Categoria: Recensões

  • Ir de vela

    Ir de vela

    Título

    Como construir um barco

    Autora

    ELAINE FEENEY 

    Editora

    D. Quixote (Julho de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Peguei no livro e saí a correr. Só mais tarde, quando me sentei para o ler, me dei conta do equívoco. Pensava que era um livro sobre como construir um barco. Literalmente. Daqueles livros práticos sobre ‘como fazer sozinho’. Não era. Não sei porque me equivoquei. Afinal, bastava olhar para a capa com reduzida atenção para perceber que se trata de uma obra de ficção. A etiqueta que diz que a obra foi nomeada para o The Booker Prize de 2023 era outra pista esclarecedora. Não estou a ver um livro que ensine a construir um barco a ser nomeado para um prémio do género (por muito que adore livros práticos sobre como fazer coisas). Adiante, ultrapassado o meu espanto (parvo) causado pela desatenção, aceito a situação: tinha um romance pela frente para ler.

    A capa era auspiciosa. Além da etiqueta de nomeação para o tal prémio, tinha uma recomendação de um vencedor do The Booker Prize, Douglas Stuart. Diz que se trata de “um romance cheio de esperança e de humanidade”. Na contracapa, prossegue: diz que é uma “daqueles raros livros que nos fazem sentir menos sós” e que se trata de “uma história inspiradora sobre uma comunidade e as pequenas coisas que podem mudar uma vida.”

    Não consegui ler o livro sentada, sossegada. Mexi-me muitas vezes no meu lugar no sofá. Para alguns, será talvez menos fácil de ler. (Percebi, depois, que a autora publicou também obras de poesia e teatro, o que explica alguns dos caminhos que percorreu para contar esta história.) Alguns parágrafos ganham vida e as palavras escorregam para as linhas seguintes, em sequência, exigindo atenção e abertura mental. Reli algumas partes para ver se tinha compreendido bem (mas admito que possa ser, também, feitio meu e da minha ocasional parca concentração). Acredito que cada um, seja neurodivergente ou neurotípico, ‘ouve’ as palavras que lê de forma única e compreende (ou não) e vivencia de modo próprio cada história, cada linha. 

    Posto isto, acabei a marcar várias páginas para as mencionar ao leitor desta recensão. Só tinha o marcador que vem com o livro e uma caneta. Acabei por marcar as restantes páginas com as caixinhas compridas de incenso que tinha comprado e que ainda aguardavam na almofada do sofá para ir para o armário. O resultado foi um livro gordo (mas sem páginas dobradas) e com as páginas devidamente seleccionadas.

    A obra tem como personagem central um rapaz, Jamie O’Neill, com 13 anos, que tem dois desejos ou sonhos. Mas seria muito redutor dizer que é disto que o livro trata. Entre histórias de personagens paralelas e o percurso do rapaz, há muitas enseadas, ondas, mergulhos, marés baixas e altas e redemoinhos.  O leitor é confrontado consigo próprio e com a sua vida (eu, pelo menos, fui). Simples frases levam-nos em viagens por novos mares, que não os do enredo do livro. Como no parágrafo que fala que a construção de um barco não é um processo aleatório, “tem muitas fases, vamos eliminar todas as irregularidades” e, “se alguma coisa estiver mal feita, a camada seguinte vai revelá-lo”. Como a vida? Ou o parágrafo que diz que “tudo o que é bom começa com um bom impulso”. Ou aquele que garante que “para criar é preciso sentir-se e estar desconfortável, e por vezes sentir-te-ás desacompanhado”. (Fico por aqui e, afinal, não precisava usar todas as caixinhas de incenso como marcador.) 

    Concluindo, tirando-se os inúmeros “foda-se” e “merda”, que detesto (distraem-me na leitura como uma mosca a ziguezaguear junto aos olhos), é um livro a ler. Com calma e paciência, devagar. O ‘slow reading‘, que é avesso ao consumo de papa-livros de Verão para mostrar, depois, nas redes sociais, a foto da pilha de obras lidas). Mas também esses leitores o lerão bem. Com asneiras e tudo (ou, sobretudo, porque as asneiras talvez ainda estejam na moda, não só na capa de livros, como no seu interior).   

  • Uma ode à literatura japonesa

    Uma ode à literatura japonesa

    Título

    Batalhas de livreiros

    Autora

    YASUNARI KAWABA (tradução: Francisco Agarez)

    Editora

    Dom Quixote (Maio de 2024)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Yasunari Kawabata (1899-1972) foi um proeminente escritor japonês e o primeiro do seu país a ser laureado com o Prémio Nobel da Literatura, em 1968. Conhecido pela sua prosa lírica e profundamente sensível, Kawabata explorou temas como a beleza da natureza, os desejos proibidos e a melancolia, frequentemente influenciados pelas tragédias pessoais que marcaram a sua juventude, incluindo a perda de vários entes queridos (ficou órfão de ambos pais aos três anos).

    Formado pela Universidade Imperial de Tóquio em 1920, Kawabata desempenhou um papel significativo no panorama literário japonês do início do século XX. Em 1921, fundou a revista Xin-Xicho [Pensamento Novo] e, juntamente com Yokomitsu Riichi, criou o jornal literário, Bungei Jidai [Anos Literários]. Por intermédio destas publicações, Kawabata impulsionou o movimento Xinkankakuha [Novas Sensações] na literatura, valorizando a arte pura como missão primordial do escritor.

    A Casa das Belas Adormecidas e Mil Grous são duas das suas obras inesquecíveis publicadas, em Portugal, pela Dom Quixote, tal como este O Arco-Íris.

    É o terceiro livro de autores japoneses que li num mês e a comparação é impossível. E não é só pela qualidade da tradução (aqui, a partir da versão inglesa, por Francisco Agarez). Com Yasunari Kawabata, a urdidura da escrita tem um propósito. Não há palavras ao acaso, não há palavras a mais. Não há explicações.

    A prosa poética de Kawabata em O Arco-Íris é marcada pela elegância e sensibilidade lírica que transmitem emoções profundas sem recorrer a excessos verbais. Cada palavra parece meticulosamente escolhida, criando uma atmosfera de contemplação, mesmo quando trata de questões sombrias e dolorosas. As descrições profundas e sentidas de um tempo e espaço são de tal modo vívidas que o leitor é transportado para o pós-guerra do Japão, para a serenidade de um povo que ultrapassa, em silêncio, os traumas insidiosos de uma época sombria.

    Publicado originalmente em 1951 sob o título Niji Ikutabi, O Arco-Íris é um exemplo do talento de Kawabata para tecer narrativas que combinam uma simplicidade aparente com a profundidade emocional.

    A história centra-se na vida de três irmãs, filhas do arquitecto Mizuhara, todas nascidas de mães diferentes. A narrativa, estruturada em capítulos que podem ser lidos como contos independentes, explora as intricadas relações familiares e pessoais no contexto do Japão pós-Segunda Guerra Mundial, um período marcado por mudanças sociais profundas e reconstrução nacional. A tradição é questionada e alvo de reflexão, sendo percebida como uma forma de mimetismo e imitação.

    É um mimetismo quando seguimos as últimas tendências, mas também é um mimetismo quando nos deixamos acorrentar pela tradição ou pela convenção. É uma coisa a que não podemos fugir. Se bem que haja quem diga que a imitação diminui o valor da beleza” (p. 86).

    Asako, a segunda filha, está obcecada por encontrar uma terceira irmã. Impulsionada por um encontro fortuito num comboio entre Tóquio e Quioto, embarca numa jornada em busca da sua irmã desconhecida.

    A presença constante do pai, que esconde a existência dessa filha – Wakako, gueixa em Quioto –, adiciona uma camada de mistério e tensão à narrativa. Esta procura é também simbólica, representando, quiçá, o desejo de reconstruir laços de família fragmentados e de encontrar a sua identidade num mundo em transformação.

    Momoko, a filha mais velha, é retratada como uma personagem atormentada. Assombrada pela perda do seu namorado durante a guerra e pela morte da sua mãe por suicídio, Momoko envolve-se em relações auto-destrutivas que reflectem a sua luta interior.

    Com estas estas personagens, Kawabata explora temas universais como o luto, a culpa, o amor e a identidade. As descrições vívidas e poéticas resgatam a impermanência e a fragilidade da existência humana, frequentemente simbolizadas pela mudança das estações e pelas paisagens naturais que servem de pano de fundo à narrativa.

    Esta obra é um convite à leitura introspectiva e contemplativa, algo essencial num mundo frenético que parece aproximar-se vertiginosamente do caos, quem sabe em direcção ao arco-íris da esperança – por uma humanidade mais humana (e pacífica).

    Se nos esforçarmos por não empurrar os nossos entes queridos para o inferno acabamos nós por cair nele. Às vezes dou comigo a pensar que nenhuma das nossas dores, nenhum dos nossos pecados, é completamente original. São uma herança, uma imitação daqueles que nos precederam. Todas as nossas tradições e costumes são herdados dos mortos, não acha?” (pp. 199-200).

  • Em cada tia um Tarantino

    Em cada tia um Tarantino

    Título

    Você nunca mais vai ficar sozinha

    Autora

    TATI BERNARDI 

    Editora

    Tinta da China (Junho de 2024)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Este é um livro fácil de ler. Se pensou que este comentário é superficial e fútil, aviso já que vai gostar menos do próximo. Este livro leva-se bem para qualquer lado. Pode parecer algo de somenos, mas o peso conta quando só queremos levar a toalha no ombro para a praia e pouco mais.

    Dito isto, desaconselho a leitura deste livro a homens. (A autora e a editora que me desculpem). Está cheio de detalhes sórdidos e crus de coisas que só acontecem mesmo a mulheres. Iriam ficar com as imagens na mente. Não seria bonito. Como quando comemos aquela folha de alface que estava murcha no fundo do pacote de salada ‘já lavada’. Só que, neste caso, algumas imagens gráficas ficariam gravadas na mente. Talvez para sempre. Não seria algo que passaria comendo outra coisa, logo a seguir, como no caso da alface podre. Ainda por cima, é narrado por uma mulher que é ‘overthinker’. Penso que apenas uma minoria de homens conseguiria ler, compreender e até apreciar (mesmo ficando traumatizado para a vida).

    Depois, também não será aconselhável a mulheres românticas e sensíveis. Nem a crentes ou religiosas. Não entra nas listas de livros aconselhados a cristãos. Em algumas das famílias que encontramos no livro, Jesus só há ao Domingo, e, e… 

    As ansiosas em relação a relacionamentos, a partos ou com traumas com a mãe, vão rever-se em muitas partes.

    Ademais, está cheio de detalhes, daqueles que conseguimos mesmo ver a acontecer, como se estivesse ali, à nossa frente.

    E tem muitas histórias e peripécias. São histórias deliciosas (outras repugnantes, algumas chocantes, muitas vulgares) dentro da ‘história’ principal do livro. Como as histórias da Tia do Gás e as da Tia Perseguida. Não vou contar para não estragar. (Mas, se tiver oportunidade, espreite a história sobre a Tia do Gás, a partir do segundo parágrafo da página 62.)

    Sendo leve no peso e fácil de ler, não quer dizer que seja fácil no mastigar e no digerir. Não é. Tem capítulos que fazem doer. Tem outros que fazem rir. Conseguimos sentir o que o personagem sentiu. Em outros, ficamos apenas boquiabertos, parados, congelados, como quando vemos algumas cenas de um filme do Tarantino, pela primeira vez.

    Sem dúvida, é um livro a ler. Não porque se leva bem com a toalha para a praia, mas por aqueles parágrafos que nos tocam. Como um verso triste e belo que se agarra a nós e já não nos larga. Nem se comermos algo logo a seguir.   

  • Morar longe do lugar onde se nasce

    Morar longe do lugar onde se nasce

    Título

    O livro das despedidas

    Autor

    VELIBOR ČOLIĆ (tradução: António Gonçalves)

    Editora

    Gradiva (Julho de 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Esta é uma obra marcante que se insere no contexto das narrativas sobre a guerra e o exílio. Čolić é um autor bósnio que vive em França desde que desertou do exército, em 1992, durante a Guerra da Bósnia. Traz-nos uma visão profundamente pessoal e poética sobre a experiência de ser um refugiado e o sentimento de perda que acompanha o exílio partilhando connosco a resiliência e a criatividade em face das adversidades, utilizando a sua escrita como um meio para processar o trauma: “o exílio é exigente. O exílio recomenda: doseia bem a tua visibilidade. Faz-te notar apenas pelas mulheres e não pela polícia. Toda uma arte. Tornar-se um cidadão anónimo, o Senhor ninguém. Suavizar os nossos gestos. Cortar a barba. Mudar de penteado: substituir o estilo da Europa de Leste por outro mais descontraído, mais livre, mais ocidental. (…) Deslocar-se sem fazer barulho, comer em silêncio, falar com suavidade, escrever com gentileza. (…) As pessoas não te perguntam quem és nem como estas. Perguntam simplesmente de onde vens.”

    O livro é construído de maneira fragmentada, misturando memórias, reflexões e episódios fictícios, mas que ressoam com a realidade vivida por muitos que, como o autor, foram forçados a deixar o seu país de origem devido à guerra. O protagonista, um alter ego de Čolić, navega por essas memórias e histórias enquanto tenta reconstruir a sua vida no seu novo país. A estrutura do livro não é linear e tem pequenos capítulos onde o autor vai espelhando a natureza fragmentada das lembranças e da identidade do exilado: “Estamos num bar na rua Sainte-Catherine. À nossa volta, o mundo literário, a casta dos escritores. Estou espantado com a monotonia deste mundo. Imaginava-o diferente, mais colorido, mais livre, anárquico. Mas não, os verdadeiros escritores franceses são como eu: desamparados, malvestidos, mal na sua pele. Um mundo insípido, baço. Falam muito disso, até só escrevem sobre isso, mas o seu sofrimento permanece anónimo.”

    A obra explora a despedida em múltiplos níveis: da pátria, da língua, da família, dos amigos e, em última instância, de uma parte de si mesmo. Čolić escreve sobre o exílio não apenas como uma deslocação física, mas como uma experiência profundamente emocional e psicológica. A guerra, apesar de não ser o tema do livro, está sempre presente como a força destrutiva que desencadeia todas essas despedidas. Há também uma forte ênfase na identidade e na sobrevivência cultural, abordando a dificuldade de preservar a própria identidade enquanto vai sentindo a necessidade de adaptação a uma nova cultura: “Sou o cão da estação de caminho-de-ferro. Passo o meu tempo nos corredores escalavrados e obscuros da Gare de Estrasburgo. Descubro e saboreio a dupla tristeza dos que partem e dos que ficam, circulo na fronteira entre dois mundos. Arejo o meu exílio. Levo-o a passear como um cão que cheirica as árvores no parque e ladra às estrelas. (…) Entre dois comboios, escrevo. Rapidamente. Frase a frase, página a página. Sou uma metralhadora literária. Algures entre Faulkner e Zola, um existencialista que não respeita a pontuação, um homem que tenta reconstituir o mosaico da sua própria vida. Um sobrevivente. O biógrafo do meu próprio destino. Avanço no escuro às apalpadelas, mas a minha coragem não tem limites. Vivo a minha própria literatura.

    Como o Primo já está tomado, considero-me um Secundo Levi.”

    O autor adota uma linguagem lírica e evocativa, entrelaçando a poesia com a prosa para capturar as complexas emoções das personagens. O estilo é, ao mesmo tempo, contundente e delicado, refletindo a dor do exílio e a nostalgia de um lar perdido. A narrativa é permeada por uma melancolia sutil, mas também por momentos de humor e ironia, o que proporciona um contraste interessante e evita que o texto se torne excessivamente sombrio.

    A tradução usa algumas liberdades que nos soam estranhas. Por exemplo: “(… ) Impõem-se então duas soluções : emagrecer ou tornar-me um Vasco Santana Júnior .

    E como toda a gente bem sabe, eu não sou propriamente um humorista. ”

    Não era necessário. O livro é, no entanto, imperdível. Um testemunho pungente de um refugiado entre tantos exilados “porque o exílio quase nunca é uma questão de presença. É tantas vezes uma acumulação de sombras, uma história de ausências.”

  • Uma revolução nos olhos dos outros

    Uma revolução nos olhos dos outros

    Título

    Por enquanto, o povo unido ainda não foi vencido

    Autor

    MANUEL VÁZQUEZ MONTALBÁN (tradução: Rita Luís)

    Editora

    Tinta da China (Junho de 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Muitas vezes, o melhor retrato de um país é aquele visto pelos olhos de um estrangeiro. Esse tem a capacidade de nos olhar à distância, sem estar espartilhado por amizades e conveniências locais. Sem ser contaminado pela cultura local e amarras preconceituosas. E quando acontece esse estrangeiro ser um escritor do calibre do espanhol (catalão, vá lá) Manuel Vázquez Montalbán (1939-2003), então temos de nos sentir bastante sortudos.

    En hora buena a Tinta da China resolveu editar a recolha feita pela investigadora da Universidade Nova, Rita Luís, de 55 crónicas escritas entre 14 de Março de 1974 – dois dias antes da intentona das Caldas da Rainha – e 29 de Dezembro de 1975 – um mês após os acontecimentos de 25 de Novembro. O autor do detetive galego e gastrónomo Pepe Carvalho – sabiam que há planos para, finalmente, serem editadas todas as suas aventuras em português? –, fornece-nos uma visão de um habitante de um país que também esperava pelo seu momento de libertação. A Espanha que estava então ensanduichada entre a França democrática e um Portugal que aprendia essa nova realidade.

    Este Por enquanto, o povo unido ainda não foi vencido (título delicioso, retirado de uma crónica de 30 de Setembro de 1974, logo após a falhada manifestação da “Maioria Silenciosa”), tem o condão de 50 anos depois, trazer-nos detalhes sobre quem nós éramos e no que, entretanto, nos tornámos. E ser um espanhol a dizer-nos isto a uma distância de meio-século, é como olharmo-nos num espelho que nos leva a uma reflexão introspectiva.

    “Durante a minha breve estada em Portugal, no início de Maio, ouvi duas coisas das quais na altura duvidei e atribuí ao subjectivismo emocional dos meus informadores: 1º Costa Gomes é mais inteligente que Spínola; 2º os jovens oficiais estavam dispostos a dispensar Spínola se este colocasse obstáculos ao processo revolucionário”, escreveu Manuel Vázquez Montalbán a 1 de Outubro de 1974. Lido isto assim, como uma novidade que nos é dita 50 anos depois por umn estrangeiro, ajuda mais a explicar-nos hoje como Povo que usa e descarta os seus heróis do que qualquer tese universitária ou livro grosso escrito por um nacional.

    As 55 crónicas leem-se (muito) bem, embora se sinta que também poderia haver alguma contextualização. Como, por exemplo, lembrar que Durão Barroso, o futuro presidente da Comissão Europeia, era então um daqueles jovens do partido conhecido como “Movimento Recreativo dos Pintores de Paredes”, com “células na Faculdade de Direito, para inventar slogans, e outra na Escola de Belas-Artes, para os pintar”.

  • Infância centrada no telefone: que desafios?

    Infância centrada no telefone: que desafios?

    Título

    A geração ansiosa

    Autor

    JONATHAN HAIDT (tradução: Diogo Freitas da Costa)

    Editora

    Dom Quixote (Julho de 2024)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Jonathan Haidt é um psicólogo social americano e professor de Liderança Ética na Stern School of Business da Universidade de Nova Iorque. Nascido em 1963, Haidt é conhecido pelo seu trabalho em psicologia moral e política, e a sua investigação centra-se no modo de as pessoas formarem os seus julgamentos morais. Doutorou-se em Psicologia Social pela Universidade da Pensilvânia, em 1992, tendo leccionado na Universidade da Virgínia durante 16 anos.

    Haidt ganhou notoriedade com o seu livro The Righteous Mind: Why Good People Are Divided by Politics and Religion (2012), no qual explora as raízes psicológicas das divisões políticas e religiosas. Juntamente com Greg Lukianoff, publicou outra obra relevante, The Coddling of the American Mind (2018), dedicada às mudanças culturais e educacionais que, segundo os autores, estão a fragilizar a geração mais jovem.

    Com este A Geração Ansiosa (Publicações Dom Quixote), Haidt vai além das alterações culturais, demonstrando como as redes sociais, mais do que transformarem a cultura, estão a transfigurar a humanidade, desde 2010. Esta obra apresenta uma análise profunda e crítica sobre o colapso da saúde mental entre os jovens da chamada “Geração Z” (Gen Z), os que nasceram depois de 1995.

    Esta é uma leitura obrigatória para todos os pais, educadores e responsáveis políticos pela educação e saúde na infância, adolescência e juventude. Deste modo, todos serão confrontados com o seu papel no aumento dos distúrbios mentais (mas não apenas) dos jovens nascidos depois de 1995 e, sobretudo, dos que, desde 2010, têm acesso às redes sociais.

    A hipótese do autor é a de que, desde a década de 1980, temos vindo a assistir à reconfiguração da infância por duas ordens de razões: a super-protecção do mundo real por parte dos pais, devido ao que o autor designa de ‘safetism’; e a sub-protecção no mundo virtual.

    Esta grande reconfiguração da infância, transformou esta fase da vida, primordial sob o ponto de vista da socialização – enquanto processo de aquisição, aprendizagem e interiorização das normas, valores, comportamentos e atitudes da sociedade (enquanto processo de integração nos grupos sociais de que fazemos parte) –, a partir da combinação daquelas duas grandes tendências: o medo de deixar as crianças brincarem sem vigilância parental (dito de outro modo: parentalidade excessivamente protectora) e a permissão para navegarem no mundo virtual sem qualquer limitação e protecção. Desde então, passou-se de uma infância centrada na brincadeira para uma infância centrada no telemóvel (smartphone).

    O declínio da infância baseada na brincadeira tem provocado quatro danos fundamentais nas crianças e jovens: privação social, privação do sono, atenção fragmentada e dependência. Não é estranho, por isso, que a Gen Z, a primeira a crescer inteiramente na era digital, se tenha tornado, segundo Haidt, uma “geração ansiosa”, marcada por altos índices de ansiedade, depressão, auto-mutilação e suicídio.

    O autor descreve a génese e fundamenta todos aqueles danos, demonstrando, também, como as redes sociais prejudicam mais as meninas e raparigas do que os rapazes. O livro está pejado de estudos que comprovam tudo e mais alguma coisa, sendo certo que só quem não quer é que não verá o que está à frente dos nossos olhos, tão-só porque os adultos da geração de 1970 e 1980 não querem reconhecer os pais helicópteros em que se converteram. Se é de provas que precisam, basta folhear a 150 páginas de notas e referências bibliográficas, onde se encontram todos os estudos, dados e afins sobre o estado mental, as suas causas e consequências.

    A “onda gigante de sofrimento” da ‘geração ansiosa’ tem causas e estão estudadas e documentadas. Apesar do cenário preocupante, Haidt é generoso e sugere um plano de acção para reverter o marasmo em que vivemos, propondo quatro medidas fundamentais: adiar o uso de smartphones até o ensino secundário, proibir o acesso às redes sociais antes dos 16 anos, criar escolas livres de dispositivos móveis e incentivar as brincadeiras não supervisionadas durante a infância. Haidt defende que estas acções são essenciais para restaurar uma infância mais saudável e equilibrada na era digital.

    Para isso, é primordial que a acção seja colectiva. Importa que pais, educadores e responsáveis políticos se unam e coloquem em prática aquelas e outras medidas. Caso contrário, de uma infância centrada no telemóvel passaremos a ter adultos extra-terrestres, cuja ‘vida’ virtual será, provavelmente, a única que saberão ‘viver’.

    Um curto excerto (p. 187):
    Assim que os adolescentes passaram dos telefones básicos para os smartphones, tanto a quantidade como a qualidade do seu sono diminuíram em todos os países desenvolvidos. Os estudos longitudinais demonstram que o uso do smartphone antecedeu a privação de sono (…) os seus efeitos são vastos. Incluem depressão, ansiedade, irritabilidade, défices cognitivos, problemas de aprendizagem, pobre desempenho académico, mais acidentes, mais mortes por acidente”.

  • Iscas com batatas cozidas (e laranja com açúcar no fim)

    Iscas com batatas cozidas (e laranja com açúcar no fim)

    Título

    Conhece-te a ti próprio

    Autora

    NICOLE LePERA (tradução: Maria do Carmo Figueira)

    Editora

    Albatroz (Junho de 2024)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Olhando para a capa, compraria este livro só pela promessa de ter meditações guiadas. Depois, vejo no topo da capa que o livro vem recomendado por alguém que se chama Inês Gaya. Torço o nariz. Soa-me a uma daquelas pessoas ‘namasté’, que amam todos, mas fazem compras na Shein e mudam o nome porque traz boas vibrações. (E, se calhar, não é nada disto e estou a projectar, só que não compro na Shein nem mudei de nome… ainda). Desconfio desse tipo de gente como das pessoas que “adoram animais”, menos ao sábado de manhã no talho. Há que haver coerência.

    Depois, pergunto-me: será que todos se deveriam conhecer a si próprios? Será seguro? Há pessoas que começam com um livro para se conhecerem melhor a si próprias e a seguir divorciam-se e acabam a frequentar as feiras de roupa vintage, a pensar que isso é ‘cool’, sobretudo com o cheiro a mofo e os preços proibitivos das calças à Bee Gees (e eu gosto de Bee Gees).

    Para piorar, na capa diz que a autora é ‘bestseller’ e tem mais de oito milhões de seguidores. Há muita gente de que me consigo lembrar que tem muitos seguidores, mas isso não é bom.

    Na contracapa, anuncia que o livro é interactivo e oferece um roteiro prático para a autocura. E diz que a autora é uma psicóloga holística. Apesar dos clichés, resolvi dar uma hipótese ao livro, até porque tinha esta recensão para escrever.

    Ao melhor estilo ‘New Age’, resolvi abrir o livro numa página ao calhas e ver o que me saía na rifa. Fui cair na página 212: “Conheça a sua dependência emocional”. Caramba. “As nossas narrativas, os nossos comportamentos, e as nossas respostas autónomas são desencadeadas por ciclos de activação do sistema nervoso”.

    Decido tentar outra, a ver se me sai uma menos difícil. Abro na página 158: “Conheça o seu ego”. Afinal, prefiro a outra anterior.

    Este livro é para trabalhar. Vai dar trabalho. As meditações era só como aquela laranja com açúcar que a mãe prometia se comesse as iscas todas, com as batatas cozidas e tudo. Era engolir, fechando as narinas, para não sentir o sabor. 

    Acabo a tentar uma terceira página e caio na 153: “Ferida da criança interior”. Continuo a preferir a da dependência emocional (apesar de estar tudo ligado, como no Universo).

    Tirando o tom ‘namasté’ da capa e o texto cliché da contracapa, é um livro para partir pedra interior. Ou desentupir canos mentais e emocionais. O faça você mesmo, mas sem tutorial no Youtube. Sem bonecos para pintar, nem cartas de deusas e de arquétipos para responder às nossas perguntas e nos guiarem.

    Fazer tudo o que propõe este livro, levaria anos e anos. Décadas. Uma vida. Melhor orar e pedir a Jesus para ajudar a libertar os fardos, curar a criança interior a acabar com as dependências emocionais. O pior é se Jesus envia este livro para a nossa mesa de cabeceira. (Caramba…)

  • Todos nascemos loucos

    Todos nascemos loucos

    Título

    Os rostos

    Autor

    TOVE DITLEVSEN (tradução: João Reis)

    Editora

    Dom Quixote (Julho de 2024)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Os rostos, originalmente publicado na Dinamarca em 1968, foi escrito por Tove Ditlevsen no mesmo período da magnífica Trilogia de Copenhaga, também é inspirado na sua vida, mas transforma o seu material em arte numa alquimia que perturba e enternece, simultaneamente. Ao longo de toda a sua vida adulta, a autora lutou contra o abuso de álcool e drogas, e foi internada várias vezes em hospitais psiquiátricos. Vimos isso várias vezes na sua outra obra e voltamos a vê-lo neste.

    A personagem central, Lise Mundus, é uma escritora de livros infantis, que não sabe lidar com o seu sucesso. Ganhou um prémio com um livro que “não considerava nem melhor ou pior do que os seus outros livros”, e é assediada por jornais e revistas à procura de opiniões de “mulheres proeminentes” sobre questões triviais (“As minissaias estão a destruir o casamento?”).  Casada e mãe de três filhos, Lise sente-se esmagada pelas expectativas e responsabilidades da vida doméstica e pela pressão da sua carreira, embora não consiga escrever nada há dois anos. Sente-se posta de parte pelo meio literário, e vive com a preocupação que, um pequeno acto de plágio cometido há muito tempo, venha a ser descoberto e que ela esteja prestes a ser desmascarada. Lentamente, torna-se numa mulher a viver um colapso mental, navegando entre a realidade e as alucinações. 

    À medida que a sua saúde mental se deteriora, ela começa a ver rostos perturbadores à sua volta, rostos que a observam e a julgam. Essas visões misturam-se à sua realidade, tornando-se cada vez mais difíceis de se distinguir numa impotência que nos arrasta a nós também. O livro procura retratar a “loucura” vista por dentro, com toda a falta de confiabilidade que tal acarreta. Lise, por exemplo, acredita que o seu marido, Gert, está a ter uma relação amorosa com a governanta, Gitte, depois de a sua amante anterior, Grete, se ter suicidado. Ela também acredita que Gitte lhe fornece uns comprimidos para dormir e a instiga a suicidar-se também.

    Os pensamentos de Lise são delirantes, mas ela acaba por tomar uma overdose medicamentosa e acaba num hospital psiquiátrico “amarrada à cama com um cinto de couro largo coberto de parafusos e parafusos“. Lise anseia por “um lugar diferente, outra realidade, onde seja possível existir”, mesmo que isso signifique uma enfermaria de hospital. Mas nem aí fica tranquila: é atormentada por vozes intrusivas e teme os rostos das outras pessoas que a rodeiam. Os rostos que Lise vê são expressões simbólicas da sua angústia interior, representando a culpa, o medo e a autopunição. Ditlevsen explora aqui a desconexão entre a identidade interna e a externa, e como essa divisão pode levar à fragmentação da mente. A mãe visita-a, mas não é simpática. O resto da família está impedido de o fazer, porque ela mantém a narrativa de que querem matá-la. Desde o início, os armários são “cavidades perturbadoras”, o céu cheira “como o hálito de pessoas que não comem” e as vozes soam como “pus de uma ferida”.

    Os rostos e as vozes (nós nunca sabemos quais são reais e quais são produto da sua loucura) continuam a atormentá-la, a ela e a nós, leitores. As descrições das alucinações de Lise são tão vívidas que sentimos a mesma confusão e terror que a protagonista. A fronteira entre a realidade e a ilusão é deliberadamente ténue, o que cria uma atmosfera de incerteza e suspense psicológico.

    Quando um médico lhe pergunta a Lise a razão para ter tentado matar-se, ela responde:

    “Eu tinha uma necessidade terrível de ver alguns rostos novos”.

    Os rostos torna-se assim uma exploração poderosa e perturbadora da mente humana em desintegração. Tove Ditlevsen, através deste romance, oferece uma representação visceral da luta pela saúde mental, escrito com a habitual clareza e honestidade brutal, apresentando uma visão perturbadora da vulnerabilidade humana e da fragilidade da mente. No entanto, diga-se que depois de se ter lido a Trilogia de Copenhaga, este romance não vem nada acrescentar de novo.

  • As singularidades culinárias de um país entre terra e mar

    As singularidades culinárias de um país entre terra e mar

    Título

    Património alimentar de Portugal

    Autor

    MARIA MANUEL VALAGÃO

    Editora

    Fundação Francisco Manuel dos Santos (Maio, 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    “Os homens não se medem aos palmos”, resmoneavam as velhas ao borralho em tempos de antanho. E, tal como os ditos cujos, também os livros não se medem nem pelo seu número de páginas nem pelo tamanho da sua lombada para daí se aquilatar o tesourinho que guardam dentro. Com a habilidade de um relojeiro, Maria Manuel Valagão, investigadora em Sociologia da Alimentação, que há muitos anos estuda estas temáticas, consegue neste pequeno livrinho ir montando um delicado puzzle, constituído por diferentes peças, acerca daquilo que é feito o nosso património alimentar.

    A informação espraia-se com sabedoria ao longo das páginas, muito bem doseada, na quantidade certa, tocando vários pontos, abrindo perspectivas, sem explicações excessivas ou detalhes exaustivos, aflorando dados pertinentes q.b. Neste breve volume, o curioso leitor encontra um verdadeiro vade-mécum sobre aquilo que comemos em Portugal e, acima de tudo, o porquê. Que motivações nos conduziram a esta culinária e como ela se mesclou com o nosso modo de ser e de viver. Antes de avançar uma ressalva deve ser feita, tal como salientou a investigadora: “Nestas páginas, concentro-me somente em Portugal continental, já que, sendo dele tão distintos em posição geográfica e culturas alimentar e gastronómica, os arquipélagos da Madeira e dos Açores mereciam abordagens autónomas.”

    Além da Introdução, a autora articulou esta odisseia por seis capítulos: “No Atlântico, Uma Identidade Mediterrânica”, “Património Alimentar e Mar”, “Das Plantas e dos Animais”, “Tradições Culinárias: Oralidades e Patrimónios”, “Conviver e Celebrar” e “Considerações Finais”, a que se juntam uma bibliografia e algumas notas.

    De acordo com a investigadora, “a grande variedade dos ecossistemas existentes no território, aliada à diversidade cultural de que temos usufruído ao longo dos tempos, contribuiu para a profusão de produtos tradicionais portugueses, precioso património preservado nos livros e manuscritos de cozinha e na tradição oral, como testemunho vivo na cozinha quotidiana.”

    Muito deste legado decorre, não só da influência do Atlântico, como denominador comum, mas também “o determinismo geográfico ditou, por seu turno, a singularidade mediterrânica de Portugal”, do qual fizeram parte muitas civilizações que por aqui passaram e “deixaram a sua cultura e connosco trocaram produtos e técnicas.” De tudo isto, “em quase 900 anos de história”, construiu-se um património alimentar nas diferentes regiões portuguesas, vivo e colectivo, transmitido de geração em geração, e que enformou “uma síntese de todas essas influências”.

    Durante muito tempo, a cozinha portuguesa caracterizou-se por ser essencialmente de subsistência e frugalidade, onde as pessoas retiravam o máximo proveito dos recursos existentes, promovendo a reciclagem e a reutilização dos produtos, mas expandindo a criatividade culinária e que soube deixar-nos belos exemplares como as açordas, as migas, as sopas, entre tantas outras iguarias.

    “Parte significativa das nossas tradições e saberes gastronómicos nasce de uma cozinha familiar de subsistência com acentuado carácter inventivo, procurando bons sabores com poucos elementos”, acrescenta a autora, revelando que “do pouco, é possível fazer-se muito; do comum, é possível criar-se o original e um sabor surpreendente.” Tal como este livro.

    Rapioqueiro me confesso, tanto da mesa como da biblioteca. Há muito tempo que não encontrava um livro tão simples mas tão rico na forma como comunica o seu conteúdo. Tal como um amuse-bouche, mas de uma simplicidade arrebatadora e pleno de sabores profundos e delicados, num convite à descoberta do nosso tão querido e sápido património alimentar. Leiamos, aprendamos e degustemos, que a vida são dois dias.

  • Destino e livre-arbítrio, humor e tragédia humana

    Destino e livre-arbítrio, humor e tragédia humana

    Título

    Jacques e o seu amo

    Autor

    MILAN KUNDERA  (tradução: Teresa Curvelo)

    Editora

    Dom Quixote (Julho de 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Duas das grandes virtudes das reedições, sobretudo quando passados já longos anos da primícia edição, é de não permitir aos mais velhos, recordando-os, corrigir o erro de terem deixado escapar sem leitura uma determinada obra, e em simultâneo dá-la a conhecer a quem não era nascido ou andava por outras andanças.

    Bastaria isso, e todas as reedições mais recentes de Milan Kundera, o grande escritor checo e Prémio Nobel da Literatura falecido no ano passado, pela Dom Quixote seria alvo de elogios. Mas talvez mais ainda se deva agradecer à editora não estar a esquecer-se das pequenas obras (de pequena) dimensão, como já foi o caso, no ano passado, de Um Ocidente sequestrados ou a Tragédia da Europa Central – com textos escritos em dois fôlegos, um em 1967, outro em 1983 – e agora com Jacques e o seu amo, uma peça de teatro, publicada originalmente em 1981, mas que é mais que uma simples obra de dramaturgia.

    Ora, no caso deste Jacques e o seu amo, eram já conhecidas diversas edições, incluindo de grupos de teatro (que já encenaram esta peça), mas todas nos anos 90 do século passado. A reedição mais recente, a quarta da Asa – agora integrada no Grupo Leya –, já com a tradução de Teresa Curvelo, já é do longínquo ano de 2005. Por isso, em boa hora esta ‘ressurreição’.

    Sendo sobretudo uma homenagem e uma reinterpretação de um clássico de Denis Diderot, Jacques, o Fatalista e o seu amo – disponível em formato de bolso numa edição da Tinta da China, com tradução e prefácio de Pedro Tamen e Eduardo Prato Coelho, respectivamente –, esta peça de teatro não apenas tem o cunho de nos divertir e nos levar a reflectir.

    Explorando os temas do fatalismo, da liberdade e da natureza do acaso. Há ne4ste encontro duas visões: Jacques, o servo, acredita firmemente que tudo o que acontece está predestinado, enquanto seu amo mantém uma visão mais céptica, mesmo perante situações análogas. Essa tensão entre destino e livre-arbítrio é um reflexo das condições existenciais que Kundera viria no seu próprio tempo. E o universo de Kundera está sempre pressente: tema do amor é constantemente revisitado, com uma abordagem oscilando entre o cómico e o trágico, um reflexo das relações humanas.

    Além de ser, pela forma como recria Diderot, uma celebração da liberdade narrativa e da inventividade literária do século XVIII – por vezes menorizada, mas que atinge um píncaro não apenas com o homenageado, mas sobretudo com Laurence Sterne, bem referenciado e apontado por Kundera no magnífico prefácio – trespassa nos diálogos uma mordaz análise às condições sociais e políticas.

    Mesmo não se tendo lido – e nem se assinala como obrigatória a obra de partida de Diderot –, diga-se que a peça de Kundera mantém a estrutura clássica dialógica e episódica de Jacques, o Fatalista e o seu amo, sendo interrompida por narrativas paralelas e digressões filosóficas com tiradas humorísticas. No entanto, Kundera também se adiciona uma camada metatextual, explorando mesmo as relações entre o autor, as suas personagens e o público, permitindo também uma reflexão sobre a liberdade artística e a censura. A obra acaba assim por ser, de igual modo, uma celebração da narrativa fragmentada e da complexidade do discurso humano, reconhecendo-se o estilo literário de Kundera, mais conhecido pelo magistral A insustentável leveza do ser (1983) e por O livro dos amores risíveis (1969, contos) e por O livro do riso e do esquecimento (1978).

    O prefácio – ou introdução a uma variação –, com data Julho de 1981 é de leitura obrigatória, sobretudo por não ser datado. Além de notas interessantíssimas sobre literatura – e a sua ‘análise’ em torno de Diderot, de Tristram Shandy, de Laurence Sterne, e da literatura russa –, é a visão que mostra sobre a o impacte também psicológico de uma invasão, como a da Rússia à Checoslováquia em 1968, que se mostra, e mostrará sempre, de grande actualidade.