Categoria: Saúde

  • Sabe quantas mortes na Europa são atribuídas às vacinas contra a covid-19?

    Sabe quantas mortes na Europa são atribuídas às vacinas contra a covid-19?

    O PÁGINA UM embrenhou-se na complexa base de dados da farmacovigilância da Agência Europeia do Medicamento. Denominada Eudravigilance, ali são depositadas as estatísticas das reacções adversas de milhares de fármacos, entre as quais as 10 vacinas já aprovadas na União Europeia. Esconde-se ali mais do que se revela, mas o PÁGINA UM encontrou uma forma de lhe indicarmos um valor mínimo de mortes suspeitas associadas às vacinas contra a covid-19, bem como os casos recuperados com sequelas. E também aponta estimativas para Portugal. Optámos, contudo, por apresentar uma abordagem que se pretende sobretudo didáctica, daí que, os números encontrados, não surgem no título.


    Este artigo – ou análise, ou especulação no sentido filosófico do termo – podia seguir distintas abordagens. Uma possível seria uma abordagem tradicional: escrever-se-ia que o PÁGINA UM, consultando a Eudravigilance – uma base de dados sobre as reacções adversas de fármacos da Agência Europeia do Medicamento – conseguia dizer que as vacinas contra a covid-19 teriam causado (ou eram suspeitas de causar) pelo menos 13.669 mortes e deixado mais de 16 mil pessoas com sequelas. E depois apresentar, com base nessa informação, uma estimativa para Portugal, apontando para três centenas de mortes e mais 371 pessoas com sequelas.

    Porém, sigamos uma via didáctica e pedagógica, embora também bastante crítica para com as autoridades de saúde e para os governos que lançam um manto obscuro sobre os perfis de segurança das vacinas, como se não pudessem ser questionados. E como se não fosse fundamental debater quais os critérios de vacinação, sem se caminhar para um dogma (vacinação maciça) que nada tem de científico e tem muito de comercial – e com danos.

    Sede da Agência Europeia do Medicamento está agora com sede em Amsterdão, na Holanda.

    Curiosamente, apesar de se seguirem critérios clínicos de muita duvidosa credibilidade, desde 2020 as autoridades de saúde dos diversos países não tiveram dúvidas quanto à necessidade de quantificar até à unidade, com uma precisão diária, as mortes causadas pela covid-19.

    Porém, quando o assunto passa para os efeitos adversos das vacinas contra a covid-19, muda tudo de figura: os números tornam-se tabu, são mexidos com pinças, envoltos em “embrulhos laudatórios”, mesmo pelos reguladores, o que mais deveria fazer desconfiar do que tranquilizar.

    Um processo de farmacovigilância constitui uma das fases fundamentais do controlo dos medicamentos, quaisquer que sejam, desde que se inicia a sua comercialização, ou seja, após a formal Autorização de Introdução no Mercado (AIM). De uma forma simplista, constituem processos dinâmicos – integrando as próprias farmacêuticas, os reguladores e os médicos que os prescrevem –, onde se faz de forma contínua um balanço risco-benefício e se registam os acontecimentos ou efeitos adversos (já conhecidos ou novos), complementados com relatórios periódicos de segurança e estudos de eficácia pós-autorização.

    Por regra, estes procedimentos – que, por exemplo, nos Estados Unidos são supervisionados pela conhecida Food & Drugs Administration (FDA), e no espaço comunitário, onde Portugal se integra, pela Agência Europeia do Medicamento (EMA) – devem decorrer, de forma discreta, sem causar polémicas nem alarmismos desnecessários, numa base de confiança. Por exemplo, a EMA é responsável pela gestão de cerca de 40 mil medicamentos – seria de doidos se tivéssemos continuamente a querer conhecer com detalhes os avanços e recuos da farmacovigilância de cada um deles.

    Aspecto da base de dados da Eudravigilance, onde se pode consultar a informação por produto (nome comercial) ou substância.

    Por definição, um medicamento é uma bênção ao serviço da Humanidade, mas seguindo sempre um princípio basilar da Medicina: primum non nocere – primeiro, não prejudicar. Um fármaco nunca é inócuo, ou raramente é. Aliás, por agir no nosso corpo é que torna possível ser um medicamento, embora o objectivo seja “matar a doença” sem nos matar.

    É da lógica, assim, que existam quase sempre efeitos secundários, nem que seja por via do abuso. Numa parte, esses efeitos podem ser adversos, de maior ou menor gravidade, uns quantos expectáveis, outros nem tanto, conhecer isso mostra-se fundamental mais para o futuro do que para o presente. Assim, numa base probabilística podemos sempre saber se um determinado fármaco cumpre os seus objectivos iniciais sem que advenha daí efeitos secundários não identificados (ou escondidos) pelas farmacêuticas durante os ensaios clínicos.  

    Na medicina e prática clínica, a probabilidade, sabe-se bem, não é uma certeza. E, por isso, quase sempre um médico prescreve em função do seu conhecimento prévio sobre o doente, sobre a eficácia do fármaco face ao distúrbio que pretende controlar e sobre os eventuais efeitos adversos.

    Nesta equação, em que o doente é a variável única e irrepetível, o médico “trabalha” sempre com base em probabilidades, mesmo que não pense muito nisso nem puxe por uma máquina de calcular. Por exemplo, para um doente com esta e aquela patologia e aquela e aqueloutra comorbilidade, qual a percentagem de sucesso de um fármaco ser eficaz e qual o risco de causar mais mal do que bem? Para saber isso, mesmo que seja experiente – e haja sempre uma boa dose de empirismo –, um médico usa os saberes que lhe são dados pelos ensaios clínicos e sobretudo pela farmacovigilância. Daí as bulas…

    Por esse motivo, os efeitos adversos são sempre relativos. Para um doente com elevado risco de vida se apanhar determinada doença pode compensar “arriscar” um efeito secundário adverso (mesmo que seja a morte) através da toma de um medicamento, desde que a probabilidade desse medicamento o salvar seja consideravelmente maior do que a de o matar. Contudo, para a mesma doença, se estivermos perante alguém que, pelas suas características, não seja provável que venha a ser afectado com perigo, será imprudente administrar um fármaco que lhe pode causar mais desvantagens do que vantagens (ou mesmo nenhuma vantagem).

    Aplicando ao caso das vacinas da covid-19, começam a surgir, embora ainda de uma forma quase envergonhada, estudos sobre a mortalidade atribuível à sua administração. Um artigo científico publicado na passada semana na revista Nature Communications refere que, num universo de 6.928.359 doses de vacinas administradas no Qatar entre Janeiro de 2021 e meados de Junho de 2022 se registaram 138 óbitos num período de 30 dias, sendo que oito tinham alta probabilidade, 15 tinham probabilidade intermédia e 112 probabilidade baixa. Independentemente.

    Sede do Infarmed: onde se “sequestra” a verdade e onde não vive a transparência.

    O risco pode parecer aqui bastante baixo – mesmo se a taxa de letalidade a partir do surgimento da Ómicron ronda os 0,1% –, mas também convém salientar que as limitações destes estudos são evidentes. Além de o período de análise ter sido bastante curto (apenas 30 dias), os próprios autores salientam “a falta de critérios claros e universalmente aceites” para determinar as relações causa-efeito, o que leva a que “a atribuição da causalidade recaía sobre o médico revisor”. E também, por outro lado, este estudo qatari admite uma “principal limitação”, que “é a falta de autópsias para determinar a causa exacta da morte”.

    Mas, apesar de tudo isto, tanto este estudo como as declarações e relatórios do próprio Infarmed, em Portugal, enaltecem apenas o papel das vacinas, considerando-as universalmente seguras.

    No caso do regulador português surpreende, aliás, a falta de circunspecção sobre esta matéria. No seu mais recente relatório de farmacovigilância, referente ao final de Setembro do ano passado, o Infarmed começa logo por garantir, em letras a negrito, que “a vacinação contra a covid-19 é a intervenção de saúde pública mais efetiva para reduzir o número de casos de doença grave e morte originados pela infeção pelo SARS-CoV-2”, acrescentando, na frase seguinte, que “diversos estudos comprovam que as vacinas contra a covid-19 são seguras e efetivas”, mas contudo são estudos antigos.

    Aspecto da base de dados da Eudravigilance, mostrando as reacções por grupo etário, origem do reporte e tipologia de gravidade em função do grupo de distúrbios e tipo de distúrbio.

    Aliás, nada pela leitura do relatório, mostra que a segurança é inquestionável. Ou melhor, confirma-se um dos aspectos mais inquietantes do programa de vacinação: a ausência de transparência na divulgação dos dados e na comunicação de informação fiável. Na verdade, o Infarmed tenta esconder mais do que revela.

    Por exemplo, o regulador elenca o número de vacinas administradas por marca (Pfizer, Moderna, AstraZeneca e Janssen), apresentando ainda o total dos casos de reacções adversas (RAM), mas em seguida “esquece-se” de detalhar a gravidade de cada uma.

    Depois, sobre a gravidade, agrega tudo, embora se fique a saber que houve 136 mortes, 302 pessoas correram risco de vida, 878 tiveram hospitalização (não se percebe se incluem ou não as 302 que correram risco de vida), 1.997 apresentaram um certo grau de incapacidade (não se explica a duração ou a presença de sequelas) e houve mais 4.980 casos classificados como relevantes clinicamente.

    No caso específico das mortes, quase nenhuma informação: apenas que a mediana de idade é de 77 anos, o que significa pouco. Houve jovens e adolescentes mortos por causa da vacina. Ignora-se. Ainda se recordam do pequeno Rodrigo?

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    Como se sabe, o PÁGINA UM está em luta judicial, no Tribunal Administrativo de Lisboa, para obrigar o Infarmed a conceder o acesso aos dados discriminados (mas anonimizados) do Portal RAM, de modo a permitir analisar os efeitos adversos das vacinas (e também do antiviral remdesivir).

    Além de argumentar que a divulgação de dados detalhados (mesmo se anonimizados) colocava em causa a protecção da intimidade, o Infarmed tem defendido ser suficiente a informação constante no Eudravigilance – uma base de dados de reporte das reacções adversas no Espaço Económico Europeu, que inclui os países da União Europeia, a Islândia, o Liechtenstein e a Noruega.

    Ora, mas será assim?

    Na verdade, não tanto assim. Primeiro, porque praticamente todos os dados da Eudraviglance estão agregados, não permitindo caracterizar os efeitos adversos de um determinado fármaco em Portugal: somente surge o número total de notificações por cada país. Por exemplo, fica-se sem saber, em detalhe, o grau de gravidade ou a incidência em função da idade.

    Além disto, como se salienta no próprio site da Eudravigilance, “as informações contidas (…) não podem ser usadas para determinar a probabilidade de ocorrer um efeito adverso”, uma vez que, para isso, teria de se saber quantas pessoas tomam o medicamento e há quanto tempo está no mercado. E isso não é revelado, e podia… Ou melhor, deveria.

    No caso das vacinas contra a covid-19, a Eudravigilance também faz específicos avisos. E estranhos. Isto porque afirma que “as informações neste site se referem a efeitos colaterais suspeitos, ou seja, eventos médicos que foram observados após a administração das vacinas contra a covid-19, mas que não estão necessariamente relacionados ou causados ​​pela vacina”, acrescentando que “esses eventos podem ter sido causados ​​por outra doença ou estar associados a outro medicamento tomado pelo paciente ao mesmo tempo.” E diz ainda que, como se têm de considerar outros factores, “somente uma avaliação detalhada de todos os dados disponíveis permite tirar conclusões robustas sobre os benefícios e riscos das vacinas”.

    Mas isso, enfim, também se aplica a outros medicamentos? Claro que sim. Sempre foi assim. Contudo, não deixa de ser curioso reparar que existiram sempre tantas certezas em atribuir ao SARS-CoV-2 a causa da morte de um velhinho de 95 anos com 20 comorbilidades e a tomar 30 fármacos por dia, mas já a mesmo certeza não há se um adulto saudável sofre uma síncope após a administração da vacina…

    Torna-se notória uma gestão política da informação sensível para as farmacêuticas por parte da EMA. Exemplo paradigmático passa-se no aviso sobre os desfechos fatais. Na verdade, consultando a Eudravigilance, não se consegue saber, com rigor, quantas mortes suspeitas são atribuídas às vacinas – e também a outros medicamentos. A EMA sabe, os reguladores (como o Infarmed para Portugal) também, mas não querem intencionamente que surja divulgado para o público.

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    No site da Eudravigilance salienta-se que “não se fornece o número total de casos relatados com desfecho fatal”, mas sim “o número de casos relatados como fatais para grupos de reacções específicas (por exemplo, distúrbios cardíacos) e para reacções específicas (por exemplo, enfarto do miocárdio)”. Deste modo, “como um caso individual pode conter mais de um efeito adverso suspeito, a soma do número de casos fatais por grupo de reacção será sempre maior do que o número total de casos fatais.”

    Ora, mesmo assim, existe, porém, uma forma indirecta de conseguir obter um valor mínimo de mortes (pelo menos suspeitas) atribuíveis às vacinas contra a covid-19, identificando para cada vacina (ou outro fármaco) o grupo de distúrbios (ou outro tipo de anomalias) com o maior número de casos fatais.

    Dir-se-ia ser tarefa complexa, porque no site do Eudravigilance surgem 27 grupos de distúrbios, a saber: distúrbios do sangue e do sistema linfático; distúrbios cardíacos; distúrbios congênitos, hereditários e genéticos; distúrbios do ouvido e do labirinto; distúrbios endócrinos; distúrbios oculares; problemas gastrointestinais; distúrbios gerais e condições no local de administração; distúrbios hepatobiliares; distúrbios do sistema imunológico; infecções e infestações; lesões, intoxicações e complicações processuais; investigações; distúrbios do metabolismo e nutrição; distúrbios musculoesqueléticos e do tecido conjuntivo; neoplasias benignas, malignas e não especificadas (incluindo cistos e pólipos); distúrbios do sistema nervoso; gravidez, puerpério e condições perinatais; problemas do produto; distúrbios psiquiátricos; distúrbios renais e urinários; distúrbios do aparelho reprodutor e da mama; distúrbios respiratórios, torácicos e do mediastino; distúrbios da pele e tecido subcutâneo; circunstâncias sociais; procedimentos cirúrgicos e médicos; e distúrbios vasculares.

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    Acaba, no entanto, por ser “operação” simples, porque facilmente se constata, para as diversas vacinas, que os “distúrbios gerais e condições no local de administração” constituem sempre o grupo com o maior número de casos fatais.

    Ora, estando neste grupo um vasto conjunto de sintomas minor – menores, ou seja, que só por si não seriam a causa de mortes, como por exemplo um inchaço na zona da administração ou outros sinais detectáveis pelo médico ou perceptíveis pelo doente sem recurso a diagnósticos complementares –, significa que nos desfechos fatais teriam ocorrido, necessariamente, pelo menos mais um outro distúrbio (muito grave). Contudo, o inverso não se aplica: ou seja, alguém que tenha morrido de enfarto do miocárdio (inserido no grupo dos distúrbios cardíacos) com suspeita atribuída à vacina pode não ter tido nenhum dos sintomas incluídos no grupo dos “distúrbios gerais e condições no local de administração”.

    Sendo assim, os desfechos fatais suspeitos de estarem associados às vacinas contra a covid-19 nunca podem ser inferiores (e serão provavelmente bem superiores) aos que estão contabilizados no grupo dos “distúrbios gerais e condições no local de administração”.

    E é assim que se chega ao valor de mortes no título desta análise.

    Considerando os três tipos de vacinas da Pfizer-Biontech, também as três vacinas da Moderna, mais ainda as da Janssen e da AstraZeneca – que acabaram por ser quase “descontinuadas” –, bem como de outras duas ainda sem expressão (Novavax e Valneva) chega-se à conclusão que terão sido notificadas pelo menos 13.669 mortes com causa atribuível à administração vacinal.

    Desfechos (nº) dos casos de reacções adversas nos países do Espaço Económico Europeu, por tipologia de gravidade, atribuíveis às vacinas contra a covid-19 (por vacina), considerando os diagnósticos reportados como distúrbios gerais e condições no local de administração. Fonte: Eudravigilance. Análise: PÁGINA UM. Para ver em maior dimensão, clicar AQUI.

    Destas, destaca-se a primeira versão da vacina da Pfizer (6.369 óbitos), seguindo-se a primeira versão da vacina da Moderna (4.006 óbitos) e depois a da AstraZeneca (2.254 óbitos). Mais atrás surge a vacina da Janssen, com 935 óbitos.

    Embora já referido, convém reiterar mais uma vez: estes números absolutos nada dizem sobre o risco relativo de cada vacina – e o seu perfil de segurança –, porque seria necessário conhecer o número de doses administradas e feitas análises estratificadas. Além disto, seria importante incluir outros factores, conhecer em que circunstâncias ocorreram os desfechos fatais (por exemplo, se na primeira ou segunda ou seguintes tomas).

    Em todo o caso, sempre se poderá adiantar que, pelo menos a atender à muito maior administração de vacinas da Pfizer em Portugal, o perfil de segurança da AstraZeneca e da Moderna é substancialmente pior. Mas isso fica para explicações a dar pelo Infarmed.

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    Mas as mortes não são o único problema dos efeitos adversos das vacinas contra a covid-19. Recorrendo ao mesmo método, constata-se que, no Espaço Económico Europeu, estão contabilizados pelo menos 345.583 casos (pessoais, diga-se) de reacções adversas ainda sem recuperação, mais 306.623 em fase de recuperação, mais 16.043 recuperados com sequelas e 568.255 recuperados completamente. Por fim, a Eudravigilance reporta 371.368 casos cujo desfecho é desconhecido.

    Na verdade, isto já diz alguma coisa, mas muito pouco, tanto mais que não se consegue saber detalhes sequer em cada país, e muito menos por grupo etário. Por exemplo, quantas mortes ou recuperados com sequelas se encontram no grupo etário das crianças e adolescentes, onde a covid-19 é pouco perigosa? Não se sabe.

    Porém, pode-se sempre realizar uma estimativa para Portugal com base no peso das reacções adversas no nosso território nos casos totais reportados no Espaço Económico Europeu para cada uma das 10 vacinas – que ronda sempre os 2%, excepto para as vacinas da Novavax e da Valneva –, e assumindo uma distribuição equitativa dos vários desfechos possíveis.

    Assim sendo, para Portugal chega-se a um número substancialmente superior ao indicado para o Infarmed: em vez dos 136 óbitos, reportados em Setembro do ano passado, estaremos acima dos 300 mortes – mais precisamente 301.

    Estimativa dos desfechos (nº) dos casos de reacções adversas em Portugal, por tipologia de gravidade, atribuíveis às vacinas contra a covid-19 (por vacina), considerando os diagnósticos reportados como distúrbios gerais e condições no local de administração. Fonte: Eudravigilance. Análise: PÁGINA UM. Para ver em maior dimensão, clicar AQUI.

    Além disso, contabilizar-se-á, seguindo os critérios da Eudravigilance, mais 371 recuperados com sequelas, 7.791 não recuperados, 13.035 recuperados completamente e ainda 6.944 em recuperação e 8.805 com situação desconhecida.

    Esta é, assuma-se, uma aproximação à realidade. Mas tem de ser assim apresentada, para se exigir mais informação; e é essa que deve ser dada pelas autoridades de saúde, porque tem a ver com o elemento mais importante de cada um de nós: a própria vida.

  • Presidente do Infarmed vai ter mesmo de ir a tribunal por causa das reacções adversas às vacinas

    Presidente do Infarmed vai ter mesmo de ir a tribunal por causa das reacções adversas às vacinas

    Em mais um episódio do longo processo de intimação para obrigar o Infarmed a facultar o acesso a uma base de dados de “manifesto interesse público”, a juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa decidiu ontem que Rui Santos Ivo vai ter mesmo de se sentar à sua frente para dar explicações orais. Se não vai como testemunha, vai então como parte. A audiência está agendada, provisoriamente, para o próximo dia 24 de Janeiro.


    O presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo, tem mesmo de depor em sessão especial do processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa que decidirá se a base de dados dos efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 e do antiviral remdesivir devem ser públicas ou se se podem manter no “segredo dos deuses”. A sessão deverá ocorrer ainda este mês. Será a primeira vez que o Infarmed terá de justificar, sem contorcionismos, os motivos para esconder informação relevante sobre Saúde Pública.

    A decisão surgiu ontem num despacho da juíza Sara Ferreira Pinto, após mais uma tentativa do regulador nacional dos medicamentos de obstaculizar o acesso à informação.

    Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed: há um ano a esconder dados do Portal RAM, não quer agora testemunhar perante o Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Recorde-se que o PÁGINA UM luta há mais de um ano para consultar em detalhe os dados anonimizados relacionados com os efeitos adversos resultantes destes dois fármacos (as vacinas das farmacêuticas Pfizer, Moderna, Astrazeneca e Janssen e o antiviral da Gilead). O acesso permitirá análises estatísticas mais finas sobre o tipo de afecções detectadas, o grau de gravidade e a incidência/ prevalência em função da idade.

    O primeiro requerimento do PÁGINA Um foi dirigido ao presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo em 6 de Dezembro de 2021, mas nem após um parecer não vinculativo da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) – que considerou haver “manifesto interesse público” em conhecer a segurança das vacinas” –, o regulador vacilou, e continuou a esconder dados, revelando apenas relatórios trimestrais de rigor e fiabilidade muito questionáveis.

    Após a interposição de uma intimação por parte do PÁGINA UM em Abril do ano passado, o Infarmed tem feito todas as manobras jurídicas para adiar uma decisão do Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Apesar de uma intimação ser classificada como “processo urgente”, os argumentos no Tribunal Administrativo correm há já quase nove meses, não havendo o mínimo sinal de transparência por parte do Infarmed: a sua estratégia – através da sociedade BAS, que, aliás, representa outras entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde em processos semelhantes – tem sido sobretudo de pôr em causa a possibilidade legal de mesmo um jornalista poder aceder à base de dados.

    Sede do Infarmed: onde se “sequestra” a verdade e onde se veda o acesso à transparência.

    O argumento principal do Infarmed tem sido a (estafada) impossibilidade de anonimizar a informação. Ou seja, supostamente para proteger a identidade de pessoas, não se fornece nenhuma informação relevante. E tem dito também que a informação possível já se encontra na base de dados EudraVigilance, da Agência Europeia do Medicamento (EMA). Esses dados são apresentados em formato agregado, sem qualquer detalhe informativo, e sem sequer quantificar óbitos por idade nem explicitar em que consistem os casos graves. Além disso, a maior parte da informação nem sequer está desagregada por país.

    Na verdade, o Infarmed tem-se esforçado em convencer o Tribunal Administrativo de Lisboa de que, na terceira década do século XXI, ainda não se mostra tecnicamente possível numa base de dados informatizada excluir, de uma forma muito simples (por exemplo, através de uma simples instrução para seleccionar ou não determinado campo ou variável) os eventuais nomes das pessoas que aí constem, substituindo-os por códigos. Mas isto sempre através de requerimentos, nunca de viva voz.

    Por isso, quando o PÁGINA UM sugeriu no mês passado – no meio de um processo onde a estratégia de defesa do Infarmed procura complexificar algo simples (uma base de dados é um documento administrativo passível de consulta se anonimizados os dados pessoais, através de uma simples operação informática) – a auscultação presencial de Rui Santos Ivo, a sociedade de advogados BAS, que representa o regulador, alegou que os estatutos o impediam de depor como testemunha, uma vez que era “parte interessada”.

    Além disso, o requerimento daquela sociedade de advogados para excluir Rui Santos Ivo do rol de testemunhas pretendeu também retirar o cunho político da recusa do Infarmed em disponibilizar o Portal RAM ao PÁGINA UM. Ao pretender colocar o assunto como “eminentemente técnico”, a defesa de Rui Santos Ivo dizia que, em audiência provisoriamente marcada para o próximo dia 24 de Janeiro, basta[ria] ouvir Márcia Silva, directora de Gestão do Risco de Medicamentos do Infarmed – que, aliás, será tão parte interessada no processo como o seu presidente. Note-se que Márcia Silva foi indicada pelo Infarmed, e não mereceu qualquer oposição do PÁGINA UM no âmbito deste processo, como deve suceder numa questão jurídica justa e civilizada.

    Com o despacho de ontem, a juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa até acabou por aceitar que, para se ouvir Rui Santos Ivo, não se use o estatuto de “testemunha”, mas isso não obste que não se tenha de deslocar à audiência. Assim, não indo como “testemunha”, irá como “parte”. Uma questão de semântica, portanto.

    Ou seja, vai dar ao mesmo; mas assim se mostra como, de expediente em expediente, o Infarmed continua a esconder uma base de dados de manifesto interesse público. E o Ministério da Saúde a tudo isto assiste, calado e de forma serena. Até quando? O Tribunal Administrativo de Lisboa decidirá.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Em caso de derrota, os custos podem, não incluindo honorários do nosso advogado, atingir mais de 1.400 euros. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.

  • Sem levantar ondas: Infarmed demora 11 anos a retirar fármaco cancerígeno do mercado português

    Sem levantar ondas: Infarmed demora 11 anos a retirar fármaco cancerígeno do mercado português

    Eis um caso paradigmático de um medicamento retirado discretamente do mercado, mas com um polémico histórico de problemas éticos e de segurança. Em 2011, foi revelado que a pioglitazona, um antidiabético no mercado desde 1999, causava cancro da bexiga. Três anos mais tarde, duas farmacêuticas foram condenadas ao pagamento de uma indemnização avultada por um tribunal norte-americano, mas na Europa somente França e Alemanha decidiram retirar o fármaco de circulação. Em Portugal, o Infarmed aguardou 11 anos pela decisão da Agência Europeia do Medicamento de suspender o fármaco, usando argumentos pouco claros. E não responde quantos foram os casos de cancro da bexiga reportados no Portal RAM com ligação directa a este fármaco.


    Passaram 11 longos anos até o Infarmed decidir retirar do mercado português um medicamento para tratamento de diabetes tipo II considerado cancerígeno, e já envolto num processo judicial nos Estados Unidos, que levou duas farmacêuticas (Takeda e Eli Lilly) a pagarem 9 mil milhões de dólares por esconderem dados clínicos sobre efeitos secundários graves.

    A decisão do regulador português foi tomada na semana anterior ao Natal, no passado dia 21 de Dezembro, mas de uma forma absurdamente discreta, através de uma simples circular onde a retirada do fármaco em causa – a pioglitazona, comercializada (como genérico) em comprimidos sob a forma de genérico pela farmacêutica Mylan –, surge integrada numa lista de 13 medicamentos com suspensão de autorização de introdução de mercado (AIM), entre os quais um antibiótico, um anti-retroviral e outros para tratamento de sintomas da artrite, gripe e colesterol.

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    Na divulgação à imprensa, o Infarmed não fez qualquer menção às polémicas e casos judiciais envolvendo ao pioglitazona, referindo mesmo que “não há evidência de dano ou falta de eficácia em nenhum dos medicamentos incluídos neste procedimento”. O regulador, presidido por Rui Santos Ivo, justifica a suspensão de comercialização de todos aqueles fármacos por o Comité dos Medicamentos de Uso Humano (CHMP) da Agência Europeia do Medicamento (EMA) ter ficado com “dúvidas quanto à integridade dos dados em estudos realizados pela empresa Synchron Research Services localizada em Ahmedabad”, no estado indiano de Gujarate, que aparentemente apenas se referem a questões de bioquivalência.

    Salienta-se aqui o termo “aparentemente”, porque os documentos da EMA e a troca de correspondência entre este organismo europeu e o Infarmed estão legalmente protegidos, por razões comerciais, e os tribunais administrativos portugueses já sentenciaram não haver possibilidade, mantendo-se os diplomas legais em vigor, de aceder a esse tipo de informação ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos. O PÁGINA UM perdeu, aliás, um processo em tribunal em Outubro passado, ficando impedido de aceder a documentos sobre a pandemia.

    Segundo apurou o PÁGINA UM junto de médicos, antes desta decisão do Infarmed de suspender a administração de pioglitazona, já poucos diabéticos usavam este fármaco. Em cerca de 1,3 milhões de diabéticos em Portugal, estima-se que pouco mais de quatro mil continuavam a usar a pioglitazona, até por existirem alternativas terapêuticas mais seguras.

    Porém, (mais) este episódio demonstra como a preocupação do regulador português aparenta incidir mais na protecção dos interesses das farmacêuticas do que na protecção e informação dos consumidores.

    De facto, a pioglitazona – patenteada pela japonesa Takeda em 1985, com uso clínico a partir de 1999 e comercializada na Europa desde Outubro de 2000 – começou a ter uma utilização bastante intensa a nível mundial na primeira década do presente século, quer de forma isolada (sob a marca comercial de Actos) quer em produtos combinados com outros fármacos. Em 2011 passou a ser comercializado também como genérico, e foi a partir daí que começaram a ser descobertos os efeitos secundários adversos.

    Circular de 2011 do Infarmed sobre a pioglitazona.

    Em Abril desse ano, a Food and Drug Administration (FDA) – o regulador norte-americano – passou a obrigar a inclusão de risco de cancro na bexiga na bula da pioglitazona. Essa decisão levaria a França, nesse mesmo ano, e a Alemanha, dois anos mais tarde, a retirarem este fármaco do mercado. No entanto, a EMA, bem como o Infarmed, para o mercado português, decidiram apenas exigir mais estudos, considerando que os benefícios suplantavam os riscos.

    De acordo com uma circular do Infarmed de Junho de 2011 – ou seja, há mais de 11 anos –, a CHMP do regulador europeu solicitou “ao Titular de Autorização de Introdução no Mercado a realização de um estudo epidemiológico europeu que permita uma caracterização mais robusta do risco de cancro da bexiga, em particular, o risco associado ao tempo de exposição e o risco associado à idade, para que possam vir a ser tomadas medidas de minimização do risco mais específicas”. E estabeleceu ainda que “este estudo deve incidir sobre a análise do tipo, evolução e gravidade dos casos de cancro da bexiga que ocorreram nos doentes em tratamento com pioglitazonas em comparação com os diabéticos que não estão em tratamento com pioglitazonas.”

    Porém, apesar disso, o Infarmed assegurava já então, nessa circular, e sem os tais estudos que a EMA pedira, que “os benefícios da pioglitazona continuam a superar os seus riscos em doentes que respondam adequadamente ao tratamento”, sugerindo somente precaução na prescrição em doente que tenham ou tivessem tido “cancro da bexiga ou que apresentem hematúria macroscópica de causa desconhecida” ou estivesse sujeitos a factores de risco, como idade, tabagismo e “exposição a certos químicos ou tratamentos”, não especificados.

    Não houve nenhuma alteração nos procedimentos nos anos seguintes, mesmo quando a farmacêutica japonesa Takeda e o seu parceiro de marketing, a norte-americana Eli Lilly, foram condenadas em Abril de 2014 por sentença de um tribunal do Estado da Louisana ao pagamento de um verba de 9 mil milhões de dólares, por “danos punitivos”.

    O tribunal norte-americano considerou que a Takeda escondera deliberadamente os efeitos da pioglitazona na promoção de cancro da bexiga em diabéticos, obrigando-a ao pagamento de dois terços do montante. A farmacêutica japonesa conseguira, antes da perda do monopólio da comercialização, receitas da ordem dos 4,5 mil milhões de euros apenas no ano de 2011, representando então 27% da sua facturação.

    Takeda foi multada em 6 mil milhões de dólares por um tribunal norte-americano em 2014. A sua parceira Eli Lilly foi condenada ao pagamento de 3 mil milhões de dólares.

    Apesar das limitações legais de aceder a documentos considerados “segredo comercial”, o PÁGINA UM contactou o Infarmed, para que esclarecesse “os verdadeiros motivos para a retirada deste fármaco”, e que fossem indicados “quantos pacientes usaram o fármaco no ano mais recente, quais as alternativas farmacológicas actualmente existentes, e quantos doentes portugueses tratados com pioglitazona foram, segundo dados do Portal RAM, diagnosticados com cancro da bexiga desde 2011.”

    O Conselho Directivo do Infarmed, presidido por Rui Ivo Santos, somente repetiu os termos da sua circular de Dezembro passado, além de acrescentar que “a associação entre desenvolvimento ou agravamento de cancro da bexiga com a utilização de medicamentos contendo pioglitazonas é um risco já conhecido desde 2011 e já está incluído nos Resumo das Caraterísticas do Medicamento e Folheto Informativo de todos estes medicamentos, nomeadamente na secção 4.3, 4.4, 4.8 e 5.3, secções 2 e 4.”

    Eis a hermética forma de comunicação do Infarmed em 2023 sobre um medicamento retirado do mercado em 2022, mas que já dava sinais de preocupantes problemas, também de ética, desde 2011.

  • Excesso líquido de mortalidade em três anos superou os 28.500 óbitos. Mais de 2.000 foram entre grupos etários pouco afectados pela covid-19

    Excesso líquido de mortalidade em três anos superou os 28.500 óbitos. Mais de 2.000 foram entre grupos etários pouco afectados pela covid-19

    Esqueça as estatísticas simplistas da imprensa mainstream. Esqueça as explicações surreais e às cegas dos “peritos” sobre as causas do excesso de mortalidade. Esqueça as tentativas do ministro Manuel Pizarro de culpar as ondas de calor. Leia sim a análise exclusiva do PÁGINA UM que mostra como o excesso de mortalidade não foi homogéneo ao longo dos grupos etários, e que existem situações demasiado suspeitas para não se fazer uma investigação independente sobre o que se anda a passar desde 2020 em Portugal. Investigação essa que deveria incluir, obviamente, uma investigação judicial se a procuradora-geral da República, Lucília Gago, estivesse virada para estes assuntos mundanos e, enfim, demasiado comezinhos como são a morte e a Saúde Pública.


    Já se sabia que o processo de envelhecimento populacional em Portugal – que está associado também a uma boa notícia: vive-se mais tempo, morre-se mais tarde – levaria a um aumento absoluto de óbitos no último triénio. De acordo com a tendência demográfica a partir de 2014, era muito expectável que se registasse uma subida média de cerca de 1.500 óbitos em cada ano.

    Podia num ano ser mais, mas seria compensado com um valor inferior no ano a seguir. Em termos médios o incremento não deveria fugir muito daquele incremento.

    silhouette photo of a person running on road

    Porém, a pandemia – e o pandemónio em que se transformou a gestão dos serviços de saúde portugueses – trocou as voltas às leis naturais da vida. Em 2020, com o surgimento do SARS-CoV-2, a mortalidade associada à covid-19 e a outras causas disparou: em vez dos esperados 113.705 óbitos – sensivelmente mais 1.350 mortes do que em 2019, que foi ano “ameno” –, contabilizaram-se 123.743 óbitos.

    O ano seguinte (2021) foi ainda bem pior, sobretudo por causa dos meses de Janeiro e Fevereiro, com uma mortalidade sem precedentes associada a surtos de covid-19 e a uma vaga de frio que deixou o Serviço Nacional de Saúde num caos. Em resultado, 2021 acabou por atingir um recorde de 125.231 óbitos, isto é, um excesso de mortalidade de 10.128 mortes. Confrontando com o ano de 2021, este excesso foi até ligeiramente superior a 2020 (10.038 óbitos a mais), o que já mereceria uma especial preocupação.

    Evolução da mortalidade total em Portugal desde 2014 até 2022, com cálculo da mortalidade expectável e do excesso de mortalidade líquida. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Mostra-se extremamente anormal dois anos sucessivos de excesso de mortalidade – mesmo no meio de uma pandemia, que, contudo, “substituiu” as pneumonias típicas (cuja incidência desceu abruptamente, também por via do desaparecimento dos surtos gripais desde 2020 até à data). Ainda mais quando em 2021 já uma parte substancial do ano decorreu com a população mais vulnerável sob protecção das supostamente eficazes vacinas contra a covid-19.

    Certo é que, lamentavelmente, dois anos de excesso de mortalidade não bastaram: houve um terceiro. De facto, ao invés de se observar uma inversão dos padrões de mortalidade – ou seja, uma redução por via da morte de uma quantidade muito elevada de pessoas vulneráveis –, o ano de 2022 contabilizou novo excesso líquido de mortalidade: mais 8.338 óbitos. E de forma também anormalmente consistente, com nove meses sempre acima dos 10 mil óbitos. O recente mês de Dezembro foi mesmo o mais mortífero do ano passado, com 12.246 óbitos.

    Exesso de mortalidade líquida em Portugal em cada grupo etário por ano no triénio 2020-2022. O valor total incluiu a mortalidade com idade desconhecida, pelo que não cotrresponde ao somatório dos valores dos grupos etário. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Deste modo, segundo os cálculos e estimativas do PÁGINA UM, mesmo considerando ser expectável um aumento da mortalidade absoluta – como se disse, fruto do envelhecimento da população –, o triénio da pandemia (2020-2022) acarretou um excesso líquido de óbitos da ordem dos 28.504.

    Note-se mais uma vez que este é um “excesso líquido”, uma vez que seria sempre expectável tal incremento de cerca de 1.500 óbitos por ano. Ou seja, face ao triénio anterior, o triénio 2020-2022 teria, em situações normais, um acréscimo de cerca de nove mil óbitos mesmo com as habituais doenças.

    Em termos absolutos, a faixa etária mais afectada foi a dos maiores de 85 anos, embora tenha sido notório que o último triénio não tenha sido nada favorável para o grupo das pessoas em idade de reforma. Na verdade, a proximidade do excesso relativo de mortalidade entre os grupos dos maiores de 85 anos (+9,5% no conjunto do triénio), dos 75 aos 84 anos (+8,8%) e dos 65 aos 74 anos (+7,7%) indicia que não foi apenas a covid-19 a responsável pela “sangria”, tendo em conta que a taxa de letalidade daquela doença é bastante distinta entre estes três grupos.

    Análise para o grupo etário dos maiores 85 anos: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e excesso de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do excesso de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Com efeito, é certo que os maiores de 85 anos foram, em termos absolutos, o grupo mais fustigado pela morte – como é, desde sempre, a “lei da vida”. Porém, deve considerar-se que este grupo etário tem estado em franco crescimento – pelo aumento da expectativa de vida. Por exemplo, no início dos anos 70 do século passado viviam pouco mais de 40 mil idosos com mais de 85 anos; início do presente século já eram mais de 150 mil; em 2019 tinha subido para os 215 mil; e em 2020, segundo as estimativas do Instituto Nacional de Estatística, eram já 328 mil.

    Estes números são excelentes notícias: significou que um cada vez mais número de pessoas consegue atingir idades avançadas. Mas a inexorável “lei da morte” nos leva. E daí que não é de estranhar, digamos assim, que cada vez haja mais mortes a atingir os maiores de 85 anos.

    Porém, não se exagere. Mesmo com um crescimento expectável na mortalidade absoluta neste grupo etário – que antes do triénio da pandemia se situaria na ordem dos 1.500 óbitos em cada ano –, em 2020 acabaram por falecer 5.201 pessoas a mais; em 2021 mais 4.506 e no ano passado mais 4.424. Significa assim que, no total, morreram precocemente – mesmo se acima da esperança média de vida – um total de 14.131 pessoas neste grupo etário.

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    Em todo o caso, saliente-se que mesmo com esta sangria, este grupo de pessoas deverá continuar a aumentar nos próximos anos – antes da pandemia crescia a um ritmo acima das 10 mil pessoas por ano –, continuando assim a exigir maiores investimentos em cuidados de saúde.

     No caso do grupo imediatamente antecedente – o dos 75 aos 84 anos –, o último triénio foi também bastante trágico, sobretudo porque o excesso se manteve elevado e estável. Ao contrário do grupo dos maiores de 85 anos, nesta faixa etária estava a observar-se um ligeiro decréscimo da mortalidade (cerca de 300 óbitos em cada ano), que advinha, em grande medida, a melhoria dos cuidados médicos que permitia que um maior número de pessoas pudesse dar o “salto” em vida para o grupo etário seguinte.

    Os três últimos anos vieram, contudo, inverter fortemente essa tendência. Em 2020 observou-se um excesso líquido de 2.959 óbitos; no ano seguinte de 3.110 mortes e em 2022 contabilizaram-se mais 2.492 óbitos do que o expectável. No total registou-se assim um acréscimo de 8.561 mortes acima do esperado.

    Análise para o grupo etário dos 75 aos 84 anos: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e excesso de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do excesso de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Também preocupante foi o excesso líquido de mortalidade entre os 65 e os 74 anos, que estará longe de ser explicado apenas pela covid-19. Neste caso, no primeiro ano da pandemia contabilizaram-se mais 1.246 óbitos, em 2021 mais 1.716 mortes e, no ano passado, mais 892 óbitos.

    Neste caso deve considerar-se que este acréscimo líquido tem em conta que existia uma tendência de aumento da mortalidade absoluta da ordem dos 200 óbitos por ano, resultante do aumento deste grupo etário, formado por pessoas nascidas entre meados das décadas de 40 e início dos anos 50 do século passado.

    Análise para o grupo etário dos 65 aos 74 anos: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e excesso de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do excesso de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Mas mesmo nos grupos mais jovens – que foram apenas marginalmente afectados pela covid-19 –, observou-se excesso de mortalidade. Com excepção dos menores de 15 anos, em todas as idades contabilizou-se mais mortes do que seria de esperar nos últimos três anos.

    Em termos relativos, o maior aumento – e mais surpreendente – verificou-se no grupo etário entre os 15 e os 24 anos (+12,8%), ainda mais com a particularidade de o pior ano (com mais excesso) ter sido o de 2022, como já foi abordado ontem pelo PÁGINA UM.

    Análise para os grupos etários dos menores de 1 ano (A), dos 1 aos 4 anos (B), dos 5 aos 14 anos (C) e dos 15 aos 24 anos (D): mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e excesso de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do excesso de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM. Para visualizar com maior detalhe: menores de 1 ano, entre os 1 e os 4 anos; entre os 5 e os 14 anos; e entre os 15 e os 24 anos.

    No entanto, a mesma situação observou-se no grupo etário dos 35 aos 44 anos. Neste caso, o excesso do triénio foi de 5,1%, mas a distribuição não foi homogénea em termos absolutos. O excesso em 2020 foi de 52 mortes, subiu em 2021 para os 57 e quase duplicou no ano passado (mais 106 óbitos).

    Explicação para isto? Não existe, apesar da existência da base de dados discriminada do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) que poderia apurar quais foram as doenças responsáveis por estes desvios. Mas, como se sabe, o Ministério da Saúde recusa a divulgar essa e outras bases de dados, estando a decorrer ainda processos judiciais sobre esta matéria nos tribunais administrativos.

    Análise para o grupo etário dos 35 aos 44 anos: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e excesso de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do excesso de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Também nos dois grupos subsequentes, entre os 45 e os 64 anos) se conta excesso de mortalidade em qualquer um dos três últimos anos, embora mais moderado em 2020 face a 2021 e 2022.

    No caso do grupo dos 55 aos 64 anos, o excesso líquido de mortalidade foi de 1.439 óbitos (+5,1%), sendo que o PÁGINA UM estimou que, com base nos valores efectivos e na tendência entre 2014 e 2019, um total de 450 mortes a mais se contabilizaram em 2020, mais 664 em 2021 e ainda mais 325 no ano que se concluiu no sábado passado.

    Análise para o grupo etário dos 55 aos 64 anos: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e excesso de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do excesso de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Em relação ao grupo dos 45 aos 54 anos, o excesso líquido de mortalidade foi de 3,1%, significando assim mais 399 óbitos no último triénio do que o esperado. Nesta faixa etária, observou-se excesso em todos os três anos, mas muito mais moderado em 2022.

    Com efeito, de acordo com os cálculos do PÁGINA UM, em 2020 contabilizaram-se 166 mortes a mais, e em 2021 um acréscimo não esperado de 172, tendo no ano passado descido para 61 mortes a mais.

    O grupo adulto menos afectado pelo excesso generalizado de mortalidade acabou por ser o dos 25 aos 34 anos, que “apenas” registou um acréscimo de 2,7% na mortalidade expectável para o triénio 2020-2022.

    Análise para o grupo etário dos 45 aos 54 anos: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e excesso de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do excesso de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Neste caso, porém, os valores absolutos são relativamente baixos: 45 óbitos a mais nos três anos, o que se pode considerar dentro da normalidade, sobretudo se se, em termos de tratamento estatístico, fossem aplicados intervalos de confiança nesta análise.

    Esta análise do PÁGINA UM comprova sobretudo a necessidade premente de uma avaliação independente das causas de morte aos diversos grupos etários, não podendo continuar-se nesta “alimentada” ignorância, que alimenta a especulação de supostos peritos – e mais as suas “explicações” com base em impressões, “cherry picking” e enviesamentos a segurar teses durante a pandemia.

    Análise para o grupo etário dos 25 aos 34 anos: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e excesso de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do excesso de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Perante isto, seria muito fácil, demasiado fácil, conhecer a verdade: bastaria o Ministério da Saúde disponibilizar a base de dados do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) – onde constam as causas discriminadas de morte desde 2014 – e dos Grupos de Diagnósticos Homogéneos – que permite aferir quais as doenças que justificaram os internamentos e as mortes em meio hospitalar. Em pouco tempo, em demasiado pouco tempo, com os meios estatísticos já disponíveis, seria possível apurar o que sucedeu nos últimos três anos.

    E arrepiar caminho, salvando-se o que se pode e deve salvar. Ontem já era tarde. Enquanto isso, só este ano, com o terceiro dia ainda em curso, já se finaram mais de mil portugueses….

  • Jovens dos 15 aos 24 anos são o grupo etário com maior excesso relativo na mortalidade total entre 2020 e 2022

    Jovens dos 15 aos 24 anos são o grupo etário com maior excesso relativo na mortalidade total entre 2020 e 2022

    A covid-19, como doença, não teve qualquer impacte relevante nos jovens, e as medidas não-farmacológicas até terão permitido que muitos lactentes e crianças em idade pré-escolar tivessem sobrevivido nos últimos três anos. Estimativas rigorosas do PÁGINA UM, com base na informação do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) e ponderada a evolução da mortalidade nos anos pré-pandémicos, mostram que até aos cinco anos o saldo foi francamente positivo: até aos cinco anos de idade terá havido 220 mortes a menos do que previsivelmente ocorreria se não houvesse pandemia. Porém, no grupo dos 15 aos 24 anos, sucedeu um “desastre”, e sobretudo no ano passado: um inacreditável aumento de 115 mortes acima do esperado entre 2020 e 2022, que não encontra, em termos relativos, comparação sequer com os valores contabilizados para os mais idosos. E se não foi por culpa da SARS-CoV-2, do que foi então? Não se sabe, porque o Ministério da Saúde não diz, não investiga e opõe-se nos tribunais administrativos para não se saber. E a sociedade, no seu todo, também parece mostrar-se indiferente.


    O grupo etário mais afectado pelos três anos da pandemia foi, de forma surpreendente, os adolescentes e jovens entre os 15 e os 24 anos. Uma análise estatística estratificada do PÁGINA UM, tendo em consideração a tendência da mortalidade no período anterior à pandemia (2014-2019) – que está dependente dos avanços médicos e das variações absolutas da população dentro de cada faixa etária – revelou um agravamento de 13% na mortalidade nos jovens entre os 15 e os 24 anos no conjunto dos anos de 2020, 2021 e 2022.

    De acordo com os cálculos do PÁGINA UM, neste grupo etário – que se encontra em ligeiro decréscimo devido à redução da natalidade nas últimas décadas – seria expectável que, em função do que sucedera entre 2014 e 2019, tivessem morrido 303 pessoas em 2020, mas acabaram por se registar mais 28 óbitos. Ou seja, 331 mortes.

    four women standing on pathway looking side

    Sem pandemia, em 2021 estimava-se a morte de 300 jovens destas idades, mas acabaram por falecer mais 12. Já no ano de 2022, que agora terminou, ainda se agravou mais: seria de esperar uma mortalidade total ao longo dos meses de 296 óbitos, mas o valor suplantou em 25,5% essa fasquia: contaram-se 371 mortes, mais 75 do que seria de aguardar. Desde 2014, o máximo ocorrera em 2017, com 326 óbitos.

    Esta situação ainda é mais surpreendente, porque 2022 foi o terceiro ano consecutivo em excesso, não havendo uma explicação com base na mortalidade por covid-19. De acordo com a base de dados da mortalidade e morbilidade hospitalar, constante na Plataforma da Transparência do SNS, registaram-se seis óbitos atribuídos ao SARS-CoV-2 entre os 15 e os 24 anos, sendo metade em 2021 e a outra metade em 2022.

    Análise para o grupo etário dos 15 aos 24 anos: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e excesso de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do excesso de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Neste grupo etário, em termos de mortalidade total – e salientando que os óbitos são, felizmente, raros nestas idades –, a covid-19 representou 0,6% das causas de entre os 1014 dos desfechos fatais ocorridos nos últimos três anos. Se se considerar a taxa de letalidade da covid-19 nos jovens entre os 15 e os 24 anos – e assumindo que cerca de metade deste grupo etário esteve em contacto com o vírus –, os valores em Portugal são irrelevantes: 0,001%. Muito mais baixos do que os relativos às pneumonias. Aliás, ao longo da pandemia da covid-19, a morbilidade e mortalidade associadas às doenças do aparelho respiratório nos mais jovens diminuíram consideravelmente.

    Em contraste com a situação dramática dos jovens dos 15 aos 24 anos, o triénio da pandemia (2020-2022) foi anormalmente favorável nos lactantes e crianças com menos de 5 anos. De acordo com as estimativas do PÁGINA UM, os recém-nascidos tiveram, durante a pandemia muito maiores chances de sobrevivência, porventura devido a um menor contacto com factores externos.

    Análise para o grupo etário dos menores de 1 ano: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e défice (valor inferior a zero) de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do “défice” de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável, daí dar um número negativo. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Nesta fase mais frágil da vida, em 2020 registaram-se menos 60 óbitos do que se esperaria; em 2021 menos 86 óbitos; e no ano passado menos 52. No total do triénio conta-se assim uma “poupança” de 198 vidas, ou seja, um decréscimo de quase 24%, o que é muito significativo.

    No grupo etário das crianças em idade pré-escolar (1 aos 4 anos) também se registou um decréscimo acentuado, mas menor, embora também muito significativo. Neste grupo – que, por norma, é de baixíssima mortalidade – contabilizaram-se menos 10 óbitos em 2020, menos nove em 2021 e menos três no ano passado. Contas feitas, estas 22 vidas poupadas representam uma redução global no triénio, face aos valores expectáveis, de 11%.

    Análise para o grupo etário dos 1 aos 4 anos: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e défice (valor inferior a zero) de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do”défice” de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável, daí dar um número negativo. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    No caso do grupo dos 5 aos 14 anos, o triénio da pandemia foi praticamente indiferente. No ano de 2020 houve uma poupança de 10 vidas, mas em 2021 surgiu um acréscimo de 10. No ano passado, o número de óbitos foi aquele que seria expectável.

    Para Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, a “consistência dos números de excesso de mortalidade” na faixa dos 15 aos 24 anos deveria merecer uma “investigação aprofundada das autoridades de Saúde”. Para este pediatra, seria extremamente fácil analisar, até pelo número de casos, se os incrementos se deveram a acidentes, a problemas de toxicodependência, a suicídios, ou a outras causas. “Esses dados existem; basta que as autoridades queiram analisar”.

    Análise para o grupo etário dos 5 aos 14 anos: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e défice (valor inferior a zero) de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do “excesso” ou “défice” de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável, daí resultando um número positivo ou negativo. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Quanto à eventualidade de um incremento nos próximos anos da mortalidade em crianças em idade pré-escolar – porque muitos lactentes mais frágeis sobreviveram, nos últimos três anos,  devido a super-protecção a agentes externos devido às medidas não-farmacológicas durante a pandemia –, Amil Dias está optimista: “pode haver um rebound [agravamento por um aumento do contacto de agentes externos], mas os lactentes mais frágeis que acabaram por sobreviver, por estarem mais protegidos, podem ter ficado mais fortalecidos e, assim, terem maiores probabilidades de sobrevivência”.


    N.D. Amanhã, o PÁGINA UM apresenta uma análise detalhada similar para os grupos etários com idades superiores aos 25 anos. Serão apresentados os gráficos, com os valores, de excesso de mortalidade total, bem como uma análise global do excesso de mortalidade total (que, para ser mais rigoroso, não deve ser feito comparando somente os diversos). Saliente-se que, ainda com mais rigor, se poderia realizar cálculos com intervalos de confiança, mas não modificaria muito as conclusões que se podem retirar desta análise exclusiva. Realizaram-se pequenas rectificações de valores das estimativas durante a tarde de 3 de Janeiro de 2023.

  • Vacinas: Manuel Pizarro com processo de intimação no Tribunal Administrativo por esconder contratos

    Vacinas: Manuel Pizarro com processo de intimação no Tribunal Administrativo por esconder contratos

    O Ministério da Saúde recusa divulgar os contratos das compra das vacinas contra a covid-19. Desde Março de 2021, não é colocado no Portal Base qualquer documento sobre compras às farmacêuticas. Até então teriam sido compradas menos de 11 milhões de lotes, menos de 25% do total eventualmente adquirido. Ignora-se também as condições acordadas, nomeadamente ao nível da responsabilização e de eventuais compras obrigatórias no futuro.


    O PÁGINA UM entrou hoje, último dia do ano, com mais um processo de intimação para obrigar o Ministério da Saúde a revelar documentos administrativos, que continua a esconder. O processo tem já o número 3879/22.1BESLSB, devendo ser distribuído na segunda-feira. O Ministério da Saúde será notificado para responder obrigatoriamente durante a próxima semana.

    Desta vez, já com Manuel Pizarro como ministro da Saúde, pretende-se a “consulta presencial e obtenção de cópia, em qualquer formato disponível, de todos os contratos integrais (incluindo anexos e cadernos de encargos) assinados entre a Direcção-Geral da Saúde (ou outras entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde) e as farmacêuticas que comercializam vacinas contra a covid-19, desde 2020 até à data, incluindo documentos de entrega (guias de transporte), bem como toda a documentação (troca de correspondência) entre as entidades adjudicantes e adjudicatárias ao longo desde período.”

    Apesar da obrigatoriedade legal de colocar todos os contratos públicos no Portal Base, o Governo, através da Direcção-Geral da Saúde – que terá sido a única entidade pública a efectuar as aquisições –, está intencionalmente a omitir a inclusão de qualquer contrato relacionado com as vacinas contra a covid-19 desde Março de 2021. Ignoram-se assim, de forma inequívoca, quantos lotes foram adquiridos a cada farmacêutica, os preços unitários e as condições de venda, incluindo as relacionadas com responsabilização.

    Manuel Pizarro, ministro da Saúde.

    Na plataforma da contratação pública, ainda hoje consultada pelo PÁGINA UM, apenas constam quatro contratos todos do primeiro trimestre de 2021: duas compras de vacinas à Pfizer Biofarmacêutica (no valor de 54.489.660 euros, em 19 de Fevereiro; e de 34.419.238 euros em 23 de Março) e mais duas à Moderna (27.247.155 euros e 18.780.000 euros, ambas em 23 de Março). No total constam assim apenas as compras de um pouco menos de 135 milhões de euros.

    No caso destes contratos com a Pfizer foram então compradas 6.761.401 doses, ao preço unitário de 12 euros, mas ignora-se o custo unitário das vacinas da Moderna, porque são omitidos documentos fundamentais. Em todo o caso, se se considerar um preço unitário similar, nestes quatro contratos terão sido adquiridas cerca de 10,6 milhões de doses de vacinas contra a covid-19.

    Essa é uma pequena percentagem da quantidade já administrada. Em Outubro passado, o Ministério da Saúde revelou ao PÁGINA UM que, desde Dezembro de 2020, Portugal já comprara quase 45 milhões de vacinas contra a covid-19 e que teria então um stock de cerca de 9,5 milhões de doses. O Ministério da Saúde acrescentava ainda que “até 17 de Outubro foram administradas cerca de 25 milhões de vacinas”. Esta semana, o gabinete de Manuel Pizarro disse que tinham sido administradas 26,5 milhões de doses nos dois últimos anos. Em causa estará um negócio global que terá já custado, pelo menos, 675 milhões de euros ao Estado português.

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    Para confirmar as condições das compras e da assumpção de responsabilidades, o PÁGINA UM solicitou formalmente, após diversos pedidos informais, que o Ministério da Saúde disponibilizasse todos os contratos e documentos complementares. O pedido foi formulado em 22 de Novembro passado, e no dia 6 de Dezembro a Secretaria-Geral do Ministério da Saúde assumiu ao PÁGINA UM que “não possui a informação pretendida”, e que tinha enviado o pedido, conforme imposição legal, para a Direcção-Geral da Saúde (DGS) “para pronúncia e resposta”.

    Como habitualmente, a directora-geral da Saúde, Graça Freitas – que esta semana anunciou a reforma – nem sequer respondeu. Como a DGS não tem personalidade jurídica para responder em processos administrativos, será o Ministério da Saúde que foi intimado junto do Tribunal Administrativo.

    Este processo de intimação será o terceiro instaurado pelo PÁGINA UM ao longo de 2022, sendo o primeiro no mandato de Manuel Pizarro, que assim mantém a filosofia de obscurantismo da sua antecessora, Marta Temido.

    Os outros dois ainda estão em fase de decisão, em recurso. Além destes processos, o PÁGINA UM entrou com intimações por obscurantismo – ou seja, recusa de acesso a documentos administrativos – envolvendo outras entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde, nomeadamente a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (que venceu), a Administração Central do Sistema de Saúde (que venceu em primeira instância, estando em recurso) e Infarmed.

    Neste último caso, o PÁGINA UM perdeu um processo – por o Tribunal Administrativo considerar que os documentos sobre segurança dos medicamentos estão abrangidos por segredo comercial – e está em curso outro, desde Abril passado, relativo aos efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 e do antiviral remdesivir.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Em caso de derrota, os custos podem, não incluindo honorários do nosso advogado, atingir mais de 1.400 euros. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.

  • Este ano contam-se nove meses com mais de 10.000 mortes; antes da pandemia havia dois ou três em cada 12 meses

    Este ano contam-se nove meses com mais de 10.000 mortes; antes da pandemia havia dois ou três em cada 12 meses

    Nos últimos 36 meses registam-se 19 meses com mais de 10.000 óbitos, uma situação sem memória nos tempos modernos. No triénio anterior (2017-2019) houve apenas sete no total, todos em meses de Inverno. Neste ano de 2022 agravou-se o cenário dos dois primeiros anos de pandemia: em 2020 houve seis meses acima daquela fasquia, e em 2021 foram quatro. Tamanha persistência em números elevados é completamente absurda, ainda mais com uma taxa elevadíssima de vacinação contra a covid-19, que supostamente seria eficaz para debelar os efeitos da pandemia. O contínuo excesso pode ser agora por causa das alterações climáticas, como diz o ministro da Saúde… ou, se calhar, com maior grau de probabilidade, de tudo o resto, a começar pelo alheamento do Governo à situação. E pela forma como escondem informação.


    O ano ainda não terminou, ainda faltam nove dias para Dezembro acabar, mas um trágico recorde está garantido: o ano de 2022 contará nove meses com uma mortalidade acima de 10.000 óbitos. Somente Agosto (9.306 mortes), Setembro (8.754) e Outubro (9.525) não superaram aquele número. Dezembro ainda não atingiu as 10.000 mortes, mas será uma questão de tempo: até dia 21 registam-se 8.502 óbitos – uma média diária de quase 405, o que significa que até à passagem de ano será expectável chegar-se a valores que rondem os 12.500 óbitos.

    Esta é uma situação inaudita nos tempos modernos, e mesmo nos dois anos anteriores, em pandemia. Em 2020 foram contabilizados seis meses com mais de 10.000 óbitos: Janeiro (antes da chegada do SARS-CoV-2), Março, Abril, Julho, Novembro e Dezembro. No ano seguinte contabilizaram-se quatro: Janeiro, Fevereiro, Novembro e Dezembro. Nos primeiros dois meses de 2021, a mortalidade total foi, contudo, extraordinariamente elevada: 19.646 e 12.747 óbitos, respectivamente.

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    O significado de nove meses (em 12) com um número de óbitos acima de 10.000 é muito relevante face ao perfil tradicional da mortalidade portuguesa, claramente com uma evolução sazonal: Inverno mais mortífero Verão mais “ameno”. No presente século, e no período anterior à pandemia, geralmente registavam-se somente dois ou três meses com valores acima daquela fasquia – por regra entre Novembro e Fevereiro. Em 2011 e 2004 até só houve um mês com esse nível de mortalidade (Janeiro, com 10.575 óbitos).

    Consultando dados mensais do Pordata a partir de 1980, no final do século XX até era raro um ano ter mais de dois meses acima de 10.000 óbitos, observando-se mesmo um (1982) que não registou qualquer mês nessas circunstâncias.

    A mortalidade em 2022 sempre em níveis anormalmente elevados – e ainda mais sucedendo a dois anos com mais de 120 mil óbitos, em cada um – constitui mais um indicador de uma “mortalidade estrutural”, isto é, que não advém de eventos sazonais associados a infecções respiratórias e/ ou ondas de calor.

    Mortalidade total por mês em 2022. Valor de Dezembro estimado em função da média diária de óbitos até dia 21. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Antes da pandemia, por norma, a mortalidade diária entre o último terço do Outono e em grande parte do Inverno situava-se entre os 350 e os 450 óbitos (em picos de surtos gripais intensos), havendo uma tendência de decréscimo ao longo da Primavera. O Verão constitui a época menos letal, mesmo quando surgem repentinas e mortíferas ondas de calor. Por norma, o mês de Setembro até costuma ser o menos letal, seguindo-se Agosto.

    Em situações normais, o “comportamento letal” do Verão também dependia de como o Inverno tinha sido, e vice-versa. Ou seja, após uma elevada mortalidade associada a um surto gripal, geralmente sucedia um Verão ameno, mas se fosse demasiado ameno, o Inverno seguinte tinha tendência a ser mais mortífero.

    Ora, nada disto sucedeu em 2022, ainda mais quando 2020 e 2021 já tinham sido anos de excesso de mortalidade. Com efeito, se contabilizarmos Novembro e Dezembro de 2021, até Julho deste ano contabilizaram-se nove meses consecutivos acima de 10.000 óbitos, o que significa que houve, grosso modo, em média, mais de 330 óbitos diários. Nem essa inaudita sequência refreou o ressurgimento de níveis elevados de mortalidade, após o período estival geralmente menos letal.

    Número de meses com mais e com menos de 10.000 óbitos entre 1980 e 2022. Fonte: Pordata. Análise: PÁGINA UM.

    Comparando o período pandémico – no pressuposto de que a pandemia ainda assim continua a ser considerada pela Organização Mundial de Saúde – com o período homólogo imediatamente anterior, confirma-se o problema “estrutural” do excesso de mortalidade em Portugal, e que nem se pode argumentar que seja muito por causa da covid-19.

    Com efeito, este ano a covid-19 está a contribuir para a mortalidade total em níveis similares a 2020 (5,7% e 5,6%, respectivamente), o que não deixa de ser paradoxal, uma vez que 2022 tem uma elevada taxa de imunidade vacinal (e com reforços) e o primeiro ano de pandemia apenas começou a contabilizar mortes por covid-19 a partir de meados de Março.

    Em todo o caso, 2022 não se compara com 2021, em que a covid-19 terá representado, de acordo com as classificações oficiais, 9,5% de todas as mortes. Convém, contudo, salientar que a taxa de letalidade a partir do surgimento da variante Ómicron esteve quase sempre abaixo de 0,25%, até início de Outubro, quando a Direcção-Geral da Saúde modificou a estratégia de testagem (quebrando a série estatística). Ou seja, em praticamente todo o ano de 2021, antes da Ómicron, e já com o programa de vacinação em pleno, a taxa de letalidade da covid-19 (então dominada pela variante Delta) até era francamente superior; chegou mesmo a ultrapassar os 3% em Janeiro de 2021 e registou alguns picos acima de 1% entre meados de Outubro e a primeira quinzena de Novembro daquele ano.

    Comparação da evolução da mortalidade diária (média de sete dias) entre 15 de Março de 2020 e 20 de Dezembro de 2022 (1.011 dias) e o período homólogo de 2017 a 2019. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Certo é que o contínuo excesso de mortalidade ao longo dos meses deste ano – e depois de dois anos já de excesso – é difícil de compreender. Ou melhor dizendo, é difícil de admitir, ademais tendo em conta o aparente alheamento das autoridades de Saúde e do Governo, que mostram uma apatia para apurar as verdadeiras causas desta situação.

    Na verdade, não é apatia, é activa atitude obscurantista: recorde-se que o Ministério da Saúde, quer através da Direcção-Geral da Saúde, quer da Administração Central do Sistema de Saúde, tem sistematicamente recusado disponibilizar, entre outras, as bases de dados do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) e dos Grupos de Diagnósticos Homogéneos (GDH) – que permitiriam ao PÁGINA UM apurar os desvios sobre as principais causas de morte e hospitalização nos últimos anos.

    E recorde-se também que o actual ministro da Saúde, Manuel Pizarro, em nada mudou a filosofia da sua antecessora, Marta Temido, no sentido de não promover uma investigação independente às origens do excesso de mortalidade. Aliás, preferiu conjecturar em torno das alterações climáticas como culpadas pelo excesso de mortalidade.

  • Negócio de meio milhão de euros promovido pelas Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos acabou literalmente no lixo

    Negócio de meio milhão de euros promovido pelas Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos acabou literalmente no lixo

    Foi anunciado, com pompa e circunstância, por Miguel Guimarães e Ana Paula Martins, bastonários das Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos, como um equipamento fundamental para proteger os intensivistas e anestesiologistas que entubavam doentes-covid. Foram adquiridas 500 unidades pelo fundo “Todos por Quem Cuida“, e aprovado um financiamento comunitário, que envolveu no total cerca de meio milhão de euros. Mas, em poucos meses, foi tudo para o lixo. A Food & Drugs Administration considerou, em meados de 2020, que aquelas estruturas nada protegiam e até poderiam ser perigosas para médicos e doentes. Uma história de despesismo que faz lembrar o célebre conto O rei vai nu, até porque até um leigo percebia que as caixas de protecção nada protegiam e até obstaculizavam os movimentos dos médicos. Quem mais beneficiou foi o vendedor das caixas, uma empresa de acrílicos e materiais plásticos para expositores e decoração. Este é o quinto artigo de uma investigação jornalística do PÁGINA UM, profusamente documentada, que merece ser um caso de polícia.


    É um daqueles evidentes casos que faz lembrar o célebre conto novecentista O rei vai nu, do dinamarquês Hans Christian Andersen: em meados de 2020, a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos gastaram 184.500 euros em meio milhar de estruturas de policarbonato para suposta protecção dos médicos no momento da entubação orotraqueal, que acabaram literalmente no lixo hospitalar por ineficientes e perigosas, tanto para anestesiologistas e médicos intensivistas como para os próprios doentes.

    Apesar de saltar à vista, mesmo a um leigo, que as denominadas “Caixas Protector 2020” jamais conseguiriam uma separação estanque entre os profissionais de saúde – já em si com equipamento de protecção individual suficiente –, aparentemente não se terá reparado convenientemente que os simples buracos onde os médicos metiam os braços para manipular o tubo do ventilador lhes dificultaria os movimentos, podendo mesmo colocar em risco o doente.

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    Nos primeiros meses da pandemia, decidiu-se “inovar”, decidindo que não bastava usar equipamentos de protecção individual.

    Embora tenha sido anunciado em artigos e peças televisivas como sendo um equipamento de protecção extraordinário, intensivistas e anestesiologistas contactados pelo PÁGINA UM garantem que foram pouco ou nada usados, tendo mesmo sido abandonados (e deitados fora). Essa decisão surgiu sobretudo a partir de meados de 2020 quando a Food & Drugs Administration (FDA) proibiu o seu uso.

    A agência norte-americana concluiu “não [ser] razoável acreditar que o produto pode ser eficaz na diminuição da exposição do profissional de saúde a partículas transportadas pelo ar, e pode, em vez disso, contribuir para um aumento na exposição dos profissionais de saúde a aerossóis e partículas [infectadas]”. E acrescentava que “além disso, os artigos da literatura observam riscos potenciais da barreira protectora, como aumento do tempo de intubação, taxas de sucesso de intubação de primeira passagem mais baixas e danos pessoais pelas partículas escapando de caixas de intubação, através dos orifícios de acesso aos braços, atingindo a face do profissional de saúde que realiza a intubação endotraqueal”.

    Caixas de (suposta) protecção apenas envolviam a cabeça do doente e o médico tinha de colocar os braços em buracos na estrutura de policarbonato sem qualquer estanquicidade. Acreditar, como se acreditou, que esta estrutura impedia saída de aerossóis lembra o conto O rei vai nu.

    Mas aquilo que era uma evidência óbvia foi sempre ignorada e permitiu mesmo uma operação de marketing dos bastonários da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, e dos Farmacêuticos, Ana Paula Martins – agora indicada para gerir o centro hospitalar que integra o Hospital de Santa Maria – aquando da primeira entrega destas perigosas caixas em hospitais públicos.

    Pelo menos em duas acções, nos dias 27 de Abril e 12 de Maio de 2020, os dois bastonários desdobraram-se em elogios às ditas caixas de protecção, bem como à campanha “Todos por Quem Cuida”, a qual geriam pessoalmente. Numa das suas intervenções na comunicação social, Miguel Guimarães garantia também que as ditas caixas de protecção tinham sido desenvolvidas “pela indústria portuguesa e médicos, nomeadamente especialistas da área de anestesiologia”.

    Ignora-se se o Colégio de Anestesiologia da Ordem dos Médicos – órgão estatutário independente do bastonário – teve uma intervenção directa neste processo, até porque Miguel Guimarães recorreu para o Tribunal Central Administrativo Sul de uma sentença que o obrigava a disponibilizar todos os pareceres técnicos aprovados desde 2020. Contudo, mostra-se abusivo considerar que as caixas de protecção foram desenvolvidas pela “indústria portuguesa”.

    Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, em campanha de marketing, quando o fundo “Todos por Quem Cuida” ofereceu 500 caixas de protecção que a FDA consideraria inúteis e perigosas.

    Na verdade, o processo foi mais simples. Os três gestores da conta “Todos por Quem Cuida” – Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves – decidiram simplesmente contratar a Gravoplot – uma empresa de produção de sobretudo acrílicos e materiais plásticos, bem como de gravação a laser, para expositores e decoração – para fazer, em série, as 500 unidades de “caixas de protecção”, ao preço de 300 euros, cada. Acrescido o IVA, o preço final ficou em 184.500 euros, sendo que as facturas foram remetidas para a Ordem dos Médicos, mas pagas pela conta solidária.

    Como já referido pelo PÁGINA UM, a não saída de verbas da Ordem dos Médicos por estas compras pagas pelo fundo solidário possibilitou condições para a criação de um “saco azul” ou mesmo um desvio de verbas daquela associação profissional.

    Apesar do insucesso rotundo de um equipamento que, à vista, se mostrava evidente, a Gravoplot foi a entidade que mais beneficiou com este voluntarismo e sede de “exposição mediática” dos bastonários das duas Ordens. Com efeito, além dos 184.500 euros ganhos na venda de 500 inúteis e perigosas “caixas de protecção”, a empresa sediada em Sintra teve artes para obter um financiamento relâmpago do FEDER.

    Gravoplot: empresa que produz produtos plásticos e gravação a laser em diversos materiais para fins de decoração e exposição, foi contratada por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves para produzir 500 caixas de produção. Graças a um apoio comunitário, acabou a facturar cerca de meio milhão de euros. As caixas acabaram no lixo poucos meses depois.

    No próprio dia em que Miguel Guimarães cantava loas às caixas de protecção oferecidas ao Hospital de Santo António, em 27 de Abril de 2020, a Gravoplot fazia entrar uma candidatura a fundos comunitários para “reforçar as capacidades de produção de bens e serviços destinados a combater a pandemia”, neste caso com viseiras e as tais caixas Protector 2020.

    Pouco mais de uma semana depois, em 6 de Maio, o projecto foi aprovado com um apoio financeiro comunitário de 321.416,12 euros a fundo perdido, ou seja, 95% do investimento total. O projecto terminaria em 26 de Junho daquele ano. Após aquela data, a Gravoplot só vendeu mais 13 caixas ao fundo solidário “Todos por Quem Cuida”, o número que consta na última das cinco compras, com data de 12 de Agosto de 2020. As outras quatro têm data de Maio daquele ano, conforme o PÁGINA UM já revelou.


    N.D. Este é o quinto artigo de um dossier em redor da campanha “Todos por Quem Cuida”, que resultou da consulta, durante três dias ao longo do mês de Novembro passado, de todos os documentos operacionais e contabilísticos na sede da Ordem dos Médicos, em Lisboa. A possibilidade de consulta não foi concedida de forma voluntária: foi uma imposição, por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa (através de uma intimação, financiada pelo FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM, ou seja, pelos seus leitores), após sistemáticas recusas tanto da Ordem dos Médicos como da Ordem dos Farmacêuticos, mesmo após a obtenção de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA). Com esta investigação, o intuito do PÁGINA UM não é colocar em causa a bondade de campanhas de angariação de fundos nem acções de solidariedade; é exactamente averiguar se, em acções nobres, os procedimentos são exemplares, incluindo a componente da transparência perante o eventual escrutínio dos jornalistas. Não há nada pior para uma boa causa do que maus procedimentos. Tal como os meios não justificam os fins, também os fins não podem justificar os meios.

  • Um jogo do gato e do rato: o presidente do Infarmed quer fugir ao tribunal

    Um jogo do gato e do rato: o presidente do Infarmed quer fugir ao tribunal

    Ontem, a Direcção-Geral da Saúde veio, pela primeira vez, apelar aos profissionais de saúde para estarem atentos aos sinais e sintomas de miocardite e pericardite nos jovens que tenham tomado a vacinas, mas continua-se a desconhecer, por obscurantismo, os detalhes que constam no Portal RAM do Infarmed. O longo processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa, que opõe o PÁGINA UM ao regulador nacional do medicamento desde Abril deste ano, parece um jogo do gato e do rato: após a juíza exigir que o presidente do regulador seja ouvido em audiência no próximo mês de Janeiro, hoje os seus advogados vieram requerer a anulação do despacho, alegando que estão em causa estão apenas questões técnicas, e que Rui Ivo Santos, com carreira burocrática neste sector desde 1993, é parte interessada no processo, e também por isso não deve testemunhar.


    Os advogados do Infarmed apresentaram hoje um requerimento ao Tribunal Administrativo de Lisboa para que o presidente deste regulador, Rui Ivo Santos, não seja ouvido como testemunha no processo de intimação para acesso aos dados das reacções adversas das vacinas contra a covid-19 e o antiviral remdesivir. A actual juíza do processo, Sara Ferreira Pinto, já aceitara a indicação do PÁGINA UM para ouvir aquele responsável que, desde 6 de Dezembro de 2021, tem vindo a recusar o acesso aos dados anonimizados detalhados do Portal RAM.

    A intenção do PÁGINA UM em se ouvir o responsável máximo do regulador prende-se sobretudo com o argumento (estafado) de uma alegada impossibilidade de anonimização dos dados, uma operação habitualmente corriqueira em bases de dados, em especial quando se pretende retirar os campos com informação pessoal. Por outro lado, também se pretende averiguar os detalhes do contrato assinado entre o Infarmed e a empresa Altran Portugal em 12 de Novembro do ano passado para alteração do portal das reacções adversas (Portal RAM) no âmbito do reporte à Agência Europeia do Medicamento (EMA).

    Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed: há um ano a esconder dados do Portal RAM, não quer agora testemunhar perante o Tribunal Administrativo de Lisboa.

    No requerimento agora apresentado pela sociedade de advogados BAS – que desde 2020 “colecciona” 53 contratos de consultadoria jurídica por ajuste directo com entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde –, alega-se que “em função do cargo que ocupa, o Senhor o Senhor [sic] Professor Rui Santos Ivo é parte do presente processo, não podendo depois como testemunha”, solicitando-se assim que “seja revogado o despacho de 13.12.2022, na parte em que [a juíza] admitiu o chamamento do Presidente do Conselho Diretivo do Infarmed como testemunha”.

    Além de alegar questões meramente formais, o requerimento daquela sociedade de advogados tenta retirar o cunho político e administrativo a este processo, para assim evitar o testemunho de Rui Santos Ivo. Ao pretender colocar o assunto como “eminentemente técnico”, a defesa de Rui Santos Ivo diz que, em audiência provisoriamente marcada para o próximo dia 24 de Janeiro, basta ouvir Márcia Silva, directora de Gestão do Risco de Medicamentos do Infarmed – que, aliás, será tão parte interessada no processo como o seu presidente. Note-se que Márcia Silva foi indicada pelo Infarmed, e não mereceu qualquer oposição do PÁGINA UM no âmbito deste processo, como deve suceder numa questão jurídica justa e civilizada.

    Em todo o caso, não deixa de ser curioso que o Infarmed, através do seu representante legal, sustente que Rui Santos Ivo não entenda de questões técnicas relacionadas com o Portal RAM, tendo em consideração vasta experiência deste responsável na regulação de medicamentos e na indústria farmacêutica.

    De facto, a menos que o actual presidente do Infarmed tenha enganado meio-mundo nas últimas três décadas, não deverá haver muitas pessoas com a sua experiência técnica e administrativa no também burocrático sector da indústria farmacêutica.

    Senão veja-se: Rui Santos Ivo licenciou-se em Ciências Farmacêuticas em 1987, tem pós-graduações em Direito da Saúde (Faculdade de Direito, em 1997), em Medicina Farmacêutica (Universidade de Basileia, em 1999), em Regulação (London School of Economics and Political Science, em 1999), em Gestão de Unidades de Saúde (Universidade Católica Portuguesa, em 2000), em Programa de Alta Direção de Instituições de Saúde (AESE Business School, em 2015). Possui uma vasta e invejável carreira no sector da regulação, depois de ter ingressado em 1993 no Infarmed, onde exerceu cargos de vogal e vice-presidente entre 1994 e 2000, e depois de presidente entre 2002 e 2005.

    Durante este último período foi ainda administrador na direção da Agência Europeia de Medicamentos (EMA) entre 2002 e 2005. Mais tarde, entre 2006 e 2008, foi administrador na Unidade de Produtos Farmacêuticos da Direção-Geral de Empresas e Indústria da Comissão Europeia (2006 -2008), a que se seguiu passagem como diretor executivo da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma) até Novembro de 2011, quando então regressou à Administração Pública. Primeiro, ocupou o cargo de vice-presidente e depois de presidente do conselho directivo da Administração Central do Sistema de Saúde, antes de regressar de novo, em Janeiro de 2016, ao Infarmed, para ser vice-presidente. Em Junho de 2019 subiu novamente a presidente do regulador.

    É este, portanto, o homem que, a despeito de se debater uma “questão técnica” – ou seja, a disponibilização de dados anonimizados detalhados das reacções adversas das vacinas contra a covid-19 – não quer justificar-se em tribunal, porque, enfim, não é um técnico, e não sabe como funciona o Portal RAM nem se pode ser facilmente anonimizado.

    A decisão de manter ou não a presença de Rui Santos em sessão do Tribunal Administrativo de Lisboa deverá ser tomada pela juíza do processo nos próximos dias.

    Sede do Infarmed: onde se “sequestra” a verdade e onde se veda o acesso à transparência.

    Saliente-se que este processo de intimação corre desde 20 de Abril passado, e surgiu depois da recusa do Infarmed em disponibilizar o acesso à base de dados do Portal RAM, mesmo se a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) já em 16 de Março deste ano considerou, em parecer não vinculativo, que o Infarmed deveria facultar o seu acesso, salientando que “o interesse público no conhecimento de elementos que possam informar quanto à segurança da vacina é, por conseguinte, manifesto”.

    Ontem, recorde-se, a Direcção-Geral da Saúde veio, pela primeira vez, apelar aos profissionais de saúde que estejam atentos aos sinais e sintomas de miocardite e também pericardite, nos 14 dias após a toma da vacina contra a covid-19. As reacções adversas devem constar, de forma discriminada, no Portal RAM a que o PÁGINA UM quer aceder há mais de um ano.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Em caso de derrota, os custos podem, não incluindo honorários do nosso advogado, atingir mais de 1.400 euros. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.

  • John Ioannidis: fase endémica deve mudar estratégia de vacinação e reforços só em grupos de risco

    John Ioannidis: fase endémica deve mudar estratégia de vacinação e reforços só em grupos de risco

    A elevada taxa de imunidade (natural, vacinal e híbrida) e a redução drástica da letalidade da variante Ómicron, são dois dos motivos principais que levam John Ioannidis, um dos cientistas mais citados do Mundo, a defender reforços da vacina contra a covid-19 apenas em grupos de risco: os idosos e as pessoas com determinadas comorbilidades. Num novo artigo científico publicado no mês passado, em co-autoria, o reputado epidemiologista da Universidade de Stanford aconselha cautela com a vacinação massiva, por os riscos poderem ser maiores do que os benefícios, nomeadamente nas crianças e jovens. Além disso, com cálculos, conclui que o custo económico da vacinação massiva pode não compensar, sobretudo na população jovem e de baixo risco, pois esse dinheiro poderia ter uma maior eficácia a salvar vidas em sectores deficitários da Saúde Pública.


    O epidemiologista norte-americano John Ioannidis é um dos seis cientistas mais citados do Mundo, e no seu novo artigo científico, publicado na prestigiada revista European Journal of Clinical Investigation, não podia ser mais claro: as doses de reforço da vacina contra a covid-19 devem ser administradas somente aos grupos de risco, ou seja, os idosos e as pessoas com outras doenças. E diz mesmo que continuar a administrar reforços de vacinas em determinados grupos etários, não é aconselhável do ponto de vista do custo-benefício, nem a nível individual nem comunitário.

    Considerando que os governos e autoridades de saúde devem tomar as suas decisões em evidências científicas, Ioannidis diz ser fundamental reajustar a estratégia de Saúde Pública à evolução da imunidade da população e à perigosidade do vírus e da pandemia, que está actualmente já em fase endémica.

    Estas recomendações, sustentadas em análises e cálculos, surgem num artigo científico publicado, em co-autoria com Stefan Pilz, investigador austríaco da Universidade Graz.

    O artigo começa por sustentar que a imunidade da população é já elevada, pelo contacto com o SARS-CoV-2 ou pela vacinação, ou por ambas as vias. Por outro lado, destaca que a taxa de letalidade da covid-19 caiu drasticamente após o aparecimento da variante Ómicron, muito mais contagiosa mas substancialmente menos perigosa.

    Mas há ainda outros dois factores a ter muito em conta, referem os autores: os possíveis efeitos adversos, que fazem com que, para algumas faixas etárias, os prejuízos superem os benefícios; e os elevados custos para prevenir uma morte por covid-19, que se mostram exorbitantes, podendo ultrapassar um milhão de dólares na população mais jovem. Para os autores do artigo, as verbas que estão a ser gastas com reforços massivos de vacina poderiam ser utilizadas no combate a outras doenças mais prementes e com necessidades de maior investimento.

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    Várias universidades norte-americanas impõem a obrigatoriedade da toma das vacinas contra a covid-19 aos seus alunos, apesar do baixo risco que a doença apresenta para os jovens.

    No artigo intitulado “Does natural and hybrid immunity obviate the need for frequent vaccine boosters against SARS‐CoV‐2 in the endemic phase?”, Ioannidis e Pilz recomendam taxativamente que apenas “certos grupos de risco”, como os idosos, e, em particular os doentes com necessidade de cuidados prolongados, devem ser vacinados a partir de agora. E dizem mesmo que se a taxa de eficácia contra a covid-19 fosse de 100%, nas actuais circunstâncias, não faria sentido, do ponto de vista da gestão da Saúde Pública, administrar vacinas em massa.

    Os autores exemplificam com estimativas de custos aplicadas à situação da Dinamarca. Em geral, concluem que o número de pessoas que seria necessário vacinar (tratar) e os custos económicos envolvidos para salvar uma vida (ou evitar uma hospitalização) são agora incomensuravelmente superiores ao que ocorria nas fases anteriores da pandemia e sobretudo quando se compara com outras doenças de maior gravidade, como a insuficiência cardíaca. 

    Segundo o estudo, “as anteriores análises de custo-eficácia sobre as medidas contra o SARS-CoV-2 basearam-se, em geral, em IFR (taxa de letalidade) sobrestimadas e, por conseguinte, podem ter sido demasiado optimistas”.

    Assim, concluem que “para a maioria da população, as IFRs do SARS-CoV-2 actualmente são tão baixas que, mesmo se as vacinas de mRNA tivessem 100% de eficácia contra a morte e sem efeitos adversos, o seu custo-benefício poderia ser questionável ou desfavorável”.

    Isto, “a menos que o custo da vacina seja reduzido a níveis insignificantes”, o que não vai ser o caso, pelo contrário, já que as farmacêuticas como a Pfizer já vieram anunciar aumentos no preço. Isso significa que, perante a inexistência de recursos ilimitados, um bom sistema de saúde têm de optar por alocar verbas em função da eficiência, ou seja, em salvar mais vidas por unidade de recurso financeiro.

    O facto destas recomendações virem de John Ioannidis é muito relevante. O epidemiologista não é um “especialista” qualquer, contando mais de 6.000 novas citações por mês, o que o coloca no ranking dos seis cientistas mundiais mais citados. No Google Scholar tem um índice h de 237, um valor estratosférico. Professor de várias especialidades na Universidade de Stanford, incluindo Medicina e Epidemiologia e Saúde da População, Ioannidis foi nomeado responsável por uma área de pesquisa na European Research Area (ERA) da Comissão Europeia e é ainda presidente da Associação Americana de Médicos, entre muitos outros cargos que desempenha.

    Embora sempre de uma forma discreta, e quase sempre através de artigos em revistas científicas, Ioannidis foi um dos especialistas de topo a nível mundial que se opuseram às medidas sem precedentes que foram adoptadas na maioria dos países, como os confinamentos da população – uma medida que copiou a estratégia implementada na China no início da pandemia.

    John Ioannidis

    Agora, neste seu mais recente artigo científico, mostra-se confiante sobre a banalização da covid-19, antecipando ser “concebível que as infecções por SARS-CoV-2 possam em breve seguir um padrão semelhante ao dos outros coronavírus humanos endémicos, com uma primeira infecção, geralmente leve, na infância e, posteriormente, infecções frequentes, mas também geralmente leves, na idade adulta”.

    Com Pilz, o epidemiologista norte-americano conclui que a variante Omicron, surgida em Novembro do ano passado, e ainda agora dominante (com subvariantes), teve um impacte fundamental na pandemia. E, por isso, discordam dos muitos receios difundidos pelos media e alguns peritos sobre a evolução da covid-19 nos próximos anos.

    Com efeito, uma das principais conclusões do artigo é de que o risco de morte e de doença grave por infecção “tem sido muito baixo em 2022, e a maioria das infecções por Ómicron parece ser assintomática”.

    Um caso exemplar, citado no estudo, é o da Dinamarca, que registava pouca disseminação do vírus até o final de 2021, mas teve infecções em massa a partir daí com a variante Ómicron, mesmo numa população amplamente vacinada.

    Naquele país escandinavo, a taxa de letalidade da infecção por Ómicron até meados de Março de 2022 foi estimada em apenas 1,6 por 100.000 infecções (0,0016%) entre pessoas dos 17 aos 35 anos de idade, situando-se nos 6,2 por 100.000 infecções (0,0062%) entre pessoas aparentemente saudáveis dos 17 aos 72 anos de idade. Mesmo para as pessoas mais idosas, a taxa de letalidade desceu substancialmente: é agora de apenas 0,015,1, quando em 2020 atingia os 0,281%.

    Por outro lado, os dois autores observaram ainda que em populações com exposição prévia substancial ao SARS-CoV-2, “as reinfecções [a grande maioria ocorrendo nas ondas de Ómicron] tiveram menos de um quarto do risco de hospitalização e um décimo do risco de mortalidade em comparação com as infecções primárias. Por exemplo, em Vojvodina, na Sérvia, apenas 1% das reinfecções necessitaram de hospitalização e a letalidade para reinfecções foi de apenas 0,15%.

    Aliás, os dois investigadores chegam a citar dados de Portugal que sugerem uma boa protecção a longo prazo adquirida através da imunidade natural, isto é, com o contacto anterior ao coronavírus. Os dados nacionais, abrangendo uma população com 12 anos ou mais, e com uma cobertura de 82% da terceira dose da vacina contra o SARS-CoV-2, mostram que três a cinco meses após uma infecção prévia pela variante BA.1/BA.2, a eficácia da proteção contra a nova variante BA.4/BA.5 foi de 75,3%. Pessoas com infecções prévias pelas variantes Wuhan-Hu-1, Alpha e Delta tiveram respectivas eficácias de proteção de 51,6%, 54,8% e 61,3%, respectivamente.

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    O artigo científico cita dados de Portugal que sugerem que uma infecção por covid-19 confere protecção no longo prazo.

    Em todo o caso, se é a infecção natural ou um reforço da vacina a oferecer a maior protecção, os autores defendem que se torna “uma questão amplamente discutível, uma vez que quase toda a população global já foi infectada e mais de 70% da população global também foi vacinada, pelo menos com alguma dose de vacina”.

    Mas frisam que “uma limitação crítica e grave dos principais estudos na população em geral sobre a eficácia da quarta dose da vacina contra o SARS-CoV-2 é a exclusão quase universal de indivíduos com infecções prévias”.

    Porém, Ionannidis e Pilz citam ainda um estudo realizado em Ontário, no Canadá, que “sugere um efeito protector significativo por infecções anteriores, que provavelmente podem ser maiores do que o conferido por uma dose adicional de vacina”.

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    Quanto aos mais idosos sem infecção prévia por covid-19, os dois investigadores destacam estudos observacionais em Israel que dão pistas sobre a eficácia de uma quarta dose da vacina mRNA contra a infecção.

    Entre 10 de Janeiro e 13 de Março deste ano, 97.499 indivíduos com 60 anos ou mais, sem qualquer infecção prévia mas com um teste positivo de PCR durante esse período, foram analisados para comparar as taxas de infecção por SARS-CoV-2 naqueles que tinham acabado de receber a quarta dose da vacina e os que receberam apenas três doses da vacina.

    Essa análise mostrou que a eficácia relativa da vacina em relação a qualquer infecção por SARS-CoV-2 atingiu o pico durante a terceira semana em 65,1% e diminuiu para 22,0% no final da semana 10. Para a covid-19 grave, as respectivas eficácias após 7-27 dias, 28-48 dias e 46-69 dias foram de 77,5%, 72,8% e 86,5%, respectivamente.

    Ao longo das 10 semanas de acompanhamento, apenas 572 dos 97.499 participantes do estudo tiveram covid-19 grave [internados no hospital ou morreram devido à covid-19] e apenas 106 pacientes morreram.

    A conclusão de Ioannidis e Pilz é de que “os números necessários para tratar (NNT) e salvar uma vida ou uma hospitalização podem ser muito grandes”, devendo ser ponderado se as verbas em causa teriam melhores resultados, em termos de vidas salvas, noutras áreas de Saúde Pública.

    Outra investigação de Israel, relevada pelos dois investigadores, foi realizada em 29.611 profissionais de saúde sem qualquer infecção prévia por SARS-CoV-2. As infecções por SARS-CoV-2 durante Janeiro de 2022 foram documentadas em 7% dos participantes com quatro doses de vacina e em 20% com três doses de vacina, resultando em uma eficácia de proteção de 65%. Neste estudo, em ambos os grupos, não houve infecção grave por covid-19 ou morte.

    Isto significa, segundo Ioannidis e Pilz, que “o número necessário para tratar é, portanto, infinito para esses resultados graves”, pelo que “é de se perguntar se a simples diminuição dos casos detectados oferece um benefício clinicamente significativo”.

    Em conclusão, e dado que o risco de desenvolver uma infecção grave por covid-19 é muito maior em populações muito idosas com fragilidade e comorbilidades, “isso deve ser considerado para a política de vacinas, pois uma eficácia relativa semelhante à da vacina se traduz em uma redução de risco absoluto clinicamente significativa em populações com alto risco subjacente de desfechos graves, mas pode ser quase insignificante em populações com um risco muito baixo”, argumentam.

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    Os cálculos feitos por Ioannidis e Pilz destacam, aliás, que os custos por uma morte evitada por covid-19 tendem a ser “extremamente altos”, excepto em grupos etários com mais idade, com base no custo atual por dose [aproximadamente 20 dólares] e mesmo se os custos diminuíssem para 5 dólares por dose. Se o custo “aumentar para 120 dólares por dose [como recentemente considerado para comercialização futura pela Pfizer], o custo-benefício pode se tornar desfavorável, mesmo para muitas pessoas muito idosas”, concluem ainda.

    Mas isto é na perspectiva económica, porque a análise de Pilz e Ioannidis salienta que, no caso dos mais jovens, os riscos de reações adversas das vacinas, incluindo miocardites, não são compensados pelos eventuais benefícios da vacinação contra a covid-19.

    No caso das crianças e adultos jovens saudáveis, o artigo dos dois investigadores concluem que aqueles já podem ter adquirido imunidade híbrida e, por isso, correm um risco extremamente baixo de desenvolver covid-19 grave. E por isso destacam também que “não é claro, neste momento, que a redução do risco de covid-19 por reforços adicionais de vacinação supera os efeitos adversos gerais em populações com um risco basal muito baixo, como em crianças e adultos jovens saudáveis”.

    E mesmo que isso aconteça, “considerações de custo-benefício seriam desfavoráveis”, admitem, defendendo assim “fortemente a abstenção de recomendações para a vacinação em massa, por exemplo, em crianças e adultos não idosos saudáveis com uma quarta dose de vacina, a menos que tal política se torne apoiada por evidências suficientes”, dizem os investigadores.

    Saliente-se que, por exemplo, na Dinamarca, a vacinação contra o SARS-CoV-2 para crianças saudáveis com idade inferior a 18 anos foi geralmente interrompida, mesmo para a primeira e segunda injecções.