Categoria: Recensões

  • Receitas apetitosas como poemas

    Receitas apetitosas como poemas

    Título

    A cozinha inglesa de Miss Eliza

    Autora

    ANNABEL ABBS (tradução: Elsa T. S. Vieira)

    Editora (Edição)

    Edições ASA (Abril de 2022)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    A todos aqueles que costumam cozinhar com frequência já sucedeu encontrar uma ou outra receita a que, seguramente, faltava certo ingrediente ou alguma etapa na confecção, quando não uma formulação atabalhoada.

    Foi também o que constatou Eliza Acton (1799-1859) nos manuais de cozinha britânicos do início de oitocentos. Em face de tais discrepâncias decidiu escrever um manual de cozinha intitulado Modern Cookery (1845), e é essa aventura que Annabel Abbs nos narra neste romance.

    Logo no Prefácio somos alertados de que esta se trata de “uma obra de ficção baseada nos poucos factos conhecidos sobre a vida de Eliza Acton, autora de poesia e pioneira da escrita culinária, e da sua assistente, Ann Kirby”.

    Escrito ao longo de dez anos, entre 1835 e 1845, o manual que Eliza escreveu é, ainda hoje, considerado como um dos melhores livros de culinária britânicos e um bestseller no seu tempo, com inúmeras edições ao longo dos anos. O que é obra, pois a jovem Eliza Acton, então com 36 anos, antes de embarcar nesta culinária odisseia, não sabia cozinhar rigorosamente nada.

    Tudo começa depois de Eliza publicar um livro de poemas. O editor diz-lhe que “a poesia não é coisa para senhoras”, propondo-lhe antes que escrevesse novelas, pois “são muito populares junto das jovens”, ou um livro de culinária. “Se sabe escrever poemas, também sabe escrever receitas.” E lança-lhe um desafio: “Traga-me um livro de culinária tão bonito e elegante como os seus poemas.”

    Rapidamente, Eliza constata que os manuais de culinária existentes apresentavam “uma prosa desastrada e estrangulada”, com uma gramática fraca, receitas pouco apetitosas, textos flácidos, entre outros desastres. “Alguns autores mal sabem escrever. As medidas são imprecisas, o fraseado é deselegante. Falta-lhes clareza e as próprias receitas não são nada apetitosas.”

    Perante todo este cenário, Eliza decide escrever um manual de cozinha com requinte literário, comparando o processo de seguir uma receita com o de escrever um poema. “Porque não hão de as artes culinárias incluir poesia? Porque é que um livro de receitas não pode ser uma coisa bela?”, questiona-se a novel cozinheira. “Tal como um poema, uma receita deve ser clara, precisa e ordenada.”

    E é assim, com este desígnio em mente, que Eliza vai descobrindo as maravilhas da culinária, acolitada por Ann Kirby, a jovem criada, que lhe serve de fonte de inspiração por possuir “um palato capaz de distinguir os mais subtis dos sabores”.

    Ao longo do processo de composição do manual de cozinha, os leitores vão mergulhando igualmente nos mundos atribulados e trágicos das personagens, com todos os seus dramas e, principalmente, os seus segredos. Tanto Eliza como Ann escondem algo uma da outra e que aos poucos, conforme a sua amizade se vai reforçando,  vão sendo revelados.

    Todos os capítulos têm como título uma referência gastronómica e há uma grande dose de sensualidade e deleite em algumas das descrições culinárias feitas pelas personagens, principalmente Eliza, e nas sensações que certas iguarias provocam no palato e no corpo.

    No capítulo XIX, por exemplo, encontramos Arroz Doce no título. Consultando a edição original do Modern Cuisine nele encontramos uma receita de Arroz Doce à Portuguesa (p. 496): “This is quite the best sweet preparation of rice that we have ever eaten, and it is a very favourite dish in Portugal, whence the receipt was derived.

    Ao longo da narrativa, encontram-se várias outras referências a produtos de origem portuguesa, como um Bolo de Madeira, confeccionado com vinho da Madeira, ou bastas alusões ao vinho do Porto, seja como bebida seja como ingrediente para inúmeras confecções culinárias, demonstrando a importância que os vinhos licorosos portugueses possuíam em terras de Sua Majestade.

    Por fim, nota para um ponto menos positivo.

    Embora a história seja contada por duas vozes distintas, a de Eliza e a de Ann, ambas parecem ter o mesmo tom. Annabel Abbs não soube dar dimensões diferentes à voz que conta o seu ponto de vista, tanto mais que as duas personagens são provenientes de estratos sociais diferentes e com níveis de educação bem díspares. Pormenor que esturrica um pouco este romance curioso e bem disposto que, tal como uma boa iguaria, proporciona bons momentos de leitura.

  • As trágicas vidas dos pequenos super-heróis

    As trágicas vidas dos pequenos super-heróis

    Título

    Onde as pêras caem

    Autora

    NANA EKVTIMISHVILI (tradução: Maria do Carmo Figueira)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Março de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    A premiada realizadora georgiana Nana Ekvtimishvili fez o seu debut como escritora em 2015 com Onde as pêras caem, e foi uma aposta ganha: publicado em inglês no ano passado, o seu (ainda) único romance foi nomeado para o International Booker Prize.

    Dos seus filmes, destacam-se In Bloom, selecionado para representar a Geórgia na categoria de Melhor Filme Internacional na edição dos Óscares de 2014, e My Happy Family, exibido no Sundance Film Festival de 2017.

    Onde as pêras caem é uma homenagem aos pequenos super-heróis da vida real, aqueles dos quais ninguém fala, que lutam diariamente pela sobrevivência em circunstâncias adversas. Por outras palavras, é a história de órfãos e crianças com deficiências mentais que são abandonados à sua sorte pelas respectivas famílias num colégio interno conhecido como a “Escola dos Idiotas”. O pano de fundo é o início da década de 1990, após a dissolução da União Soviética, na rua de Kerch, em Tiblissi, capital da Geórgia.

    Nesta obra ficcional, a heroína é Lela, apresentada com traços heróicos: destemida, aguerrida e com uma personalidade vincada. O seu espírito rebelde e independente é, no entanto, contrabalançado por um lado bondoso e altruísta que, devido à sua “capa” protectora, não é logo perceptível a um mero estranho.

    Os vilões da história são adultos: os pais que viraram as costas aos filhos, e lhes alimentam falsas esperanças de um dia os irem buscar, ou os “educadores”, como Vano, professor de História do colégio, e às mãos de quem as meninas sofrem abusos sexuais constantes. Já com dezoito anos, Lela vai, ao longo dos dias, congeminando o assassinato de Vano, que a violou repetidas vezes durante a sua infância.

    Para além de motivada pelo desejo de vingança, Lela faz o papel de irmã mais velha e assume a missão de proteger o seu amigo Irakli, acalentando o sonho de o ver partir para uma nova vida fora das paredes do orfanato. Ika, como os colegas lhe chamam, é um menino que espera, há anos, que a mãe o venha buscar num “próximo fim de semana” que nunca chega.

    A chance de deixar aquela instituição putrefacta, e de sentir pela primeira vez o calor de um lar e o aconchego de uma família parece estar ao alcance de Irakli quando um casal americano envia uma representante à Escola para adoptar um dos residentes. Porém, quando finalmente surge a oportunidade de Irakli começar do zero, dá-se uma reviravolta.

    Escrito sem sentimentalismos, Onde as pêras caem é um retrato fiel e verossímil de um mundo à margem, mas que todos sabemos que existe. Nomeia, dá voz e corpo a estes anónimos que, tal como tantos outros, podemos não conhecer mas que andam por aí, num qualquer “edíficio-escola” nas periferias das cidades; e de quem ouvimos falar, de vez em quando, na televisão ou nos jornais. Talvez por isso, as personagens nos pareçam estranhamente familiares e as descrições tristemente reais. 

    Todos nós, de resto, já nos teremos cruzado com vítimas de abusos e de abandono que, porventura, engrossam os relatórios de instituições de solidariedade social. Ou com as que, omissas dessas listas, vivem as suas vidas como as personagens deste romance: relegadas ao esquecimento depois de serem “saqueadas” pelos seus carrascos, a não ser que alguém como Ekvtimishvili se lembre de escrever sobre eles.

    Onde as pêras caem é, enfim, sobre crianças especiais com vidas marcantes que, aqui, neste romance, como na vida real, vale a pena conhecer para evitar que ainda existam em próximas gerações.

  • Em busca do sol, numa noite de Verão

    Em busca do sol, numa noite de Verão

    Título

    É tempo de reacender as estrelas

    Autora

    VIRGINIE GRIMALDI (tradução: Carmo Vasconcelos Romão)

    Editora (Edição)

    Marcador (Abril de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Nascida em Bórdéus em 1977, a francesa Virginie Grimaldi publicou o seu primeiro romance, Le premier jour du reste de ma vie, em 2015, e desde  aí não mais parou, tendo-se tornado, em 2020 a escritora mais lida no seu país.

    O sucesso tem sido internacional: já com sete romances – o último dos quais, Les Possibles, publicado no ano passado –, tem edições em duas dezenas de línguas. No entanto, este é o primeiro livro publicado em Portugal.

    Não será estranho comprender, pela leitura de É tempo de reacender as estrelas, que já tenha vendido mais de um milhão de exemplares em todo o Mundo. Com efeito, a leveza e humor com que a autora permeia e premeia o romance provoca, no leitor, uma vontade inexplicável de avidamente prosseguir até à última página.

    É o livro ideal para uma escapadinha num local tranquilo, onde o silêncio seja cúmplice para desfrutar de uma viagem ao Cabo do Norte e, assim, contemplar as auroras boreais e outras paisagens melodiosas, onde o sol da meia-noite é um dos protagonistas.

    O romance aborda uma história contada em três versões – por uma mãe e as suas duas filhas. Cada versão tem uma voz e um registo distintos.

    A versão da mãe, Anna, na primeira pessoa, é a história de uma vida difícil, de uma mulher divorciada, com 37 anos, e das suas vicissitudes e dificuldades para conseguir pagar (sem sucesso) todas as despesas sozinha. As dívidas acumulam-se sem que saiba como se desenvencilhar dos credores. Para piorar ainda mais a situação, ela é convidada a despedir-se de um emprego desgastante, cujo horário não lhe permite passar tempo útil com as filhas, uma de 17 anos, Chloé, e outra de 12, Lily.

    A indemnização, que serviria para pagar todas as dívidas e relaxar durante algum tempo, é usada para viver uma longa viagem de autocaravana com as filhas até ao Cabo Norte. A decisão é acelerada, e posta em prática no dia em que Anna vê um homem nu na casa de banho de sua casa. 

    O registo de Chloé, uma jovem angustiada e sem auto-estima, é conhecido através do seu blogue pessoal, no qual a personagem partilha com quem quiser ler tudo o que se passa na sua vida, desde as discussões com a mãe por causa do pai, com quem não está há anos, às suas dúvidas relativas à sua activa vida pouco amorosa e sexual.

    Lily encontra num diário, que nomeia de Marcel, o seu amigo confidente a quem relata, com a ingenuidade típica de uma adolescente, os acontecimentos do seu dia-a-dia, incluindo o que os adultos denominam de bullying.

    O tom da narrativa varia, por isso, em cada capítulo – geralmente curtos – sendo mais intimista e revelador na versão adulta, a de Anna.

    A voz da jovem é tão banal quanto assustadora em termos de teor. Com efeito, os dilemas, angústias e dúvidas reveladas através do blogue de Chloé são, provavelmente, os de muitas outras jovens. Sendo, por esta razão, uma excelente oportunidade para as leitoras com filhas nesta faixa etária. De facto, ainda que seja um romance levezinho e algo superficial, os temas aqui abordados são, certamente, as questões que geram rupturas entre gerações, entre mães e filhas (no caso deste romance).

    A escrita diarística é marcada pelo humor ingénuo e jovial, típico de uma adolescente observadora e atenta.

    No conjunto, as três personagens entrelaçam as suas vidas como um jogo do gato e do rato, onde quem fica a ganhar é o leitor apreciador de romances de Verão.

    É, também, o relato de uma viagem inspiradora, em que o cenário de algumas cidades escandinavas se torna, em certos momentos, mais um protagonista.

    A aprendizagem da mãe é uma constante e o modo como lida e gera com os problemas das filhas pode ajudar outras mães a encontrar outras perspectivas com humor.

  • A perigosa queda do homem

    A perigosa queda do homem

    Título

    Espermagedão: a fertilidade masculina em queda livre

    Autor

    NIELS CHRISTIAN GEELMUYDEN (tradução: Maria de Fátima Carmo)

    Editora (Editora)

    Casa das Letras (Abril de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Espermagedão – um termo inusitado, mas que nos traz à mente o Armagedão, a derradeira batalha bíblica entre as forças do Bem e do Mal.

    Não é mero acaso: o objectivo do título é precisamente causar impacto, pois o livro constitui um alerta sobre o qual o subtítulo logo nos elucida: “a fertilidade masculina em queda livre”. Batalha final ou não, o que o autor nos diz é, inegavelmente, estarmos na iminência de uma hecatombe: a qualidade do esperma no mundo ocidental caiu 60% em menos de 40 anos. Associada a este problema está, também, uma dramática redução nos níveis de testosterona.

    Niels Christian Geelmuyden, um conhecido ensaísta norueguês, tem sido também um dos poucos jornalistas a fazer soar os alarmes sobre esta crise que assombra o sexo masculino. Neste livro, Geelmuyden faz eco de estudos científicos e de opiniões de especialistas em reprodução e fertilidade.   

    Aos que pensam que não precisam de se preocupar porque não planeiam ter filhos, o autor faz uma advertência: a incapacidade de gerar bebés não é a única consequência negativa que advém de uma fraca reserva de espermatozoides, ou de gametas masculinos “pouco nadadores”. Geelmuyden indica outros efeitos perniciosos, como seja uma maior susceptibilidade a doenças como o cancro, nomeadamente dos testículos.

    E, como se tudo isto não fosse suficientemente apocalíptico, o norueguês alerta que similares problemas já se encontram no mundo selvagem, com diversas “bizarrices”: peixes-machos a pôr ovos, répteis com pénis mais curtos e incremento da homossexualidade e a bissexualidade no reino animal.

    Quanto a possíveis causas que expliquem este boom de infertilidade, existem muitas. Dir-se-ia até, demasiadas, como expõe Geelmuyden. No livro ocupam quatro vezes mais páginas do que as que nos oferecem soluções, o que pode não ser muito tranquilizar para os leitores.

    Aparentemente, os “gatilhos” que tornam os homens inférteis (e também as mulheres) estão por todo o lado: poluentes, pesticidas, água da torneira, sedentarismo, organismos geneticamente modificados, flúor, soja, etc., etc., etc.

    Espermagedão faz-nos, assim, dar conta de que, no mundo actual, estamos mergulhados num ambiente pouco amigável, ou mesmo hostil, à homeostase e à fecundidade dos nossos corpos.

    Na quarta parte, em que se pretende responder à pergunta sobre o que podemos fazer, encontramos conselhos variados. Alguns, lembram-nos a sabedoria ancestral das nossas avós, como “comer fruta e legumes” e “dormir o suficiente”; outros, espelham os hábitos do típico millenial do século XXI, como, por exemplo, a recomendação de “não guardar o telemóvel no bolso”; e, finalmente, temos aqueles que não nos deixam esquecer que estamos na era da tecnologia, como a congelação de amostras de esperma e a procriação medicamente assistida.

    Já bem no final do livro, “entramos” numa espécie de filme louco de ficção científica com soluções mais radicais. Por exemplo, fica-se a saber que, já em 2016, investigadores espanhóis anunciaram ter produzido esperma humano a partir de células da pele. Em simultâneo, o livro fala-nos de cientistas e especialistas em bioética, como Henry T. Greely, que anunciam que “daqui a vinte ou quarenta anos, o sexo para fins de reprodução terá quase deixado de existir”.

    Geelmuyden levanta, por isso, uma série de questões pertinentes também do ponto de vista ético: “Onde nos conduzirá  tudo isto, no longo prazo? O que nos espera? Será um admirável mundo novo ou uma barbárie tecnológica de contornos estranhos? Poderemos adivinhar os desígnios do despotismo dos manipuladores biológicos vestidos de branco? O poderio mundial será transferido para os laboratórios?”

    Um dos principais méritos de Espermagedão, e que torna urgente a sua leitura, reside na necessidade de percebermos que um problema é real para que o possamos resolver. Em suma, só podemos derrotar o “papão” da infertilidade se soubermos que ele anda por aí à solta. Se, alheios à sua existência, o ignorarmos, a Humanidade, como a conhecemos, corre um sério risco de desaparecer.

  • A caricatura perfeita de um país imperfeito

    A caricatura perfeita de um país imperfeito

    Título

    Caricaturas portuguesas dos anos de Salazar

    Autor

    JOÃO ABEL MANTA (Pedro Piedade Marques)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Abril de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    A justiça, como forma de reconhecimento, deve ser concedida em vida. E, de facto, seja reconhecido, a multifacetada obra de João Abel Manta tem estado bem viva e bem-vinda se tem mostrado, agora que ele acaba de perfazer 94 anos.

    Formado em Arquitectura na Escola de Belas Artes de Lisboa, em 1951, João Abel Manta tem obra feita nesta área – onde o exemplo mais emblemático é o conjunto de edifícios da Avenida Infante Santo, na capital –, mas foi sobretudo como artista plástico, no desenho e arte pública – por exemplo, o desenho em calçada portuguesa da alfacinha Praça dos Restauradores ou o painel de azulejos da Avenida Calouste Gulbenkian –, e na pintura e no cartoon político que mais se destacou.

    Para uma geração mais jovem – ou mesmo para aqueles com idade inferior aos 60 anos –, João Abel Manta pouco poderá dizer – e é pena. Mas, nas décadas de 50 e 60 – e em especial nos anos imediatamente anteriores e posteriores ao 25 de Abril foi ele um dos mais proeminentes cartoonistas, primeiro no Diário de Lisboa e depois sobretudo n’O Jornal.

    Caricaturas portuguesas dos anos de Salazar, obra originalmente publicada em 1978 e agora reeditada pela Tinta da China, faz jus à excepcional obra de João Abel Manta, não apenas por ser a “visão” de um cartoonista durante um período conturbado da nossa sociedade, mas sobretudo por mostrar um processo de “exorcismo” do autor perante os fantasmas do fascismo que sobrevoavam então a sua mente no pós-25 de Novembro de 1975.

    Preparados num período de auto-exílio em Londres, os cartoons de João Abel Manta, revolucionários para a época, não retratam apenas Salazar – muito pelo contrário; mostram, sim, a mentalidade do país de um ditador – de um país secular sempre pouco livre –, sempre omnipresente, sempre retrógrado, sempre lamentável.

    Num traço inconfundível, intrigante, por vezes de uma violência sádica (como nos cartoons sobre a Guerra Civil de Espanha), muitas vezes a necessitarem de reflexão para um melhor entendimento, os 139 cartoons que constituem este livro – num esmerado trabalho gráfico em papel que destaca as cores e num necessário formato oblongo – mostram-nos uma “procissão” de figuras históricas ou populares, patéticas, grotescas, tétricas, lúbricas, sinistras e, enfim, com todos os adjectivos que se queiram.

    Neste cortejo podemos assim assistir a nadadoras expondo-se ao lado de um lascivo D. Henrique; aos retratos de vice-reis congregando um passado colonial pouco edificante, à omnipresente religião católica – com a Nossa Senhora de Fátima protegendo a Selecção de futebol ou sendo a esperança de uma trupe de aleijados e frankensteins – ou ainda à veneração de um Santo António, ora famélico, ora bonacheirão, ora inquisitorial, ora sedutor.

    Todos os cartoons vivem muito das expressões, dos pormenores, das dimensões escolhidas com propósitos claros por João Abel Manta, quase nunca “normais”, explicitamente caricaturadas, porque nada surge ali por um acaso – e muito menos quando os diferentes cartoons constituem séries, como as dos cupidos no bloco Idílio, ou os diversos Camões.

    Mas, claro, o fantasma de Salazar “corporiza-se” em pleno na sequência final, em que o ditador surge, primeiro, a comandar a Universidade, depois os militares, a seguir a Igreja, homens engravatados, e por fim, crianças. Aqui, apenas um Salazar, envelhecendo-se neste percurso, tem o seu característico perfil, bem desenhado e perfeito, sempre o mesmo, estático como o país; todos os que o vão acompanhando possuem meras cabeças disformes, dir-se-ia acéfalas. Como o país.

    O esclarecedor e esclarecido posfácio de Pedro Piedade Marques – historiador, designer gráfico, tradutor e editor, e principal responsável por esta reedição – é de grande utilidade para o entendimento desta obra-prima do cartoonismo político português do século XX.

  • O cão, a lágrima e outros sentimentalismos

    O cão, a lágrima e outros sentimentalismos

    Título

    Cuidado com o cão

    Autor

    RODRIGO GUEDES DE CARVALHO

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Abril de 2022)

    Cotação

    12/20

    Recensão

    Jornalista e romancista, Rodrigo Guedes de Carvalho nasceu no Porto, em 1963. Foi na RTP que se profissionalizou – é licenciado em Comunicação Social – e começou a chegar à casa dos portugueses. Actualmente, é subdirector de Informação da SIC, apresentando o Jornal da noite, de segunda a sexta-feira.

    Paralelamente, desenvolveu a sua carreira como escritor, estreando-se na ficção em 1992 com o romance Daqui a nada – vencedor do Prémio Jovens Talentos das Nações Unidas. Depois de A casa quieta (2005), Mulher em branco (2006) e Canário (2007), ganhou o Prémio Autores SPA – Melhor Livro de Ficção Narrativa 2018, com O pianista de hotel, publicado no ano anterior, tornando-se num autor reconhecido e aclamado pela crítica.

    O argumento é também uma das suas paixões: exemplo disso são os argumentos para os filmes Coisa ruim (2006) e Entre os dedos (2009).

    Cuidado com o cão, agora publicado pela Publicações Dom Quixote, é mais um romance dedicado à profundidade das relações humanas. Como se sabe, a pandemia da covid-19 tem espoletado uma série de romances, e Cuidado com o cão é mais um: neste caso, com o enfoque no isolamento forçado que terá “obrigado” à introspecção e à revisão dos anos e vidas vividas.

    A personagem principal é o antigo cirurgião António Pedro, que, na sua velhice, triste e solitária, se sente ainda mais sozinho durante o confinamento. A visita inesperada de uma desconhecida fá-lo reviver as perdas. Perdas de confiança, de pessoas, como a filha e a mulher.

    O protagonismo desta personagem é partilhado com a vida de duas gémeas trapezistas, cuja separação seria apenas física, uma vez que ambas acabaram por seguir o mesmo caminho académico e profissional, apesar de todas as vicissitudes.

    O título do livro é uma espécie de homenagem ao cão, enquanto melhor amigo do homem – um cliché, diríamos. O primeiro, talvez. Em cada história do livro há pelo menos um cão que ocupa um lugar de relevo na vida das personagens, ora como companheiro, ora como protector.

    O Cuidado com o cão não se restringe ao animal doméstico, mas ao cuidado que devemos ter com cada pessoa que se cruza connosco. Na nossa perspectiva este “deve” é um “senão’” (dos muitos) do livro – uma espécie de moral prosaica perpassa todo o romance, fazendo lembrar o jornalista, que vive no autor, quando nos censurava: “Tenham noção…”, aquando dos confinamentos compulsórios decretados durante os Estados de Emergência.

    A estrutura do romance pode também tornar-se cansativa para alguns leitores. O experimentalismo do autor coloca o leitor numa espiral de impaciência, uma vez que, de forma repetitiva, retoma cada história no início de cada capítulo, como que fazendo um sumário em cada nova entrada – não vá o leitor esquecer o que já aconteceu. Algo que, na verdade, até pode acontecer, tendo em conta que, além destas histórias, o autor conta e reconta os enredos de outras gémeas da literatura, perdendo-se ainda com os Beatles e outras bandas.

    Este cruzamento de histórias poderia ser interessante – e até pode ser enriquecedor para quem aprecia o género; porém, parece-nos que resultaria melhor se fossem entradas mais naturais. Por vezes, dá a sensação de que estamos numa sala de aula, onde o professor explica e volta a explicar o que aconteceu, como se fôssemos crianças de cinco anos.

    De maneira que, pois então, recomendamos o livro apenas a quem gosta de sentir a lágrima no canto do olho e de outros sentimentalismos a que Rodrigo Guedes de Carvalho nos tem habituado.

  • O cãozinho riu! De que ri, Bandini?

    O cãozinho riu! De que ri, Bandini?

    Título

    Pergunta ao pó

    Autor

    JOHN FANTE (tradução: Rui Pires Cabral)

    Editora (Edição)

    Alfaguara (Março de 2022)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Arturo Bandini é uma fraude. Arturo Bandini é um fiasco. Arturo Bandini é um sedutor de quem não conseguimos deixar de gostar.

    Trata-se do alter ego do autor John Fante e Pergunta ao pó é um romance semi-autobiográfico. Bandini é um jovem escritor frustrado que conseguiu publicar, numa revista, o conto “O cãozinho riu”, que teve um moderado sucesso e que durante algum tempo lhe alimentou o ego e a vaidade.

    Convencido que teria sucesso como escritor mudou-se do Colorado para um hotel de Los Angeles onde rapidamente cai numa espiral de falta de imaginação, de falta de dinheiro e fome e arrasta-nos com ele:  “nasceste pobre, filho de camponeses depauperados, empurrado para aqui e para ali porque eras pobre, fugido do teu Colorado natal porque eras pobre, e agora erras pelas sarjetas de Los Angeles porque és pobre e esperas escrever um livro que te faça rico, pois aqueles que te odiavam no Colorado deixarão de te odiar se o escreveres”.

    Nessa vertigem o estilo de escrita é avassalador e, por vezes, aqui e ali temos dificuldade em manter o pé porque o autor arrasta-nos para o seu imaginário e temos dificuldade em o distinguir da realidade vivida. “Apavorado por lugares altos também e por sangue e por terremotos; fora isso, bastante corajoso, excetuando a morte, exceto o medo de que eu vá gritar numa multidão, exceto o medo de apendicite, exceto o medo de problemas cardíacos, a tal ponto que, sentado no seu quarto segurando o relógio e apertando a veia jugular, contando as batidas do coração, ouvindo o ronrom e o zunzum do seu estômago. Fora isso, bastante corajoso.”

    Mas o que nos é narrado em Pergunta ao pó não se resume a um relato das privações e agruras sentidas pelo jovem escritor. Que o diga Charles Bukowski, autor do prefácio: “Eu era novo, passava fome, bebia e tentava ser escritor. Fazia a maior parte das minhas leituras na Biblioteca Pública de Los Angeles, no centro da cidade, mas nenhum desses livros parecia ter qualquer relação comigo. (…) Até que um dia, ao abrir um certo livro, encontrei o que procurava. Fiquei ali, de pé, por uns momentos, a ler. Depois, como um homem que descobre uma pepita de ouro, numa lixeira, levei o livro até uma das mesas. As frases corriam ligeiras pela página fora, havia como que um fluir. Cada uma delas tinha uma espécie particular de energia e era seguida por outra semelhante. (…) Eis ali, finalmente, um homem que não temia as emoções. (…) O começo daquele livro foi para mim um violente, um enorme milagre.”

    Faz, de facto, um retrato vívido e vibrante da América dos anos 30. Uma América cheia de contrastes, rica em cores e culturas, mas também de muita miséria, e muito preconceito. Bandini vive intensamente tudo isso. Apaixona-se perdidamente por Camilla Lopez, uma mexicana empregada num café, que frequenta, e tem com ela uma ligação de amor e ódio numa relação conflituosa e desequilibrada, enquadrada por um triângulo amoroso com Sammy, um colega de Camilla.

    Quando recebe algum valor pela publicação de um conto, esbanja-o em roupas caras, bons restaurantes e bares de striptease. E depois tem momentos desconcertantes de sentimentos de ternura, de desespero e de muito humor: “Arturo Bandini sentado em frente à máquina de escrever dois dias seguidos, ininterruptamente, determinado a vingar. Mas não resultou; sofreu o mais longo cerco da mais dura e implacável determinação de toda a sua vida, e não escreveu uma única linha, mas apenas uma palavra, repetida pela página inteira, de cima a baixo, uma palavra só: palmeira, palmeira, palmeira, uma batalha mortal entre a palmeira e eu, e a palmeira ganhou: vi-a lá fora, a balouçar sob o ar azul, a ranger docemente sob o ar azul. Ao fim de dois dias de batalha, a palmeira levou a melhor e eu esgueirei-me pela janela e sentei-me debaixo dela.”

    O romance termina tragicamente na procura de um amor que nunca foi correspondido, e que o fez sofrer, mas também lhe deu alento.

    A tradução de Rui Pires Cabral é irrepreensível. O livro: uma obra-prima.

  • Da Índia, com muita cor e outros sentidos

    Da Índia, com muita cor e outros sentidos

    Título

    A tatuadora de Jaipur

    Autora

    ALKA JOSHI (tradução: Raquel Dutra Lopes)

    Editora (Edição)

    Edições ASA (Fevereiro de 2022)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Nascida no Estado indiano do Rajastão, Alka Joshi vive nos Estados Unidos desde os nove anos de idade. Criou e dirigiu a sua própria empresa de publicidade, durante mais de 30 anos. Já com o bacharelato na Universidade de Stanford, Alka decidiu realizar então um mestrado em Belas Artes na Universidade da Califórnia, em escrita criativa, aos 51 anos. O incentivo dos professores encorajou-a então a ir além dos anúncios publicitários.

    E foi aos 62 anos que se sentiu autora a sério, ao lançar o seu romance de estreia, A tatuadora de Jaipur, que rapidamente se tornou num campeão de vendas nas listas do New York Times. Integrou também a lista do Reese Witherspoon Book Club e foi ainda seleccionado pelo The Center for Fiction para o prémio Primeiro Romance. Neste momento, o romance está a ser adaptado para uma série de televisão.

    Está já disponível o segundo volume – intitulado The secret keeper of Jaipur, publicado originalmente no ano passado – numa obra que constituirá uma trilogia, porque a autora anunciou, entretanto, que vem a caminho um terceiro volume. Excelentes notícias para quem já leu e apreciou A tatuadora de Jaipur.

    Foi o meu caso. Para quem aprecia ficção, este romance é o tipo de obra que se começa e, simplesmente, não se consegue parar até chegar à última página – a hesitação está apenas na vontade em adiar o fim.

    A história da personagem principal, Lakshmi, é baseada na vida da mãe da autora, uma forma de homenagem a tantas mulheres que continuam a viver condicionadas pela tradição dos casamentos combinados. E também limitadas à sua casta de origem.

    Alka Joshi enleva o leitor numa viagem: a vida de Lakshmi, uma jovem de 17 anos que fugiu de um casamento forçado, da pobreza miserável e da tradição arreigada, cuja inevitabilidade só com muito trabalho, coragem e mesmo sofrimento, e até humilhações, se quebrou.

    A fuga é, então, à violência doméstica e à falta de futuro. Recorrendo aos ensinamentos da sogra, da arte herbal, Lakshmi alia o seu talento para a pintura: aprende a arte da tatuagem de henna, para assim sobreviver à pobreza a que milhões de indianos estão subjugados.

    A descrição dos cheiros, sabores, cores e texturas é de tal modo vívida que o leitor quase sente a pele das senhoras que Lakshmi tatua. Das cortesãs, Lakshmi dá um salto e consegue alcançar as senhoras da elite, e palacianas, a quem faz as pinturas de henna, seja para chamar a boa sorte, seja para seduzir os maridos, seja para uma qualquer cerimónia ou festa das castas mais altas.

    Foi através desta arte, e do respetivo trabalho árduo em agradar às senhoras que tatua, que a personagem conseguiu poupar o suficiente para, também ela, conseguir construir a sua casa – à base de materiais quase tão ricos quanto os das suas clientes. Mas o passado está ao virar da esquina. A chegada do ex-marido, e a descoberta de uma irmã mais nova, põe um travão à sua ambição e colocam em causa treze anos de trabalho duro.

    A história de Lakshmi cativa-nos imensamente, não apenas pelo enredo, mas sobretudo pelo contexto sócio-histórico que a autora tão bem descreve. Estamos na Índia da pós-independência da coroa britânica, na década de 1950, onde a luta dos mais pobres é a da sobrevivência, enquanto a dos mais ricos é a do aumento do poder.

    A luta é, e continua a ser (ainda hoje), a das mulheres. Em muitos casos, a sua independência ainda tem como resultado a ostracização. Na procura da liberdade, assistimos ao dilema em escolher entre a tradição e a modernidade – quase sempre incompatíveis. Este romance é, em certa medida, um retrato fascinante dessas lutas, contradições num cenário tão exótico quanto cruel.

    Num ou noutro momento pressentimos uma escritora ingénua, que sente necessidade de justificar opções e comportamentos das personagens. Mas à medida que avançamos na história, esquecemos esse pormenor. E, no final, já só ansiamos pela tradução do segundo volume e pela publicação do terceiro desta trilogia, que tem tudo para se tornar num fenómeno global.

  • Um guia desperdiçado

    Um guia desperdiçado

    Título

    Lisboa em 10 histórias

    Autores

    JOKE LANGENS e DIRK TIMMERMAN (tradução: Pedro Branco e Marta Jacinto)

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Março de 2022)

    Cotação

    10/20

    Recensão

    Por vezes, são os estrangeiros que, pelos seus olhos, nos revelam o quão bela e pitoresca é a nossa cidade. São eles que, amiúde, nos convencem, no entusiasmo dos seus encómios e deslumbres, a desfrutar de pequenas maravilhas que, por tão presentes no nosso quotidiano, nos escapam, se esfumam no bulício das nossas trepidantes e alheadas vidas.

    Por esse motivo, aprecio sempre a visão dos estrangeiros sobre Portugal e, particularmente, Lisboa. Na historiografia portuguesa e olisiponense, sobretudo dos séculos XVIII e XIX, são célebres os relatos dos costumes e paisagens por olhos estranhos, para o nosso bem e para o nosso mal, pela visão de estrangeiros como Charles Fréderic de Merveilleux, Charles Brockwell, Joseph Baretti, Charles François du Périer (conhecido por Dumouriez), James Murphy e, em especial, Lord Byron.

    Não se exigiria que Lisboa em 10 Histórias, da belga Joke Langens (em parceria com Dirk Timmerman, que curiosamente não aparece na capa), publicada pela Casa das Letras, viesse refazer essa tradição do quotidiano de uma cidade desvendada por olhos estrangeiros para surpreender também os nativos.

    Mas, convenhamos, sendo este livro, como todos, uma aposta editorial – que assim “condicionará” a possibilidade de outro projecto similar nascer nos tempos mais próximos –, esperar-se-ia que fosse exigido muito mais. Dos autores e da edição.

    Com efeito, Lisboa em 10 histórias anuncia na badana que na capital “não existe esquina, passeio ou recanto (…) que não esteja repleto de histórias por contar”, mas depois reduz-se a um mero repositório, em quase toda a sua extensão, de descrições como que retiradas de um qualquer vulgar compêndio histórico, cheio de lugares-comuns ou mesmo baseando-se em mitos sem sustentação na História.

    Um dos casos mais marcantes (ou chocantes, pelo menos para mim) surge no capítulo sobre o terramoto de Lisboa, onde o papel supostamente pragmático do futuro marquês de Pombal é, também aqui, artificialmente sublimado. Um erro crasso. E também erradamente se salienta uma falsa rapidez na reconstrução da chamada Baixa Pombalina, que, na verdade, demorou décadas.

    Isto já sem falar na questão religiosa, que também de forma errada é abordada: na verdade, nunca houve, naqueles tempos, uma visão científica sólida que defendesse a causa natural dos terramotos, e uma das primeiras medidas régias pós-terramoto até foi o pedido ao Papa para que o jesuíta São Francisco de Borja fosse “tido como patrono e protector” do Reino de Portugal contra novas calamidades deste género. Só a queda em desgraça dos jesuítas, após o atentado ao rei D. José I, terminaria com esta veneração.

    Enfim, não ajuda na apreciação desta obra que logo a seguir, na sua quarta história, seja apresentada uma temerária tese logo no título: “Como Napoleão criou de forma involuntária o Fado”. A sequência de acontecimentos que os autores associam Napoleão ao fado são, na verdade, risíveis, e no mínimo são mais fracos do que aqueles que aliariam, se alguém assim quisesse, D. Afonso Henriques à nossa mais célebre forma de canto. Dizer que a História do Fado aqui retratada é demasiado forçada é um eufemismo.

    Com estas duas “maleitas”, o livro tem depois dificuldades em se redimir. Embora a escrita seja escorreita, o registo nunca excede o tom jornalístico, demasiado descritivo, sem rasgos nem chama, mesmo quando o tema é a calçada portuguesa, a recuperação do Chiado, a Lisboa dos hotéis e seus espiões, a frente ribeirinha da Expo, os elevadores e eléctricos que dominam as colinas, ou a arte urbana – capítulo, aliás, de uma inaceitável pobreza franciscana, por se ater somente às obras do artista plástico Bordalo II.

    O livro tem também uma enorme, enormíssima falha, pouco compreensível numa editora prestigiada. A escolha das fotografias é fraca, do ponto de vista qualitativo, os locais não estão identificados em legenda (portanto, impossível de ser visitado numa edição com pretensões a ser um guia), e existem falhas gritantes.

    Não se compreende, por exemplo, que o capítulo do terramoto não tenha a foto de um dos seus símbolos – as ruínas do convento do Carmo –, e depois surjam três fotos distintas deste monumento no capítulo referente à recuperação do Chiado após o incêndio de 1988. O fogo não chegou às imediações do Largo do Carmo, ó céus! E, no capítulo do fado, nem um(a) fadista ou uma casa de fado com o seu ambiente nocturno para amostra.

    O livro terá tido editor?

  • As delícias de uma boa conspiração

    As delícias de uma boa conspiração

    Título

    Teorias da conspiração

    Autor

    Fernando Neves

    Editora

    Oficina do Livro

    Cotação

    17/20

    Recensão

    “O universo das teorias da conspiração está recheado de histórias inacreditáveis. Na maior parte dos casos, essas narrativas obedecem a um discurso que se assume como fora do sistema, uma espécie de contracorrente revolucionária.”

    Com um longa carreira feita em várias rádios portuguesas, Fernando Neves, que é também Mestre em Ciências da Comunicação e Tecnologias de Informação pelo ISCTE, escreveu um livro que funciona como o corolário dos mais de 120 episódios emitidos na Antena 1 sobre o tema das teorias da conspiração, disponíveis na RTP Play e também na plataforma Spotify.

    São histórias para todos os gostos, como a Área 51, as elites e extraterrestres que mexem os cordelinhos das nossas vidas rumo à Nova Ordem Mundial, ou mesmo sobre a (in)existência de Shakespeare.

    Há ainda a curiosidade particular da história de Joseph Gregory Hallett, que disse ter-lhe sido revelado, por entidades divinas, que existiram dois Jesus Cristos, primos, e  que viveram no Algarve, mais precisamente no Palácio de Carvalhal.

    Com algum humor à mistura, Fernando Neves demonstra uma pesquisa árdua na descoberta das origens e dos protagonistas de muitas destas teorias, muitas que fazem já parte do nosso quotidiano, e outras ainda menos conhecidas, como é o caso da alegada primeira tentativa de ida à Lua séculos antes de russos ou americanos gravitarem em redor da Terra.

    Esta é assim uma viagem fascinante que se propõe desvendar mistérios e encontrar respostas alternativas a grandes e pequenas perguntas feitas pela Humanidade ao longo dos tempos. Alguns desafiando a Ciência e a narrativa dominante, oferecendo outras possibilidades, por vezes rocambolescas, mas que, de alguma forma ou por insondáveis motivos, mantêm-se e conquistam adeptos um pouco por todo o Mundo.

    Ao longo de 430 páginas pode-se aprender, rir, assustar-se e ponderar até onde vai a distância entre a conspiração real e a imaginação humana, que consegue ser, muitas vezes, demasiado fértil.

    Este é alias o grande feitiço desta obra: ao percorrer todas as suas histórias, fica-se com a sensação de que nem todas as teorias da conspiração são fantasias, que vêm preencher um qualquer vazio explicativo que alicia um espectador menos informado. Algumas delas, mostram-se mesmo assustadoramente reais.

    Há livros que, segundo as Teorias da Conspiração, não devem ser lidos, sob pena de infortúnios, episódios psicóticos ou mesmo a morte. Este não é um desses livros. Aqui corre-se apenas o risco de saber mais, e ficar mais bem informado.