É a 12ª recusa que o PÁGINA UM recebe de entidades públicas ou equiparadas quando solicita documentos administrativos sensíveis; e é o 12º processo de intimação que o PÁGINA UM faz entrar no Tribunal Administrativo de Lisboa. Desta vez, uma entidade universitária e científica decidiu que um (suposto) relatório alarmista fosse divulgado pela Lusa sem que ninguém mais o pudesse ver nem analisar. Além do processo por falta de transparência, este caso revela sobretudo o estado da Ciência nos tempos modernos.
O PÁGINA UM avançou esta quinta-feira com um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa para obrigar o presidente do Instituto Superior Técnico (IST), Rogério Colaço, a dar acesso ao relatório revelado pela Lusa em 28 de Julho passado sobre o alegado forte impacte negativo dos Santos Populares na transmissão da covid-19, bem como a todos os dados numéricos e informação metodológica que levaram à sua elaboração.
Mas não só. O PÁGINA UM também pede o acesso a documentos e informação para escalpelizar a relação existente entre o IST e a Ordem dos Médicos, por via de um protocolo anunciado em Julho de 2021.
Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes na sede do Ordem dos Médicos, em Julho do ano passado, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico recusa divulgar os estudos e os dados.
Em causa está um suposto relatório – a que apenas a Lusa teve acesso, apesar do seu take ter sido difundido pela generalidade da comunicação social – com estimativas da transmissão causada pelo aglomerado de pessoas durante o mês de Junho nos Santos Populares (sobretudo Lisboa e Porto) e em festivais como o Rock in Rio.
Recorde-se que as conclusões do alegado relatório do IST apontaram, segundo a Lusa – que nunca quis apresentar provas ao PÁGINA UM da existência do documento científico – que “houve cerca de 242 mil casos de covid-19 registados oficialmente devido às festividades dos santos populares e festivais como o Rock in Rio”. A notícia da Lusa salientava ainda, citando o alegado relatório, que “se juntarmos os casos não reportados oficialmente atinge-se o número de 340 mil”. E apontava ainda, expressamente, para as consequências: 790 óbitos devido ao levantamento das restrições e 330 óbitos associados apenas às festas populares de Junho.
Mas, apesar da gravidade das conclusões do alegado relatório, o documento nunca foi tornado público e não foram divulgadas as bases em que os investigadores se fundamentaram para elaborar as estimativas noticiadas.
Resposta de recusa do presidente do Instituto Superior Técnico ao PÁGINA UM, via e-mail, no passado dia 30 de Julho.
As conclusões alarmistas do alegado estudo do IST não encontram respaldo nas evidências observadas durante o mês de Junho. Com efeito, enquanto decorreram as festas de Santo António, São João, Rock in Rio e outros festivais ao de Junho, os casos positivos de covid-19 foram sempre descendo.
Por exemplo, para todo o país, no dia 1 de Junho a média móvel de sete dias estava nos 24.602 casos positivos para todo o país, no dia 8 tinha descido para 20.575 casos, no dia 15 já estava nos 15.368 casos positivos, no dia 22 baixou para os 12.939 casos positivos e no final do mês estava mesmo abaixo dos 10 mil casos.
Durante o mês de Junho, os casos positivos de covid-19 aceleraram sempre mas na direcção da redução. Em Julho sucedeu o mesmo. De acordo com os dados do Worldometer para Portugal, no final de Julho contabilizavam-se 3.258 casos positivos (média móvel de sete dias). Em Agosto, os casos mantiveram-se sempre estáveis em redor dos 2.500 casos positivos.
Esta acção em Tribunal surge depois de o PÁGINA UM ter solicitado o acesso ao relatório, tanto junto do IST, através do seu presidente e da assessoria de imprensa, como a um dos autores do dito relatório. O acesso ao documento e aos dados que supostamente serviram de base ao suposto relatório, foi sempre recusado. No dia 30 de Julho, um sábado, o próprio presidente do IST, Rogério Colaço,enviou mesmo, através do seu Galaxy, um e-mail reforçando a recusa: “O pedido formal ao presidente do IST está respondido e a resposta é negativa.”
Festas populares em Lisboa este ano tiveram grande fluxo, sem máscaras, mas os casos regrediram face a Maio.
Saliente-se que em outros relatórios, as análises do IST são sempre assumidas pelos investigadores Henrique Oliveira, Pedro Amaral, José Rui Figueira e Ana Serro, mas sempre sob supervisão do presidente daquela instituição, Rogério Colaço, engenheiro de materiais e professor catedrático na área da nanotecnologia.
Na sua ação junto do Tribunal Administrativo – o 12º processo desde Abril, sempre por recusa de acesso a documentos administrativos – solicita-se que o IST seja mesmo obrigado a disponibilizar “o acesso, para eventual obtenção de cópia, de todo e qualquer documento considerado como administrativo na posse do Instituto Superior Técnico – por publicamente ter sido elaborado e/ou utilizado por investigadores desta instituição universitária – relacionados com a avaliação epidemiológica da covid-19 (ou do seu agente infeccioso, o SARS-CoV-2)”.
Nesse lote, pede ao Tribunal o PÁGINA UM, deve constar, obrigatoriamente, os dois relatórios sobre estimativas de transmissão da covid-19 durante as festas populares e festivais de música, cujas conclusões foram divulgadas por órgãos de comunicação social em 8 de Junho e em 28 de Julho, bem como os ficheiros informáticos contendo os dados usados para a sua elaboração”, bem como documentos científicos sobre a metodologia usada.
Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico, vai ter de justificar ao Tribunal Administrativo as razões para esconder relatórios e dados científicos, ou então terá de optar por os disponibilizar ao PÁGINA UM.
Solicita-se ainda a “cópia do protocolo ou outro qualquer documento assinado entre o Instituto Superior Técnico e a Ordem dos Médicos para a realização das análises / estudos iniciados em 14 de Julho de 2021, bem como documentos que atestem a eventual (ou não) contratualização com efeitos patrimoniais dos envolvidos, quer seja pagamento ao Instituto Superior Técnico quer aos seus investigadores”.
O processo de intimação para a prestação de informações, consulta de processos e passagem de certidões – já identificado com o número 2683/22.1BELSB – foi intentado pelo PÁGINA UM no último dia do prazo, porque se aguardou, até ao limite, uma resposta voluntária do IST, como instituição científica (ainda por cima pública) com especiais responsabilidade na transparência e debate científico.
Como nunca houve manifestação de abertura, o Tribunal acabou por ser o derradeiro recurso. O IST terá agora 10 dias úteis para obrigatoriamente justificar ao Tribunal Administrativo a causa da recusa, havendo depois uma decisão teoricamente urgente.
N.D. – Os custos e taxas dos processos desencadeados pelo PÁGINA UM no Tribunal Administrativo são exclusivamente suportados pelo FUNDO JURÍDICO financiado pelos seus leitores. Rui Amores é o advogado do PÁGINA UM neste e nos outros processos administrativos em curso. Até ao momento, estão em curso 12 processos administrativos, além de uma providência cautelar. Dois dos processos foram ganhos pelo PÁGINA UM em primeira instância, mas as duas entidades (Ordem dos Médicos e Conselho Superior da Magistratura) recorreram.
Análise exclusiva do PÁGINA UM revela que o excesso de mortalidade continua imparável no grupo dos mais idosos (acima dos 85 anos) e está agravar-se entre a população em idade de reforma. Mas há ainda outro grupo etário onde se observa um inaudito agravamento da mortalidade: os adolescentes e jovens entre os 15 e os 24 anos, que apresenta um desvio de 22% face à média (2017-2021). A situação tem piorado inexplicavelmente desde Março em termos globais: em média, segundo os cálculos do PÁGINA UM, tem havido em Portugal 42 mortes a mais por dia.
9.280 óbitos: este é o número, ainda provisório, do mês de Agosto que terminou esta quarta-feira. Definitivo já, porém, é este ter sido o Agosto mais letal desde 2003, mantendo uma série negra de excesso de mortalidade que parece interminável, e já se mostra estrutural, e nada é de conjuntural.
Apesar de o mês passado ter sido o primeiro desde Novembro de 2021 abaixo dos 10 mil óbitos, os sinais estruturais de debilidade da população portuguesa em termos de Saúde Pública continuam evidentes – e pior ainda, consolidaram-se nos últimos seis meses. Em cada mês.
Conforme já destacado anteriormente pelo PÁGINA UM, o excesso de mortalidade observa-se sobretudo nos grupos etários mais elevados, mas detectam-se agora também, de forma indesmentível do ponto de vista estatístico, no grupo etário dos 15 aos 24 anos. O número de óbitos de adolescentes e jovens adultos é, particularmente este ano, e sobretudo desde Março, completamente inusitado, e nunca abordado ao longo deste ano pelo Governo e autoridades de Saúde.
E, no entanto, tudo isto sucede no presente ano, 2022, que até aparentava vir a ser de alívio após dois anos de pandemia.
De acordo com os dados preliminares do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), os meses de Janeiro e Fevereiro deste ano foram relativamente calmos: em comparação com a média (2017-2021) houve menos 2.374 óbitos. Mesmo excluindo da comparação o ano de 2021 (que registou mortalidade absolutamente anormal, no pico da pandemia), os dois primeiros meses de 2022 ficaram assim em níveis de letalidade dentro do expectável.
Contudo, de repente, o excesso de mortalidade surgiu com a entrada do tempo primaveril, mantendo-se elevado pela época estival, e não dá sinais de parar. O Ministério da Saúde anunciou, no mês passado, um estudo a ser concluído em 2023, mas nem sequer é certo que inclua o período a partir de Março deste ano. Recorde-se que não são ainda conhecidas, em detalhe, todas as causas de morte discriminadas relativas ao ano de 2020 e de 2021.
Mantendo-se o intencional mistério alimentado pelo Governo sobre a causa das mortes, porém os números totais não enganam: há um gravíssimo problema de Saúde Pública em Portugal, uma “herança” deixada pela pandemia e, muito provavelmente, pela gestão política do Serviço Nacional de Saúde (SNS), que secundarizou o diagnóstico e tratamento das outras doenças. De igual modo, o Governo e as autoridades de Saúde não colocam sequer a hipótese de se estudar a existência de qualquer relação causal entre os processos de vacinação contra a covid-19 e a prevalência de doenças letais sobretudo nos mais idosos.
Certo é que as análises estatísticas do PÁGINA UM revelam um imparável aumento da mortalidade a partir do fim do Inverno: entre Março e Agosto, o excesso de mortalidade em 2022 foi de 7.769 óbitos face à média do período homólogo de 2017-2021.
No período em análise, o ano de 2022 foi o primeiro em que se ultrapassou os 60 mil óbitos desde 1980 (ano com dados estatísticos acessíveis com facilidade). Para o presente ano, o SICO indica um total de 61.621 mortes entre Março e Agosto, ou seja, cerca de 335 mortes por dia.
No ano passado não chegara, no período homólogo, aos 53 mil óbitos, e a média (2017-2021) ronda os 54 mil, isto é, uma média diária de 293, mesmo assim “puxada” pelos dois primeiros anos da pandemia (2020 e 2021). Assim, entre 1 de Março e 31 de Agosto, todos os dias tem, em média, ocorrido mais 42 mortes do que seria expectável. Todos os 184 dias.
Mortalidade por grupo etário entre Janeiro e Agosto para os anos de 2017 a 2022. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM. Visualizar melhor, aqui.
A dimensão dos números de 2022 é tão avassaladora que jamais se pode justificar com base na covid-19, em ondas de calor ou envelhecimento populacional. Aliás, devido à pandemia e ao quase contínuo excesso de mortalidade nos mais idosos, o grupo etário dos maiores de 85 anos até terá diminuído face ao período pré-pandemia.
Embora em número total, 2022 ainda não tenha ultrapassado o morticínio de 2021 – marcado pelos meses de Janeiro e Fevereiro anormalmente letais, no pico da pandemia –, no caso dos maiores de 85 anos a situação deste ano tem sido absolutamente aterradora. Um autêntico gerontocídio, sobretudo por ser silenciado. Comparando com o período de 2017 a 2021 (que inclui, portanto o pico da pandemia), a mortalidade dos mais idosos (acima dos 85 anos) em 2022 já ultrapassa largamente a média: 37.538 vs. 33.273 óbitos, ou seja, mais 4.262. Mesmo face ao ano passado, os números de 2022 já o superam em 731 mortes.
Se se considerarem apenas os últimos seis meses (Março a Agosto), a diferença entre 2022 e 2021 é avassaladora: mais 5.535 óbitos. Ou seja, entre 1 de Março e 31 de Agosto registaram-se este ano, em comparação ao ano passado, mais 30 cerimónias fúnebres por dia apenas de pessoas com mais de 85 anos. Todos os dias.
Mortalidade por grupo etário entre Março e Agosto para os anos de 2017 a 2022. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM. Visualizar melhor, aqui.
Este acréscimo de mortalidade na faixa dos maiores de 85 anos reforça-se pelo desvio relativo (face à média), em especial quando se restringe a uma análise aos últimos seis meses. Considerando o período de Janeiro a Agosto, a mortalidade neste grupo etário foi 12,8% superior à média (2017-2021), mas no período de Março a Agosto quase duplica, atingindo-se os 23,8%.
Nos grupos etários imediatamente antecedentes, o acréscimo relativo é muito menor, embora também se observe uma intensificação nos últimos seis meses. No caso do grupo dos 75 aos 84 anos, contabiliza-se um acréscimo de 10,1% face à média no período de Março a Agosto, sendo de apenas de 2,3% se se incluírem os dois primeiros meses. No grupo dos 65 aos 74 anos o desvio é de 8,7% no período de Março a Agosto, e de 5,3% para todos os meses do ano. E no grupo dos 55 aos 64 anos o desvio é de 6,1% no período de Março a Agosto, embora somente de 2,9% se se incluir todos os oito meses.
Note-se, contudo, que nestes grupos etários a mortalidade deste ano (Janeiro a Agosto) é ainda mais baixa do que a registada no ano passado, mas já é bastante superior se se analisar apenas o período a partir de Março, sobretudo nos maiores dos 65 anos, o que indicia que a tendência é 2022 vir a ser mais mortífero do que 2021.
Abaixo dos 55 anos, a situação deste ano – tal como ocorreu durante a pandemia – pode considerar-se normal. Ou seja, mortalidade dentro dos padrões normais quer comparando os anos de pandemia quer os anos de pré-pandemia. Mas com uma surpreendente e gravíssima excepção no grupo etário dos 15 aos 24 anos.
Com efeito, se se comparar 2022 com o período 2017-2021 (tanto em termos médios como individualmente), os números de mortalidade geral abaixo dos 55 anos não surpreendem, se olhados em conjunto. Mesmo a mortalidade infantil deste ano, embora superior ao do ano passado (155 vs. 114), pode considerar-se “normal”, porque a subida se deveu a um número atípico (bastante baixo, mas difícil de manter) em 2021. De facto, o número de mortes de bebés em 2022 (até Agosto) é exactamente igual ao de 2020, e até bastante inferior aos anos de 2017 (163 óbitos), 2018 (200 óbitos) e 2019 (192 óbitos).
Mas se não existe um problema de Saúde Pública na mortalidade infantil – e até aos 14 anos –, nos adolescentes a partir daquela idade e nos jovens adultos (até aos 24 anos), já os números do SICO deveriam levar a tocar os sinos a rebate. Tanto mais que o padrão de mortalidade não se reflecte nos três grupos etários subsequentes (25-34 anos; 35-44 anos; e 45-54 anos) nem se mostra similar em dois dos três grupos precedentes (menos de 1 ano; e 5-14 anos) . No grupo dos 1 aos 4 anos, observa-se este ano um pequeno acréscimo absoluto face à média (4 óbitos), mas pouco relevante do ponto de vista estatístico, até porque se observam valores superiores em 2018.
De facto, os alarmes devem ser dirigidos aos adolescentes e jovens adultos. Aqui há mesmo um problema incontornável. Segundo a análise do PÁGINA UM aos números do SICO, este ano (Janeiro a Agosto) registaram-se já 254 óbitos na faixa etária dos 14 aos 25 anos, o que contrasta com os 208 óbitos em média no período homólogo de 2017-2018. Estamos assim perante um desvio de 21,9%. Este ano morreram mais 46 jovens neste grupo etário do que em média. Face ao ano passado, essa diferença é de 48. Em relação a 2020 é de 21 óbitos, e comparando com 2018 é de 68.
Se se considerar o período a partir de Março, até Agosto, o desvio é ainda maior: 24,3% (mais 37 óbitos em seis meses) – e também contrasta com os valores dos grupos etários subsequentes (entre os 25 anos e os 54 anos) que registaram reduções da mortalidade face à média. Desde o início do Verão (21 de Junho) até finais de Agosto, o SICO regista a morte de 84 jovens (15-24 anos), o que contrasta com uma média de 69 para o mesmo período entre 2017 e 2021.
Razões para esta dramática diferença – numa população na “flor da vida” – são desconhecidas. E continuarão se o Ministério da Saúde recusar divulgar os dados em bruto do SICO ao PÁGINA UM, para se conhecerem as causas de morte. E também se a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) mantiver online a “mutilada” base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar, impedindo assim de se perceber quais são as doenças que, de repente, estão a afectar (e a matar) mais na faixa dos 15 aos 24 anos.
O PÁGINA UM tem processos de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa no sentido de obrigar tanto o Ministério da Saúde como a ACSS a disponibilizar essas bases de dados.
Apesar de um abrandamento, o excesso de óbitos continua ainda em Agosto. Os dias com menos de 300 óbitos tornaram-se mais frequentes, mas mesmo assim a média continua acima daquele patamar, o que se mostra intolerável face a um excesso de mortalidade que vem desde finais de Fevereiro. Com base na situação até dia 18, o PÁGINA UM prevê que este será o segundo mais mortífero Agosto deste século, apenas ultrapassado por 2003 que registou uma das piores onda de calor.
Apesar de uma redução da mortalidade nas últimas três semanas, o presente mês de Agosto continua a estar com níveis muito acima do expectável. De acordo com a análise do PÁGINA UM, a partir do perfil e especificidades em anos anteriores e ao longo do mês em curso, será provável que a mortalidade total em Agosto de 2022 fique apenas abaixo da registada em 2003, quando uma onda de calor intensa no início daquele mês fez disparar os óbitos. Naquele ano, Agosto contabilizou 10.111 óbitos.
Agosto de 2003 registou uma das mais inclementes ondas de calor de que há registo, que se iniciou em 30 de Julho e se prolongou até ao dia 15 daquele mês. Quando a população estava menos envelhecida, foi estimado um excesso global de 1.953 óbitos, sobretudo no interior. Nos distritos de Guarda, Castelo Branco, Portalegre e Évora a mortalidade foi superior a 80% face ao expectável.
Agora, sendo quase garantido que no presente mês de Agosto se interromperá a inédita série de nove meses, iniciada em Novembro do ano passado, com mortalidade total acima dos 10 mil óbitos, mostra-se muito provável, em todo o caso, que se fique bem acima dos 9 mil, mesmo assim um valor bastante elevado para esta época do ano.
Até dia 18, de acordo com os dados disponível do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito terão morrido 5.447 pessoas, ou seja, 7% acima da média do último quinquénio.
Desde 2009, no período homólogo apenas 2018 apresenta um número mais elevado (5.617), mas muito por força também de uma onda de calor que, no início de Agosto daquele ano, causou uma elevada mortalidade, mas à qual sucedeu uma queda acentuada na segunda quinzena.
No caso de Agosto deste ano, a mortalidade continua bastante elevada, mesmo nas semanas em que as temperaturas estiveram mais amenas. Apesar do mês em curso ter tido 10 dias em mortalidade diária abaixo dos 300 óbitos – algo que somente acontecera em sete dias até finais de Julho –, a média continua elevadíssima (303 por dia), sobretudo porque o excesso de mortalidade tem estado omnipresente desde finais de Fevereiro.
Nessa medida, e com o aumento da temperatura para os próximos dias, será expectável que a mortalidade diária continue a rondar os 300 óbitos, o que a confirmar-se significará que Agosto de 2022 será o segundo pior de sempre, a seguir a 2003. O PÁGINA UM prevê que a mortalidade do final de Agosto estará compreendida entre 9.300 e 9.500 óbitos.
Recorde-se que o Ministério da Saúde prometeu apenas para 2023 revelar as conclusões de um estudo, do qual pouco se sabe, sobre as causas do excesso de mortalidade em Portugal, mantendo, por outro lado, a recusa em divulgar o acesso aos dados em bruto do SICO ao PÁGINA UM, uma questão que está a ser dirimida no Tribunal Administrativo de Lisboa.
Também a base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, que poderia dar indicações sobre as causas principais desse excesso, foi retirada pelo Ministério da Saúde do Portal da Transparência do SNS – e depois mutilada –, razão pela qual também ontem o PÁGINA UM intentou outro processo de intimação junto do Tribunal para obrigar a Administração Central do Serviço de Saúde a disponibilizar a versão original.
N.D. Foi alterado o título e alguns pormenores do texto em 28 de Agosto, porque se constatou que, pelo menos até aos anos 40 do século XX, em grande parte devido à elevadíssima taxa de mortalidade infantil, os meses de Verão eram bastante mortíferos, ao contrário do que passou a verificar-se nos últimos 50 anos.
Uma análise detalhada do PÁGINA UM – embora ainda não validada pelo Secretariado da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista – revela que, entre Maio e a primeira semana de Agosto deste ano, morreram mais 5.548 pessoas do que no período homólogo de 2017-2021, um acréscimo de 20,1%. Mas o excesso de mortalidade não é semelhante: em alguns concelhos assistiu-se a um autêntico morticínio, em Lisboa e Porto o fenómeno é “moderado” e há até 48 municípios em que os óbitos foram em menor número do que expectável. O Ministério da Saúde anuncia estudo, mas continua a lutar no Tribunal Administrativo para não dar informação.
Em Monforte, pequeno município norte-alentejano com um pouco menos de três mil habitantes, morre-se pouco, mesmo se a população é idosa. Entre 2017 e 2021, nas semanas de 18 a 31 – sensivelmente entre Maio e o início de Agosto –, não foram frequentes as cerimónias fúnebres: 10, em média, o que dá menos de um enterro em cada uma destas 14 semanas.
Este ano, porém, foi bem diferente. De acordo com os dados disponíveis do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), em Monforte realizaram-se 25 enterros. No ano passado, no mesmo período, apenas foram sete. Há dois anos, 15.
Embora Monforte seja, com 150% de óbitos acima da média desde Maio, o concelho do país com um maior excesso relativo de mortalidade, a situação é absolutamente anómala em muitas mais regiões, mas sem se encontrar um padrão muito definido. Segundo os cálculos rigorosos – e não sensacionalistas – do PÁGINA UM, há mais dois concelhos do país em que, no período em análise, a mortalidade mais do que duplicou: Povoação (114%), com 30 mortes este ano que confronta com uma média de 14, e Alvito (102%), com 19 mortes este ano que compara com uma média de nove.
Apesar de não se encontrar bem definido um padrão regional no excesso de mortalidade – os 20 municípios com um excesso de 50% distribuem-se pelas diversas regiões do Continente e também pelos Açores e Madeira –, destacam-se, porém, diversos municípios alentejanos. Além de Monforte e Alvito, salienta-se o excesso de mortalidade em Arraiolos (75%), Avis (60%) e Nisa (52%). E também algarvios, como Vila do Bispo (80%), Lagoa (64%), Alcoutim (62%) e Vila Real de Santo António (50,2%).
Os outros concelhos com mortalidade acima de 50% no período estão, efectivamente, distribuídos pelo país: Nordeste (Açores, 91%), Manteigas (distrito da Guarda, 80%), Azambuja (Lisboa, 74%), Calheta (Açores, 70%), Fornos de Algodres (Guarda, 68%), Figueiró dos Vinhos (Leiria, 65%), Calheta (Madeira, 61%), Santa Cruz (Madeira, 60%), Póvoa de Lanhoso (Braga, 55%), Vila Nova de Foz Côa (Guarda, 55%).
Por regra, a maioria dos municípios com excesso de mortalidade superior à média nacional neste período – que foi de 20,1% no período em análise, a que correspondem mais 5.548 mortes do que o expectável – são de pequena ou média dimensão. Ou seja, com menor capacidade de resposta em termos de cuidados médicos.
Com efeito, o concelho de Lisboa – o município que, por ser o mais populoso e também bastante envelhecido apresenta sempre o maior número de óbitos – não foi particularmente atingido por esta “onda de morticínio” que está a atravessar Portugal sem que haja sinais evidentes de uma intervenção governamental ou judiciária. Entre Maio e a primeira semana de Agosto, o PÁGINA UM apurou que se registaram na capital portuguesa um total de 1.892 óbitos, o que contrasta com uma média de 1.659 no período homólogo de 2017-2021. Em todo o caso, mesmo se o valor deste ano significa um excesso de 14% – portanto, 6 pontos percentuais abaixo da média nacional –, está relativamente próximo do número de 2020 (1.835 óbitos).
Aliás, o problema do excesso de mortalidade, apesar de mesmo assim ser relevante, parece bastante menor nos principais centros urbanos, onde existem melhores cuidados hospitalares mas também uma maior atenção mediática.
Além de Lisboa, também o Porto registou um excesso de mortalidade relativamente moderado: contabilizaram-se este ano 785 óbitos, que confronta com uma média de 708 no período 2017-2021.
Já os outros três concelhos do top 5 em termos populacionais – e com menos recursos de cuidados hospitalares – tiveram excesso de mortalidade mais elevado. Em Sintra – o segundo município mais populoso – contam-se este ano, no período em análise, 850 óbitos, um acréscimo de 125 óbitos face à média (+17,3%). Já acima da média nacional encontram-se Vila Nova de Gaia (excesso de 24,2%) e Cascais (22,6%). No primeiro destes concelhos morreram este ano 807 pessoas (650 no período 2017-2021) e no segundo 613 (mais 113 do que no período homólogo de 2017-2021).
De entre os concelhos com um excesso de mortalidade acima da média nacional destacam-se também, pela diferença absoluta de óbitos, os casos da Covilhã (mais 59 óbitos este ano face à média, um acréscimo de 49%), Seixal (mais 117 óbitos, um acréscimo de 34%), Braga (mais 101, um acréscimo de 33%), Santa Maria da Feira (mais 82 óbitos, um acréscimo de 31%), Maia (mais 80, um acréscimo também de 31%), Loulé (mais 56, um acréscimo de 29%), Viseu (mais 63, um acréscimo de 26%), Barreiro (mais 57, um acréscimo também de 26%), Barcelos (mais 56, um acréscimo de 25%), Odivelas (mais 78, um acréscimo de 24%), Valongo (mais 43, um acréscimo também de 24%) e Figueira da Foz (mais 46, um acréscimo também de 24%).
Porém, não se pense que o excesso de mortalidade seja um problema transversal em todos os municípios – e que, portanto, se possa apenas especular com base em ondas de calor, nas mortes por covid-19 ou por outros factores mais ou menos metafísicos. De facto, para mostrar que o problema é mais complexo – e a necessitar de uma investigação meticulosa e independente –, observam-se 48 municípios onde a mortalidade este ano, no período em análise, até foi mais baixa do que a média.
Saliente-se que hoje o Ministério da Saúde anunciou que vai avançar com “um estudo aprofundado” sobre “os excessos de mortalidade mais recentes”, nomeadamente “os que coincidem com a maior intensidade epidémica da covid-19 e do calor”.
Segundo o Público – que atribuiu erradamente ao Expresso ter sido o primeiro órgão de comunicação a detectar que todos os meses deste ano tiveram sempre mais de 10.000 óbitos – este estudo incidirá sobre os dois primeiros anos da pandemia “mas pressupõe-se que abrangerá também os primeiros sete meses deste ano, uma vez que o número de óbitos continuou elevado neste período, bem acima do padrão dos anos anteriores à pandemia, apesar de a covid-19 ter agora um peso mais reduzido na estatística das mortes por todas as causas.”
O Ministério da Saúde continua, entretanto, a recusar disponibilizar ao PÁGINA UM os dados detalhados e em bruto do SICO – que permitiria fácil e rapidamente identificar as causas de mortes que justificam o excesso de mortalidade nos últimos meses –, aguardando-se ainda a decisão do Tribunal Administrativo de Lisboa sobre esta matéria. Por sua vez, a Procuradoria-Geral da República mantém-se silenciosa sobre este assunto.
Governo, certos peritos e media mainstream insistem na tónica do excesso de mortalidade causada pelas temperaturas elevadas. E se é certo que o calor extremo pode, em muitas circunstâncias, contribuir ainda mais para piorar a situação, uma análise estatística do PÁGINA UM comprova, analisando somente os dias sem “anomalias térmicas”, que o excesso de mortalidade é estrutural. Mesmo sem tempo quente, o morticínio vai continuar. Até quando? Até quando o silêncio do Governo? Até quando o silêncio (cúmplice) da Procuradoria Geral da República?
Nem um milagre livrará já Portugal de chegar ao final de Julho com o nono mês consecutivo sempre com a mortalidade total acima da fasquia dos 10 mil óbitos – um fenómeno inédito na História de Portugal, e que não está relacionada com qualquer fenómeno meteorológico, revelando sim um gravíssimo problema estrutural de Saúde Pública ignorado e “abafado” pelo Governo.
De acordo com a análise estatística do PÁGINA UM, mesmo faltando contabilizar cinco dias para se concluir Julho, está garantido que a mortalidade por todas as causas ficará bem acima dos 10.000 óbitos. E será praticamente garantido que superará Julho de 2020 – já então marcado por uma mortalidade inusitada devida, apenas em parte, ao tempo quente.
O Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) indicava, até ao dia de ontem, 9.036 óbitos acumulados no mês em curso, um valor superior em 243 mortes ao então registado há dois anos entre 1 e 26 de Julho. Mesmo assumindo um forte abaixamento da mortalidade diária entre hoje e domingo, para níveis em redor do primeiro quartil deste mês (318), o total deverá rondar os 10.600 óbitos – algo inimaginável nesta época do ano, ainda mais tendo em conta a sucessão de meses em excesso de mortalidade.
Há dois anos Julho terminou com 10.425 óbitos, ultrapassa-se pela primeira vez este limiar. Saliente-se que, por norma, os meses de Verão são pouco “letais”, sendo Setembro aquele onde se regista um menor número de mortes.
Mortalidade total no mês de Julho (até dia 26) entre os anos de 2009 e 2022. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.
As análises do PÁGINA UM também demonstram ser uma perigosa falácia manter a ideia de ser o tempo quente – e as alterações climáticas – que justificam o excesso de mortalidade, porque tal percepção faz transparecer a ideia de que, terminando as temperaturas elevadas, a situação se “regularizará”. Não é verdade, de todo, em especial quando se cruza a mortalidade diária com os valores do Índice Ícaro.
Calculado pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), entre Maio e Setembro de cada ano e – ainda disponível, desde 2020, no Portal da Transparência do SNS, podendo ser a qualquer momento retirado para “análise interna” por iniciativa de algum burocrata –, este índice apresenta o risco potencial de morte associado a elevadas temperaturas.
Mortalidade total nos últimos nove meses em Portugal. Mês de Julho é uma estimativa com valores reais até dia 26 e assumindo que os restantes cinco dias terão, em média, o valor do primeiro quartil deste mês (311 óbitos). Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.
Contudo, permite também análises interessantes quando se confrontam períodos em que esse índice é zero – ou seja, quando não há qualquer efeito do calor extremo associado à mortalidade. Deste modo, consegue-se, de uma forma simplista mas rápida, conhecer a “mortalidade base” expurgada da meteorologia, comprovando assim a existência ou não de um problema estrutural de Saúde Pública.
Ora, cruzando os valores diários do Índice Ícaro com a mortalidade, desde 1 de Maio até 26 de Julho, observa-se que, efectivamente, o ano de 2022 está a apresentar um perfil de temperaturas elevadas bastante superior ao ano passado, mas apenas ligeiramente acima de 2020. Com efeito, este ano já se contabilizaram 34 dias com o Índice Ícaro acima de 0, cinco dias mais do que em 2020, e 17 dias mais do que em 2021. No caso de dias com o Índice Ícaro acima de 0,40, no ano passado não se contabilizou nenhum, enquanto este ano já se observaram sete dias, enquanto em 2020 foram cinco.
Distribuição dos óbitos diários em função dos valores do Índice Ícaro entre 1 de Maio e 26 de Julho para os anos de 2020, 2021 e 2022. Fonte: SICO e Portal da Transparência do SNS. Análise: PÁGINA UM.
Contudo, sendo certo que um Índice Ícaro efectivamente resulta num incremento da mortalidade – empiricamente, valores acima de 0,40 resultam numa mortalidade diária acima de 350 óbitos, e acima de 0,80 podem ultrapassar os 400 –, também relevante se mostra observar o “perfil de mortalidade diário” quando as temperaturas são normais e amenas. Ora, e é aqui que o ano de 2022 mostra que algo está mesmo muito anormal.
Com efeito, desde Maio deste ano, mesmo quando o Índice Ícaro está em zero, a mortalidade diária ultrapassou quase sistematicamente os 300 óbitos diários. Este ano, desde Maio, só houve ainda sete dias abaixo desta fasquia, sendo que se registaram 55 dias com Índice Ícaro igual a zero. No ano passado houve 64 dias com mortalidade abaixo de 300 em 71 dias com Índice Ícaro de zero, enquanto em 2020, de entre os 58 dias com temperaturas normais, contabilizaram-se 33 com mortalidade inferior a 300 óbitos.
Diagramas de caixa para para os dias com Índice Ícaro zero (1 de Maio a 26 de Julho) em 2020, 2021 e 2022, com indicações dos valores extremos, primeiro quartil, mediana e terceiro quartil. Fonte: SICO e Portal da Transparência do SNS. Análise: PÁGINA UM.
A profunda anormalidade deste ano – que não é fruto de qualquer anomalia meteorológica, apenas se agrava ainda mais quando ocorre uma onda de calor – também se observa numa simples análise estatística descritiva. Com efeito, contabilizando somente os dias com Índice Ícaro zero, constata-se que em mais de 75% dos dias (entre Maio e 26 de Julho), a mortalidade esteve acima de 311 óbitos, enquanto que em 2020 – para similar “perfil de temperaturas” – a mortalidade acima de 311 óbitos registou-se apenas em 25% dos dias.
Se compararmos medianas da mortalidade diária para os três anos – lidas como representando o valor a partir do qual se observou em metade dos dias – para os períodos em que o Índice Ícaro foi de zero, então ainda se constata que o Portugal de 2022 está estruturalmente doente. Com efeito, este ano, a mediana da mortalidade nesta condições (tempo normal sem excesso de mortalidade associado ao tempo quente) é de 312 óbitos (um valor absurdamente alto), que compara com 296 em 2020 e com apenas 276 em 2021.
A mortalidade média está com valores próximos da mediana: 328 para este ano, sendo de 275 no ano passado e de 293 em 2020. Em anos com maior prevalência de dias de excessivo calor mostra-se habitual a ocorrência de mortalidade ainda excessiva nos períodos subsequentes, mas nunca na dimensão que está a suceder este ano.
Na próxima segunda-feira, inicia-se o 24º acampamento de escuteiros em Idanha-a-Nova. E o Corpo Nacional de Escutas quis ser, em matéria da gestão da covid-19, mais “papista” do que a própria Direcção-Geral da Saúde, impondo “controlo sanitário” prévio de entradas, com distinção entre vacinados/recuperados e não vacinados. Mas, afinal, confrontada pelo PÁGINA UM por via da ilegalidade desta discriminação e falta de sustentação legal e epidemiológica, a organização diz agora que, afinal, não passa de uma “recomendação”.
O lema cunhado durante a pandemia, “seja um agente de Saúde Pública”, está a fazer escola, e agora multiplicam-se os casos de “exageros de autoridade”, onde entidades sem funções públicas exigem o cumprimento de regras que nem sequer encontram respaldo nem na Ciência nem em normas da Direcção-Geral da Saúde (DGS) e muito menos na legislação.
É o caso do Corpo Nacional de Escutas (CNE) que, num mega-acampamento (ACANAC) em Idanha-a-Nova entre 1 e 7 de Agosto, decidiu implementar plano de contingência “fora-da-lei”.
De acordo com os documentos a que o PÁGINA UM teve acesso, a organização deste evento escutista internacional nomeou um número indeterminado de responsáveis com a função de “assegurar que haja um responsável sanitário (poderá ser o responsável de contingente ou não, mas que deverá estar presente em Campo) que se certifique que cada participante do contingente tem pelo menos uma das seguintes condições: certificado de vacinação completo, ou certificado de recuperação válido, ou teste antigénio negativo 24h [24 horas] antes da entrada no ACANAC”. Esse responsável estaria obrigado a assinar um termo de responsabilidade.
Em e-mail enviado aos pais dos jovens escuteiros, a que o PÁGINA UM também teve acesso, é salientado o facto de se estar perante um “evento privado e como tal, em articulação com as autoridades de saúde pública locais, considerou-se que seria uma mais-valia para a segurança de todos os participantes que fossem cumpridas algumas regras para entrada” no acampamento.
Sucede, porém, que tanto em eventos privados como públicos, estas exigências não têm já qualquer enquadramento legal nem introduz qualquer benefício sanitário. Um detentor de certificado digital pode estar, no momento da sua exibição, infectado, pelo que a sua entrada sem teste num acampamento – assumindo-se que os testes em assintomáticos são formas eficazes de prevenção epidemiológica – seria até “perigosa”, ao contrário do que sucederia com um não-vacinado a quem se faria um teste para confirmar que estava negativo.
Idanha-a-Nova vai receber escutistas a partir de segunda-feira.
Além disso, recorde-se que, actualmente, o detentor de um certificado digital válido não tem já, na prática, e dentro do território nacional, qualquer “direito suplementar” ou benefício face às pessoas não-vacinadas ou que, sendo recuperadas ou recebido doses de vacinas, excederam o prazo do certificado. Todas as normas – algumas de constitucionalidade duvidosa e de eficácia preventiva questionável – que limitavam o acesso apenas a detentores do certificado válido e/ou exigiam, em complemento ou alternativa, um teste ao SARS-CoV-2 foram caindo nos últimos meses.
Mesmo desde o dia 1 deste mês, por despacho governamental “deix[ou] de ser exigido aos passageiros que entrem em território nacional a apresentação de comprovativo de realização de teste para despiste da infeção por SARS-CoV-2 com resultado negativo ou a apresentação de certificado digital COVID UE ou de certificado de vacinação ou recuperação emitido por países terceiros, aceite ou reconhecido em Portugal”.
Confirmando ao PÁGINA UM as exigências para a entrada no acampamento que se inicia na próxima segunda-feira, o coordenador de comunicação externa do CNE, Henrique Ramos, diz que a organização pretendeu “garantir o cumprimento de todas as condições de segurança para os participantes, sendo aplicadas e postas em prática pela Equipa Organizadora e de Serviço, todas as medidas que o possam garantir”.
Henrique Ramos acrescenta ainda que “quer na preparação quer na realização do ACANAC 2022”, se pretendeu que fossem “implementadas todas as medidas vigentes à data”, daí que “com o objetivo de diminuir o risco de contágio entre os participantes, decidiu a Equipa Organizadora do ACANAC solicitar aos agrupamentos participantes que se certificassem que cada participante do seu contingente não constituísse um risco para os restantes participantes.”
Porém, o porta-voz da CNE acaba por admitir que, “como estas condições não serão confirmadas pela organização, esta solicitação [exigência de certificado ou de teste prévio para acesso ao acampamento] assume na prática a forma de recomendação, sendo que por esse motivo nenhum participante será impedido de participar na maior festa do escutismo em Portugal.”
O PÁGINA UM contactou a DGS para comentar esta situação, mas mesmo com insistências, não obteve resposta, como quase sempre sucede.
O PÁGINA UM analisou a evolução das taxas de vacinação contra a covid-19 nos últimos dois meses. Quatro em cada 10 idosos com mais de 80 anos ainda não se vacinaram com a quarta dose e a procura é agora muito fraca. Nos outros grupos etários, a taxa de cobertura da terceira dose é também bastante mais baixa do que aquele que se registou para a primeira e segunda doses.
A adesão ao segundo reforço do programa de vacinação contra covid-19 – ou quarta dose – está a esmorecer junto da população mais idosa, em linha com uma redução significativa da população mais jovem na toma do primeiro reforço (terceira dose).
De acordo com os mais recentes dados semanais da Direcção-Geral da Saúde (DGS), na semana de 5 a 11 de Julho apenas terão sido vacinadas cerca de 54 mil pessoas. Destas pouco menos de sete mil eram idosos com mais de 80 anos, os elegíveis para a toma do denominado segundo reforço. A maioria das pessoas que, naquela semana, se deslocaram aos centros de vacinação foi para a terceira dose, dos quais quase oito mil com idade entre os 18 e os 24 anos, e cerca de 33 mil com idade entre os 25 e os 49 anos.
Ainda houve, neste período, quase 6.500 crianças entre os 5 e os 11 anos que tomaram a segunda dose para concluir o processo de vacinação completa. Saliente-se, aliás, que a vacinação de reforço (terceira dose) somente foi adoptada, por agora, para os maiores de idade.
Na semana anterior (28 de Junho a 4 de Julho), o número de pessoas vacinadas terá sido sensivelmente semelhante, embora 13 mil fossem idosos com mais de 80 anos.
Estes valores absolutos constituem estimativas do PÁGINA UM, com base na percentagem da população vacinada por semana em cada grupo etário e em função da respectiva população indicada pelo Instituto Nacional de Estatística para o ano de 2020. A DGS tomou, desde sempre, a questionável decisão de não divulgar números absolutos da população vacinada, optando por percentagem sem casas decimais. Daí que virtualmente toda a população com mais de 25 anos esteja toda vacinada (100%), o que não corresponde à verdade.
Certo é que pela análise dos boletins semanais da DGS, nota-se claramente que a vontade em receber mais doses da vacina contra a covid-19 por parte dos portugueses esmoreceu de forma significativa, mesmo nos grupos etários supostamente mais vulneráveis.
Número de pessoas vacinadas por semana desde 17 de Maio até 11 de Julho de 2022 por grupo etário. Fonte: DGS. Análise: PÁGINA UM
Tal situação, patente nos números da evolução da campanha em curso, significa uma assumpção da existência de um menor risco de vida perante a dominância da variante Omicron (muito menos letal) ou da percepção da existência de uma forte imunidade adquirida (mais de 50% da população portuguesa já contactou directamente com o SARS-CoV-2) ou também um aumento da desconfiança em termos de segurança.
Saliente-se que o Infarmed tem recusado ceder os dados detalhados das reacções adversas ao PÁGINA UM, estando em curso um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa.
A evolução dos números do segundo reforço para os maiores de 80 anos mostra que dificilmente será possível atingirem-se os patamares de adesão à vacinação completa (100%) ou mesmo à vacinação de reforço (97%). Desde a segunda metade de Maio, quando se iniciou o programa para os maiores de 80 anos reforçarem a imunidade vacinal (a quarta dose), apenas 58% deste grupo etário se vacinou, mas a procura está a cair a pique.
Com efeito, na segunda quinzena de Maio vacinaram-se 21% deste grupo etário, tendo-se depois conseguido, nas quatro semanas subsequentes, vacinar entre 11% e 13% a cada sete dias. Porém, na semana de 21 a 27 de Junho apenas se vacinaram 4%, seguindo-se 2% na seguinte e apenas 1% na semana de 5 a 11 de Julho.
No grupo etário dos 65 aos 79 anos, apenas 1% da população foi já vacinada com o segundo reforço, embora o primeiro reforço tenha, segundo os dados da DGS, uma taxa de cobertura de 98%.
Nas idades mais jovens (menores de 65 anos), o processo está ainda em maior estagnação, mesmo se foram administradas, desde a segunda quinzena de Maio, cerca de 380 mil doses de vacinas, que representam cerca de 5% da população.
Nestes grupos etários sobressai sobretudo a grande diferença entre a adesão à vacinação completa (duas doses) e ao reforço (terceira dose). Por exemplo, dos 25 aos 49 anos, passou-se de uma adesão (supostamente) de 100% na toma das duas doses para apenas 66% na toma da terceira. Nos 18 aos 24, a dose de reforço já só foi tomada por 52%, quando para a vacinação completa (duas doses) tinha, segundo a DGS, ocorrido uma adesão de 98%.
Nas crianças entre os 5 e os 11 anos, a maioria (58%) ainda não teve vacinação completa (duas doses). A adesão, aliás, tem sido bastante lenta, tendo apenas aumentado em cinco pontos percentuais nos últimos dois meses, passando de 37% no princípio da segunda quinzena de Maio para 42% em 11 de Julho.
A DGS não comenta este crescente desinteresse na vacina contra a covid-19 face à adesão que se verificava anteriormente, tendo apenas transmitido ao PÁGINA UM que “Portugal é dos países com valores mais elevados de cobertura vacinal da Europa”, e que têm sido implementadas “diferentes estratégias de acesso à vacinação, tais como, agendamento local ou central, ou através da modalidade casa aberta”.
O gabinete de comunicação de Graça Freitas acrescenta que, “neste contexto, as pessoas vão sendo vacinadas à medida que se tornam elegíveis, de acordo com a Norma 002/2021”, afirmando que se continua a “investir em estratégias de comunicação para informar a população sobre o processo de vacinação”.
Quanto à eventualidade de, nos próximos meses, vir a ser recomendado para os menores um reforço da vacinação (terceira dose), a DGS apenas salienta, por agora, que faz tudo “de acordo com a evidência científica disponível à data”, mantendo-se “a acompanhar a evolução do conhecimento científico, bem como a situação epidemiológica, podendo rever as suas recomendações sempre que se justificar.”
A covid-19 tornou-se endémica, mas a mortalidade em Portugal mantém-se imparável. Desde Novembro do ano passado não houve ainda nenhum mês com menos de 10.000 óbitos. Os meses de Abril, de Maio e de Junho bateram recordes, e Julho caminha para essa funesta posição. Mas o problema tem sido a persistência, que mostra um inquestionável problema grave de Saúde Pública. Enquanto isto, o Governo adia uma avaliação independente e continua a obstaculizar as investigações do PÁGINA UM.
É situação inédita, impensável e intolerável, sobretudo pelo silêncio do Governo: com a primeira quinzena de Julho a registar mais de 5.200 óbitos, Portugal arrisca-se a contabilizar o nono mês consecutivo com os meses acima de 10.000 mortes por todas as causas.
De acordo com dados do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito, desde Novembro do ano passado, todos os meses têm estado acima da fasquia dos 10.000 óbitos, valores que sendo números aceitáveis no Inverno – face ao envelhecimento populacional e à maior prevalência de doenças letais dos aparelhos respiratório e circulatório –, são completamente atípicos nos meses de Primavera e Verão.
Com efeito, considerando os dados mensais da mortalidade do SICO e do Instituto Nacional de Estatística a partir de 1980, antes da pandemia apenas por duas ocasiões se registou uma séries de quatro meses consecutivos com mais de 10.000 óbitos: entre Dezembro de 2014 e Março de 2015, e entre Dezembro de 2017 e Março de 2018.
Mesmo a ocorrência de séries de três meses a suplantarem aquela fasquia eram bastante raros, identificando-se apenas seis desde 1980: Dezembro de 1995 a Fevereiro de 1996; Dezembro de 1998 e Fevereiro de 1999; Dezembro de 2001 e Fevereiro de 2002; Dezembro de 2006 e Fevereiro de 2007; e ainda Janeiro de 2012 a Março de 2012.
Em plena pandemia registar-se-ia mais uma série de quatro meses com mortalidade sempre acima de 10.000 óbitos – Novembro de 2020 a Fevereiro de 2021 –, mas com uma dimensão sem precedentes, uma vez que, sobretudo Janeiro do ano passado contabilizou o pior saldo de sempre (19.649 óbitos). No total, naqueles quatro meses faleceram quase 57 mil pessoas. Nas outras duas séries com quatro meses sempre acima dos 10.000 óbitos, o saldo tinha sido menos nefasto: cerca de 45 mil mortes em cada.
Mortalidade mensal desde Janeiro de 1980 até Junho de 2022 (barras a vermelho, valores acima de 10.000 óbitos). Fonte: INE e SICO. Análise: PÁGINA UM.
Por norma, uma elevada mortalidade durante um determinado período – neste caso, o primeiro ano da pandemia – deveria estar a “beneficiar” os períodos subsequentes por virtude de um “rejuvenescimento” da população por via da morte dos mais vulneráveis. Ademais, a variante Omicron – que surgiu em Novembro do ano passado – tem-se mostrado de menor letalidade, a que acresce a elevada taxa de vacinação contra a covid-19, que as autoridades de saúde recusam associar a efeitos adversos relevantes.
Contudo, certo é, desde Novembro do ano passado, nunca se ficou abaixo dos cinco dígitos na contabilização de pessoas falecidas. Sendo certo que Dezembro e sobretudo Janeiro são meses em que habitualmente se ultrapassam os 10.000 óbitos – e em Novembro e Março ocorre com alguma regularidade nos anos pré-covid –, não é habitual estarem todos com elevada mortalidade.
Abril com mais de 10.000 óbitos apenas ocorreu por uma vez, exactamente em 2020, no início da denominada primeira vaga, que também esteve associada a mortes por causas não-covid. Mas um Maio ou um Junho acima de 10.000 óbitos é completamente inédito. Se Julho mantiver o ritmo – a média diária é, por agora, de 349 óbitos –, baterá o recorde de 2020, a única vez que se ultrapassara os 10.000 óbitos.
Porém, o principal problema nem sequer são os recordes mensais, mas sobretudo a persistência de elevados valores em tantos meses.
Mortalidade mensal desde Julho de 2017 até Junho de 2022 (barras a vermelho, valores acima de 10.000 óbitos). Fonte: INE e SICO. Análise: PÁGINA UM.
Apesar desta situação, o Governo mantém-se impávido, recusando disponibilizar os dados brutos do SICO – o que implicou o recurso ao Tribunal Administrativo por parte do PÁGINA UM, através de um processo de intimação –, o que permitiria identificar as causas de mortes que se têm vindo a destacar e a justificar estes números.
Além disso, recentemente, o presidente da Administração Central do Sistema de Saúde, Victor Herdeiro – amigo de longa data da ministra da Saúde, Marta Temido – retirou a base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar do Portal da Transparência do SNS, impedindo assim o PÁGINA UM de escrutinar qual o grupo de doenças que se mostram agora com maior letalidade das unidades de saúde.
Anteontem, a ministra da Saúde referiu aos jornalistas que o Governo está “totalmente empenhado em conhecer aquilo que é a mortalidade, conhecer as suas causas e atuar sobre as suas causas”, alegando que para as análises serem sérias, demoram muitas vezes tempo, e como tal é necessária “alguma prudência”. Marta Temido acrescentou querer “chegar a conclusões céleres”, mas que estas “não são possíveis quando são sobre fenómenos complexos e necessitam de tempo e de análise técnica”.
Na verdade, fazer análises desta natureza, ainda mais com o detalhe que os dados do SICO permitem, não demora assim muito tempo.
Para a “prova dos 9”, o PÁGINA UM solicitou a um professor de Estatística e Investigação Operacional da Faculdade de Ciências que analisasse a mortalidade deste ano em comparação com os últimos cinco anos, incluindo os primeiros dois anos de pandemia. Os resultados confirmam uma mortalidade excessiva, mas pior ainda: uma persistência inaudita. O calor desta semana complicará mais esta tragédia, mas não pode ser o bode expiatório. Afinal, o que esconde o Ministério da Saúde, quando não disponibiliza ao PÁGINA UM os dados em bruto do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito? De que estão a morrer os portugueses? Irá a culpa continuar a morrer solteira?
Desde 21 de Fevereiro até 10 de Julho – antes da actual onda de calor –, o excesso de mortalidade por todas as causas já terá atingido quase 5.700 óbitos, de acordo com cálculos, a solicitação do PÁGINA UM, de João José Gomes, professor do Departamento de Estatística e Investigação Operacional da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
Utilizando estatística mais elaborada, e analisando semanalmente os níveis de mortalidade desde o início do presente ano e comparando com períodos homólogos dos cinco anos anteriores (2017-2021) – incluindo, portanto, os dois primeiros anos da pandemia –, os cálculos deste investigador universitário destacam de forma ainda mais marcante a elevada e incompreensível mortalidade sobretudo desde o início de Março, e que se tem prolongado pela Primavera e Verão. Estas épocas do ano costumam ser as de menor mortalidade, só de quando em vez interrompidas, de forma curta, por alguma onda de calor.
Com efeito, a anormalidade deste ano mostra-se, sobretudo, por não estar associada a nenhum evento extraordinário, embora oficialmente tenha subsistido uma relativa mortalidade causada oficialmente pela covid-19, embora inédita, porquanto Portugal é um dos países europeus com maior taxa de vacinação contra esta doença e com maior contacto com o SARS-CoV-2.
Segundo os cálculos de João José Gomes, o mês de Janeiro deste ano até foi bastante “ameno” – com um “défice de mortalidade” que chegou aos 677 na terceira semana. A situação de menor mortalidade face à média ainda se manteve até à semana 7 – mas já com uma aproximação à média do período 2017-2021 a partir do início de Fevereiro.
Porém, sem qualquer evento meteorológico associado com implicações na saúde, Março foi o início de um inusitado processo atípico: em vez de uma redução, a mortalidade manteve-se em níveis quase similares ao Inverno. Significou isso, que o excesso de mortalidade se foi evidenciando.
Mortalidade semanal em 2022 comparada com intervalos de confiança de 95% construídos com base nos anos 2017-2021. Fonte: SICO. Análise: João José Gomes (FC-UL)
E de uma forma abismal. De facto, a partir da semana 12, iniciada a 22 de Março, a mortalidade total diária esteve quase invariavelmente acima da média do período homólogo entre 2017 e 2021. A situação ainda piorou mais entre a semana 21, que começou a 24 de Maio, e a semana 25, que terminou em 27 de Junho. Neste período de transição da Primavera para o Verão – que inclui Junho, o segundo mês menos mortífero do ano, a seguir a Setembro, pela sua amenidade –, o valor mínimo diário em 2022 esteve quase sempre acima do limite superior do intervalo de confiança de 95%. Isto sistematicamente. Pior seria impossível.
De acordo com os cálculos de João José Gomes, é sobretudo a persistência de um longo período de excesso de mortalidade num período do ano caracterizado pela baixa mortalidade que causa estupefacção.
Estimativa do défice (verde) e excesso (vermelho) de mortalidade por semana em 2022 face à média do período 2017-2021. Fonte: SICO. Análise: João José Gomes.
Entre as semanas 12 e 27, apenas em duas se excedeu as 200 mortes no respectivo período de sete dias. A mortalidade excedeu em mais de 60 óbitos por dia (ou seja, mais de 420 óbitos em sete dias) na semana 25 (21 a 27 de Junho, com 676 óbitos a mais, isto é, quase 97 por dia), na semana 24 (14 a 20 de Junho, com 563 óbitos a mais), na semana 20 (17 a 23 de Maio, com 468 óbitos a mais), na semana 23 (7 a 13 de Junho, com 467 óbitos a mais) e na semana 21 (24 a 30 de Maio, com 424 óbitos a mais).
Para reconfirmar a persistência da mortalidade sempre em valores muito acima do perfil normal – em que, no período primaveril e estival se sucedem largos períodos com óbitos diários a rondar os 280 por dia –, saliente-se que este ano apenas se verificaram, até hoje, 15 de Julho, sete dias com menos de 300 óbitos. Significa que se contabilizaram já 189 dias com mais de 300 óbitos, muito acima dos 161 registados em 2020, quando a primeira vaga encontrou uma população completamente desprevenida. No ano passado, que contabilizavam-se, neste período, já 104 dias abaixo dos 300 óbitos, embora tal se tenha devido em grande medida ao morticínio dos meses de Janeiro e Fevereiro.
Número de dias com 300 ou mais óbitos e com menos de 300 óbitos entre 2009 e 2022 até 15 de Julho. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.
Note-se que, na quase totalidade do período analisado, o índice Ícaro – que mede o risco de acréscimo de mortalidade devido a temperatura elevadas – esteve quase sempre com o valor de zero. Até 8 de Julho apenas em um dia esteve acima de 0,1 (ou seja, com impacte quase irrelevante), e somente na última semana esteve consecutivamente positivo. Em todo o caso, ainda não superou o valor de 1, que constitui já uma fasquia de grande perigo.
Esta análise demonstra, de forma categórica, que o excesso de mortalidade nos últimos dias associada exclusivamente à onda de calor em curso está profundamente errada. E que o comunicado de imprensa de ontem à tarde da Direcção-Geral da Saúde, apontando para um excesso de 238 óbitos no período de 7 a 13 de Julho em função exclusivamente das condições meteorológicas, e omitindo o passado mais recente (e os problemas estruturais do SNS), constitui, na verdade, uma manobra de diversão.
Na verdade, se é previsível (aliás, seria estranho o contrário) que a mortalidade total venha a ser extremamente elevada por estes dias – ontem, segundo dados provisórios, terão morrido 436 pessoas, o que a confirmar-se será o quarto dia mais mortífero de 2022 –, mostra-se evidente que o “ponto de partida”, ou seja, a base de mortalidade (por factores ainda ignorados) está muito acima do expectável. Portanto, acabando a onda de calor, continuará elevada a mortalidade, porque não é a temperatura que está a desequilibrar. Excepto, se enfim, alguém obrigar o Ministério da Saúde a revelar as causas deste contínuo morticínio, e a encontrar rapidamente uma solução.
Nada tem a ver com a onda de calor em curso. No passado domingo, a mortalidade acumulada nos mais idosos (acima dos 85 anos) desde Janeiro deste ano ultrapassou os atrozes valores de 2021, quando então se bateram recordes de óbitos em Janeiro e Fevereiro. Mas, ao contrário do que sucedeu em 2021, o morticínio nos mais velhos está a acontecer na Primavera e no Verão de forma persistente e silenciosa, contrariando aquilo que seria expectável. E tem sido um evento silenciado. Na verdade, não está ser apenas um morticínio; está a ser um gerontocídio. O PÁGINA UM apresenta uma análise detalhada daquilo que está a suceder, a exigir investigação, que pode ser judicial.
Gerontocídio – a palavra existe no léxico, embora seja pouco usada. Mas sendo pouco ou nada usual ouvi-la e vê-la escrita, tem agora andado a pairar por todo o lado no nosso país, de norte a sul, de este a oeste, apesar das autoridades de Saúde, e particularmente o Governo, nem sequer queiram proferir um qualquer eufemístico sinónimo. Nada. Silêncio. Um atroz silêncio: é esta a reacção de um Estado democrático perante uma mortandade sem precedente atinge níveis inauditos numa franja que já deu muito ao país: os super-idosos, os maiores de 85 anos.
De acordo com uma análise detalhada do PÁGINA UM, incluindo tratamento estatístico, aos dados disponíveis do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), os óbitos acumulados desde 1 de Janeiro deste ano neste grupo etário ultrapassaram, no passado domingo (dia 10 de Julho), os números já colossais de 2021, que incluíram Janeiro e Fevereiro, no auge da pandemia da covid-19.
Com os números provisórios até 12 de Julho, terão já morrido este ano um total de 30.648 pessoas com mais de 85 anos, o que representa quase 10% dos idosos daquela faixa etária, que nos últimos anos estava em contínuo crescimento. De acordo com as estimativas do Instituto Nacional de Estatística viviam em Portugal 328 mil pessoas com mais de 85 anos em 2020, sendo que, naquele ano, mais de 56 mil tinham apagado oito dezenas e meia de velas.
Este grupo etário esteve em contínuo crescimento nas últimas décadas, fruto das melhorias nos cuidados médicos, tendo duplicado mesmo o seu número entre 2004 (quando então viviam apenas cerca de 16 mil pessoas com mais de 85 anos) e 2020. Esse crescimento será quebrado, certamente agora, com o excesso de óbitos em 2021 e 2022.
O valor da mortalidade acumulada dos mais idosos em 2022 excede, por agora, em pouco menos de uma centena (97) os números do ano passado (30.551 óbitos). Encontram-se também substancialmente acima do primeiro ano da pandemia (27,866 óbitos) e são muitíssimo superiores ao período pré-pandemia (25.493 óbitos em média entre 2015 e 2019).
Recorde-se que o ano passado foi particularmente mortífero para os mais idosos. Nos dois primeiros meses do ano passado, a mortalidade total atingiu patamares inéditos: em Janeiro morreram 19.649 pessoas e em Fevereiro 12.784. Destas, 46% (14.809) eram idosos com idade igual ou superior a 85 anos.
Apesar disso, este ano a situação de Saúde Pública dos mais idosos está a assumir contornos ainda mais catastróficos, porque o morticínio não se iniciou nos meses de Inverno – associado a doenças mais letais neste grupo etário –, tendo-se sim intensificado, de forma espantosa e imparável, sobretudo a partir de Março.
Não se registou assim a habitual diminuição dos óbitos ao longo da Primavera e Verão; pelo contrário. Neste momento, os níveis de mortalidade nesta faixa etária estão próximos dos valores de Inverno, e com um excesso significativo face aos anos anteriores e sobretudo aos períodos homólogos pré-pandemia.
O início deste ano até aparentava vir a ser “ameno” para os mais idosos, após a pandemia ter causado um excesso de mortalidade sem precedentes. De facto, o último Janeiro teve uma mortalidade diária para os maiores de 85 anos até ligeiramente abaixo da média do período pré-pandemia: 167 óbitos vs. 174. O mês de Fevereiro esteve já um pouco acima, mas, mesmo assim, até ao dia 25 daquele mês tinham morrido menos 4.828 idosos desta faixa etária do que em igual período de 2021.
Aquilo que sucedeu depois mostra-se ainda inexplicável, pela sua dimensão e persistência, e por mais especulações que as autoridades de Saúde façam, enquanto se recusam a investigar ou impedem ostensivamente que haja investigações independentes. Este ano, entre Março e 12 de Julho, morreram 20.647 idosos com mais de 85 anos, um valor que excede em 4.901 os óbitos registados em 2021, em 2.227 os contabilizados em 2020 (que inclui o início da pandemia), e em 5.004 os que se registaram em média no período entre 2015 e 2019. Em relação à fase pré-pandemia, os óbitos neste grupo etário incrementaram em 32% no período do ano geralmente pouco mortífero.
Evolução do diferencial de óbitos acumulados entre 2022 e 2021 até 12 de Julho no grupo etário dos maiores de 85 anos. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.
De facto, o perfil da mortalidade deste ano para os mais idosos é completamente atípica. Desde Março, a mortalidade diária dos maiores de 85 anos tem variado entre uma média diária de 149 óbitos em Julho (nos 12 primeiros dias) e os 160 em Março. A média diária no período pré-pandemia (2015-2019) situa-se, para este intervalo de tempo, entre os 99 óbitos em Julho e os 135 em Março.
Ou seja, desde Junho observa-se um excesso de mortalidade neste grupo etário a rondar 50 óbitos em cada dia. Em dois meses são cerca de três mil mortes a mais. Não há explicação oficial, justificada por estudos técnicos, para estes números.
Esta hecatombe ainda assume pior intensidade, por duas razões: por um lado, nenhum outro grupo etário apresenta este perfil de mortalidade ao longo deste ano; por outro lado, o morticínio dos últimos meses sucede a um longo e (quase) contínuo período de excesso de mortalidade desde o surgimento da pandemia. Ademais, praticamente todo este grupo populacional se encontra com imunidade vacinal contra a covid-19 com três ou quatro doses.
Mortalidade média diária por mês dos maiores de 85 anos no período 2015-2019 (média), 2020, 2021 e 2022 (Julho até dia 12). Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.
Com efeito, analisando todos os grupos etários do SICO, aqueles que são subsequentes aos maiores de 85 anos até estão em situação muito mais favorável relativamente ao ano passado. Apesar de os valores ainda estarem algo acima da média pré-pandemia, se comparamos a mortalidade acumulada até 12 de Julho deste ano com o período homólogo do ano passado para o grupo etário dos 75 aos 84 anos, observa-se até um decréscimo de 1.504 óbitos. Para o grupos dos 65 aos 74 anos a redução é de 839.
A relativa redução na mortalidade entre os 65 aos 84 anos justifica, assim, que o total de óbitos na população portuguesa até 12 de Julho de 2022 ainda seja bastante inferior ao ano passado: 67.939 óbitos contra 70.677, ou seja, menos 2.728.
Porém, esse mesmo diferencial, confirma ainda mais que o problema se concentra em exclusivo nos mais idosos, embora seja questão menos mediatizável por atingirem pessoas que já vivem acima da esperança média de vida. Em todo o caso, fica patente que o suposto “efeito rejuvenescimento” – devido à morte dos mais “fracos” ao longo da pandemia – não foi assim suficiente para estancar um “inesgotável morticínio”.
Comparação entre a mortalidade acumulada (até 12 de Julho) em 2020 e de 2021 e da média pré-covid (2015-2019) por grupo etário dos mais idosos. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.
A constatação de se estar perante um silencioso e silenciado problema em exclusivo para os mais idosos ainda se evidencia mais numa análise aos grupos etários das pessoas com menos de 65 anos – onde, felizmente, a mortalidade em qualquer caso é muito inferior. No grupo dos 55 aos 64 anos – em que a mortalidade em 2022 ainda está acima do período pré-pandemia –, no presente ano contabilizam-se menos 320 óbitos do que no ano passado.
Para os menores de 55 anos, o ano de 2022 está dentro de valores considerados normais, incluindo os anos anteriores à pandemia. Na verdade, durante 2020 e 2021, a mortalidade nos menores de 55 anos foi mesmo geralmente mais baixa do que no período pré-pandemia (2015-2019), com uma excepção (pouco relevante do ponto de vista estatístico) no grupo etários dos 15 aos 24 anos.
No caso dos menores de 15 anos, ao longo da pandemia a mortalidade – já de si muito reduzida em situações normais – esteve sempre mais baixa. Na verdade, a taxa de mortalidade infantil desceu mesmo nos dois primeiros anos da pandemia, e o ligeiro crescimento deste ano face a 2021 não é (ainda) preocupante numa perspectiva de Saúde Pública.
Comparação entre a mortalidade acumulada (até 12 de Julho) em 2020 e de 2021 e da média pré-covid (2015-2019) por grupo etário dos menores de 65 anos. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.
Em suma, por covid-19, por outras doenças, por negligência das autoridades de outros responsáveis políticos, certo é que os maiores de 85 anos estão a acelerar a partida deste mundo – depois de décadas de esforço na melhoria dos cuidados de saúde, que tornaram Portugal num país moderno e civilizado. E aparentemente não há quem deseje investigar as causas.
Sendo certo que a covid-19 teve o seu peso no excesso de mortalidade após Março de 2020, não se encontra (ainda) justificação (técnica e científica, excluindo bitaites mesmo se de “peritos”) para os actuais níveis de mortalidade nos maiores de 85 anos. Mostra-se assim necessário investigar em vez de especular; é necessário pegar nos dados brutos do SICO e analisar as causas de mortes antes e durante a pandemia para todas as faixas etárias.
E acabar com o alarmismo e o fomento do medo que anestesiou toda uma população, a tal ponto que a convenceu que a covid-19 era a “doença”, a única, a globalmente perigosa. O impacte da pandemia está por fazer, bem como as soluções, que não incluem apenas o ataque à doença, mas também uma análise crítica à gestão da pandemia, ou seja, as consequência da suspensão do Serviço Nacional de Saúde e mesmo os efeitos não estudados dos sucessivos boosters das vacinas contra a covid-19 nos mais idosos e nos outros grupos etários.
Aliás, mostra-se fundamental mostrar que a covid-19, tendo sido um problema de Saúde Pública grave, teve níveis de gravidade completamente distintos, e que todas as acções implementadas de forma generalizada foram erradas.
O PÁGINA UM fez, aliás, uma “simples” e rápida análise comparativa da mortalidade por grupo etário em dois períodos homólogos: entre 1 de Março de 2017 e 12 de Julho de 2019 (fase pré-pandemia) e entre 1 de Março de 2020 e 12 de Julho de 2022 (fase da pandemia). Os valores absolutos comprovam que em Portugal se viveu um pânico colectivo sem justificação e que terá sido bastante contraproducente para uma gestão eficaz e eficiente.
Assim, no grupo dos menores de 1 ano, dos 1 aos 4 anos, dos 5 aos 14 anos, dos 25 aos 34 anos, dos 35 aos 44 anos e dos 45 aos 54 anos – ou seja, com excepção do grupo dos 15 aos 24 anos (situação que deveria ser também investigada) –, a pandemia não teve qualquer impacte, ou até mesmo paradoxalmente “positivo”. A mortalidade foi mesmo inferior. No caso dos menores de 1 ano, a redução até foi de 22% (na realidade um pouco menor, porque a taxa de natalidade desceu).
De resto, o impacte nos maiores de 55 anos foi muito distinto, mas a merecer prudência em assacar responsabilidades exclusivas à covid-19. Com efeito, o incremento da mortalidade nestes dois períodos foi muito distinto e não foi linear, como seria de supor se o SARS-CoV-2 fosse a única explicação.
Mortalidade por grupo etário na fase pré-pandemia (1 de Março de 2017 e 12 de Julho de 2019) e na fase da pandemia (1 de Março de 2020 e 12 de Julho de 2022). Fonte: SICO, Análise: PÁGINA UM.
No grupo dos 55 aos 64 anos e dos 75 aos 84 anos, o acréscimo de mortalidade entre a fase pré-pandemia e fase de pandemia foi de 8%, mas estranhamente foi de 12% no grupo dos 65 aos 74 anos. Ou seja, seria expectável – caso a covid-19 fosse o único factor a explicar este acréscimo – que a subida da mortalidade neste grupo etário estivesse algures entre o valor do grupo que o precede (55 aos 64 anos) e o que lhe segue (75 aos 84 anos).
Por outro lado, observa-se que o incremento da mortalidade nos maiores de 85 anos concentra o maior crescimento, o que tendo em consideração que é o grupo etário com maior peso absoluto. De facto, são quase 20 mil mortes a mais (128.224 na fase da pandemia vs. 108.559 na fase pré-pandemia). Tendo em conta que estamos a falar de 864 dias, significa um acréscimo de quase 23 óbitos em excesso por dia. Não foi tudo, certamente da covid-19. Nem o que está agora a acontecer tem essa tão singela explicação. Nem pode a onda de calor, que está agora por aí, levar com as culpas.
Mas a ignorância sobre toda esta situação é imensa, tanto mais que é fomentada pela própria Direcção-Geral da Saúde, instituição que nem permite sequer que se saiba qual o peso efectivo da covid-19 nos maiores de 85 anos – e também nos outros grupos etários.
Variação da mortalidade (%) por grupo etário entre a fase pré-pandemia (1 de Março de 2017 e 12 de Julho de 2019) e a fase da pandemia (1 de Março de 2020 e 12 de Julho de 2022). Fonte: SICO, Análise: PÁGINA UM.
Desde o início da pandemia, o Governo desfasou, com o claro propósito de obstaculizar qualquer análise séria, os dados da mortalidade total (contabilizados no SICO) e da mortalidade por covid-19. Assim, por exemplo, sabe-se quantas pessoas com mais de 80 anos morreram de covid-19, mas não se consegue calcular o contributo da doença na mortalidade total, porque os grupos etários usados no SICO vão dos 75 aos 84 anos e depois dos maiores de 85 anos.
Saber quais as doenças que determinaram, por exemplo, este desvio seria essencial, mas o Governo esconde os dados. Tal como esconde todos os dados e toda a informação, por amiguismo ou protecção política, que procurem fazer um diagnóstico dos problemas e encontrar soluções.
E um Governo que intencionalmente faz isto, faz isso para esconder a verdade. E uma sociedade que admite isto, aceita um Governo a fazer tudo.