Categoria: Recensões

  • Socialismo: essa ideologia útil… mas só em sociedades tribais

    Socialismo: essa ideologia útil… mas só em sociedades tribais

    Título

    Arrogância fatal: os erros do socialismo

    Autor

    Friedrich A. Hayek (tradução: João Carlos Barradas)

    Editora (Edição)

    Guerra & Paz (Novembro de 2022)

    Cotação

    20/20

    Recensão

    Friedrich Hayek (1899-1992) foi um dos maiores economistas do século XX, laureado com um prémio Nobel em 1974; fez parte da corrente de pensamento económico que se designou por Escola Austríaca, promotora do mercado livre e da liberdade individual.

    A ele deve-se em parte o reconhecimento de que o liberalismo não nasceu no norte da Europa, mas sim na Península Ibérica, em particular na Universidade de Salamanca, Espanha, mas também nas universidades portuguesas de Coimbra e Évora.

    Hayek foi o supervisor do doutoramento de Marjorie Grice-Hutchinson, autora do livro “A Escola de Salamanca”, que nos deu a conhecer os principais contributos para a ciência económica de vários escolásticos espanhóis, como Juan de Mariana, Saravia de la Calle, Domingo de Soto, Tomas de Mercado, Martín de Azpilcueta Navarro (Reitor da Universidade de Coimbra) e Luis de Molina (professor na Universidade de Évora durante muitos anos).

    Foram estes autores que introduziram a Teoria da Utilidade Marginal, a Teoria Quantitativa da Moeda, a explicação para o fenómeno dos juros – para a Igreja e outras religiões monoteístas parecia imoral produzir dinheiro de dinheiro –, a legitimidade do regicídio no caso de desvalorização da moeda (inflação) pelo monarca – proposto por Juan de Mariana –, e, principalmente, a teoria dos Direitos Naturais (direito à vida, direito à propriedade privada…), fundamental à liberdade individual.

    Durante a União Dinástica dos dois reinos da Península, a família Habsburgo governava não só Portugal e Espanha, mas também a Flandres e a Áustria, ou seja, era dona da Europa no século XVI.

    Não foi um acaso o aparecimento de uma corrente de pensamento libertária no império Austro-húngaro durante o final do século XIX, onde nasceu a revolução marginalista, com os economistas Carl Menger, Eugen von Böhm-Bawerk e Friedrich von Wieser. Esta teoria deitou por terra a teoria do valor-trabalho defendida por Adam Smith, que mais tarde foi utilizada por Karl Marx para defender a “exploração do trabalhador”.

    Friedrich Hayek é um discípulo de outro economista austríaco, Ludwig von Mises – um judeu que fugiu ao nazismo e foi viver para os EUA, passando por Lisboa -, e é erradamente associado à Escola de Chicago, cujo grande bastião foi Milton Friedman, criador da cobrança tributária através da retenção na fonte e um acérrimo defensor dos Bancos Centrais, a quem ele atribuía o papel de estabilizador da despesa em caso de recessão económica, através de estímulos monetários, algo totalmente contrário ao proposto pela Escola Austríaca.

    Foi a Escola Austríaca a responsável por explicar os ciclos de expansão-recessão do capitalismo – apontados por muitos como uma falha do mercado -, atribuindo-os à expansão do crédito através da emissão de dinheiro – prática de reservas fraccionadas –, que origina distorções nas taxas de juros e gera sinais erróneos aos agentes económicos. Hayek aprofundou e detalhou a teoria dos ciclos económicos iniciada por Mises.

    Neste Arrogância fatal: os erros do socialismo, Hayek diz-nos que os sistemas éticos não resultam da razão, mas são o resultado de um processo histórico. Para ele, a razão, suportada em certas suposições da natureza humana e em dados empíricos, é incapaz de conceber um sistema ético.

    Ele até nos dá um exemplo: a razão de um dado indivíduo é incapaz de conceber uma língua, esta resulta da interacção humana em comunidade ao longo de gerações.

    Assim, o nosso sistema ético foi passado de geração em geração e aprendido por imitação. O seu progresso e desenvolvimento foram alcançados por um mecanismo de evolução social: as culturas que adoptaram os “bons” sistemas éticos sobreviveram e floresceram, enquanto aquelas com “maus” sistemas éticos fracassaram ou tiveram de adoptar sistemas éticos que evitassem o seu desaparecimento. Esse processo de tentativa e erro produziu a ética ocidental, um sistema altamente bem-sucedido, atendendo à sua supremacia tecnológica, científica e económica ao longo de vários séculos.

    Segundo Hayek, a ética ocidental surgiu a partir das civilizações mediterrânicas, onde pela primeira vez na história da humanidade apareceu o conceito de propriedade exclusiva – um termo utilizado por Hayek para referir-se à propriedade privada; ao contrário, por exemplo, das sociedades asiáticas, onde tal conceito era praticamente inexistente (notários, registo, contrato…).

    Hayek explica-nos que há uma dialética ética e não materialista, como defendia Karl Marx, na sociedade ocidental. Ele diz-nos que as tribos primitivas, no alvorecer da história, para se defenderem e sobreviverem tinham de adoptar uma ética colectivista – solidariedade, altruísmo, etc.

    Com o decorrer do tempo, técnicas agrícolas foram desenvolvidas, permitindo o surgimento das primeiras cidades. Estas transformações deram origem a dois desenvolvimentos que tornaram a ética dos “pequenos grupos” – ética colectivista – insustentável: o comércio e o crescimento populacional.

    O comércio colocava os membros de comunidades fechadas em permanente contacto com desconhecidos que geralmente não partilhavam os mesmos objectivos, propósitos e crenças do grupo.

    O crescimento populacional, estimulado pela prosperidade económica, e não o contrário, tornou o pequeno grupo num grande grupo, resultando em membros do mesmo grupo frequentemente estranhos uns aos outros e frequentemente perseguindo objectivos e propósitos distintos.  

    A ética de “pequenos grupos” deixou de ser aplicável a comunidades diversificadas e cosmopolitas; grupos que não se adaptavam ficavam isolados e economicamente estagnados. Através do processo evolutivo social, a ética de “pequenos grupos” foi gradualmente substituída pelo que Hayek designa por “Ordem Espontânea”.

    Esta Ordem Espontânea abandonou os propósitos colectivos a favor de regras abstratas e geralmente aplicáveis que facilitavam os diversos fins individuais. Essa ética servia como um mecanismo impessoal para a coordenação de acções e planos individuais, enquanto a ética dos “pequenos grupos” dependia de um líder tribal, que dirigia o grupo para um objetivo comum.

    A “ordem espontânea” substituiu assim a ética dos “pequenos grupos” como sistema dominante; no entanto, a ética de “pequenos grupos” continuou a existir: famílias, amizades e pequenos negócios continuaram a segui-la.

    O altruísmo, o amor, a solidariedade, a camaradagem e um propósito comum – tão necessários para a realização dos indivíduos – são apenas possíveis dentro de um pequeno grupo. Desta forma, Hayek conclui pela dialética ética das sociedades contemporâneas: (i) a ética da “Ordem Espontânea” diz aos indivíduos e aos grupos como agir dentro de uma ordem mais ampla, enquanto a ética do “pequeno grupo” instrui os indivíduos a comportarem-se dentro dos limites das várias associações voluntárias a que aderiram.

    Hayek também nos diz que os indivíduos apresentam uma capacidade limitada de viver simultaneamente dentro de duas ordens de valores. A linha divisória entre as duas estruturas deixa os indivíduos confusos em relação às suas obrigações.

    Por exemplo, alguém teria a obrigação de ajudar um amigo ou um membro da família em apuros financeiros? E um estranho a pedir na rua? Ou um homem de negócios conhecido, próximo da falência, que actua como concorrente no mercado? Hayek diz-nos que apesar da tensão entre estas duas estruturas de valores, o equilíbrio deve ser mantido.

    A Ordem Espontânea permite que os indivíduos trabalhem para outros que desconhecem e que também comprem a pessoas que igualmente desconhecem – quem conhece a pessoa numa linha de montagem que construiu o nosso carro?

    A ética dos “pequenos grupos” permite estreitar os laços e a camaradagem indispensáveis ao fortalecimento e bem-estar dos indivíduos.

    Hayek explica-nos que as pessoas ligadas às ciências naturais – não são os únicos, os políticos e os que advogam o socialismo também –, que valorizam a razão e o positivismo, regra geral, são incapazes de compreender a Ordem Espontânea, pois esta frequentemente gera resultados contrários ao que a sua razão dita como “lógico” ou “racional” – a distribuição “justa” da riqueza, a “justiça social”, um estímulo de 10% resulta num crescimento de 20%.

    Segundo Hayek, isto resulta em primeiro lugar da incompreensão do que é a economia: o estudo da acção humana na selecção dos meios para satisfazer determinados fins.

    Por exemplo, se assisto a um programa de televisão, tenho de tomar opções acerca do meu tempo: vou continuar a vê-lo?; ou vou caminhar?; ou vou escrever uma carta? O nosso tempo, os recursos que existem na natureza e a nossa força laboral são recursos escassos; a todo o momento, temos de tomar decisões sobre como os utilizar para satisfazer os nossos fins: lazer, alimentação, alojamento, etc.

    De acordo com os meios ao seu dispor, os seres humanos ordenam os fins – do mais importante para o menos importante – e tomam decisões com base nessa ordenação. Por exemplo, se um dado agricultor dispõe de cinco cavalos – que os considera iguais em aptidões e características – irá colocar o primeiro na necessidade mais importante (lavrar) e o último na quinta mais urgente (carregar sacos).

    Se ele necessitasse de sacrificar um cavalo dos cinco que possui, iria dispensar a actividade de carregar sacos, a utilização marginal. Por essa razão, quando um bem não é escasso tem pouco valor na mente humana, atendendo que tenho de sacrificar uma necessidade de pouca importância.

    Quando uma dada pessoa realiza uma troca no mercado, significa que o bem ou serviço que recebe em troca tem mais valor do que aquele que está a sacrificar. A troca ocorre em resultado de diferentes valorações na cabeça de comprador e vendedor, só há troca se a mesma é benéfica para ambos. O rácio de troca, por exemplo, 1 cavalo por duas vacas, de uma eventual transacção entre dois agricultores permite aquilo que se designa por formação de preços de mercado. Quanto maior o número de intervenientes e as quantidades intercambiadas maior a liquidez e a profundidade.

    A utilidade de cada animal para um dado agricultor não é mensurável, não é quantificável, nem tão pouco é comparável a utilidade de um dado cavalo para os dois agricultores. Por essa razão, as ciências exactas não podem ser aplicadas à economia. Por outro lado, cada ser humano tem uma dada ordenação de valores, com estas a sofrerem constantes alterações a todo o momento, seja por circunstâncias (se está calor, tenho sede, logo mais propenso a pagar por uma garrafa de água), pela idade (na velhice, tenho outras prioridades) ou valores da comunidade (modas, tendências…).

    Desta forma, transformar a ciência económica em modelos matemáticos, como acontece hoje com os modelos macroeconómicos, segundo Hayek, é um completo disparate. Na ex-URSS, os planeadores centrais tinham de se basear nos preços dos mercados ocidentais para formularem um plano de produção. Como podiam saber quantos carros amarelos produzir? Quantos parafusos produzir, e de que tamanho? Apenas os preços, expressos numa unidade de conta (a moeda), permitem a tomada de decisões de uma ordem complexa.

    Os preços são sinais que permitem aos diferentes agentes tomarem decisões. Os preços, segundo Hayek, permitem a coordenação de sociedades altamente complexas e prósperas, em que várias pessoas se especializam em determinadas linhas de produção, com base nas oportunidades que os preços assinalam. Quanto maior a população, e não o contrário, maiores são as possibilidades de especialização e as respectivas oportunidades que resultam da Ordem Espontânea.

    Essa capacidade de interpretar assimetrias de preços (na Europa, por exemplo, as especiarias eram altamente valorizadas no século XV) e de retirar proveito, como fazem os comerciantes, comprando barato e vendendo caro, sempre originou, segundo Hayek, o desdém dos intelectuais ao longo da história.

    Um indivíduo que nada produz, consegue tornar-se rico explorando assimetrias de preços, graças a informação privilegiada e ao conhecimento do “terreno”, que apenas ele logra interpretar. Para não falar da actividade bancária, ainda mais enigmática e mais vilipendiada, dado que é incompreensível não só para os intelectuais como para a maioria da população.

    Segundo os socialistas, a remuneração da Ordem Espontânea é sempre “injusta”, dado que penaliza os indivíduos que se esforçam, que realizam as tarefas árduas de produção; para eles, a intervenção é sempre necessária para criar algo que seja “racional” e “justo”, segundo o seu ponto de vista, por forma a corrigir as “injustiças” da Ordem Espontânea.

    Outro erro dos “racionalistas”, segundo Hayek, é o carácter primitivo da natureza humana, em particular o animismo. Um dos exemplos mencionados por Hayek é o contrato social de Jean-Jacques Rousseau, como se a Sociedade tivesse alma, fosse capaz de assinar o tal acordo. Esse é outro dos erros de Karl Marx, ao atribuir uma alma ou consciência a uma dada “classe”: os burgueses, os operários.

    Esse animismo é responsável pela importância que a palavra “Social” tem hoje na nossa sociedade: a “justiça social”, a “segurança social”. É como se uma maioria tivesse personalidade própria, quando na verdade apenas existem indivíduos distintos, com fins e valorizações completamente diferentes. Se um indivíduo pertence a um sindicato não significa que valorize exactamente os mesmos fins dos demais, na verdade considera apenas que essa associação ser-lhe-á benéfica para atingir os seus fins – melhor salário, por exemplo.

    Desta forma, Hayek explica-nos que o socialismo apenas funciona em sociedades tribais ou de reduzida dimensão, em que um líder consegue coordenar os esforços de um pequeno grupo para um fim comum. Numa sociedade complexa e próspera, apenas a ética da “Ordem Espontânea” funciona, apesar de muitas vezes ser contrária aos instintos humanos (confiscar para criar “justiça” distributiva ou “alojamento para todos”) e daqueles que pregam o socialismo.

  • Sonho de um triângulo amoroso

    Sonho de um triângulo amoroso

    Título

    O homem sentimental

    Autor

    JAVIER MARÍAS (tradução: Salvato Teles de Menezes)

    Editora (Edição)

    Alfaguara (Janeiro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Como recentemente aqui o descrevemos, Javier Marías, desaparecido no final de 2022, é considerado um dos maiores escritores contemporâneos.

    Nascido em Madrid (1951), o autor espanhol ganhou uma série de prémios e distinções pela sua vasta obra, sendo disso exemplo, o Prémio Giuseppe Tomasi di Lampedusa e Prémio Qué Leer, com Assim começa o mal e Os enamoramentos; Prémio da Crítica, Prix l’Oeil et la Letre e IMPAC Dublin Literary Award, com Coração tão branco; Prémio Fastenrath, Rómulo Gallegos e Prix Fémina Étranger, com Amanhã na batalha pensa em mim. Todos publicados, em Portugal, pela Alfaguara.

    Membro da Real Academia Espanhola e da Royal Society of Literature, desde 2011, Javier Marías, além de escritor, foi professor na Universidade de Oxford e na Universidade Complutense de Madrid, e tradutor, tendo obtido o Prémio Nacional de Tradução em Espanha (1979), com a sua tradução de Tristram Shandy.

    O homem sentimental, agora reeditado, é uma viagem onírica, a descrição de um sonho, escrita de uma assentada. Um sonho sobre eventos que decorreram quatro anos antes desta redacção e cuja verosimilhança causa, no leitor, a dúvida sobre o que é sonho e o que realmente aconteceu.

    O narrador descreve, então, o sonho e/ou os acontecimentos ocorridos como se estivesse numa poltrona a assistir a um filme a preto a branco, eventualmente mudo, tendo, por isso, necessidade de incluir as falas. Um narrador autodiegético e omnisciente, narrando na primeira pessoa e como participante, que tem o domínio de todos os acontecimentos. Motivo que nos conduz à dúvida.

    Entre o sonho e a realidade de anos atrás, fica uma descrição minuciosa e profunda do que a personagem percebe, só então, ter vivido e, sobretudo, sentido. “Agora que vos conto este sonho e história, creio ter-me abstido de pensar durante quatro anos” (p. 46).

    A solidão é o primeiro e mais forte sentimento, o que um cantor lírico em ascensão sente, só comparável à de um caixeiro-viajante. Alguém que vive de cidade em cidade, tendo na mala de viagem a sua única e permanente companhia, sem criar raízes. O que talvez ajude a compreender o registo onírico. Registo que acontece como um porto seguro, como se o narrador quisesse agarrar esse reduto por intermédio da sua escrita.

    É assim mesmo que se inicia esta trama psicológica, com as semelhanças entre um e outro viajante. É de tal modo pesada que, perpassando as diversas personagens da história onírica, a solidão é, ela mesma, uma figura narrativa.

    É a mesma que permite a contemplação e observação das vidas dos outros, por parte do cantor lírico, León de Nápoles.

    A descrição do sonho começa com uma viagem de comboio, durante a qual, o narrador tem oportunidade de observar as personagens que o acompanham no sonho, aquelas que integram o triângulo amoroso, Natalia Manur, o seu marido banqueiro, Hieronimo Manur, e ainda o assistente pessoal do casal, Dato. Mas esta informação só a obteria posteriormente.

    Durante a viagem, León detém-se nas mãos das três pessoas. A partir da sua observação, imagina e cria a história de cada uma das personagens que viria a conhecer num hotel de Madrid, cidade onde se desenrola o antes e o depois de triângulo amoroso.

    Madrid, onde o cantor tem uma série de ensaios para a estreia de Otello, de Verdi, e com os quais somos confrontados com a ascensão e a queda de outro cantor lírico, numa clara alusão ao envelhecimento e à angústia que a perda de protagonismo pode conduzir.

    Ao descrever os acontecimentos passados com outro cantor, o narrador acaba por visualizar a sua própria decadência num futuro que espera longínquo. Não é este o resultado da morte e envelhecimento dos outros sobre nós? O de nos lembrar que também nós somos finitos…

    O sonho em relato também engloba a história de um outro amor passado, que integrava outros vértices de um duplo triângulo amoroso, só na aparência, mais complexo que o usual.

    Como afirma no primeiro epílogo, o escritor espanhol Juan Benet, não há nada de novo no tema, apenas e tanto, a profundidade do sentimento de um homem que paira entre o sonho e a realidade (para o leitor, também onírica).

    No segundo epílogo do livro, do próprio autor, Javier Marías, o leitor obtém mais elementos para compreender o desfecho quase inusitado que poderá, até, provocar uma espécie de ‘água na boca’, um à espera do resto. Só que não.

    A provocação sublime do autor é esta mesma, a de nos transportar ao longo de uma viagem contada por intermédio de um sonho refletido e reflexivo. De tal modo que, como na plateia, observamos o enredo sem nunca alcançar o verdadeiro acontecimento do triângulo amoroso. A imaginação será o nosso apoio e co-participação… se quisermos.

  • A fazedora de anjos

    A fazedora de anjos

    Título

    O acontecimento

    Autor 

    ANNIE ERNAUX (tradução: Maria Etelvina Santos)

    Editora (Edição)

    Livros do Brasil (Dezembro de 2022)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Uma das características marcantes da obra da escritora francesa Annie Ernaux, Nobel da Literatura do ano passado, é a invenção de uma forma narrativa muito própria.

    Os seus livros não são romances, nem ensaios, nem autobiografias, nem romances históricos, mas um pouco disso tudo em estilo e voz própria muito originais.

    Este O acontecimento, narrado na primeira pessoa, conta-nos a história de um aborto clandestino levado a cabo, pela autora, quando tinha 23 anos e era estudante universitária. O facto passou-se em 1963, doze anos antes da descriminalização do aborto promulgada em 1975, com a Lei Simone Veil.

    Grávida, envolvida numa relação fortuita e sem importância, fica desesperada e angustiada perante o dilema: por um lado a convicção que a sua única solução é um aborto, pois não quer nem está preparada para ser mãe, por outro, a certeza que o aborto, à data, era ilegal e muito perigoso.

    Num livro que embora só tenha oitenta e sete páginas e seja fácil de ler mas muito difícil de digerir, acompanhamos a sua jornada, em busca de uma forma de abortar. A autora vai trazendo à tona recordações da sua juventude recorrendo a uma agenda ou excertos de diários. Há vários exemplos de entradas desses registos. Por exemplo, quando a acompanhamos na procura por um médico que lhe faça o aborto com passagem por vários consultórios, ou na pesquisa de alguém que conhecesse alguém que tivesse o contacto de uma “fazedora de anjos” ou no confronto quotidiano com a proibição da lei.

    Ao mesmo tempo que tem conhecimento de que está grávida, o presidente Kennedy morre assassinado: “Mas isso já não me despertava nenhum interesse”, escreve ela numa das muitas entradas. O próprio curso universitário entra em uma espécie de hiato, o tema da monografia em que estava a trabalhar parece perder toda a sua importância. “Não escrevo mais. Não estudo mais. Como sair daqui?”. Essa espécie de alienação da realidade vai-se aprofundando com o passar do tempo, na procura de uma saída.

    Como disse Ernaux numa entrevista, o que escreve é simples e substantivo como os títulos dos seus livros, mas muito sofrido: em vez de uma caneta, uma faca. Ao perscrutar a memória e escrevendo sobre si vê-se a rasgar a própria carne e a revelar um sentimento atroz de um sofrimento solitário. Nunca disse aos pais que estava grávida e mesmo aos amigos não revelou o seu segredo. Fê-lo com mais à vontade a quase desconhecidos ou a pessoas que ela julgava poderem ajudá-la.

    O texto é cru, directo e, por vezes, brutal. Descreve um passado assombrado pelo medo e pela dor emocional e física. “O tempo tornou-se uma coisa sem forma que avançava dentro de mim e era preciso destruir a todo custo”.

    Narra detalhadamente o seu encontro com a “fazedora de anjos”, a vulnerabilidade e a vergonha que sentiu no processo e o seu período na urgência de um hospital após o acontecimento. Ali, expõe a violência médica e o julgamento moral de que foi vítima por ter tomado aquela decisão. Antes disso passou por um médico que tentou dissuadi-la da decisão chegando mesmo a receitar-lhe um medicamento que ela descobre, depois, ser antiabortivo e não, como julgava, um que lhe provocasse o aborto.

    Na própria comunidade universitária onde vivia, Annie é confrontada com um pensamento conservador a respeito do aborto e da sua legalidade e sofre o peso da censura velada que lhe mostrada até por pessoas que ela julgava que a compreenderiam.

    É um livro que nos deixa a pensar e que demonstra que, de facto, o Nobel foi justíssimo, e a obra desta autora merece muito ser lida.

  • Do contágio à imbecilidade humana

    Do contágio à imbecilidade humana

    Título

    A psicologia das massas

    Autor

    GUSTAVE LE BON (tradução: Maria Albuquerque Caiado)

    Editora (Edição)

    Alma dos Livros (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    O ensaio clínico, A psicologia das massas, finalmente publicado em português europeu pela Alma dos Livros, é um original de 1895. É, por isso, de ressalvar que, à época, os modos de escrita de Ciência eram distintos, em particular, tratando-se de um ensaio. Um tipo de publicação que tendencialmente se realiza sem a revisão dos pares.

    Não significa que esta avaliação não se concretize ou não tenha sido vivenciada pelo próprio autor. Com efeito, Gustave Le Bon (1841-1931) terá sido amplamente ignorado e até difamado por parte da academia francesa por causa da sua visão política.

    Este repúdio não impediu que tivesse obtido, em 1879, o Prémio Godard da Academia Francesa de Ciências, nem que as suas obras influenciassem uma série de figuras públicas, como por exemplo os políticos Roosevelt e Hitler e autores como Freud e Ortega y Gasset. Em relação aos primeiros, a defesa da existência de uma raça superior, a ariana, terá sido “música para os ouvidos” de Hitler.

    Quanto à influência sobre Sigmund Freud, o determinismo social, que Gustave Le Bon resgatou de Charles Darwin, foi um forte motivo para que Freud escrevesse um livro sobre a obra que aqui apreciamos: A psicologia das massas e a análise do eu.

    Mas a sua influência foi muito mais além, dado ser considerado um dos fundadores da Psicologia Social, para a qual esta A psicologia das massas muito terá contribuído – ainda hoje, esta obra é uma referência para a compreensão do funcionamento e poder dos grupos e multidões.

    Gustave Le Bon, além de apaixonado pela escrita, foi uma pessoa muito observadora e curiosa, características imprescindíveis aos cientistas. No seu caso, o interesse era vasto, e incluía a Psicologia, Medicina, Física, Sociologia e Antropologia, sendo que as viagens com fim investigativo muito colaboraram para aumentar a sua mundividência e compreensão dos modos de organização dos diferentes povos.

    A sua experiência como médico oficial do Exército francês, aquando da guerra Franco-Prussiana, também lhe proporcionou a oportunidade de observar o comportamento dos militares sob condições de forte stress e sofrimento. Valeu-lhe ainda a nomeação de Cavaleiro da Legião de Honra.

    Outras vivências terão enriquecido o seu repertório investigativo, como por exemplo, a Comuna de Paris, durante a qual não lhe faltaram situações que, posteriormente, usaria para a redacção desta obra, sobre o funcionamento psicológico das multidões.

    Neste livro, o autor começa por descrever as principais características das massas, destacando a “impulsividade, irritabilidade, incapacidade de raciocinar, ausência de julgamento e espírito crítico, exagero de sentimentos”. Caracteres especiais que concorreram para que Le Bon teorizasse a “Lei Psicológica da Unidade Mental das Massas”.

    É provável que o uso de certos termos e conceitos, como o de raça ariana, incomode os leitores contemporâneos, mas serviu, como referido, para a posterior reivindicação e pseudo-investigações do Instituto dirigido Heinrich Himmler, como aliás, já aqui se recenseou.

    A linguagem colide, igualmente com o que hoje temos como politicamente correcto. Com efeito, para demonstrar que a composição de um grupo ou multidão pouco ou nada influencia as decisões por si tomadas, seja o grupo constituído por ilustres intelectuais ou por básicos operários, Le Bon, afirma que “as decisões de interesse geral tomadas por uma assembleia de pessoas ilustres, mas de diferentes especialidades, não são sensivelmente superiores às que uma reunião de imbecis tomaria. Só apresentam em comum aquelas qualidades medíocres que todos possuem. Nas massas, é a estupidez e não a inteligência que se acumula” (p. 33).

    Este excerto ilustra o tom de grande parte da obra. Reitera-se, por isso, a necessidade de enquadrar o texto ao contexto sociocultural de então.

    É de reforçar, porém, que algumas das teorias formuladas pelo autor continuam a ser um recurso para a compreensão da temática, em particular a teoria do contágio: “O contágio é tão poderoso que impõe às pessoas não apenas certas opiniões, mas também certas formas de sentir (…) É sobretudo pelo contágio, nunca pelo raciocínio, que se propagam as opiniões e as crenças das massas” (p. 107).

    Este mecanismo, complementado pela afirmação e repetição é, para Le Bon, o meio de acção dos líderes, que sabendo do efeito do anonimato do indivíduo quando inserido na multidão, encontra aqui a estratégia de influência hipnótica. Isto, porque como observou Le Bon, o indivíduo perde-se, para formar a tal unidade mental das massas.

    Ainda que os termos e expressões possam ferir susceptibilidades actuais, a verdade é que esta obra é uma ferramenta deveras interessante para compreender o efeito da publicidade (quer comercial, quer de propaganda) que actua por intermédio da afirmação, repetição e contágio. O que tem como consequência que a multidão assuma vida própria que, com o exagero dos sentimentos e emoções que lhe é característico, induza à irracionalidade – outro caractere particular das massas.

  • Kafka em dose tripla

    Kafka em dose tripla

    Título

    Punições

    Autor

    FRANZ KAFKA (tradução: Paulo Osório de Castro)

    Editora (Edição)

    Cavalo de Ferro (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Mestre, ou até  mais do que isso, na criação de mundos sombrios e opressivos, sempre trespassados por personagens alienadas e impotentes, mas criados numa atmosfera de normalidade exasperante, Franz Kafka é um dos mais fascinantes escritores do início do século XX, que prematuramente partiu há quase um século (1924), e que nos deixa a imaginar que mais obras conseguiria conjecturar se não tivesse morrido com apenas 40 anos.

    Embora tardiamente publicado em Portugal, nas últimas décadas as mais conhecidas obras de Franz Kafka têm vindo a ser sucessivamente reeditadas pelas mais diversas editoras, mas este Punições surge pela primeira vez no nosso país. Não é uma obra inédita em si mesma, mas a compilação pensada por Kafka para juntar a sua novela mais famosa, A metamorfose, originalmente publicado em 1915, a dois contos: A sentença (1913) e Na colónia penal (1919).

    Embora cada uma das histórias sejam una – tanto assim que A metamorfose, publicada pela primeira vez em Portugal em 1962, se encontra no catálogo de cerca de uma dezena de editoras, e Na colónia penal tem também pelo menos três edições (a primeira em 1998, a última em 2021, pela Relógio d’Água –, é a primeira vez que estres três textos são publicados conjuntamente, o que constitui, desde logo uma mais-valia económica, e sobretudo uma oportunidade de nos embrenharmos em dose tripla no universo kafkiano.

    Em A sentença – o mais curto dos três textos, que pode, mais apropriadamente ser considerado um conto –, dedicado a Felice Bauer, noiva de Kafka, surge-nos um homem condenado que ignora o motivo da sua execução, o que, convenhamos, é um ponto de partida nada incomum no universo de Kafka. Tal como sucede em O processo, esta história permite sobretudo reflectir sobre a arbitrariedade do poder e a impotência dos indivíduos perante a falta de transparência e inacessibilidade do sistema judiciário. A Justiça não deseja assim fazer justiça, sendo uma mera máquina de opressão.

    Já em A metamorfose, a célebre história de Gregor Samsa, o caixeiro-viajante que acorda transformado em insecto gigante, serve sobretudo para uma análise das reacções familiares e da sociedade perante uma transformação, acabando sobretudo para expor os processos de alienação, de solidão e de incomunicabilidade.

    Por fim, Na colónia penal, o leitor acaba por ser (também) o viajante que assiste às entusiásticas descrições de um oficial que supervisiona uma máquina de execução com o condão de escrever a sentença na pele do condenado (que também ignora até os crimes de que é acusado), apresentada como o símbolo da violência inerente à justiça e a uma burocracia desumanizada, que perpetuam a violência.

    Porém, mais do que essas reflexões mais filosóficas, e cada vez mais actuais, destes intemporais textos de Franz Kafka, o leitor pode e deve apreciar o seu estilo literário, ainda extremamente moderno, visual e depurado. Uma leitura obrigatória, ainda mais após os distópicos tempos que (ainda) vivemos.

  • A leveza de uma vida notável

    A leveza de uma vida notável

    Título

    Peste e cólera

    Autor

    PATRICK DEVILLE (tradução: José Mário Silva)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Dezembro de 2022)

    Cotação 

    15/20

    Recensão

    Alguns heróis são mais esquecidos do que outros – e não se incomodam com isso, porque nunca tiveram a pretensão de o ser. Alexandre Yersin 1863-1943, discípulo de Louis Pasteur, foi um microbiologista, polímata e cientista suíço que se encaixa nesse perfil.

    Pouco conhecido pela generalidade das pessoas, não é um dos nomes mais sonantes da História da Medicina, embora o bacilo da peste negra, Yersinia pestis, descoberto pelo cientista em Hong Kong em 1894, tenha sido nomeado em sua honra.

    Felizmente, o escritor francês Patrick Deville, escreveu um romance inspirado na intensa vida de Yersin, que foi um explorador em várias áreas da vida, e não apenas da Ciência. Intitula-se Peste e cólera, e tornou-se, no ano passado, o primeiro romancista traduzido para português do romancista, estando integrado na Colecção de Alberto Manguel,uma iniciativa da Tinta da China e da RTP. Originalmente publicado em 2012, recebeu nesse ano o prémio Femina e o Prix de Prix em França.

    O romance é abundante – talvez em demasia – em apontamentos históricos e curiosidades, ou não fosse também o seu próprio autor um aventureiro e viajante profissional.  Patrick Deville partiu para o Golfo Pérsico como adido cultural, com apenas 23 anos, e foi professor em países como a Argélia e a Nigéria, tendo publicado o seu primeiro livro em 1987. Também noutras das suas obras, Deville inspirou-se em figuras reais, conjugando as suas vidas com a ficção.

    Se Alexandre Yersin nunca obteve uma grande notoriedade, tendo ficado relegado um pouco como uma personagem secundária, neste romance o aprendiz de Pasteur é o protagonista – e em pleno direito. É justo porque, como se percebe em Peste e cólera, a sua vida é digna de ocupar estas 222 páginas, e a sua história é daquelas que vale a pena conhecer. Não sendo assim uma biografia, é um romance que retrata, contudo, com grande fidelidade a sua vida, a qual se pôde reconstruir sobretudo através das cartas que, nas suas muitas viagens, escreveu à mãe, Fanny, e à irmã, Emilie.

    Poder-se-ia chamar Alexandre Yersin um homem dos sete ofícios, multifacetado. Sedento de conhecimento, foi o arquétipo do génio eremita. Sempre nutriu uma profunda admiração por David Livingstone, um conhecido missionário e explorador escocês. E, de facto, Yersin teve essa faceta aventureira: aos 27 anos tornou-se médico de bordo da Messageries Maritimes. Em navios a vapor, percorreu a costa do sudeste asiático, região cujo centro chegou a explorar, tendo até estado de caras com a morte.

    Não mais quis voltar à Europa, que trocaria definitivamente por Nha Trang, uma província que corresponde hoje ao actual Vietname. Nesse país, Alexandre Yersin é ainda hoje venerado pela forma como altruisticamente serviu a população vietnamita ao longo do quase meio século, e onde faleceu com 79 anos. Ali, abriu um pequeno laboratório que, poucos anos mais tarde, se tornaria uma filial do Instituto Pasteur.

    O romance percorre todas as estações da longa vida de Yersin: a infância, a juventude, a idade adulta e a velhice. Não o faz, contudo, por ordem cronológica. Ao longo do livro, vai-se avançando e recuando no tempo. Não sendo obra imperdível, com Peste e cólera ninguém perde nada com a sua leitura. É um livro leve, descomprometido, que cai bem.

    É certamente uma boa adição à biblioteca de qualquer pessoa. A escrita tem beleza, e a vida do cientista suíço é deveras impressionante.

  • Um romance a precisar de um “cannocchiale” para outros voos

    Um romance a precisar de um “cannocchiale” para outros voos

    Título

    Galileu em Pádua

    Autor

    ALESSANDRO DE ANGELIS (tradução: Bárbara Villalobos)

    Editora (Edição)

    Gradiva (Janeiro de 2022)

    Cotação

    13/20

    Recensão

    A figura austera que a História nos deixou de Galileu Galilei não pode estar mais distante da do romance de Alessandro De Angelis, publicado no mês passado pela Gradiva. Porém, de certeza absoluta que esta obra de ficção retrata melhor do que a iconografia ou a lenda o homem que foi Galileu, sobretudo durante aqueles que, por ele, foram considerados os melhores anos da sua vida.

    Mais do que um romance histórico – que tem, diga-se, desde já, muitas fragilidades –, Galileu em Pádua é um repositório cronológico de episódios da sua vida desde 1592 – quando jovem cientista chega a Pádua, centro universitário da então República de Veneza – até 1610, quando o desenvolvimento do seu cannocchiale (telescópio) lhe permitiu escrever Sidereus nuncius, a pequena grande obra que descreve as quatro luas de Júpiter e muitas outras observações astronómicas que revolucionariam a Ciência.

    E quando se diz repositório é quase de forma literal, porque Alessandro De Angelis – um premiado astrofísico italiano, que ministra em na Universidade de Pádua e também no Instituto Superior Técnico, sendo aí professor catedrático convidado de Partículas e Física Nuclear – optou por apresentar, em grande parte do romance, um número considerável de epístolas (autênticas ou reconstruídas), umas atrás das outras, entre Galileu e alguns dos maiores vultos da Ciência daquele época, como Johannes Kepler, Tycho Brahe, Guidobaldo del Monte e Paolo Sarpi, além de outras envolvendo seus familiares. Ou ainda missivas onde se destaca o seu lado cortesão – no sentido bajulador do termo, mas perfeitamente contextualizado naquela época – perante os poderosos de Veneza e Florença.

    Aliás, na obra destaca-se bem a intencionalidade de Galileu em agradar a Florença, para onde desejava migrar. Foi mesmo visto como uma traição, sobretudo pelo seu amigo Giovanni Sagredo – que viria a surgir como interlocutor fictício na obra Diálogo sobre os dois principais sistemas do Mundo –, Galileu não ter feito qualquer referência a Veneza no Sidereus nuncius, para além do local da impressão, dedicando a obra ao então Grão-Duque da Toscana, Cosimo II de Medici. Na verdade, os nomes das quatro luas de Júpiter, baptizadas então como “estrelas mediceias”, foram “negociados” como contrapartida para a sua contratação pela Universidade de Florença.

    Não se censure esta atitude de Galileu, nem tão-pouco a forma como lidou com Marina Gamba, mulher com quem nunca casou, que lhe deu duas filhas e um filho, e que abandonou quando foi para Florença. Esse aspecto da sua vida é aflorado no romance, mas de forma muito superficial e, convenhamos, até algo pueril.

    Das relações com os filhos, a abordagem no romance também é muito superficial, relevando, porém, um dos aspectos mais curiosos deste cientista: o seu apego e conhecimento de astrologia. Galileu pelo menos escreveu duas cartas astrais das suas filhas Virgínia e Lívia, que Alessandro De Angelis transcreve, estabelecendo os respectivos perfis e ânimos futuros. Também aqui nada de surpreendente para quem conhece a época: os cientistas eram, geralmente, adeptos e defensores de ciências hoje consideradas mais esotéricas, como a Astrologia e a Alquímia.

    Por abordar um período tão vasto e de tamanha riqueza, até histórica, do ponto de vista político, romancear a vida de Galileu Galileu ao longo de 18 anos seria tarefa hercúlea para qualquer romancista, mesmo com créditos firmados. Exigiria um melhor contexto histórico, uma maior fluidez da narrativa, um aprofundamento psicológico dos principais personagens – a começar por Galileu – e, porventura, um “entrosamento” entre os diversos períodos destes 18 anos.

    Por isso, Alessandro De Angelis é notoriamente um “amante” de Galileu e “fala” a mesma língua científica, e isto surge como uma vantagem; mas denota também dificuldades em manter um fluxo narrativo em simultâneo equilibrado e empolgante. Mostra que desejou, a toda a força, “oferecer” aos leitores as cartas de Galileu e alguns detalhes científicos das suas descobertas e invenções até às observações de Júpiter –, e isso mostra-se fatal em grande parte do romance, porque o torna desconexo, saltitando de epístola em epístola, enquanto vão surgindo, aqui e ali, por vezes a despropósito, capítulos “normais” ou comentários às cartas.

    Por esse motivo, este é um romance que vale sobretudo como “documento” de divulgação da faceta de um dos “monstros” da Ciência, que alterou de forma indelével o modo como olhamos para nós e para o Universo. Nessa perspectiva, Alessandro De Angelis pode dar-se por satisfeito. Mas para romance, faltou-lhe um cannocchiale.

  • A derradeira viagem pelas letras esquecidas

    A derradeira viagem pelas letras esquecidas

    Título

    Roteiro afetivo de palavras perdidas

    Autor

    ANTÓNIO MEGA FERREIRA

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Outubro de 2022)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Jornalista, escritor e gestor cultural, António Mega Ferreira, desaparecido há menos de dois meses, no final de Dezembro, nasceu na lisboeta Mouraria em 1949, e terá dito que “gostaria de ficar conhecido na História como um tipo que fez essas coisas todas na área da cultura”.

    Com mais ou menos polémica, alguma coisa ficou feita. Mega Ferreira coordenou a candidatura de Lisboa à Expo’98, da qual foi depois comissário executivo, tendo em seguida presidido ao Parque Expo, ao Oceanário e ao Pavilhão Multiusos de Lisboa.

    Além disso, dirigiu a Fundação do Centro Cultural de Belém entre 2006 e 2012, tendo também ocupado a liderança executiva da Associação Música, Educação e Cultura (AMEC).

    Mas antes de tudo isto, foi jornalista, passando pelo Expresso, ocupou a chefia de redacção do Jornal de Letras e da RTP2, e fundou ainda as revistas Ler e Oceanos.

    Deixou também mais de 30 obras publicadas, entre ficção, ensaio, poesia e crónicas. E foi com Crónicas italianas, publicada em 2021, que receberia o Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga.

    Na sua última obra em vida, Roteiro afetivo de palavras perdidas, Mega Ferreira desenha-nos um repositório de palavras em desuso ou “olvidadas”, para que possamos reviver ou reconhecer, com ele, aquelas que a sociedade portuguesa tende a dar “sumiço” do seu riquíssimo vocabulário. E é, em sentido metafórico também, um livro de viagens. Uma viagem no tempo por uma sociedade pouco cosmopolita e quase ignorante, a que vivia no “mundo salazarista”, com um mundo de “clichés” e de propaganda política: “Uma pavorosa ignorância de tudo o que se passava além da nossa fronteira”.

    O que provocava uma espécie de ressentimento por parte das chamadas elites que importavam e usurpavam, de forma faceciosa, palavras da língua francesa, como “galheta” ou “psiché”, e outras que foram substituídas por termos anglo-saxónicos, como seja “métier” (por especialista – tão em voga nos últimos três anos), ou mesmo “aeroplano”.

    Em cada palavra, assim temos uma viagem no tempo. Mega Ferreira conduz-nos, ora pelos caminhos obscuros da criação de palavras, ora pelas memórias da sua infância, ora pelos trilhos da História, ora pelas páginas de muitos livros, para nos apresentar de forma deliciosa e afectuosa algumas palavras que se vão perdendo e outras que se recuperam, mas com outros sentidos.

    “Geringonça” é disso exemplo, um neologismo, diz-nos o autor, já que o seu uso na política é algo inédito. “Nos longínquos anos 50 designava uma traquitana, um carro velho e desconjuntado pronto para ir para a sucata”. Mas Mega Ferreira vai mais atrás e recorre a outras obras para dar a conhecer as origens desta e de outras palavras no léxico português, para remeter “geringonça” para “algo mal contruído ou frágil”.   

    É muito provável que o leitor/a acima dos 40 anos se identifique e até emocione com uma série de “palavras perdidas”, como por exemplo, “desaustinado”, “telefonia” ou mesmo “inalador” – quantos de nós terão sentido o aroma fresco de Vicks VapoRub, com que nos “friccionavam o peito quando uma ponta de tosse infantil” nos assaltava.

    Muitas outras palavras são capazes de nos desfiarem sorrisos. Ao todo são oito dezenas, mas Mega Ferreira tinha uma lista de 250 entradas no seu roteiro inicial. Quem sabe fique o desafio para recuperar, ou pelo menos, registar e guardar algumas palavras e expressões que nos são caras, nos nossos cofres e cadernos, para que a elas recorramos sempre que nos apercebermos que alguns “famigerados” “estafermos” nos estão a “infernizar” com os seus “despautérios”.

    Por curiosidade, “padralhada” não está neste inventário, “mas bem poderia estar”, como confessou Mega Ferreira, que contava que o pai quase vociferava quando afirmava “é preciso afastar essa padralhada toda”. Mas este país, este Portugal, parece continuar preso ao “pecado” – esta, sim, uma palavra deste Roteiro afetivo de palavras perdidas que, apesar de não se ter “perdido”, talvez comece, finalmente, a ficar em desuso.

  • Um enteado à sombra do pai

    Um enteado à sombra do pai

    Título

    A viúva

    Autor

    JOSÉ SARAMAGO

    Editora (Edição)

    Porto Editora (Novembro de 2022)

    Cotação

    12/20

    Recensão

    Em 1991, no ano em que publicou o polémico O Evangelho segundo Jesus Cristo – e já sendo um escritor consagradíssimo, depois de Levantado do chão (1980), do sublime Memorial do convento (1982), de O ano da morte de Ricardo Reis (1984), de A jangada de pedra (1986) e de História do cerco de Lisboa (1991) –, José Saramago contou a génese do seu romance de estreia: Terra do pecado, publicado em 1947, quando o único Prémio Nobel da Literatura da língua portuguesa contava 25 anos: “Foi publicado pela Minerva, mas o editor achou que A viúva não era um título comercial e sugeriu que se chamasse Terra do Pecado. Pobre de mim, queria era ver o livro editado e assim saiu. De pecados sabia muito pouco e, embora a história comporte alguma actividade pecaminosa, não eram coisas vividas, eram coisas que resultavam mais das leituras feitas do que duma experiência própria. Não o incluo na minha bibliografia, apesar de os meus amigos insistirem que não é tão mau como eu teimo em dizer. Mas como o título não foi meu e detesto aquele título…”

    Em nota do próprio Saramago, nesta edição que a Porto Editora lança em parceria com a Fundação José Saramago, que recupera o título inicialmente desejado – a culminar as comemorações do centenário do nascimento do escritor –, além de contar a sua formação como leitor (alicerçado, como se sabe, na biblioteca das Galveias, em Lisboa), são revelados ainda outros pormenores da viagem do manuscrito até ser aceite inopinadamente pelo editor Manuel Rodrigues, que também criou o famoso Borda d’Água. E, por fim, conclui Saramago, não sem ironia, e em tom auto-depreciativo, que “não podia adivinhar que o livro terminaria a pouco lustrosa vida nas padiolas. Realmente, a julgar pela amostra, o futuro não terá muito para oferecer ao autor de A viúva.”

    Não tendo a “vida” de A viúva, como romance, acabado em padiolas, o futuro não teria, de facto, muito para oferecer ao seu autor se o estilo se tivesse mantido. Felizmente, mudou. Por ele e para agrado dos leitores. Depois da sua estreia, aos 25 anos, Saramago manteve um interregno em obras de ficção de três décadas, até que em 1977 publicou Manual de pintura e caligrafia, demorando depois mais três anos até Levantado do chão para apurar e depurar o seu estilo característico, de marcante oralidade e fluxo narrativo encantatório, crítico e irónico (e criativos enredos) com uma pontuação não convencional (na verdade, com poucos pontos).

    O interregno foi mais curto em outros géneros. Saramago publicou um livro de poemas em 1966, e na década de 70 mais dois livros de poesia, três livros de crónicas, sete contos (seis dos quais na obra Objecto quase, e o sétimo numa antologia) e duas peças teatrais. Em todo o caso, antes de Levantado do chão, Saramago era muito mais conhecido como (polémico) jornalista, de forte pendor ideológico, do que como escritor.

    Por isso, queiramos ou não, até ao início dos anos 80, Saramago – já a caminhar então para os 60 anos – não teria grandes motivos para se orgulhar do seu romance de estreia, e não propriamente por lhe terem trocado o título.

    De facto, sendo certo que A terra do pecado – ou A viúva, como agora se queira –, que era “renegado” por Saramago, acabou por ter mais edições do que a primeira, mas estas só começaram a surgir depois de 1997, a reboque da sua consagração, dois anos depois do Prémio Camões – e agregado a mais oito prémios literários – e em vésperas do Prémio Nobel da Literatura. As sucessivas edições que teve – na Editorial Caminho, foram sete até 1999 e 10 até à morte de Saramago, em 2010 – aparentam um sucesso literário, mas na verdade justificaram-se (e aceita-se que bem) somente pelo interesse, curiosidade e culto literários, tanto assim que os exemplares da primeira edição de 1947 atraem actualmente grande interesse bibliófilo. Os escassos exemplares no mercado alfarrabista atingem preços de 750 ou até de 1.000 euros. [com alguma sorte, há uns anos consegui um exemplar por 250 euros]. Um valor bem superior a um exemplar da primeira edição de Memorial do convento ou de Levantado do chão.

    De facto, pode-se acusar Saramago de muita coisa – além de se poder (e dever) venerá-lo pela sua extraordinária escrita a partir de 1980 –, mas jamais de falta de lucidez. Com efeito, não foi por acaso – nem pela questão do título – que Saramago não terá incluído, por décadas, o romance de estreia na sua bibliografia. Simpatias à parte, Terra do pecado (ou A viúva) é obra de Saramago mas não é obra saramaguiana; é romance completamente fora daquilo que viria a ser o seu universo e estilo; é um romance com enredo simples, escrita enquadrada no movimento entre o realismo e o naturalismo, mas com descrições banais e um encadeamento pueril. Por exemplo, veja-se a segunda metade do romance onde se sucedem os capítulos com um quase invariável “na manhã seguinte”. Ou diálogos que “não aquecem nem arrefecem” (pg. 193):

    – Boa noite, Joaquim! Já vais fechar?

    O taberneiro curvou-se:

    – Boa noite, senhor doutor! Já ia fechar, sim, senhor!… Mas cá o estabelecimento, para o senhor doutor, está sempre aberto. Faça favor de entrar.

    O médico entrou e sentou-se, enquanto o taberneiro corria a um armário, donde tirou um copo limpo e uma garrafa de vinho do Porto.

    – O costume, não é, senhor doutor?

    – Sim, claro, o costume…

    Não se diga, em todo o caso, que A viúva é um mau romance; é um romance de formação, de um jovem de 25 anos, ainda sem calo literário, e por isso muito aceitável. Não envergonha, merece até estar numa estante, mas não exalta. E olhando para a obra do seu autor, José Saramago, que nos ofereceu alguns romances de merecida nota 20, dar-se assim um 12 à sua A viúva acaba até por ser, pelas diferenças colossais num confronto com as suas (várias) obras-primas, um gesto de respeito.

  • Crimes em Hollywood

    Crimes em Hollywood

    Título

    Os domínios do lobo

    Autor

    JAVIER MARÍAS (tradução: Ana Maria Pereirinha)

    Editora (Edição)

    Alfaguara (Novembro de 2022)

    Cotação 

    16/20

    Recensão

    Desaparecido no ano passado, Javier Marías foi um escritor espanhol que nasceu em Madrid em 1951 e morreu sem o maior reconhecimento literário mundial – o Prémio Nobel –, apesar de integrar a lista de candidatos por várias vezes. Não obstante, prémios não faltam a um dos maiores escritores contemporâneos.

    Com efeito, prémios e distinções foram vastos para grande parte das suas obras, como por exemplo, Assim começa o mal, Os enamoramentos (Prémio Giuseppe Tomasi di Lampedusa e Prémio Qué Leer), Coração tão branco (Prémio da Crítica, Prix l’Oeil et la Letre e IMPAC Dublin Literary Award), Amanhã na batalha pensa em mim (Prémio Fastenrath, Rómulo Gallegos e Prix Fémina Étranger). Todos estão publicados em Portugal pela Alfaguara.

    O autor espanhol ganhou, ainda, diversos prémios pelo conjunto da sua obra, como o Prémio Literário Europeu em 2011. Note-se que Javier Marías chegou a rejeitar o Prémio Nacional (de Espanha) da Literatura em 2012, por considerar não ser da responsabilidade do Estado a atribuição desse tipo de galardão.

    Além de escritor, ainda foi professor na Universidade de Oxford e na Universidade Complutense de Madrid. Era membro da Real Academia Espanhola e da Royal Society of Literature, desde 2011. Foi também tradutor, sendo de destacar a sua tradução de Tristram Shandy, de Laurence Sterne, que lhe valeu o Prémio Nacional de Tradução em Espanha em 1979.

    Para quem é admirador e leitor habitual de Javier Marías, é provável que esta sua primeira obra de 1971, reeditada em 2007 – e, agora finalmente publicada em Portugal pela Alfaguara, com tradução de Ana Maria Pereirinha – seja, para muitos, um mero exercício de escrita, um primeiro romance, quase juvenil, tal é a inocência e dedicação.

    Porém, convém referir que este livro foi, à época, um marco pelo afastamento do realismo social de Espanha. Por ser um dos primeiros autores da sua geração a distanciar-se dos temas da ditadura de Franco, Javier Marías gerou algum desconforto, o que lhe terá valido fortes críticas e mesmo censura.

    De facto, Marías desloca-se para outros espaços, tempos e realidades. Uma ode ao cinema de Hollywood de então, poder-se-á dizer, dada a manifesta influência que o autor admite ter sentido na Cinémathèque de Henri Langlois, em Paris, para onde fugiu aos 17 anos. Foi nessas salas que passou uma temporada, “o único lugar do mundo em que podia estar em contacto permanente com esse material” (pág. 18).

    O que é de salientar é a qualidade da escrita, apesar da juventude do autor – escreveu-o com 17-18 anos (e publicou-o aos 19). A intensidade da narrativa é um vislumbre do que se seguiria. Um livro que pode ser visto como um ponto de partida para ler e conhecer a profunda obra de Javier Marías.

    Os domínios do lobo resulta de uma série de histórias que se podem ler isoladamente, mas que estão ligadas entre si, pelo desmoronamento da família Taeger, uma família abastada de Pittsburgh, na Pensilvânia. O livro começa com os primeiros problemas, em 1922, sendo possível compreender alguns dos desenlaces em diversas histórias posteriores.

    A estética da tela cinematográfica caminha a par e passo com a crueldade descritiva em alguns momentos, como cruéis foram os tempos da guerra civil estadunidense (ou da Secessão) e da escravatura e da tentativa da sua abolição, entre 1861 e 1865.

    Dos cowboys aos gangsters, da Lei Seca até à mulher fatal do cinema mudo, o livro combina o cinema negro com a tragicomédia que provoca, no leitor, um entusiasmo que só um escritor talentoso consegue transmitir.

    É, pois, uma leitura recomendada para os amantes do cinema de Hollywood, em particular da sua época áurea. Mas igualmente a todos os leitores que querem conhecer ainda melhor a vasta e excelente obra de um dos autores ibéricos mais reconhecidos.