Categoria: Recensões

  • O  herói niilista

    O herói niilista

    Título

    Niels Lyhne

    Autor

    JENS PETER JACOBSEN (tradução: Elisabete M. de Sousa)

    Editora

    Antígona (Junho de 2024)

    Cotação

    12/20

    Recensão

    Niels Lyhne, a obra de referência do dinamarquês Jens Peter Jacobsen, um dos precursores do naturalismo na literatura no seu país escrito em 1880, é considerado uma obra-prima. O livro explora temas profundos como a procura da identidade, a luta contra as convenções sociais, e a complexidade dos sentimentos humanos.

    O romance narra a vida do protagonista homónimo, um jovem idealista e sonhador que luta para reconciliar as suas aspirações artísticas e filosóficas com a realidade dura e, muitas vezes, decepcionante da vida. “Niels Lyhne era tolhido por certa timidez, filha de uma repugnância instintiva em ousar e neta de um sentimento confuso de falta de personalidade. Vivia constantemente em luta com essa timidez; ora lhe dava nomes injuriosos, para excitar a si próprio contra ela, ora procurava interpretá-la como uma virtude inerente à sua natureza ou, mais ainda, a marca da sua individualidade e das suas aptidões. Mas, de qualquer modo que a considerasse, sempre a odiava como a uma imperfeição secreta, a qual, por melhor que fosse dissimulada aos outros, não poderia sê-lo à sua própria consciência e que lá estava sempre para humilhá-lo. E invejava o desembaraço confiante daqueles que não temem pronunciar palavras cheias de consequências, que não se incomodam com estas enquanto não se tornam inelutáveis. Essas pessoas davam-lhe a impressão de centauros: pensamento e ação unidos, como o homem e o cavalo, num só corpo. Enquanto ele se dividia em pensamento e ação descontinuados, como um cavaleiro separado da sua montaria.”

    O livro aborda temas como a perda da fé religiosa, a procura de um sentido, e o confronto entre o idealismo e a realidade: “- Não há Deus, e o homem é o seu profeta! – disse Niels com amargura e também com tristeza.  -Sim, pois não! – esclareceu Hjerrild, e acrescentou: – O ateísmo é ilimitadamente prosaico, e o seu objetivo, afinal de contas, é nada mais do que uma humanidade desiludida. A fé num Deus providencial e justo é a última grande ilusão da humanidade. O que acontecerá quando também ela se perder? Ter-se-á tornado mais culta, mais rica, mais feliz?… Não creio!”.

    Jacobsen utiliza a vida de Niels como um microcosmo para explorar questões existenciais maiores, como o significado da vida e a inevitabilidade da morte. A desilusão de Niels com as instituições estabelecidas e os seus conflitos internos refletem a atmosfera de dúvida e mudança que caracterizava a Europa no final do século XIX. “- (…) Os homens que estão para morrer não têm teorias, e é completamente indiferente que as tenham. As teorias são apenas para ser vividas, só são úteis durante a vida. Que importa ao homem morrer com esta ou aquela teoria? Acredite-me, nós todos temos lembranças luminosas e suaves da nossa infância. Já vi morrerem muitos homens e sei que sempre é um consolo despertar essas lembranças. Sejamos honestos: podemos ser o que bem quisermos, jamais conseguiremos afastar Deus do céu, o nosso cérebro imaginou-o lá em cima tantas vezes que ele acabou por se introduzir na nossa mente ao som de sinos e de canções, desde que éramos pequeninos…”

    Os personagens de Niels Lyhne são ricamente desenhados e profundamente humanos. Niels, como o protagonista, é complexamente desenvolvido. A sua caminhada entre um idealismo juvenil para um ceticismo resignado é tanto uma tragédia pessoal quanto uma crítica às expectativas sociais e culturais da época.

    O livro traz uma série de recomendações de peso: “Um livro dos esplendores e das profundezas.” Rainer Maria Rilke; “Um dos maiores romances ateístas já escritos e talvez o mais intenso.” James Wood; “O romance do crepúsculo do artista e do indivíduo.” É ainda uma obra-prima que marcou Franz Kafka, James Joyce e Thomas Mann, como confessaram os próprios.

    No entanto, o seu estilo lírico e descritivo, as suas descrições da natureza e dos estados emocionais embora vívidas e evocativas, conseguindo criar uma atmosfera introspectiva e meditativa, é tanto uma força quanto uma fraqueza do livro. Poderemos apreciar a beleza da sua linguagem, mas o seu ritmo é demasiado lento e a narrativa, por vezes, excessivamente contemplativa.

  • A queda de um jovem discípulo

    A queda de um jovem discípulo

    Título

    Hans: sob o peso das rodas

    Autor

    HERMANN HESSE (tradução: Paulo Rêgo)

    Editora

    Dom Quixote (Abril, 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Nascido a 2 de julho de 1877, em Calw, Alemanha, o romancista e poeta, Hermann Hesse, viria a morrer em Montagnola, Suíça, em 1962. Em 1946 foi laureado com o Prémio Nobel da Literatura pela sua obra, cujo tema principal está associado ao esforço que é necessário para romper com os modos e padrões de comportamento estabelecidos pela sociedade, a fim de se encontrar e construir um caminho próprio e a identidade individual.

    Esse foi, aliás, um dos seus desideratos existenciais, bem plasmado em diversas obras que refletem a sua própria jornada. Razão por que parte delas se reveste de um carácter autobiográfico, como é o caso de Siddhartha (Editora Bis) e O lobo das estepes (Publicações Dom Quixote). 

    Hans: sob o peso das rodas  é claramente um romance autobiográfico, baseando-se na sua experiência enquanto aluno no seminário de Maulbronn. Como descendente de uma família de missionários pietistas, desde cedo foi preparado para seguir o mesmo caminho. Embora fosse um aluno exemplar, não conseguiu adaptar-se e abandonou o seminário menos de um ano depois – tal como Hans Giebenrath, o jovem de quem este livro narra a história.

    Hans é um jovem talentoso e dedicado que é pressionado para alcançar a excelência académica num ambiente escolar rigoroso e desumanizador – uma das críticas e lutas de Herman Hesse ao longo da sua vida. Assim é a trajetória de Hans, marcada pelo esforço para corresponder às expectativas impostas pelo seu pai, professores e pela sociedade.

    O pai, o Sr. Giebenrath, admirava toda esta aplicação, cheio de orgulho. Na sua cabeça lerda morava o ideal de muitas pessoas limitadas e insignificantes: ver crescer um ramo que, a partir do seu tronco, suba e atinja uma altura digna de ser olhada com um respeito quase inconsciente” (p. 63).

    Hans é um jovem sonhador e ambicioso, ao mesmo tempo vulnerável e sensível que acaba por ceder à tensão de um sistema de ensino exigente e elitista. Depois de ingressar no seminário, no qual muito poucos conseguem entrar após um exame para o qual se preparou abdicando da sua infância e adolescência, torna-se amigo íntimo de Hermann Heilner.

    Este Heilner era mesmo um tipo esquisito. Um entusiasta, um poeta. Já antes se admirara com o comportamento dele. Era do conhecimento geral que Heilner trabalhava muito pouco, e, no, entanto, sabia bastante; era capaz de dar boas respostas, embora sempre mostrasse desprezo por tais conhecimentos” (p. 87).

    A amizade de Hans com Heilner, um jovem rebelde, é o princípio do fim da vida académica de Hans, que se vê dividido entre a completa dedicação a uma vida exigente e, eventualmente, desenxabida, e a possibilidade de vivenciar outras experiências que lhe permitam explorar o mundo de forma mais livre e solta.

    Ao longo desta narrativa reflexiva e contemplativa, o leitor fica agarrado à transformação de Hans, um rapaz talentoso e de futuro académico promissor, que se perde e desorienta num espaço opressivo.

    Estamos perante uma narrativa poderosa e trágica que ressoará, em particular, nos leitores que alguma vez tenham vivenciado e/ou sucumbido às expectativas sociais. É um lembrete sombrio, mas necessário, das consequências de uma vida vivida sob a constante pressão para cumprir padrões externos.

    Por intermédio da sua prosa notável e introspetiva, Hesse convida a refletir sobre os valores que realmente importam na busca de uma vida plena e autêntica. As obras que se seguem como que demonstram essa busca do autor.

  • Um ‘life hack’ com um filme de terror pelo meio

    Um ‘life hack’ com um filme de terror pelo meio

    Título

    79 vozes pela literatura financeira

    Autor

    AAVV.

    Editora

    Oficina do Livro e ISCTE – Executive Education (Junho de 2024)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Ao pegar neste livro tirei de imediato duas conclusões: há algum tempo que não pegava num livro tão pesado; notei em mim uma enorme desconfiança sobre a autoria de alguns dos textos apresentados como tendo saído da pena de ilustres da política, gestão, economia, academia e dos media.

    O ISCTE, os autores da obra e a editora que tenha paciência comigo.

    Passo a explicar. Ao todo, são 605 páginas (numeradas) de ‘vozes’ ilustres (Mário Centeno, António Nogueira Leite, Maria Luís Albuquerque, Cristina Casalinho, …) em prol de  ‘uma melhor e maior independência ao longo da vida’. Assim que comecei a ler, imaginei alguns dos autores a tentar encontrar espaço na agenda para reflectir, esboçar, desenvolver e escrever um texto ‘por uma melhor e maior independência ao longo da vida’.

    À medida que ia lendo, esforçava-me para não pensar no assessor de comunicação que teria escrito este ou aquele texto. Tentava não imaginar equipas em departamentos a juntar as estatísticas, o background e as referências que seriam usados neste ou naquele texto ‘por uma melhor e maior independência ao longo da vida’.

    Ser jornalista dá nisto. Em vez de estar a ler o livro, a mente foge para as perguntas: foi mesmo esta pessoa a escrever esta frase? E ‘este’ teve mesmo ‘pachorra’ para escrever isto tudo? Terrível. Não estava a funcionar.

    Decidi então partir do princípio de que cada palavra, vírgula e ponto nos ‘ii’ saíram mesmo – mesmo – da pena de cada um dos 79 autores mencionados. Corria tudo bem, quando comecei a pensar na reforma que, segundo um dos autores, provavelmente não irei receber.  Resumindo – que terei esgotado o espaço que me foi atribuído para nesta rubrica –, se o(a) leitor(a) for como eu, vai ter vontade de saltar alguns dos autores e algumas das páginas.

    [Alerta de spoiler: se não aprecia filmes de terror, não espreite a página 422, onde a bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados, Paula Franco, conta como, a partir da iniciativa de literacia financeira ‘Joaninha e os Impostos’, foi criada a versão ‘Joaninha e a covid-19’, uma “história que promove o cumprimento das normas de saúde pública e ensina os jovens a seguir as instruções da Direcção-Geral de Saúde”. De imediato, ocorreu-me como faz falta ‘A Joaninha e a evidência científica’ e ‘A Joaninha e o pensamento crítico’, tal foi o nível de analfabetismo científico detectado na população portuguesa durante a pandemia, observado pelo nível de ‘cumpridores’ de instruções sem qualquer fundamentação na evidência. Por acaso, um amigo, o Luís, irá achar que até faz sentido: impostos e instruções da DGS na covid-19 têm exactamente a mesma fundamentação “científica” e exigem a mesma atitude acrítica, para não dizer acéfala, além de contarem com, pelo menos, algum tipo de analfabetismo cívico.]

    Por outro lado, encontrará autores que vai querer ler duas vezes para reter melhor a informação (ou para compreender melhor o que escreveram). Mas, no fim de contas, provavelmente este será um livro que devia ser “usado por todos”. Uma espécie de “life hack” como escreve Nuno Pereira no seu capítulo, referindo-se à literacia financeira. Com a excepção da parte de ensinar os miúdos a executar instruções só porque sim. É que não há melhor ‘life hack’ do que conseguir pensar por si (a não ser que consiga mover objectos com a mente).

  • Relações vorazes

    Relações vorazes

    Título

    Mandíbula

    Autora

    MÓNICA OJEDA

    Editora

    Dom Quixote (Março de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Um grupo de adolescentes de um meio privilegiado, conservador, cria uma irmandade de devoção ao Deus Branco, figura mística que simboliza o terror.

    As cerimónias livres ou ritualizadas são oficiadas num “templo” descoberto pela líder do grupo, Annelise. “Quero mostrar-vos uma coisa [… ] e desde então visitavam-no às escondidas, depois das aulas, para pintar as paredes, cantar, dançar ou não fazer nada, apenas para o habitarem durante algumas horas vazias, com a sensação às vezes frustrante, outras vezes excitante […] que pressentiam nas articulações mas ainda não sabiam explicar.”

    O erotismo perigoso, ousado, da adolescência, é invocado de forma subliminar e é sublimado nas histórias de terror, ensaios para as creepypastas, tributos literários a Edgar Allan Poe e Lovecraft.

    As adolescentes saltitam do mundo real, regulado e visceral para o mundo imaginário, secreto e com regras paranormais deslizando do universo pré-adulto para o infantil, atravessando fronteiras sensoriais e psicológicas fluidas, típicas dum estado transitório da adolescência.

    As emoções e sensações assaltam constantemente a razão: “[…] Enfim quero assegurar-lhes que não lhe estou a mentir: qualquer pessoa é capaz de distinguir a realidade dum pesadelo, ou o real do imaginário. Apenas os loucos esquecem a diferença, mas eu não estou louca. Sei o que vi. Além disso, mesmo que o tivesse imaginado, mesmo que essa aparição branca estivesse estado apenas na minha mente, porque teria de ser menos real? A minha mente existe e tudo o que ela projecta sobre o mundo também. […] Porque no fim de contas o que importa não é o real mas sim o verdadeiro.”

    Annelise, com a mandibula de tubarão na fronte, roubada do espolio de ciências naturais do colégio, uma coroa de força predatória, primitiva, metamorfoseia-se em sacerdotisa pagã.

    O triângulo de jovens mulheres, as duas ‘bestfriend forever‘, Annelise e Fernanda, e a infeliz e insegura professora Clara, partilham relações disfuncionais com as progenitoras, de diferentes expressões: indiferença, humilhação e controlo. Esse laço invisível e oculto, motor de sentimentos de vazio, abandono e perda, despoleta a traição de Annelise, o rapto de Fernanda e a loucura temerosa de Clara admiradora de Rimbaud: “A verdadeira vida está ausente. Não estamos no mundo, escreveu o poeta em Uma Temporada no Inferno”.

    O medo surge como uma vertigem de desejo e rejeição controlada pela dor e pelo risco ritualizado, uma liturgia iniciática. “Mas o medo era biológico […] e possuía um idioma sem gente”.

    A imagem poética da mandíbula simboliza a relação voraz, por vezes predadora no sentido literal e metafórico, das relações de ‘amitié amoureuse’ entre mulheres e entre mães e filhas, uma narrativa mítica de dor, erotismo e ‘dark side of the soul‘.

  • Autobiografia de um romancista singular

    Autobiografia de um romancista singular

    Título

    Romancista como vocação

    Autor

    HARUKI MURAKAMI (tradução: Inês Rocha e Maria João Lourenço)

    Editora

    Casa das Letras (Março, 2024)

    Cotação

    13/20

    Recensão

    Haruki Murakami nasceu em 1949, na cidade de Quioto, Japão. Cresceu em Kobe e estudou teatro na Universidade Waseda em Tóquio. Começou a escrever aos 29 anos, tornando-se, ao longo das décadas seguintes, num dos mais aclamados e populares romancistas contemporâneos. Ouve a canção do vento foi o seu primeiro romance, com o qual ganhou o Prémio Gunzou de Literatura para novos escritores, em 1979. A este, seguiu-se Flíper, 1973. Estes dois curtos romances foram publicados, em Portugal, em conjunto pela Casa das Letras (2016), a editora que nos trouxe a maior parte das suas obras.

    O seu reconhecimento internacional viria acontecer com obras como Norwegian wood (1987) [2016, Civilização Editora], Kafka à beira-mar (2002) [2006, Casa das Letras] e 1Q84 (2009) [2011, Casa das Letras].

    São vários os prémios internacionais de literatura que Murakami ganhou, como por exemplo, o Prémio Tanizaki (1985), com O impiedoso país das maravilhas e o fim do Mundo [2013, Casa das Letras], o Prémio Franz Kafka (2006), com Crónica do pássaro de corda (Casa das Letras), o Athens Prize for Literatureem 2014, com a trilogia 1Q84. Em 2009, venceu o Prémio Jerusalém pela sua obra.

    Murakami também é tradutor e escreveu várias obras de não-ficção, de entre as quais se destacam Música, só música (de que se falou aqui), e Auto-retrato do escritor enquanto corredor de fundo, de 2009 – um livro recomendado pelo Plano Nacional de Leitura. A importância da corrida, como elemento da sua rotina diária, é, aliás, um dos temas deste Romancista como Vocação, original de 2015.

    Nesta obra, constituída por 12 capítulos, o autor japonês conta-nos, de forma aberta, simples e honesta, a sua trajetória como escritor, dando a sua perspetiva sobre a arte de escrever, que, no seu caso, é marcada pela fusão do realismo mágico com referências à cultura pop, explorando temas como a solidão e a alienação nas sociedades contemporâneas. A banda sonora é, com frequência, a música jazz.

    Esta leitura concede ao leitor uma perspetiva intimista de como o autor desenvolveu o seu estilo único, influenciado pela sua paixão pela música e pela experiência de escrever noutra língua. Além dos aspetos técnicos da escrita, Murakami também dedica espaço ao propósito da literatura, ao papel do escritor na sociedade e à relação entre a vida pessoal e a escrita.

    Outro motivo que me levou a publicar estes «registos de discursos por fazer» prende-se com o desejo de reunir sistematicamente todas as reflexões que partilhei em diferentes lugares. Ficaria satisfeito se os leitores as encarassem como uma compilação abrangente (à data) das minhas opiniões sobre a arte de escrever romances” (p. 11).

    O primeiro capítulo é sobre esse ofício de escritor, “aquele que tem necessidade de fazer o que é desnecessário” (p. 26). É o seu ponto de vista, como é pessoal a perspetiva que perpassa todo o livro. Não é, por isso, desengane-se o leitor, um manual de escrita de ficção. Se é verdade que Murakami descreve o seu processo criativo, também reforça aquilo que é sobejamente sabido: trabalho, trabalho, trabalho e rotinas, rotinas, rotinas. A sua persistência e perseverança estão aliadas ao seu estilo de vida ativo e regrado, no qual a corrida diária é obrigatória. O autor enfatiza, assim, que a escrita além de ser uma vocação, é um trabalho árduo que exige muita disciplina e profunda dedicação. Ainda que seja interessante enquanto autobiografia, este livro fica aquém do já citado “Auto-Retrato do Escritor Enquanto Corredor de Fundo”.

    No capítulo 2, Murakami discorre sobre como deixou a sua atividade anterior – era proprietário de um bar de jazz, em Tóquio – para se tornar escritor a tempo inteiro.

    Para cada romance seleciona matéria-prima de uma das suas, por si designadas, gavetas mentais de ideias, memórias, personagens. Os capítulos 4 e 5 desvendam um pouco esse processo criativo e original. Na verdade, é provável que os que procuram receitas (não há, já se sabe) se sintam dececionados. Talvez não sejam os únicos.

    No capítulo 7 – Uma ocupação infinitamente física e individual – reforça a importância, para si, de manter o corpo saudável e em boa condição física para ser capaz de se sentar durante horas e horas a escutar o que tem guardado nas suas gavetas mentais. Murakami descreve o processo de trabalho exaustivo por que cada obra passa, implicando, pelo menos, quatro revisões. A primeira versão é escrita livremente, sem um roteiro definido. Na segunda, elimina as eventuais contradições das personagens; na terceira, adiciona detalhes aos cenários e ajusta os diálogos; e, na quarta, faz correções gerais antes de deixar o texto “descansar” e fazer a última revisão.

    O tema do capítulo 3 – A propósito dos prémios literários – é o principal motivo para a classificação atribuída. Arrisco a dizer que, para a maioria dos fãs (em que me incluo) acaba por ser irónico que, juntamente com Philip Roth, Murakami seja visto como um eterno candidato ao Nobel de Literatura.

    Desde Sputnik, meu amor (2005, Casa das Letras) que a sua escrita envolvente me impele a ler de uma assentada a maior parte dos livros que me chegam às mãos. Agora, ao ler as técnicas a que o autor recorre fica, de certa forma, justificado o sentimento ambivalente que alguns dos livros me causaram. Com efeito, livros houve em que me questionei se a fraca qualidade do texto em português se devia à tradução se à redação original. Mas como reconhece o autor, isso nunca impediu que continuasse a ler as suas histórias fantásticas, com enredos originais e repletos de personagens fantásticas, excêntricas e solitárias.

    Por isso, os leitores que são muitos e também eternos admiradores do escritor não precisavam de um tão extenso relambório de alusões sobre pertencer ou não aos círculos literários, ou sobre o porquê de ser ou não ser nomeado para mais prémios. Bastava, talvez, ficar a ideia de que sim, senhor, se sente frustrado pelas críticas que recebeu, em especial no Japão, e por não ser reconhecido como escritor de primeira linha no seu país – que justificam o capítulo 11 – Ir para o estrangeiro: novas fronteiras. Nós, os leitores não japoneses, agradecemos essas opções por viver além-mar e ansiamos por mais e novos romances.

    No final, talvez apenas reste a este, e a outros grandes romancistas:

    Against criticism we can neither protect nor defend ourselves; we must act in despite of it, and gradually it resigns itself to this” (frase atribuída a Goethe).

  • De quantos fragmentos se vive uma vida?

    De quantos fragmentos se vive uma vida?

    Título

    Os detalhes

    Autor

    IA GENBERG (tradução: João Reis)

    Editora

    Dom Quixote (Maio, 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Ia Genberg nasceu em Estocolmo, Suécia, em 1967, e começou a sua carreira como jornalista. Publicou o seu romance de estreia em 2012, Söta fredag [Doce sexta-feira]. Seguiram-se outros livros: Belated farewell [Adeus tardio] (2013) e a coletânea de contos Small comfort [Pequeno conforto] (2018).

    Os detalhes, de 2022 agora publicado em Portugal pelas Edições Dom Quixote, é o seu terceiro romance, e foi um bestseller instantâneo na Suécia, com o qual ganhou o Prémio August para melhor livro de ficção, em 2022, e o Prémio Literário Aftonbladet, em 2023. A tradução inglesa de Kira Josefsson foi selecionada para o International Booker Prize 2024.

    Este romance, elaborado a partir de quatro memórias não lineares, enquadra-se nesta sociedade pós-moderna, caracterizada pela crescente fragmentação da(s) vida(s) – para usar o conceito de Zygmunt Bauman –, cuja compreensão, ou procura desse entendimento, passa, também, por juntar os pedaços de mosaicos mais ou menos estilhaçados. É até provável que esse seja um dos motivos por que terá agradado e continua a agradar os leitores que, pese embora não encontrem um fio condutor na história, não têm como parar a leitura que se desejaria mais lenta. Pelo menos para atentar aos detalhes de cada uma das quatro personagens que a autora constrói e a partir das quais se poderia, eventualmente, compreender a essência e identidade, também, fragmentada da narradora.

    Poderia, na medida em que tal como a questão que se formula no final – “Quem é o sujeito real do retrato, a pessoa que está a ser pintada ou a pessoa que segura o pincel?” –, a dúvida persiste.

    E perdurará, possivelmente, uma vez que é por referência ao outro que nos habita, ou nos habitou, que conseguimos construir a nossa identidade, mesmo que de forma precária. A busca identitária é um dos temas latentes deste romance. O convite que a autora nos formula é, no limite, o de procurarmos, nas nossas memórias, os outros que nos fizeram ser o que somos hoje.

    O poder da memória e a sua valorização estão inerentes à condição humana. São as histórias e estórias que contamos a nós próprios que nos auxiliam a compreender e, quem sabe, a responder às grandes questões: Quem sou eu? De onde venho? Para onde vou?

    Ia Genberg aventura-se a escavar esse artefacto humano, relembrando que a memória é volátil (como é a natureza humana) e que é, profundamente, influenciada pelo ângulo de onde observamos o passado. Neste caso, é a partir de um estado febril, recorrendo a livros oferecidos, trocados e até esquecidos.

    A evocação do passado pode, com certeza, espoletar a necessidade de o explicar ou compreender. Não obstante, a pessoa do presente reconhece que as emoções que afloram decorrem de lembranças mais ou menos imperfeitas e fragmentadas. O leito febril em que narradora se situa é, por isso e desde logo, um jogo incerto de verdade e consequência. Assim, sob o efeito da febre e da nostalgia, a narradora, uma mulher de meia-idade, revisita as suas histórias vividas com quatro pessoas/referentes que ficaram impregnadas na sua pele identitária.

    Johanna é o primeiro amor da narradora que deixa uma marca indelével na sua vida. A relação com Johanna é marcada pelo gosto divergente de autores, fomentando discussões e reflexões que acabam por gerar uma profunda ligação literária. A troca de livros, em particular, “A trilogia de Nova Iorque”, de Paul Auster, simboliza o vínculo intelectual e emocional que partilhavam. O facto de Johanna ser uma apresentadora famosa torna a memória ainda mais vívida, pela presença constante de uma ausência.

    Niki, a excêntrica companheira de casa da narradora durante a faculdade, desapareceu sem deixar rasto, mas as marcas subsistem, tal a sua profundidade. A convivência com Niki é retratada como uma caça interminável a objetos perdidos, simbolizando a busca por algo mais profundo na vida. A sua amizade forte, mas frágil, é ilustrada pela lembrança de um exemplar desgastado de A filha do Rei do Pântano, de Birgitta Trotzig, que restou como um vestígio da relação desfeita.

    Alejandro, um dançarino chileno-alemão, é descrito como uma tempestade que varreu a vida da narradora com um caso de amor ardente e breve. A relação com Alejandro é caracterizada por uma gravidade emocional que assusta e fascina a narradora. Embora de curta duração, a força das memórias das experiências vividas continua a moldar a perspetiva da narradora sobre o amor e as relações íntimas.

    Birgitte, a mãe da narradora, é uma figura complexa e evasiva, moldada por traumas de infância. Descrita como uma mulher à deriva, Birgitte deu à luz a narradora durante um surto psicótico, influenciando a abordagem cautelosa da narradora no que se refere à confiança e à intimidade. A narrativa de Birgitte é, talvez, a mais pungente, pelo modo como explora a dinâmica mãe-filha pela lente do perdão e compreensão tardia.

    A estrutura fragmentada do livro reflete, assim, a natureza complexa e dispersa da memória, resgatando momentos que se transformam numa prosa lírica e precisa, ao mesmo tempo introspetiva e reflexiva.

    “Os Detalhes” é um romance que requer uma leitura atenta e paciente, oferecendo aos leitores uma exploração rica e complexa das emoções humanas e das interações prosaicas da vida quotidiana. Mosaicos feitos histórias para dar substância a cada uma das vidas da nossa existência.

    “Vivemos muitas vidas ao longo da nossa vida – vidas mais breves, vidas secundárias, vidas «mais pequenas» com pessoas que aparecem e desaparecem, com amigos que nunca mais revemos, com filhos que crescem e saem de casa – e nunca sei qual das vidas minhas deve, supostamente, servir de moldura” (p. 127).

  • Delícia poética em dose dupla

    Delícia poética em dose dupla

    Título

    Fundação Gramaxo: Álvaro Siza/
    Claustro do Rachadouro, Mosteiro de Alcobaça: Eduardo Souto de Moura com Luís Peixoto

    Autor

    Vv. Aa.

    Editora

    NMB (Novembro de 2023)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    A recensão terá de ser dupla, porque nada melhor do que escolher não escolher, ter tudo, sorver de uma vez e juntar bolas de gelado de sabores distintos.

    Os dois livros que vos trago agora para a minha tímida apreciação vieram à luz para exibir duas artes: a arquitectura e a fotografia…

    Esperem, deixem-me expressar melhor, porque estão ali dentro, de ambos, também as palavras. As vozes. E brilhos e opacidades. Porque em cada um dos livros subsistem as escolhas, as diferentes pessoas, os diferentes caminhos: o “do” Siza tem as folhas a brilhar como mármore polido, a colarem ligeiramente nas falangetas; porém, o “do” Souto, tem a calmia de papel baço, macio a deslizar com outro tipo de som mais pesado.

    Como na vida, um projecto editorial (um projecto, uma arquitectura), mais ainda na era da polarização, colhe significado nas suas finas diferenças. Tal, não tem de comer à consistência, mas se o fizer – e caberá ao leitor decidir se o fez – que mal tem? Só tem consistência aquilo que, porque perene, se aparenta a certa altura artificial ao ponto de nos ser indiferente. Queremos isso de uma obra? Uma obra nunca acaba, se acabasse, que horror seria. (E, no entanto, lá está, logo na página do título, a data de “nascimento” e “morte” da dita cuja!)

    Agora não esperemos, claro, escolhas sem consequências. E que mal tem? Nada melhor que observar muros e ver o traço da caneta ali, visivelmente invísivel, consequente.

    Mas vamos a factos, para que não se aborreçam comigo quando divirjo:

    O livro da Fundação Gramaxo começa pelos esquissos do autor das obra. O Siza, claro está. “Esquissos” – para o leitor menos acostumado com o maravilhoso léxico dos entes que arquitectam – nada mais são do que esboços, pensamentos desenhados que, algures no tempo, decidimos nomear assim para dar uma sonoridade do étimo francês (talvez porque a cultura ainda era deles). Diria que é o momento “Era uma vez” do arranque da narrativa.

    Já o livro do Claustro do Rachadouro, contém também os esquissos, mas só nos mostra essas provas em dois momentos, já bem no meio da ponte, primeiro pela caneta do Souto Moura e ocasionais lápis nervosos, depois, já dactilografada a obra a acontecer com muitas mãos, pelo elegante traço do Luís Peixoto. O momento “Era uma vez” deste livro bate-nos antes em cheio no nariz, com Francisco Pato de Macedo no timbre próprio dos historiadores, não fossemos nós esquecer que aqui falamos do Mosteiro de Alcobaça, e o respeitinho é muito lindo (e bem entendido fique que o desajeitado gracejo de minha parte presta a devida homenagem à aula prestada sobre esta história, de um autêntico luxo).

    Depois começam então as histórias, onde a fotografia irá brilhar em todo o seu esplendor de captura do tempo, sempre acompanhada por palavras várias, dos outros, dos autores, dos críticos, das testemunhas criteriosamente escolhidas para estes actos particulares. No livro da Fundação Gramaxo temos o privilégio do ensaio fotográfico de António Júlio Duarte, desde o ferro armado às cadeiras, com direito a espreitar pela fechadura do atelier do arquitecto (certamente num domingo de manhã, vazio, mas com vestígios do café e dos cigarros do Arquitecto); no livro do Claustro do Rachadouro o prazer da aturada reportagem de André Príncipe, ainda mais focado da viagem desde o embrião in utero ao bebé nascido, em perspectivas puras, descarnadas e verdadeiras. Essenciais. Para relatar a verdade de uma pré-existência e de um processo de reabilitação cuidadoso.

    E, por fim, o capítulo que, normalmente, o meu querido público julga ser o busílis desta arte: os desenhos técnicos. Tudo ali, limpo e lindo, bem mastigadinho e depuradinho, como se não estivessem centenas de milhares de escolhas em cada inflexão da espessura da linha, já brilhantemente editados por Macedo Cannatà num dos casos, e requintadamente afinados por Luís Peixoto e Carvalho Bernau no outro.

    Acrescento que as palavras de Jorge Figueira, no primeiro livro que vos comento, são uma delícia poética a convocar as artes todas do mundo para o Siza, assim, inteiras e gordas. Pergunto-me sempre, se as palavras conferem significados novos ou os lêem de facto lá. Suponho – ou aliás, noto – que falar sobre o alheio é bem mais fácil, basta escolher que música tocar. Gostei particularmente desta música neste livro. Voltarei a ler dentro de vinte anos para confirmar como envelheceu. Do texto do Frampton? Nada a dizer, repetições do termo “miraculoso”, que julgo adequadas quando a crítica se pronuncia sobre o que é português, mas que a tradução portuguesa prontamente corrigiu. Ironias que talvez se permitam numa língua, mas não noutra.

    Ah! E já agora, os livros também são bilingues. Assim, como quem não quer a coisa, para falar de escolhas. Resta-me apontar apenas, ao Nuno Miguel Borges, um pedido para edições futuras, se a tal me atrevo, arranca todos os livros na página 3 com poetas, daqueles mesmo a sério, com calo tingido de tinta no dedo da mão dominante e tudo.

  • Uma obra de denúncia e reflexão

    Uma obra de denúncia e reflexão

    Título

    Jenipapo Western global

    Autor

    TITO LEITE

    Editora

    Todavia (Maio de 2024)

    Cotação

    20/20

    Recensão

    Embora o título do novo livro de Tito Leite, Jenipapo Western, remeta à clássica ideia dos faroestes do velho oeste americano transplantado para a aridez do nordeste brasileiro, trata-se de uma obra que transcende esse estereótipo para realizar uma imersão nas razões histórico-sociológicas que forjam a natureza e a mitologia de uma cidade. Ali onde a força intransponível das circunstâncias opressivas prevalece e compõe a ordem de um lugar sem lei, tem no seu DNA as disputas políticas, os interesses econômicos e revanches familiares e os desencontros afetivos — caldo de uma cultura pernóstica que delimita o medievalismo das relações.

    Os gêmeos Sandro e Ivanildo metaforizam esse tempo e esse lugar, numa Jenipapo conflagrada pelo acirramento de tensões que atravessam gerações, onde a lavoura de algodão é vocação comercial da região, cultura que se firmou com base na exploração da mão de obra por coronéis que se impuseram pela violência e que tem no poderoso Roberto, a mão-de-ferro que conduz os negócios, o destino dos trabalhadores e influencia a vida da cidade, acobertado por jagunços que espalham o terror contra quem ousa afrontar ou não se submeter a esse patronato espoliador e sem escrúpulos.

    Tito Leite conduz o romance num viés narrativo que empresta frescor poético à linguagem que espelha a crueza e a dura realidade de Jenipapo e de seus habitantes afetados econômica, psicológica e emocionalmente por um sistema de dependência e cativeiro, nos moldes do velho cangaço. Quando poucos ousam peitar as injustiças e a brutalidade, à exceção de Ivanildo, alcunhado como “o sonhador”, e que a duras penas, tenta rebelar-se solitariamente contra o domínio ditatorial de Roberto, este prepara tocaia para atentar contra a vida daquele desafeto, mas é o seu irmão Sandro, sempre passivo e acovardado diante da força totalitária que atormenta Jenipapo, quem vai ser atingido e perder a vida.

    Numa sequência de vinganças e violências, a história de Jenipapo vai sendo escrita com sangue e lágrimas, um espectro que se repete em muitas regiões do país, onde os conflitos de classes, o latifúndio e as desigualdades constituem uma geografia de confrontos, aviltamento da vida e do açodamento da barbárie. E o autor soube dosar a pílula sem dourá-la, ao repercutir esse universo nebuloso, com suas diatribes e idiossincrasias, amalgamando essa escrita densa e intensa com a devida pulsão reflexiva e influxos filosóficos sobre esse ambiente de contradições e dilemas, sem cair na tentação da caricatura e do reducionismo — lembrando-nos o que já escreveram Machado de Assis em “Dom Casmurro” (“Só há um modo de escrever a própria essência, é contá-la, o bem e o mal”) e Paul Auster (“Um escritor só pode ser bom se tiver a honestidade de ir ao fundo, ao céu, ao inferno, doa o doer”).

    Como já percebido em seus livros anteriores, a exemplo do romance “Dilúvio das almas” (Ed. Todavia, 2022), como também perpassa toda a sua produção poética, Tito Leite é um exímio e seguro auscultador dos abismos sociais e humanos, um ourives da palavra. Entre o lirismo e a escatologia, na contramão da corrente requentada do identitarismo, das pautas e militâncias que dominam a literatura brasileira contemporânea,  estamos diante de uma prosa  com requintes estilísticos, mas acutilante em sua proposta de denúncia e reflexão sobre um Brasil que ainda preserva anacrônicos valores e modos de convivência e dominação. O autor areja e traz vitalidade ao cenário ficcional, ao esboçar personagens marcantes e viscerais a partir de seu testemunho existencial, explorando os mais recônditos territórios que compõem o imaginário e o inconsciente pessoal e coletivo, na linha do que fizeram um Graciliano Ramos, um José Lins do Rego, uma Rachel de Queirós e um Ariano Suassuna, que captaram não só o cáustico, mas também a humanidade desses viventes e sertões castigados pelo destino e sempre à margem da civilização, o que empresta à sua arte o mais amplo e genuíno sentido de universalidade.

    Escrito em português do Brasil.

  • O fiel amigo lascado em 1001 curiosidades

    O fiel amigo lascado em 1001 curiosidades

    Título

    Bacalhau: uma história global

    Autor

    ELISABETH TOWNSEND (tradução de Pedro Bernardo)

    Editora

    Bookbuilders (Dezembro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    “A minha música parece ter nela um gosto de bacalhau”, terá dito em certa ocasião o mais célebre compositor norueguês, Edvard Grieg (1843-1907), e quem somos nós para duvidar da sua interpretação. O certo é que o bacalhau é o rei incontestado de todos os peixes, tanto na Noruega como em Portugal, conferindo o seu gosto a muitos aspectos da nossa História e da nossa Culinária.

    Através de um breve livro (184 pág.), Elisabeth Townsend revela-nos um vasto conjunto de curiosidades acerca do afamado gadídeo, commumente conhecido como bacalhau-do-atlântico, ou mais pomposamente Gadus morhua, presença habitual sob múltiplas formas à mesa dos portugueses desde tempos imemoriais.

    O livro encontra-se dividido em seis capítulos: “O que é o bacalhau?”; “O bacalhau alimentou a Era dos descobrimentos, 500-1500”; “As guerras do bacalhau e a expansão da pesca, 1500-1976”; “O comércio leva o bacalhau aos quatro cantos do mundo, 1400-1970”; “A sustentabilidade no século XXI” e por fim um capítulo que ensina a “Conservar, comprar e preparar o bacalhau”. Destaque para um conjunto de páginas a cores extra-texto com reproduções de cartazes, quadros ou fotografias alusivas ao dito cujo, assim como à secção dedicada a receitas de bacalhau, que vão desde 1393 até aos dias de hoje, oriundas de vários países. De entre elas, salientamos a receita de Soufflée de morue, da autoria de Auguste Escoffier, a do Bacalao a la Vizcaína, ou ainda as nossas tradicionais de Bacalhau à Brás ou a do Bacalhau à Gomes de Sá.

    De acordo com a autora, o bacalhau-do-atlântico “tem entre 4 e 5 milhões de anos”, e não só foi testemunha como protagonista de alguns dos mais extraordinários momentos da história mundial, servindo de alimento para as explorações levadas a cabo pelos Viquingues nos mares do Norte e a sua chegada à América do Norte, ou para nutrir as tripulações portuguesas no caminho marítimo para a Índia.

    Aliás, Portugal, por causa dos Descobrimentos, foi um dos países responsáveis pela difusão do consumo de bacalhau salgado por todo o mundo, incluindo a variedade de confecções que lhe está associada. De entre as muitas receitas destacamos o esparregado de bacalhau, em Angola, confeccionado com bacalhau salgado, folha de mandioca, pimenta-da-guiné, pimento verde e óleo de palma, ou o chutney de bacalhau, em Goa.

    Apesar da sua abundância, não existem muitas espécies de bacalhau no reino piscícola. Além do bacalhau-do-atlântico (Gadus morhua), apenas se conhecem outras duas espécies pertencentes ao género Gadus: o escamudo-do-alasca (Gadus chalcogrammus) e o bacalhau-do-pacífico (Gadus macrocephalus). Dúvidas ainda subsistem acerca da natureza do bacalhau-da-gronelândia (Gadus ogac), a fim de se apurar que “é da mesma espécie ou se é vagamente aparentado com o bacalhau-do-pacífico”. Mas de todos eles, aquele que tem tido “o melhor desempenho comercial do mundo” e que se tornou “um alimento global” é sem dúvida o bacalhau do Atlântico Norte. Infelizmente, hoje em dia, devido ao aumento do seu consumo e à pesca excessiva, estamos “confrontados com a ameaça de extinção deste alimento essencial.”

    O grande bacalhau-do-atlântico é um peixe cheio de apetite e um omnívoro por excelência: “No estômago de bacalhaus atlânticos já se encontraram objectos inimagináveis, não comestíveis: uma aliança de noivado, parte de uma dentadura, fiapos de lã e roupas, botas velhas, cigarreiras, latas de óleo e bonecas de borracha, entre outras coisas”. Isso mesmo nos ilustra o pintor Pieter Bruegel na sua obra “Os peixes grandes comem os pequenos” (1556), reproduzida nesta edição.

    No meio de todas estas curiosidades, Elisabeth Townsend informa-nos de que “o maior bacalhau de que há registo”, foi pescado à linha, em Maio de 1895, ao largo da costa do Massachusetts (E.U.A.), pesava 96 quilos e media mais de 1,8 metros. Sobre o tempo de vida de um bacalhau, ficamos a saber que vai “de algumas horas a mais de 20 anos”, sendo que “as estimativas variam entre 20 a 25 anos, mas hoje em dia raramente passam dos 15 anos”. E como conseguimos calcular a sua longevidade? Pois bem, pelos vistos a Natureza encarregou-se de nos deixar uma pista: “Os cientistas descobriram que o bacalhau tem um osso no ouvido, ou otólito, no cérebro que pode ser usado para determinar a idade, tal como se faz com os troncos de árvore, quando contamos os anéis.”

    Para terminar, a autora revela mais uma curiosidade. Sabia que a Nigéria é um grande consumidor de bacalhau seco? Seguramente que a maioria dos leitores desconhecia este facto. Tal ficou a dever-se à Guerra Civil da Nigéria (1967-1970), também chamada de Guerra do Biafra, onde milhares de pessoas morreram devido à fome. No âmbito da ajuda internacional que o país recebeu no pós-guerra, contava-se a participação da Noruega, precisamente, com uma doação de bacalhau seco, uma vez que tal não carecia de refrigeração e continha todos os nutrientes essenciais para alimentar os nigerianos. “Hoje em dia, o bacalhau seco faz parte da dieta nigeriana e é uma parte importante da cultura culinária da Nigéria”, expressa em múltiplas confecções, onde tudo deste magnífico peixe se aproveita e não há desperdício.

    Eis um livro pequeno, breve, que se lê de um fôlego, mas abarrotado de curiosidades que nos aumentam a afeição que já manifestamos por este fiel amigo. Que ele nunca nos falte à mesa.

  • A maldição da casa assombrada

    A maldição da casa assombrada

    Título

    Caruncho

    Autora

    LAYLA MARTÍNEZ (tradução: Guilherme Pires)

    Editora (Edição)

    Antígona (Março de 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Carancho é, sobretudo, uma história de fantasmas enterrada num armário familiar carregado de esqueletos e pecados. As narradoras são uma avó e uma neta que se vão revezando capítulo, após capítulo. Mas há outras duas mulheres presentes na história, as mães de ambas que várias vezes são recordadas também por ambas.  Mas a personagem principal é a casa. Uma casa assombrada. Uma casa que respira. Uma casa que contém corpos e segredos. Uma casa que é visitada por fantasmas, por anjos que revestem o telhado como insetos e por santos que queimam os lençóis com as suas auréolas. As quatro gerações de mulheres estão presas à casa, cercadas de fantasmas e de anjos insectóides.

    A casa fica perto de uma aldeia presa pela pobreza, na aldeia muitas mulheres presas no purgatório da falta de poder e da violência contra os seus corpos e uma armadilha mortal: a raiva que se vai instalando nos seus corações, por vezes incontrolável, e que penetra nas entranhas e não deixa dormir nem as personagens, nem a nós, leitores que, de algum modo, nos sentimos presos na casa. Quando se começa a ler o livro também bate a porta atrás de nós prendendo-nos na narrativa claustrofóbica e perturbadora. “Quando passei a soleira da porta, a casa precipitou-se sobre mim. Este monte de tijolos e sujidade faz sempre a mesma coisa, lança-se sobre qualquer pessoa que atravesse a porta retorce-lhe as entranhas até a deixar som fôlego. A minha mãe dizia que esta casa nos faz cair os dentes e nos seca as vísceras. “

    Como diz Rachael Conrad, “este livro tem TUDO: traumas geracionais, maldições, assassinatos, bruxas, santos, anjos que parecem louva-a-deus, fantasmas, imagens profundamente perturbadoras que ficarão comigo por muito tempo e é, possivelmente, uma das casas mal-assombradas mais vingativas e furiosas, na literatura. Caruncho é profunda e maravilhosamente perturbador.”

    A avó e a neta são movidas a ódio. Na aldeia chamam-lhes bruxas. A forma como se tratam uma à outra é de uma violência incomodativa. “A avó não estava lá. Também não estava debaixo da mesa da cozinha nem dentro da despensa. (…) Velha de merda. Arrastei dali a velha, sentei-a na cama e sacudi-a pelos ombros. Algumas vezes funciona, outras não, desta vez não funcionou. Arrastei-a para o corredor, abri a porta do quarto, empurrei-a lá para dentro e tranquei-a. Nesta casa todas as portas podem ser trancadas pelo lado de fora.”

    É, pois neste tom que ambas as personagens nos vão fazendo uma novela de dimensão sobrenatural mas também nos fazem um retrato da guerra civil espanhola, e da posterior razia franquista “quando tudo se transformou em fome e poeira” e das recordações de ambas as protagonistas que são “coisas piores do que os mortos que surgem do nada”. Homens que vão para a guerra e não regressam, homens que não querem ir para a guerra e se escondem, uma família rica da aldeia, os Jarabos, que sofre com as maldições que a avó e os seus santos lançam sobre ela, e que espera, ainda que inconscientemente, a punição das mulheres da casa. O casamento da avó com o capataz dos Jarabos, Pedro, que termina com a sua misteriosa morte, e o emprego da neta como criada que tem um desfecho trágico com o desaparecimento de uma criança que apenas aprofunda a ruptura familiar, a má fama das mulheres e o drama de todos os que de algum modo são envolvidos na história e na maldição. Nós, leitores, somos alguns deles porque o livro cola-se-nos à pele e não o esquecemos facilmente.