso”.
No caso especifico da Spikevax/Moderna, o resumo das características do medicamento no Portal Infomed vão no mesmo sentido: “Não utilize esta vacina após o prazo de validade impresso no rótulo após VAL [prazo de validade]. O prazo de validade corresponde ao último dia do mês indicado”.
Em todo o caso, nunca fazendo referência às indicações dos fabricantes, na manhã do passado dia 15 de Março, a directora de Inspecção e Licenciamentos do Infarmed, Maria Fernanda Ralha, enviou um e-mail para ARS do Alentejo, explicitando melhor a “autorização” concedida.
Na mensagem aquela responsável do Infarmed garantia que “os referidos lotes das vacinas Comirnaty adulta e Spikevax mantém-se estáveis assumindo-se que nenhuma das outras condições de conservação/transporte aprovadas foi excedida [e que] poderão eventualmente se manter , por mais 15-30 dias, para além da validade aprovada quando as vacinas forem mantidas entre 2ºC e 8ºC desde a sua descongelação” (sic).
Maria Fernanda Ralha sugeria também que, “pela natureza destas vacinas COVID-19 e pelos dados de estabilidade disponíveis para outros lotes”, não se antevia para estes lotes fora de prazo “problemas de segurança”, mas em seguida acrescentava que “há no entanto que estar atentos a eventuais notificações de reações adversas em utentes que receberão estas doses pelo que é recomendado o registo deste desvio às condições aprovadas na plataforma Vacinas”. (sic)
Nessa medida, esta responsável do Infarmed acabou por instruir os responsáveis da ARS do Alentejo para tomarem obrigatórios “procedimentos, tendo em conta a salvaguarda da saúde pública”, entre os quais o registo na plataforma Vacinas da data de descongelação e administração da dose da vacina fora de prazo, de modo a ser possível uma “futura avaliação da efetividade vacinal e eventuais questões de farmacovigilância decorrentes destes desvios”.
Ou seja, assumia subliminarmente que não existiam certezas sobre a inocuidade do prolongamento do prazo de validade nem tão-pouco se ficaria afectada a protecção vacinal.
Esta decisão do Infarmed e da ARS do Alentejo não se deveu a qualquer quebra de stock de vacina. Pelo contrário, tem sido a fraca adesão às doses de reforço, sobretudo da população abaixo dos 50 anos, que tem causado “sobras” e, portanto, risco de partes de lotes expirarem o respectivo prazo de validade. Tanto assim é que a responsável do Infarmed recomendou que “as vacinas descongeladas e cujo prazo de validade aprovado já foi ultrapassado devem ser usadas antes de vacinas descongeladas em qualquer uma das datas subsequentes e só quando terminar o stock existente se passe para as vacinas descongeladas noutros dias”. (sic)
O PÁGINA UM contactou Maria Fernanda Ralha, directora de Inpecção e Licenciamentos do Infarmed, que não quis fazer comentários sobre este assunto, alegando estar de férias e que todas as informações respeitantes às vacinas contra a covid-19 deveriam ser fornecidas pela Direcção-Geral da Saúde.
Também o gabinete da ministra da Saúde, Marta Temido, foi questionado sobre se tinha conhecimento desta decisão do Infarmed e da ARS do Alentejo, e sobre quantas pessoas tinham sido vacinadas com vacinas fora do prazo de validade. E também se questionou o Ministério da Saúde sobre se noutras regiões se tinha usado similar procedimento, e se sim, se este procedimento seria mantido no futuro. Não houve, até agora, qualquer reacção.
Direcção-Geral da Saúde eliminou frases comprometedoras sobre o remdesivir na norma terapêutica aprovada em Janeiro passado, e mantém o fármaco da Gilead como terapia possível no tratamento contra a covid-19. Portugal é o país europeu com mais pessoas que sofreram efeitos adversos pelo uso deste fármaco. Infarmed continua sem ceder dados detalhados pedidos pelo PÁGINA UM, que aguarda entretanto decisão do Tribunal Administrativo de Lisboa ao processo de intimação.
A Direcção-Geral da Saúde (DGS) continua a incluir a administração de polémico anti-viral remdesivir, produzido pela Gilead Sciences sob a marca Veklury, na terapêutica para a covid-19, mesmo conhecendo-se, cada vez mais, as evidências de graves efeitos adversos, e de o seu uso já ter sido abandonado pela esmagadora maioria dos países europeus.
Na revisão da Norma 004/2020, que rege as terapêuticas, e que entrou em vigor no sábado passado, dia 23 de Abril, o remdesivir ainda permanece – dir-se-ia, estoicamente – na lista de medicamentos para o tratamento de “pessoas internadas por pneumonia por SARS-CoV-2 e hipoxemia confirmada”, mas já apenas como uma alternativa a ser considerada após a dexametasona e o metilprednisolona.
Gilead conseguiu vender largas dezenas de milhões de euros em remdesivir para combate à covid-19 sem existir garantia de eficácia nem de segurança.
Mesmo assim a última revisão da norma “ameniza” uma actualização feita em Janeiro último, que era bastante comprometedora para o fármaco. Com efeito, na actualização de 5 de Janeiro, a referência ao fármaco da Gilead como opção secundária era acompanhada pela seguinte nota: “Até ao momento, o remdesivir não revelou benefício inequívoco ao nível da mortalidade avaliada aos 28 dias nos ensaios clínicos. Assim, a sua prescrição deve decorrer de uma avaliação clínica individualizada, com ponderação dos riscos e benefícios para o doente, e de acordo com o Resumo das Características do Medicamento (RCM).”
Estas duas frases foram agora eliminadas, sem qualquer justificação, e o medicamento continua a ser uma hipótese terapêutica.
Certo é que vai já longe o tempo em que o remdesivir chegou a ser de uso quase obrigatório contra a covid-19, podendo os médicos que não o prescreviam ter problemas se os doentes morressem, conforme admitiu recentemente em entrevista ao PÁGINA o antigo bastonário da Ordem dos Médicos José Manuel Silva.
Com efeito, em Outubro de 2020, quando este fármaco – mesmo sem ensaios clínicos cientificamente validados – começou a ser usado em Portugal, a Norma 004/2020 quase o tornou de uso obrigatório na abordagem terapêutica em regime de internamento.
O então ponto 40 dessa norma determinava que a “terapêutica com remdesivir deve ser administrada o mais precocemente” em doentes internados com “confirmação laboratorial de SARS-CoV-2” que apresentassem um quadro de pneumonia, saturação de oxigénio inferior a 94% e idade igual ou superior a 12 anos com peso igual ou superior a 40 quilogramas.
A contínua “sobrevivência” do remdesivir na Norma 004/2020 deve-se, quase em exclusivo, ao forte “lobby da Gilead” no interior da DGS e da Faculdade de Medicina de Lisboa, que tudo tem feito para não se assumir publicamente os efeitos adversos e sobretudo o desastre económico na sua aquisição. E isto muito fruto das promiscuidades políticas e médicas com a farmacêutica norte-americana.
Recorde-se que este medicamento, inicialmente prescrito, embora com fracos resultados, para o vírus ébola, acabou por cair nas graças da Comissão von der Leyen na primeira fase da pandemia, em 2020. Em 8 de Outubro daquele ano, a Comissão Europeia decidiu assinar um acordo de compra conjunto que literalmente obrigou 36 países comunitários e extra-comunitários da Europa a adquirirem grandes quantidades de remdesivir à Gilead a preços exorbitantes. Para este “brinde” à Gilead, a Comissão Europeia garantiu um financiamento de 70 milhões de euros para a compra de 200 mil frascos de Veklury.
Para cumprir a parte portuguesa no negócio, logo em 23 de Outubro, a DGS assinaria um contrato com a Gilead com vista ao pagamento de um primeiro lote de 54.600 frascos. Custo total: 19.458.000 euros, ou seja, 356 euros por unidade. Note-se que em Novembro de 2020, o Le Monde destacava que, apesar de o custo de produção do remdesivir atingir apenas 0,93 dólares por dose – o que implicaria um custo de 5,58 dólares por tratamento –, a farmacêutica vendia-a por um preço 420 vezes superior.
Portugal deveria ter ainda adquirido um segundo lote ao longo de 2021 no valor de 15.018.645 euros – conforme determinava uma Resolução do Conselho de Ministros assinada exclusivamente por António Costa –, mas por razões nunca explicada pela DGS e pela Gilead, apesar das perguntas do PÁGINA UM, apenas foi assinado um contrato em 12 de Julho do ano passado por um valor simbólico: um pouco menos de 16 mil euros.
Não deve ter sido, contudo, indiferente para este desfecho o desaconselhamento sobre o remdesivir feito ainda em Novembro de 2020 pela Organização Mundial de Saúde (OMS); apesar de uma recente actualização ter passado a recomendá-lo para pessoas não internadas, e nos Estados Unidos tenha sido aprovado pela FDA o seu uso em crianças com mais de três anos também não internadas, desde esta semana. Fracas vantagens (um benefício de custo económico extremamente elevado para quem não apresenta um quadro clínico sequer moderado) que não faz esquecer os efeitos adversos relevantes.
Com efeito, apesar do Infarmed continuar a recusar facultar dados detalhados sobre as reacções adversas em doentes-covid em Portugal, através do sistema EudraVigilance – base de dados agregada da Agência Europeia do Medicamento – observa-se que Portugal lidera o número absoluto de casos individuais com efeitos adversos causados pela administração de remdesivir, contabilizando-se já 253. Ignora-se quantos resultaram em mortes.
Número total de casos individuais com efeitos adversos ao remdesivir. Fonte: EudraVigilance.
O segundo país com mais casos é a Itália, com 190, mas com uma população seis vezes superior a Portugal. Casos adversos relacionados com o polémico fármaco da Gilead são relativamente escassos nos outros países da União Europeia.
O terceiro país com mais casos é a Polónia, apenas com 37, mas com uma população quase quatro vezes superior à portuguesa. A Alemanha contabilizou até agora 34 casos e tem mais de oito vezes a população portuguesa, enquanto a Espanha (com 46 milhões de habitantes) contou 32 doentes com problemas decorrentes do uso de remdesivir.
Em Portugal, o remdesivir sempre mereceu um carinho especial por parte dos denominados “peritos” que aconselharam a DGS nas terapêuticas para os doentes com covid-19.
De entre esses, destacam-se três médicos – Filipe Froes, António Diniz e Fernando Maltez – que simultaneamente integram a equipa de consultores da DGS para a elaboração e actualizações da Norma 004/2020 e sentam-se à mesa com a Gilead, e especificamente para falarem do remdesivir, uma vez que constam do seu advisory board desde 2020. Já este ano, Fernando Maltez e Filipe Froes receberam, cada um, 1.832,7 euros a esse título – pelo menos essa é a verba por eles declarada no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed.
Mas também a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa tem sido uma forte aliada da Gilead na promoção do remdesivir. A Associação para Investigação e Desenvolvimento da Faculdade de Medicina (AIDFM) – presidida por Fausto Pinto, também director daquela instituição de ensino –, tem feito para a Gilead sucessivos estudos sobre este fármaco, mas que nunca viram a luz do dia.
Filipe Froes é um dos três consultores da DGS que se tem destacado na defesa do remdesivir. É também consultor da Gilead.
Durante o ano de 2020, a AIDFM recebeu desta farmacêutica 15.375 euros para um estudo intitulado “Análise do impacto de remdesivir na capacidade hospitalar do SNS” e mais 30.750 euros para o “Estudo de suporte do pedido de financiamento público de remdesivir no tratamento da covid-19”.
Já em 2021, encaixou mais verbas para o “Estudo comparativo sobre a utilização de remdesivir” (9.225 euros) e para a “Actualização do dossier de valor terapêutico de remdesivir (Veklury) na indicação aprovada” (12.300 euros). Este ano, no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed constam ainda mais dois estudos pagos pela Gilead: “Análise descritiva da utilização de remdesivir” (9.225 euros) e uma nova actualização do seu valor terapêutico (mais 12.300 euros).
A Gilead é, aliás, a farmacêutica com maior volume de negócios com esta associação da Universidade de Lisboa. Desde 2013, pelos mais diversos estudos e serviços, recebeu da farmacêutica norte-americana um total de 1.927.175 euros. Para se ter uma ideia da importância da Gilead nas contas da AIDFM, saliente-se que a segunda farmacêutica com maiores relações comerciais é a Bristil-Myers Squibb que “só” entregou 507.780 euros.
Entretanto, já este ano, a Gilead foi também “pescar” à política, contratando Ana Paula Martins, bastonária da Ordem dos Farmacêuticos até Fevereiro passado, e que acumulava com a docência na Faculdade de Farmácia de Lisboa. A agora directora de Assuntos Governamentais da Gilead é, desde Dezembro do ano passado, vice-presidente do Partido Social Democrata. Uma escolha de Rui Rio.
Depois de tentar convencer, sem sucesso, a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos para não dar razão ao PÁGINA UM, e manter escondidos dados sensíveis para proteger farmacêuticas, o Infarmed terá agora de convencer o Tribunal Administrativo de Lisboa de que o secretismo da Administração Pública é a melhor forma de se viver numa sociedade democrática.
O PÁGINA UM deu esta tarde entrada no Tribunal Administrativo de Lisboa com um processo de intimação contra o Infarmed, a agência reguladora do medicamento em Portugal. O processo, considerado urgente, com o número 980/22.5BELSB, deverá ser amanhã distribuído a um juiz, o que implicará que o Infarmed seja constituído réu e imediatamente citado para responder no prazo de 10 dias.
Em causa está a recusa desta entidade, presidida por Rui dos Santos Ivo – que ocupou, entre 2008 e 2011, o cargo de director executivo da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (APIFARMA) –, em acatar um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) para disponibilizar o acesso ao PÁGINA UM dos dados brutos relativos aos efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 e também do anti-viral remdesivir, um polémico fármaco da Gilead.
Este processo de intimação insere-se na campanha do PÁGINA UM em prol da defesa da informação científica e da transparência, sendo integralmente financiada pelo FUNDO JURÍDICO, através de donativos dos leitores na plataforma MIGHTYCAUSE, tendo como patrono o advogado Rui Amores, especialista em Direito Administrativo.
A acção de intimação do PÁGINA UM pretende contrariar a posição de obscurantismo do Infarmed que defende que devem ser apenas disponibilizados ao público “os dados constantes da base de dados EudraVigilance”, mesmo sabendo que estes são apresentados em formato agregado, não sendo possível grande detalhe informativo.
Na sua deliberação de 1 de Abril passado, onde recusa o acesso de informação a um órgão de comunicação social – violando assim a Lei da Imprensa –, a direcção do Infarmed conclui que, “face ao parecer emitido [pela CADA] e no quadro dos regimes legislativos e regulamentares supra expostos, é [nosso] entendimento (…) que os dados solicitados devem ser obtidos por consulta à base de dados” da Agência Europeia do Medicamento.
Recorde-se que, em carta enviada à CADA, onde tentou convencer aquela entidade a não conceder opinião favorável ao PÁGINA UM, Rui dos Santos Ivo defende que os jornalistas são “não-especialistas” com “um elevado potencial para criar alarme social totalmente desnecessário e infundado”.
Pagamento de custas do processo de intimação contra o Infarmed
O director do PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira, tem formação académica multidisciplinar e é mesmo sócio da Associação Portuguesa de Epidemiologia.
Opinião contrária teve a CADA, presidido pelo juiz conselheiro Alberto Oliveira, ao considerar num seu parecer de 16 de Março passado que “a informação solicitada” ao Infarmed constitui mesmo “documentos administrativos” não-nominativos – ou seja, sem possibilidades de identificar pessoas.
Por outro lado, esta entidade salientava que “o interesse público no conhecimento de elementos que possam informar quanto à segurança da vacina [contra a covid-19] é, por conseguinte, manifesto”.
E relembrava ainda ao Infarmed um aspecto óbvio em democracia: “as entidades não podem limitar o acesso com base no receio de alguma deturpação que possa ser feita”.
Este é o segundo processo de intimação intentado pelo PÁGINA UM este mês, após ter também colocado no banco dos réus o Conselho Superior de Magistratura por recusar ceder documentos administrativos relacionados com a inspecção à distribuição do Operação Marquês ao juiz Carlos Alexandre.
O FUNDO JURÍDICO DO PÁGINA UM pode ser apoiado através da plataforma do MIGHTYCAUSE ou pedindo informações complementares pelo correio electrónico geral@paginaum.pt.