Categoria: Recensões

  • Uma ode à Sétima Arte

    Uma ode à Sétima Arte

    Título

    O Sr. Wilder & eu

    Autor

    JONATHAN COE (tradução: Rui Pires Cabral)

    Editora (Edição)

    Porto Editora (Março de 2022)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Jonathan Coe nasceu em 1961, nos subúrbios de Birmingham. A sua primeira história conhecida foi escrita aos oito anos de idade: essas primeiras páginas surgem no seu quarto romance, What a Carve Up! – aquele que o faria chegar a um público mais vasto e internacional: foi traduzido para 16 línguas.

    Com vários livros publicados, a sua obra já recebeu diversos prémios e distinções, incluindo o Prémio Literário Costa e o Prix du Livre Européen, com o livro O coração de Inglaterra; em França ganhou o Prix Médicis, pelo livro “A Casa do Sono”, tendo sido nomeado Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras. Em Itália ganhou o Prémio Flaiano e o Prémio Bauer-Ca’ Foscari.

    Razões de sobra, assim, para ser considerado um dos autores contemporâneos mais aclamados, criando-se, também por isso, algumas expectativas quando se começa a leitura do romance, O Sr. Wilder & Eu. E não serão, certamente, goradas.

    O romance começa com as memórias de Calista Frangopoulos, uma compositora grega de bandas sonoras, que, aos 57 anos, vive uma crise familiar e profissional, que a faz regressar ao passado, dando-nos, assim, a conhecer o grande realizador Billy Wilder.

    As suas recordações transportam-na para uma viagem no início da sua juventude, nos Estados Unidos, durante a qual conhece outra jovem, cujo pai é amigo de longa data de Billy Wilder. O mote para um jantar com o realizador e o seu companheiro de sempre, I.A.L. Diamond, e as respetivas mulheres.

    O glamour do cinema de Hollywood entra, assim, por acaso na vida da jovem grega, que, passado algum tempo, é contactada por Diamond para ser integrada, como intérprete, na equipa das filmagens de Os Segredos de Fedora, numa ilha grega.

    Curiosamente, a entrada da jovem Calista, na sétima arte, coincide com a tomada de consciência do fim de carreira de Billy Wilder. Na verdade, o filme em realização é, precisamente, uma metáfora a este crepúsculo, recorrendo a um dos géneros do próprio Wilder, ou seja, a cenas cómicas, como que para tornar a velhice mais leve.

    Através dos olhos de uma jovem deslumbrada, somos encaminhados para a intimidade do processo de realização; mais do que isso, para a intimidade de um dos realizadores mais proeminentes de Hollywood. “Escutamos” as histórias de vida de Wilder, contadas pelo próprio, denotando-se uma nostalgia do passado, enquanto forma de adiar o inevitável.

    A busca incessante de Wilder pela sua família, que terá sido incinerada viva nos campos de concentração nazis – uma das cenas mais fortes do livro é mesmo a descrição de Wilder em forma de argumento, aquando da sua viagem de regresso à Europa, para realizar um documentário sobre os campos de concentração.

    Esta história memorável é a resposta a uma das personagens que pretende negar que tenham morrido assim tantos judeus – a negação do holocausto que viria dar origem ao termo “negacionista”, actualmente tão em voga.

    O romance interliga várias histórias. A de Calista, que além de encantada com o cinema, vive o seu primeiro amor – e, de imediato, a sua desilusão: a vida ela própria, sem a encenação que o cinema e outros meios constroem à volta do amor.

    A da amizade de Calista com Wilder e Diamond, numa celebração à amizade intergeracional e reconhecimento da experiência e sabedoria dos mais velhos. Estes, a quem o envelhecimento faz relegar o estatuto de melhores do panorama de Hollywood para o declínio e esquecimento.

    Como lidar com o envelhecimento e com a percepção de que mais cedo do que mais tarde se será substituído pelos mais jovens: pelos barbudos, entre os quais Steven Spielberg que, neste enredo, acaba de facturar milhões de dólares com a estreia d’O tubarão.

    O romance é, também por isso, uma ode ao cinema enquanto Arte – ultrapassando a experiência de entretenimento. Essa é, aliás, uma das questões que perpassa toda a obra – revelando-se, em alguns momentos, uma nuance de ensaio sobre o fim do cinema clássico de Hollywood e sobre o papel do cinema enquanto arte interventiva.

    Ler este romance impele o leitor a revisitar a obra de Billy Wilder – como não encontrámos Os segredos de Fedora (o filme a ser dirigido neste romance), estivemos a ver a comédia Beija-me, estúpido. Isto, para dizer que as únicas interrupções justificadas são essas, as de relembrar os filmes e os actores em cena neste romance, que está próximo da classificação de obra-prima.

    Coibimo-nos de a conferir pelo modo como o autor resolve uma ou outra situação da personagem Calista Frangopoulos, cujo dilema da vida pessoal é claramente um pretexto, nem sempre bem conseguido, para nos enlevar com gentileza pela história de um dos realizadores mais extraordinários da sua época, Billy Wilder.

  • Uma noite em que se descobre o sentido da escrita

    Uma noite em que se descobre o sentido da escrita

    Título

    O perfume das flores à noite

    Autora

    LEÏLA SLIMANI (tradução: Isabel Castro Silva)

    Editora (Edição)

    Alfaguara (Março de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    “Anna Karénina partiu. Estou à espera que volte” – é o que Liev Tolstói terá dito ao seu editor, durante um inquietante período em que a inspiração do escritor russo escasseava. N’O perfume das flores à noite, Leïla Slimani fala-nos sobre como o bloqueio criativo de Tolstói lhe serve de consolo nos momentos em que a autora é assombrada pelo temido writers block. Confidencia-nos os sacrifícios a que obrigam a sua arte. Tece engenhosos argumentos para nos provar que a felicidade não está destinada aos fazem da escrita a sua vida.

    Leïla Slimani, que tem dupla nacionalidade – nasceu em Marrocos, mas rumou a Paris com 17 anos para estudar Ciências Políticas e Estudos Mediáticos –, estreou-se como romancista em 2014, com a obra No jardim do ogre, sendo-lhe logo atribuído o Prémio marroquino La Mamounia. Foi, porém, com o seu segundo romance, Canção Doce, que conseguiu prestígio internacional, com o prémio literário francês Prix Goncourt de 2016. O país dos outros, publicado no ano passado, foi igualmente bem recebido pelos leitores e pela crítica, e valeu-lhe o Grand Prix de l’Héroine Madame Figaro.

    Neste ensaio auto-reflexivo somos engolidos para a intimidade de Slimani, que nos conduz pelos periclitantes caminhos de um romancista. Vislumbramos um universo literário permeado pela solidão e pelo isolamento. A autora não se pinta, contudo, como uma vítima. Pelo contrário. As suas palavras não evidenciam sinais de autocomiseração, mas de resignação. Uma anuência ao que, frequentemente, se chama os ossos do ofício.

    O seu desejo de clausura leva-a a aceitar um convite inusitado para passar uma noite, só e trancada, no Punta della Dogana, um museu de arte em Veneza. E é aí que se desenrolam muitos dos pensamentos que partilha com o leitor. Pelo meio, evoca outros autores, como Virginia Woolf, Haruki Murakami e Emily Dickinson.

    Descobrimos os seus medos e fobias, os seus anseios, as suas idiossincrasias. Desde o receio que a acompanha quando sai de casa, porque o perigo espreita em cada esquina, às injustiças de que o seu pai foi vítima. A inadequação que sente por ser fruto de duas culturas tão diferentes, e não se sentir verdadeiramente parte de nenhuma.

    Ao longo das suas 135 páginas, este ensaio concretiza, sobretudo, a ideia de que a arte é parida a partir do sofrimento. O seguinte trecho evidencia-o bem: “(…) Não acredito que alguém escreva em busca de consolo. Não penso que os meus romances logrem a superação do sentimento de injustiça que vivi. Pelo contrário, um escritor está doentiamente preso às suas dores, aos seus pesadelos. Nada seria mais terrível do que curar-se deles.”

    Aos desabafos e divagações da romancista, juntam-se memórias da sua infância e juventude. Os seus relatos transportam-nos para a adolescência rebelde que viveu na capital marroquina, Rabat. Percebemos que os seus traços eremitas já vêm consigo desde que era criança. Compreendemos, também, como a concepção da mulher como um ser inferior ao homem na cultura misógina em que cresceu, a moldou e contribuiu para que hoje se assuma feminista.

    A história e a autoanálise da autora permite ao leitor uma reflexão. É difícil não vermos um bocadinho de nós em Leïla Slimani. A natureza complexa e paradoxal do ser humano é algo que, inevitavelmente, nos une.

    Para além de escritora, Slimani já foi jornalista, e em 2017 somou outra conquista profissional: foi nomeada representante pessoal do presidente Francês, Emmanuel Macron, como embaixadora para a Francofonia.

    Leïla Slimani será, decerto, uma mais-valia como diplomata. E terá sido, com certeza, também uma excelente jornalista. Contudo, o seu novo livro demonstra o seguinte: faça o que fizer, jamais deve deixar de articular palavras. O Mundo perderia uma brilhante escritora.

  • Terá a vida mais sabor com pasta de feijão doce?

    Terá a vida mais sabor com pasta de feijão doce?

    Título

    Doce Tóquio

    Autor

    DURIAN SKEGAWA (tradução: Isabel Veríssimo)

    Editora (Edição)

    Edições ASA (Março de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    “Qual é o sentido da vida?” eis a pergunta que Durian Sukegawa (n. 1962) colocou antes de começar a escrever este romance. “Tem de haver uma razão para nascermos independentemente das circunstâncias individuais” (p. 190), explica no final do livro, numa Nota do Autor.

    Foi com base nessa premissa, a que não é indiferente o facto de Sukegawa ter sido um antigo estudante de filosofia oriental, que tomou uma decisão: “Escreveria sobre o significado da vida com uma nova perspetiva, no contexto da doença de Hansen” (p. 190).

    O romance conta a história de Sentarô Tsujii, ex-presidiário, bastante desiludido com a sua vida e longe de realizar o seu desejo: ser escritor. Nos últimos anos, passara todos os dias no interior de uma pastelaria, na Rua das Cerejeiras, numa zona desertificada de Tóquio, diante de uma chapa quente a confeccionar panquecas para fazer dorayaki. “Nunca se imaginara a fazer tal coisa” (p.14).

    Trabalha para pagar dívidas à mulher do antigo patrão, proprietária da pastelaria. Sente-se preso e um inútil, com a vida a escapar-lhe por entre os dedos. Certo dia, porém, Tokue Yoshii, uma “senhora idosa com um chapéu branco na cabeça”, que observava as cerejeiras em flor, entra na pastelaria para responder ao um anúncio de que pretendiam um empregado.

    Por causa da qualidade duvidosa da pasta de feijão doce que recheava as panquecas de Sentarô, Tokue confessa que não aprecia os seus dorayaki, pois não consegue “perceber quais eram as emoções da pessoa que a fez” (p. 11). Sentarô limitava-se a usar a mesma pasta de feijão doce pronta a usar que o falecido patrão utilizava. Então a senhora idosa dá uma caixa a Sentarô com pasta de feijão doce confeccionada por si, especialidade que ela praticava há cinquenta anos.

    Ao princípio, Sentarô não queria provar aquilo, mas depois decidiu provar um pouco: “aquela colherada fê-lo soltar uma exclamação de espanto” (p. 13). “Nunca provara nada como a pasta de feijão de Tokue” (p. 13). Para Tokue, a pasta de feijão era a alma dos dorayaki, pois “em pastelaria, o que importa são os pormenores” (p. 31).

    Quando Sentarô prova um dorayaki confeccionado por Tokue compreende as diferenças e subtilezas que existem entre o dela e o seu: “O aroma pareceu saltar, como se estivesse vivo, e correu pelo nariz até à parte de trás da cabeça. Ao contrário da pasta pronta a usar, cheirava a feijões frescos e vivos. Tinha intensidade. Tinha vida. Um sabor doce, rico e aveludado encheu-lhe a boca” (p. 33).

    O pasteleiro pede que a idosa o ensine a confeccionar a sua pasta de feijão doce e entre os dois desenvolve-se uma relação de profunda amizade, tendo as cerejeiras em pano de fundo, permanentemente, nos seus vários estágios, como testemunhas do desenrolar de toda a trama. Por ter padecido da doença de Hansen, também conhecida como lepra, Tokue fora encerrada num sanatório aos catorze anos, vendo-se assim privada de liberdade e de realizar o seu sonho de ser professora.

    Uma escrita subtil, plena de emoções, que nos guia pela narrativa com a leveza de uma flor de cerejeira na Primavera. Uma apologia da vida, da alegria de viver, da esperança, da culinária e, acima de tudo, da maneira como devemos escutar o mundo e tudo aquilo que nos rodeia. “Todos nascemos para ver e escutar o mundo”, escreveu Tokue Yoshii a Sentarô, e isso “é uma poderosa noção, com potencial para dar uma nova forma à nossa visão de tudo”, acrescenta Durian Sukegawa.

  • As peripécias de quem não sabia (ainda) o que era uma guerra

    As peripécias de quem não sabia (ainda) o que era uma guerra

    Título

    A entrada na Guerra

    Autor

    ITALO CALVINO (tradução: Leonor Reis e Sousa)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Abril de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Aos 31 anos, Italo Calvino escreveu A entrada na guerra, uma das suas obras menos conhecidas, e que em boa hora, e de forma muito oportuna, a Dom Quixote agora edita, pela primeira vez, em Portugal.

    A oportunidade não se deve apenas por dar a conhecer aos leitores portugueses (por ser até agora inédita no nosso país) uma das primeiras obras deste escritor italiano – hoje merecidamente um dos grandes da Literatura europeia do século XX –, ainda mais autobiográfica.

    Nem por retratar o período inicial da II Guerra Mundial, que pode, aqui e ali, invocar os actuais acontecimentos na Ucrânia.

    Na verdade, deve-se a estes dois factores, mas sobretudo à sua qualidade literária, e por ser um retrato do início de uma guerra por alguém que, na verdade, está a iniciar a sua vida.

    Calvino, nascido em 1923 nos arredores de Havana (Cuba), por um acaso familiar, contava apenas 31 anos quando publicou, em 1954, as três breves memórias que constituem est’A entrada na guerra. Estava ainda longe das suas obras mais emblemáticas como Os amores difíceis (1970), As cidades invisíveis (1972) e Se numa noite de inverno um viajante (1979), mas já havia publicado O visconde cortado ao meio (1952), a primeira parte da magistral trilogia fantástica de Os nossos antepassados, completada ainda na década de 50: O barão trepador (1957), e O cavaleiro inexistente (1959).

    Mesmo sendo um livro de memórias, sem possuir, assim, a pretensão de contar uma história, esta obra tem dois fascínios. Primeiro, não aparenta ser escrito por um adulto de 31 anos, mas antes é a voz e o sentimento do adolescente Calvino a confrontar-se com a realidade de uma nova guerra que se avizinhava, mas que para jovens italianos parecia algo que somente quebrava o quotidiano, criando-lhes um mundo de aventuras. Segundo, já se lhe nota um amadurecimento da prosa, já bem visível em O visconde cortado ao meio, uma segurança na simplicidade como discorre a narrativa e a pontua com detalhes, por vezes desconcertantes. 

    A primeira parte, A entrada na guerra, que lhe dá título à obra, é datada no dia 10 de Junho de 1940. Encontra o jovem Calvino, como vanguardista (milícia juvenil homóloga à Mocidade Portuguesa), ajudando como pode (e quer e lhe apetece) a dar sopa aos refugiados que chegavam a uma escola, e onde o que mais “saltava à vista (…) era a presença de aleijados, de idiotas, de mulheres barbudas, anões, eram os lábios e narizes deformados por lúpus, era o olhar impotente dos doentes com delirium tremens: era este o rosto sombrio das aldeias de montanha, agora obrigado a revelar-se, a desfilar nas paradas o velho segredo das famílias camponesas à volta de quem as casas das aldeias se apertam umas contra as outras como as escamas de uma pinha”.

    A segunda parte, Os vanguardistas de Menton, temos um involuntário e imberbe Calvino a participar na pilhagem daquela pequena cidade francesa que caiu nas mãos de Mussolini em meados de 1940. Também aqui, jornalisticamente, o jovem Calvino revela a existência da máquina de propaganda, já então com as suas fake news: “Tínhamos visto recentemente no cinema um documentário que mostrava a luta das nossas tropas nas ruas de Menton; mas nós sabíamos que era falso, que Menton não tinha sido conquistada por ninguém, mas apenas abandonada pelo exército francês na altura do ataque e depois ocupada e pilhada pelos nossos.”

    O retrato de Calvino não chega a ser pungente nem sequer demasiado crítico da “selvajaria” das pilhagens, as quais acompanha e participa, para não ser considerado “estúpido”, mas sem qualquer entusiasmo.

    A terceira e derradeira parte, As noites da UNPA (Unione Nazionale Protezione Antiaerea, um corpo de voluntários para socorro da população civil em caso de ataques aéreos), retrata “tempos em que ainda não se sabia o que era o terror; pelas ruas viam-se apenas sinais do despertar geral e brusco: vozes nas casas, luzes que se acendiam e eram logo apagadas, e pessoas meio vestidas às portas dos abrigos olhando para o ar”. Por isso, o relato incide sobretudo nas aventuras, brincadeiras, partidas e descobertas de Calvino e dos seus amigos em San Remo durante um blackout.

    Nada, nesta obra, retrata o período posterior da vida de Calvino na sua chegada à fase adulta, com a entrada na Universidade de Turim e depois Florença – onde estudou a contragosto Agricultura, por pressão paterna –, e muito menos a sua entrada na Resistência italiana comunista. Não era preciso. Está muito, muito bom assim como ficou.

  • Da sociedade pandémica portuguesa – uma sátira

    Da sociedade pandémica portuguesa – uma sátira

    Título

    A despedida de Ulisses

    Autor

    FRANCISCO MOITA FLORES

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Março de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Nascido em Moura, em 1952, o escritor Francisco Moita Flores é conhecido por ter sido presidente da autarquia de Santarém (2005-2012), e colaborador em vários periódicos e televisão, comentando política nacional e temas sociais. Mas grande parte da sua vida passou pela Polícia Judiciária, embora tenha cursado História.

    Todas estas experiências lhe terão dado um repertório interminável para a ficção. São já vários os seus romances que resultaram em séries televisas e cinema, nomeadamente Os polícias, A raia dos medos, Alves dos Reis, O processo dos Távoras e A Ferreirinha.

    A despedida de Ulisses, a sua mais recente obra, mais do que um romance poderá ser entendido como uma descrição da vida portuguesa durante os primeiros meses da pandemia, causada pelo SARS-CoV-2. A crueza e o realismo custam a digerir, fazendo-nos questionar: mas não é suposto que a literatura nos transporte para outros lugares, outras paisagens, outras vidas?

    O truque de Moita Flores é, neste aspecto, brilhante. A viagem é a de um Ulisses, entre o passado ressentido – pela miséria que o obrigou a deixar os estudos durante a ditadura – e o futuro por que anseia viver com a reforma à vista. Um futuro, espera ele, inteiramente dedicado à sua paixão: a pintura.

    A pandemia, com o primeiro estado de emergência, é um boicote à sua reforma, que de idílica pouco tem. É aqui que entra a mestria de Moita Flores, que intercala os acontecimentos do “estado pandémico da nação” com as viagens interiores de Ulisses.

    A arte foi, é – e a nossa esperança é que continue a ser – o reduto da beleza, o lugar para resgatar a nossa Humanidade.

    Entre as discussões sobre onde comprar papel higiénico ou latas de atum, os pretextos para sair, como comprar brócolos, e a chegada pomposa dos ventiladores, que afinal não se sabe por onde andam os restantes trezentos e tal, Moita Flores enleva-nos com a descrição do Louvre e das sensações e emoções estéticas causadas pela contemplação d’A Origem do Mundo, de Gustave Courbet, ou a Morte da Virgem, de Caravaggio, entre muitos outros. É como se a intenção do autor fosse a de nos permitir uma pausa entre a estupidez e a miserabilidade humanas e a criação e a arte grandiosas, também humanas.

    Este é um romance que nos leva do extremo da mediocridade política portuguesa até à criatividade, bondade, dedicação e beleza que sobrevivem, em potencial, em cada um de nós. Assim nos desliguemos da televisão, das notícias, das redes sociais…

    Eis aqui um romance que perpassa, sob a forma de sátira, por algumas temáticas contemporâneas, ajudando a desconstruir e a compreender a propaganda mediática a que estamos sujeitos.

    É a quantidade de temas e a sua superficialidade, juntamente com alguns lugares-comuns, que nos inibe a uma nota mais alta. Note-se, porém, que o que Moita Flores aborda é o suficiente para que os mais atentos se revejam nas discussões pobres, que a cada momento chegam como que em vagas, para distrair e entreter os que por elas se deixam assoberbar.

    A lucidez é a da personagem principal, Ulisses, que “contracena” com a sua mulher, Florência – um triste retrato de parte da população portuguesa, cuja comicidade só não é maior pela trágica semelhança com a realidade.

  • Um divertimento literário cheio de fantasia culinária

    Um divertimento literário cheio de fantasia culinária

    Título

    Livro de receitas dos lugares imaginários

    Autor

    ALBERTO MANGUEL (tradução: Rita Almeida Simões)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Novembro de 2021)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    “Só na má literatura é que as personagens não comem”, afirmou Alberto Manguel (n. 1948) em Dezembro do ano passado, numa entrevista ao Ípsilon (Público).

    Pegando nesta ideia, poderemos afirmar igualmente que só os maus leitores não pensam no que as personagens comem. Numa ou outra leitura, seguramente que alguns leitores já deram por si a imaginar como seriam as iguarias que as suas personagens estariam a degustar em determinando momento da narrativa e o que fariam se elas à sua frente se materializassem.

    Quem nunca desejou partilhar a mesa e as pitanças com Sancho Pança, mais dado à comezaina do que o seu escanzelado cavaleiro andante? Quem nunca imaginou os petiscos que Phileas Fogg e Passepartout comeram na sua volta ao mundo? Que dizer dos repastos com os Três Mosqueteiros? Ou mesmo nas farsas de Gil Vicente?

    Neste Livro de receitas dos lugares imaginários, o prazer da leitura prolonga-se num verdadeiro êxtase pelo prazer de cozinhar e, sobretudo, o prazer de comer e partilhar, tanto a mesa como os livros. Além de ler e escrever, o ensaísta argentino e autor de vários best-sellers internacionais também gosta de imaginar quais as iguarias que as personagens que vai lendo mais apreciam trincar.

    É na cozinha, entre tachos e panelas, que o escritor se entretém a inventar receitas, segundo ele, desde a adolescência, e agora as apresenta pela primeira vez em livro. «Sempre me senti atraído por histórias sobre comida, ou melhor, histórias em que as personagens se detêm a comer, passam tempo a cozinhar ou se reúnem à volta de uma mesa», confessa o autor na sua Introdução. “A comida realça a realidade da ficção […] porque, para mim, a simples menção de comida humaniza uma história», acrescentando que «toda a comida (diz-nos a literatura) é, na sua essência, uma prova da nossa humanidade comum”.

    Para compor estas receitas, Alberto Manguel dedicou-se à “comida de lugares que não existem senão na imaginação”, seleccionando lugares imaginados por Homero, Júlio Verne, Cervantes, Platão, Boccaccio, Melville, Gabriel García Márquez, Italo Calvino, Thomas Bernhard, Rabelais ou Tolkien, entre tantos outros. Um verdadeiro festim literário e pantagruélico.

    O livro congrega 74 receitas e encontra-se dividido em Entradas e sopas (11), Pratos principais e molhos (37), Sobremesas (21) e Bebidas (5). A maior parte das receitas são de fácil execução, com os passos necessários bem explicados. Na lista de ingredientes, salienta-se o uso da malagueta, que aparece em onze receitas, ou os coentros em nove receitas, uma delas para sobremesa. Destaque também para o uso de variadas especiarias e ervas aromáticas, que conferem grande personalidade aos pratos.

    Aqueles ingredientes imaginários, quando difíceis de encontrar, podem ser facilmente substituídos por outros mais comuns, como por exemplo, ovo de aepyornis (p. 37) que pode ser substituído por ovos de galinha, assim como o ovo de dragão (p. 74); a carne de roc (p. 100) substituída por carne de cordeiro; a salsicha de elefante (p. 102) por salsicha merguez ou o albatroz negro de Tsalal (p. 115) facilmente substituído por frango. Só a falta de imaginação impossibilita qualquer confecção gastro-literária. A receita mais dispendiosa talvez seja o Risotto de Trufa à Moda de Marina (p. 83), pois requer uma trufa negra fresca.

    Numa ou noutra receita, os leitores facilmente reconhecem alguns pratos bastante familiares, como o caso da nossa tradicional canja, aqui proposta como Sopa de Letras de Babel (p. 22), com as massinhas de letras, as mesmas com que na nossa infância nos divertíamos a formar palavras no prato, ou os crepes na receita dos Achatados (p. 138).

    Há algo de lúdico, prazeroso e nostálgico nestas receitas propostas pelo autor pois, como escreve Manguel, “a literatura não é apenas alimento da alma”, é também uma maneira de nos identificarmos «com os livros que amamos; de certa maneira, tornamo-nos a personagem cuja vida seguimos na página.”

  • A metamorfose de um beijo

    A metamorfose de um beijo

    Título

    Para acabar de vez com Eddy Bellegueule

    Autor

    Édouard Louis (tradução: António Guerreiro)

    Editora (Edição)

    Elsinore (Fevereiro de 2022)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Este livro tem como tema central a homofobia. A vítima é o narrador. É também autor porque se trata, de facto, de um romance quase autobiográfico.

    Não no sentido em que o são todos (dificilmente escalpelizamos, com coerência, emoções e sentimentos sem que os tenhamos vivido), mas no sentido em que o autor foi, de uma forma constante, vítima de bullying durante toda a sua infância e parte da adolescência. 

    As descrições que Eddy, a personagem principal, faz de algumas das agressões de que foi vítima são perturbadoras e dolorosas. “Da minha infância não tenho nenhuma recordação feliz”.

    Começa assim. “No corredor apareceram dois rapazes, o primeiro, grande, de cabelos ruivos, e o outro pequeno, de costas arqueadas. O matulão de cabelos ruivos escarrou. Toma lá nesse focinho (…) No corredor, perguntaram-me quem eu era, se era eu o Bellegueule de quem toda a gente falava. Fizeram-me esta pergunta que depois repeti incansavelmente durante meses, anos

    És tu o paneleiro?”

    Era. E a forma com que o tratam por causa dos trejeitos, da forma de falar, do facto de só se relacionar com raparigas, e não gostar de jogar futebol e de participar em outras brincadeiras “próprias de rapazes”, é de uma violência devastadora. Da parte desses dois agressores, mas também da família, uma vez que havia toda uma espiral de violência e humilhação na história trágica dos pais, como se de uma maldição herdada se tratasse, dos vizinhos, da avó, da escola, da aldeia toda.

    Édouard Louis, o autor francês, nasceu em Hallencourt (Picardia) no ano de 1992. Estudou História na Universidade de Picardia e Sociologia na Escola Normal Superior de Paris.

    Este romance foi dedicado ao filósofo e sociólogo, Didier Eribon autor de Regresso a Reims, sendo o seu livro de estreia. Entretanto, já publicou outros, com igual sucesso.

    Este é composto por duas partes, “Livro I” e “Livro II”, respetivamente, “Picardia (final dos anos 1990 – início dos 2000)” e Falha e fuga”, seguido de um epílogo, e é surpreendente que o autor o tenha escrito com apenas 19 anos de idade, uma vez que revela uma maturidade e autenticidade surpreendentes.

    As experiências narradas retratam um universo onde a pobreza, o consumo de álcool, e outras dependências, são omnipresentes numa aldeia onde a reprodução social leva as mulheres a tornarem-se caixas de supermercado, após terem abandonado, precocemente, os estudos; e os homens a mudarem-se da escola para a fábrica, logo que possam trabalhar.

    Foi a este destino que Eddy quis fugir. Um combate duplo: para além do contexto social sufocante e castrador, tinha um corpo que não obedecia aos ditames sociais.

    As namoradas com quem se forçava a relacionar-se não lhe despertavam o desejo: “Não conseguia simular o desejo. Tentei pensar noutra coisa para que o meu sexo se erguesse e a Sabrina se sentisse tranquila, mas quanto mais me concentrava mais as hipóteses de despertar a minha excitação se tornavam improváveis e longínquas”.

    O corpo, com vontade própria, só se excitava com a visão, ou com o toque, de um corpo masculino. Depois de se ter convencido disso “o meu corpo nunca mais deixou de se rebelar contra mim, chamando-me para o meu desejo e aniquilando todas as minhas ambições de ser como os outros, de gostar também de raparigas”, Eddy fugiu. Ir estudar numa Escola de Teatro, longe da aldeia, longe da família, longe de tudo o que o fazia sofrer, pareceu-lhe a única saída. Mas o passado seguiu-o. Acaba assim:

    “Estamos no corredor, diante da porta 117, à espera da professora, a senhora Cotinet.

    Alguém chega.

    Tristan

    Interpela-me

    -Então, Eddy, continuas bicha?

    Os outros riem

    Eu também.”

    Apesar de ser um romance com uma linguagem crua e dura é também comovente e terno. Uma belíssima descoberta.

  • O tempo tocado por um acordeonista

    O tempo tocado por um acordeonista

    Título

    Vidas seguintes

    Autor

    ABDULRAZAK GURNAH (tradução: Eugénia Antunes)

    Editora (Edição)

    Cavalo de Ferro (Fevereiro de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Devo começar por avisar os leitores de que abordo sempre os livros sobre o colonialismo e/ou o pós-colonialismo com enorme desconfiança. Sei, por experiência, que as equações branco = colonizador = mau e preto = colonizado = bom são tão falsas quanto nefastas. Essas equações fazem, infelizmente, parte do corpus do pensamento contemporâneo, e poucas ou raras são as obras sobre o tema que lhes escapam.

    Não se pode dizer que Vidas seguintes seja uma dessas obras, mas pode – e deve – dizer-se que tem pelo menos o mérito de não as abraçar de olhos fechados. O romance é bastante crítico em relação aos usos e costumes locais, embora trate diferentemente os horrores dos colonizadores e os horrores das personagens indígenas. Verdade seja dita que a colonização alemã foi particularmente brutal, e é compreensível que o autor adjective mais a sua brutalidade do que a dos usos e costumes que descreve.

    Isto dito, Vidas seguintes é a história de quatro personagens: Ylias, Afiya, Hamza e Khalifa, que acabam por se encontrar apesar de, à partida, só Afiya e Ylias (irmãos) se conhecerem. Tem um escopo temporal de aproximadamente 80 anos, se bem que o miolo da história se concentre em 60 desses anos.

    A acção decorre na região que é agora a Tanzânia – começa quando era parte da África alemã, passa para os anos de colonialismo inglês e mal menciona a independência.

    Ylias alista-se nas terríveis tropas coloniais alemãs, Afiya casa-se com Hamza que se torna colega de Khalifa. O quarteto nunca chega a sê-lo, pois Ylias desaparece bastante cedo da narrativa, e só se mantém presente porque a irmã não perde a esperança de o rever. Só no último capítulo saberemos o que lhe aconteceu.

    Contada no habitual estilo sóbrio, factual e de poucos adjectivos da literatura anglo-saxónica, as histórias prendem-nos desde muito cedo para não mais nos largarem. As personagens vão-se construindo pouco a pouco, desde o início e vão-se «solidificando», sedimentando ao longo das respectivas histórias.

    A técnica narrativa do autor é sublime. Joga com o tempo como um acordeonista com o seu instrumento, ora esticando-o ora encolhendo-o com uma maestria excepcional. Um capítulo pode cobrir dez anos, e outro um ou dois, e tudo flui “naturalmente”.

    Este livro é excelente tanto para quem se interessa apenas pelo estilo como para quem dá a prioridade ao enredo. Nada aparece forçado, um erro tão frequente nestas histórias de pessoas que se encontram “por acaso”.

     A tradução é boa. Há uma grande quantidade de termos em suaíli, que não estão traduzidos, aparentemente uma escolha do autor.

    Até ganhar o Nobel (2021), Abdulrazak Gurnah era pouco conhecido fora do Reino Unido. Nasceu em Zanzibar em 1948, abandonou a ilha e foi para Inglaterra em 1968 devido à perseguição de que os naturais de origem árabe foram alvo depois da Revolução de Zanzibar (1964).

    De 1980 a 1982 foi professor na universidade de Kano, na Nigéria e de 1982 até à sua reforma (2017) deu aulas de literaturas inglesa e pós-colonial na universidade de Kent.

    É autor de uma dezena de romances, vários contos e de obras de não-ficção – ensaios e crítica. Esteve por duas vezes nas listas do Booker mas nunca o ganhou. Em 2006 foi eleito fellow da Royal Society of Literature. O Nobel provocou uma corrida às suas obras, muitas delas esgotadas ou difíceis de encontrar.

  • Uma arca de vidas sem chão

    Uma arca de vidas sem chão

    Título

    A arca

    Autora

    MONICA WOOD (tradução de Maria Dias Correia)

    Editora (Edição)

    Edições ASA (Fevereiro de 2022)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    A norte-americana Monica Wood já recebeu vários prémios, entre os quais dois pela sua contribuição para as humanidades e artes literárias: o Maine Writers & Publishers Alliance
    Distinguished Achievement Award (2018) e o Maine Humanities Council Carlson Prize (2019), respectivamente.

    Das suas muitas obras – apenas uma tinha sido antes publicada em Portugal, Um rapaz muito especial (2016),pela TopSeller – , esta é a sua favorita, de tal modo que se rendeu à republicação do original de 2002, com a integração de mais um capítulo em 2020: Não chores bebé, que constitui uma das nove histórias brilhantemente entretecidas desta edição melhorada.

    O pano de fundo deste romance é uma greve laboral de vários meses numa fábrica de papel da localidade de Abbout Falls, no Estado do Maine.

    Ao longo de 200 páginas, escutamos várias vozes sobre a greve, e outras histórias e vidas, todas interligadas de uma ou outra forma. Em cada personagem, a sua história, com maior ou menor (ou pouco) ênfase na greve, mas quase todas com alguma repercussão na sua vida decorrente dessa greve na fábrica de papel.

    O ponto de partida é a construção de uma arca como um projecto de arte, e cujo objectivo é dar mais vida a uma vida que está no fim e mais sentido a outra que perde o seu propósito.

    Em cada capítulo, um sofrimento, uma mágoa distinta, uma tentativa para encontrar uma qualquer espécie de felicidade, de preferência com o sentimento de se ser útil ou, pelo menos, importante para alguém. Várias são as histórias de vida de trabalho sem salários, casamento, divórcios, fugas e ausências.

    Este é, assim, um romance que convida à reflexão sobre os laços familiares que se perderam, que se querem recuperar ou sem esperança de serem reatados. O termo de comparação para algumas personagens é o casamento dos progenitores, sendo esta filiação uma rede sem chão, sem o apoio que se esperaria dos pais.

    Em cada personagem, em cada vida, uma perspectiva sobre o acontecimento que perpassa as vidas de todos: a greve na fábrica que é a vida de quase todos os residentes de Abbout Falls, no Maine.

    O romance aborda as condições de trabalho, o papel dos sindicatos, o trabalho enquanto condição (nem sempre) humana e a família. Uma outra versão de uma pastoral americana, sem o esplendor do sonho que deixou há muito de ser concretizado pela maioria.

    Além dos valores da família e do trabalho, o da solidariedade, que, a propósito da greve, se percebe que afinal “não é um chão, é uma escada. E as pessoas acabam em degraus diferentes”.

    Sem dúvida, uma leitura a não perder, para quem aprecia uma escrita envolvente e cativante sobre as vidas de personagens (quase) reais, com receios e angústias autênticos, em que o leitor se sentirá impelido a continuar até à última página. 

  • Uma deliciosa busca às cozinhas com pitada portuguesa

    Uma deliciosa busca às cozinhas com pitada portuguesa

    Título

    À portuguesa: receitas em livros estrangeiros até 1900

    Autor

    VIRGÍLIO NOGUEIRO GOMES

    Editora

    Marcador

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Diz o povo que a curiosidade matou o gato, mas para Virgílio Nogueiro Gomes (n. 1949) esse desejo revelou-se o rastilho primordial que o conduziu numa investigação gastronómica durante seis anos, e o levou a mergulhar nos arquivos de bibliotecas e alfarrabistas em busca de dezenas de manuais de cozinha de antanho.

    Profundo conhecedor e defensor da gastronomia portuguesa, Virgílio Nogueiro Gomes pretendia descobrir as razões que justificassem o facto de algumas receitas publicadas em livros estrangeiros ostentarem a denominação «à portuguesa» ou de «Portugal».

    Assim, na sua aventura, o investigador em História da Alimentação coligiu cento e dezoito receitas, encontradas em trinta e um livros impressos entre 1604 e 1900, desde Espanha a Itália, do Brasil a França. Constatou que, na maioria das receitas, a denominação «à portuguesa» ou de «Portugal» estava subjacente ao uso de um ingrediente particular: a laranja doce, de que Portugal foi, principalmente a partir do século XVI, o maior distribuidor para os mercados da Europa.

    Considerada por muitos como a de melhor qualidade, a laranja portuguesa influenciou bastante a doçaria europeia até finais do século XIX.  Ainda hoje, em muitos países europeus e da bacia do Mediterrâneo a palavra usada para designar a laranja tem origem no topónimo Portugal: portakal, portocaliu, portokall, portokhali, portokal, portokali, portugallo, portugai.

    Muitas outras receitas encontradas por Virgílio Nogueiro Gomes surgem com estas designações simplesmente pelo uso de ingredientes então identificados com Portugal, como o caso do açúcar ou do vinho da Madeira, bastante procurados pelos mestres cozinheiros das principais cortes europeias.

    De acordo com o autor, «o encontro de cozinheiros das cortes ou de casas abastadas permitiria possivelmente a partilha de conhecimentos culinários e o nome “à portuguesa” poderia ser decorrente da nacionalidade do artista que ensinou.» Aponta depois o caso de Francisco Martinez Montiño, cozinheiro da corte espanhola, que acompanhou o rei Felipe III durante a sua estadia em Lisboa. «É possível», sugere o autor, «que por esse facto tenha aprendido algumas receitas nossas e, por isso, as terá batizado “à portuguesa”.»

    Na ausência de mais dados, aqui e ali, o autor vai apontando caminhos, sugerindo hipóteses, mas a falta de informação não permite uma explicação cabal, tal como sugere a advertência que Inês de Ornellas e Castro faz ao leitor no Prefácio: «neste livro encontramos, sobretudo, receitas que reproduzem aquilo que o(s) Outro(s) percepcionam ser, de algum modo, identificável com Portugal ao longo de trezentos anos», uma vez que, acrescenta, «a maior parte das obras foi escrita muito antes de existir o conceito de pratos tradicionais e nacionais».

    Segundo a investigação realizada por Virgílio Nogueiro Gomes, algumas das receitas, embora nos honrem com o título, «não fazem parte da nossa tradição alimentar ou não chegaram aos tempos atuais.» Outras são fruto de confusões e equívocos, como por exemplo a indicação do vinho da Madeira como sendo um vinho africano, ou receitas «à portuguesa» mas com a adição de vinho de Málaga ou de Alicante. Até o célebre Auguste Escoffier, quando publica o seu Le Guide Culinaire (1902), «vem assumir que apelida de “à portuguesa” todos os pratos que têm tomate.»

    Das receitas encontradas, Virgílio Nogueiro Gomes confeccionou e fotografou oito, resultado que pode ser vislumbrado numa das badanas do livro. Não obstante, devido ao interesse que estas receitas suscitam, as ditas mereciam um lugar mais destacado.

    As receitas, apresentadas na sua versão original, em fac-símile, foram traduzidas pelo autor e são acompanhadas por algumas notas ou comentários explicativos sobre um ou outro ingrediente mais esquivo, sendo quase todas elas passíveis de serem confeccionadas hoje em dia. Uma dessas receitas é a de um «arroz à portuguesa», que reproduzimos em baixo, pela grande semelhança com o nosso tradicional arroz-doce. Referência também para as preciosas informações biográficas sobre os autores destes livros de cozinha, algumas delas bem pitorescas e quase anedóticas.

    Eis um livro curioso, bastante pertinente, que abre caminho a futuras investigações sobre esta temática e que, acima de tudo, se revela muito útil e de referência para todos aqueles que se interessam pela história cultural da nossa alimentação.

    Deixamos aqui, para aguçar o apetite, a receita “Para fazer arroz à portuguesa”, incluída no livro Il Pan Unto Toscano (1705), de Francesco Gaudenzio (1648-1733):

    “Para vinte pessoas, tomar uma escudela de arroz e um bom púcaro de leite, pôr o dito arroz bem lavado e limpo no leite a ferver e deixá-lo cozer em fogo lento, misturando-o até engrossar. Próximo do fim da cozedura, adicionar uma libra de açúcar. Quando estiver cozido, misturar dez gemas de ovo batidas bastante bem com água de cheiros (possivelmente água de flor de laranjeira) e incorporar no arroz deixando ficar um pouco ao lume. Mandar para a mesa com canela por cima.”

    Bom apetite.