Categoria: Recensões

  • A maldade está no meio de nós

    A maldade está no meio de nós

    Título

    O diabo

    Autor

    GONÇALO M. TAVARES

    Editora (Edição)

    Bertrand Editora (Setembro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Aos 52 anos, Gonçalo M. Tavares é porventura o mais prolífico escritor da sua geração – e não só –, com uma vasta obra que conta, desde o início deste século, com cerca de meia centena de títulos. Multifacetado, multipremiado e multitraduzido, a sua produção literária criterisamente “catalogada” por si próprio, causa pasmo pela meticulosidade, harmonia e coerência..

    Nos últimos anos, surpreendente, talvez, seja “apenas” uma certa desaceleração na sua cadência produtiva: no último quinquénio “apenas” publicou seis obras, o que parece pouco quando, por exemplo, entre 2003 e 2017 foram editadas 17 obras da sua autoria.

    A estatística é, porém, um pormenor. A qualidade mantém-se bastante elevada, mesmo quando se aguarda um estilo similar, já conhecido. Gonçalo M. Tavares continua a (saber) criar, com as suas narrativas – chamemos-lhe assim, por simplificação –, estranhos e desafiantes universos, por vezes irritantemente simples, outras vezes desconsertantemente complexos. Tem sido justamente comparado com Kafka, e em certa medida alguma da sua obra assim assemelha- se ao escritor checo, sobretudo quando, como sucede com este O diabo, se debruça sobre a humanidade e sobretudo a maldade, e a incapacidade e impotência de a subverter (à maldade).

    Integrado na série Mitologias – que conta também como A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado (2017) e Cinco meninos, cinco ratos, ambos também editados pela Bertrand –, O diabo acaba por ser, dependendo da perspectiva (ou da interpretação), um conjunto de narrativas que, tendo presente um belzebu físico, omnipresente e regendo os humanos, se espraia a maldade humana, não apenas a inata mas em especial a apreendida, a aplicada e a obedecida.

    Sabe-se que o diabo está nos pormenores, mas por este livro de Gonçalo M. Tavares está afinal por todo o lado, mas na prática sem sequer se impor aos humanos, pelo medo ou pelo temor. Quase se pode dizer que o diabo é obedecido, e ponto.

    Alexandre Palas-de-Cavalo, uma das personagens centrais deste livro, mostra de forma muito particular, de uma forma demasiado crua, como a maldade se pode aplicar sem qualquer noção moral, apenas porque “tem de ser”. E “tudo tem (mesmo) de ser”, quanto mais chocante e perverso se afiguram as cenas e efeitos do mal.

    Gonçalo M. Tavares explora assim não apenas o mal, mas a banalização do mal, a aplicação de regras sem nexo, mas surgindo com tal naturalidade que aparentam ser a coisa mais normal e, por isso, necessariamente aceitável.

    Embora algumas partes do livro sejam, aqui e ali, cansativas por um certo exagero na criação de personagens fantásticas – entre Kafka e Italo Calvino (nas três novelas de Os nossos antepassados) –, aconselha-se que este livro de Gonaçlo M. Tavares seja de leitura lenta e talvez repetida, para desvendar as metáforas que encerram.

    E tal como sucede com muitos outros escritores, as interpretações de cada leitor podem não ser exactamente aquelas pensadas pelo autor – e se assim for, é aí mesmo que está a magia da Literatura.

    Para finalizar, havendo imensas passagens marcantes, e muito visuais, neste livro de Gonçalo M. Tavares, que merecem ser anotadas (e discutidas), escolherei uma que, para mim, melhor representa o mundo como ele infelizmente é (maléfico), ou seja, como o poder de certos homens se exerce sobre os demais.   

    Há um buraco no Grande Armazém – está no chão, num dos cantos –, um poço que acaba não se sabe onde, mas ninguém se atreve a fugir por ali porque cheira terrivelmente mal, e nunca o cheiro foi assim tão eficaz – impede a fuga, eis o cheiro a fazer o que não conseguiria um exército bem armado – e, sim, é para esse buraco que vão as fezes que o Povo-Armazenado produz. Tudo organizado: a comida vem de cima e o animal doméstico, o Povo-Armazenado, levanta a cabeça, como se fossem pequenos animais a receber comida da mãe, e depois baixa-se, próximo do Grande-Buraco, e para ali envia os dejectos. Assim se mantém o Grande-Armazém com o estômago cheio e não demasiado sujo.

    (…)

    Mas é armazenado para quê, esse povo? Eis a questão. Porque não o eliminam de uma vez? E é essa a pergunta que fazem ao capitão Mau-Mau. Gastamos comida e gasolina nos Helicópteros-Bons – não se percebe o sentido de armazenar um povo inteiro –, esta é a questão que inquieta. O capitão Mau-Mau responde que o Povo-Armazenado pode vir a ser útil no século seguinte. Quem sabe se daqui a cem anos, no início do próximo século, não precisaremos de novo deste povo que agora armazenamos. Sim, são estes os planos do capitão Mau-Mau – nada se pode desperdiçar, odeia tal gesto, o de deitar fora algo, e por isso é um dever armazenar este povo guardá-lo para o futuro. Quem sabe se este Povo-Armazenado não se transformará numa coisa útil, verdadeira, justa e bela. (pp. 63-64)

  • A comovente homenagem aos eternos amigos

    A comovente homenagem aos eternos amigos

    Título

    As melhores histórias do melhor amigo

    Autores

    Vários

    Editora (Edição)

    Parsifal (Outubro de 2022)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Este As melhores histórias do melhor amigo é um livro sobre o amor. Uma das mais bonitas, fraternas e universais formas de amor – a que existe entre o Homem e o seu eterno melhor amigo de quatro patas: o cão.

    O fundador e editor da Parsifal, Marcelo Teixeira seleccionou quase uma vintena de breves contos e textos, escritos por reputados autores nacionais e internacionais, para homenagear os nossos sempre fiéis companheiros.

     É, por isso, verdadeiramente, uma coletânea de histórias de amor. Alguns escritos são de carácter ficcional, outros contam experiências reais. Cada um deles descreve uma vivência diferente, e em todos a emoção é tónica muito presente, com a relação (ou as relações) entre humanos e canídeos como protagonista.

    Formado em Arqueologia e História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Marcelo Teixeira dedicou grande parte da sua vida às letras, sobretudo como editor, onde se destacou como coordenador editorial da Oficina do Livro, antes de fundar a Parsifal em 2013. É co-autor dos livros de poesia Terna Ausência (2005) e Santo Ofício (2006), e dos livros História(s) do Estado Novo e Reflexões sobre a expedição punitiva norte-americana no México na imprensa portuguesa.
    Como o próprio assume, esta obra sobre a paixão por canídeos não teria surgido se não fosse a insistência dos seus filhos para que acolherem, na família, um novo membro, quadrúpede e peludo.

    Nesta “enxuta” obra de apenas 156 páginas, podemos assim ler escritores, vivos e já falecidos, tão distintos como Mark Twain, Anton Tchékhov, José Luís Peixoto, Machado de Assis, Sérgio Luís de Carvalho e Filomena Marona Beja. Todos os textos são uma ode a essa encantadora espécime que são os canídeos e a quem, como tão bem elucidam as palavras de Sérgio Luís Carvalho, “pouco falta (…) para serem humanos; e o que lhes falta apenas reverte a favor deles”.

    O “acervo” escolhido é bastante heterogéneo: alguns contos ou fábulas, bem-humoradas, arrancam-nos um sorriso aberto ou até mesmo uma gargalhada, enquanto outras suscitam-nos comoção, nostalgia ou compaixão.

    Assim, com Tchékhov, em A senhora do cãozinho, um lulu-da-pomerânia branco testemunha o início de uma história de amor. Em Rumo ao primitivo, de Jack London, temos um cão estilo “super-herói” chamado Buck. O cómico e indiscreto Black, um bull-terrier, é responsável pelo desenlace de um casal, ao “denunciar” o caso de dois amantes, no conto de Artur de Azevedo. Já Mark Twain, em A história de uma cadela, fala-nos sobre uma família canina bastante erudita, em que a mãe, uma collie, sabe, inclusivamente, que a palavra “agricultura” é um sinónimo de “incandescência intramural”.

    Marcelo Teixeira salienta, e bem, na introdução, a omnipresença destes animais na arte, na literatura, na cultura, e no quotidiano do Homem desde tempos imemoriais. Conseguirá alguém imaginar um mundo sem cães? O amor incondicional, a alegria, a lealdade, a proteção e a companhia que proporcionam aos seus bípedes pais adoptivos não têm par, e por isso esta homenagem a estes seres deveras especiais é uma justa retribuição.

    Vale muitíssimo a pena ter este livro em casa – com ou sem cão –, já que a sua aquisição é um ganho duplo: por um lado, acrescenta-se à biblioteca um tributo enternecedor a estes nossos fiéis amigos de quatro patas sob a forma de peças literárias imaculadas; e, por outro, contribui-se para a Associação Zoófila de Leiria – Fiéis Amigos e para a Associação Protectora de Animais da Marinha Grande, já que as receitas obtidas com as vendas revertem, na totalidade, a favor destas instituições.

    Deixo apenas uma advertência: quem não for já dono de um bichinho destes, poderá, com a leitura deste livro, ser assaltado por um forte desejo de se dirigir ao canil mais próximo e levar um consigo para casa. Se for o caso, não resista. É que, e para concluir, citando novamente Sérgio Luís de Carvalho: “E – vejam bem o que os cães nos fazem – mesmo sendo ateu convicto desde a minha juventude, chego muitas vezes ao ponto de agradecer a Deus por os ter criado”.

  • Crónica de um não-amor e de vidas perdidas

    Crónica de um não-amor e de vidas perdidas

    Título

    A fera na selva

    Autor

    Henry James (tradução: Ana Maria Pereirinha)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Janeiro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Publicada há 120 anos, Uma fera na selva mantém-se, nem que seja metaforicamente, jovial, no sentido de ser uma novela actual na sua complexidade psicológica e nas suas inúmeras subtilezas, que tão bem retratam a natureza humana: a vida, em si mesma, o tempo, as ânsias e as obsessões, as oportunidades (perdidas também) e a própria decadência e morte.

    Retratando a vida, ou a vida desaproveitada, de John Marcher – um homem que (sobre)vive na expectativa de um evento extraordinário que o tornará diferente dos demais (não se sabe se para melhor, se para pior) –, nesta novela Henry James cruza-o com May Bartram, uma mulher que, confidente inicial de um “segredo”, o acompanha pacientemente nas suas inseguranças e ânsias, numa estranha dinâmica que não permite nem avanços nem recuos para qualquer relação, que parece estar ali a gritar entre os dois. Ambos aguardam assim, mais ele que ela, mas ambos aguardam.

     “A forma real que esta relação o deveria ter tomado, tal como se apresentava, era o casamento de ambos. O diabo era que, justamente porque se apresentava assim, tornava o casamento impossível. A convicção, a apreensão, a obsessão dele, em suma, não era um privilégio que pudesse pedir a uma mulher para partilhar; e essa consciência era justamente o que o atormentava. Alguma coisa estava à sua espera, entre as circunvoluções dos meses e dos anos, como uma Fera agachada na Selva, a preparar o salto. Se a Fera estava destinada a matá-lo ou a ser morta por ele, era irrelevante” (pg. 34).

    Enfim, os dois personagens passam pelas respectivas vidas, de forma lenta e com a “fera”, omnipresente mas invisível, até que, efectivamente, algo sucede, mas, quando sucede, na verdade, a sua apreensão é já tardia e irremediável para John Marcher.

    Notável pela maneira e estilo da narrativa e seus diálogos ambíguos e subtis– que tornam a novela bastante complexa e aberta a várias leituras, daí que ser obra conhecida pela dificuldade de tradução –, Henry James explora magistralmente a natureza da vida, do amor e da perda (ou do não-ganho), onde uma selva metafórica – a vida e a sua imprevisibilidade – estão sujeitas (ou não) à ameaça de uma também metafórica fera, temida por ser desconhecida e imprevisível (embora certa, pelo menos para Marcher; não tanto, talvez, para May).

    Novela de múltiplas interpretações, A fera na selva pode ser entendida também como uma metáfora sobre a nossa constante luta interna sobre o sentido da vida, sobre as nossas opções e sobretudo sobre as hesitações que, se se mantiverem ao longo da vida – como sucedeu com John Marcher – nos surpreende apenas, à laia de saldo final, com uma terrível perda sem qualquer ganho. Na verdade, nem sempre quem espera sempre alcança. Pode apenas perder-se, sem glória.

  • As cozinhas do Mundo sem papas na língua

    As cozinhas do Mundo sem papas na língua

    Título

    A cook’s tour: em busca da refeição perfeita

    Autor

    ANTHONY BOURDAIN

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Março de 2023)

    Cotação

    C17/20

    Recensão

    Como espectador useiro e vezeiro que fui dos programas televisivos de Anthony Bourdain (1956-2018), confesso a estranheza que sobre mim se abateu durante a leitura deste livro, tão só porque conhecia de antemão a trágica maneira como o autor havia desaparecido.

    E essa estranheza foi-se formando paulatinamente a cada linha, a cada parágrafo, a cada virar de página, em que o ex-chefe de cozinha, agora transformado em estrela televisiva, perseguia a “receita perfeita” por todo o mundo e enaltecia o prazer de estar vivo e das coisas boas que nos conferem essa alegria, em particular as associadas ao comer e ao beber.

    Publicado em 2001, dezassete anos antes da sua morte prematura, A cook’s tour: Em busca da refeição perfeita foi escrito no rescaldo do sucesso planetário que o anterior livro Cozinha confidencial: aventuras no submundo da restauração (2000) lhe granjeara, e depois de Anthony Bourdain ter iniciado um programa de televisão acerca das gastronomias e culinárias do mundo.

    Por volta dos seus 45-46 anos, Bourdain teve uma crise existencial e decidiu não mais continuar “a atabalhoar brunches num café qualquer de West Village”, antes que o seu cérebro se transformasse em papa. Em conversa com o seu editor, disse-lhe: “Vou viajar por todo o Mundo, a fazer o que quero. Fico em bons hotéis e em barracas. Como comida assustadora, exótica e maravilhosa, faço coisas porreiras como vi nalguns filmes, e vou procurar a refeição perfeita.”

    Além da refeição perfeita, Bourdain também queria aventuras, entusiasmar-se com emoções e arrepios melodramáticos, ver o Mundo. “Tudo dito, no entanto, a escrita deste livro tem sido a maior aventura da minha vida. Cozinhar profissionalmente é difícil. Viajar pelo mundo, escrever, comer, e fazer um programa de televisão é relativamente fácil. É melhor do que preparar o brunch.”

    O enfant terrible da cozinha vai discorrendo sobre as suas aventuras num tom muito pessoal, irreverente, por vezes bastante confessional, polémico ou a chamar os bois pelos nomes, com pormenores históricos de contexto sócio-económico, mas também cultural, com múltiplas referências à Literatura, à Música ou ao Cinema. Os chefs de cozinha também são muitas vezes citados, uns mais conhecidos (Gordon Ramsay) do que outros, bem como figuras públicas ligadas à culinária (Nigella Lawson), salpicando as narrativas com inúmeras descrições pantagruélicas, umas de fazer crescer água na boca, outras de torcer o nariz.

    Eis dois exemplos: num mercado em Saigão, Anthony Bourdain encontrou uma mulher a fritar uns passarinhos minúsculos, com “cabeça, patas, asas intactas, com as entranhas a rebentarem amareladas, saltando de barrigas fritas douradas”, nada que o assustasse. Tinham bom aspecto e cheiravam bem: “Compro um, pego-lhe pelas patas, e a mulher sorridente a encorajar-me, a dizer-me que estou a fazer bem. Coloco-o inteiro na boca, roendo até às patas, bico, cérebro, pequenos ossos crocantes e tudo. Delicioso.” Não há limites para o seu apetite: “Na manhã seguinte, estou de volta ao mercado, onde tenho um pequeno-almoço saudável de hot vin lon, essencialmente um embrião de pato cozido, ainda na casca, com bico meio formado e pedaços de matéria crocante escura enterrados na gema parcialmente cozida e clara de ovo translúcida.”

    Atento e respeituoso dos cerimoniais da mesa em cada país, como por exemplo o pão em Marrocos: “Aqui não se pega simplesmente no pão; espera-se para ser servido”. Pormenores importantes mas que ajudam e fazem parte da integração de Bourdain à mesa de qualquer pessoa. E essa era outra das suas extraordinárias características. Tanto se podia sentar à mesa a comer com um simples pescador como estar rodeado dos mais ilustres chefs no mais conceituado restaurante do Mundo, com o mesmo prazer, irreverência e sentido crítico. Sem papas na língua.

    Para terminar, transcrevo um excerto magnífico e revelador do tom apologético que Anthony Bourdain aplicou na caraterização de certos ingredientes e de como estes foram importantes na sua vida:

    “O que é uma ostra, senão a comida perfeita? Não requer preparação ou cozedura. Cozinhá-la seria uma afronta. Ela fornece o seu próprio molho. É um ser vivo até segundos antes de desaparecer pela garganta abaixo, por isso sabemos – ou deveríamos saber – que é fresca. Aparece no seu prato como Deus a criou: crua, sem adornos. Um pouco de sumo de limão, ou talvez um pouco de molho mignonette (vinagre de vinho tinto, pimenta preta moída, um pouco de chalota finamente picada), é o máximo de insulto que pode ter contra esta magnífica criatura. É comida no seu estado mais primitivo e glorioso, intocada pelo tempo ou pelo homem. Um ser vivo, comido para sustento e prazer da mesma forma que os nossos antepassados o comiam. E elas têm, pelo menos para mim, a atração mística acrescida de toda essa memória sensorial – o significado de ter sido o primeiro alimento a mudar a minha vida. Culpo a minha primeira ostra por tudo o que fiz depois: a minha decisão de me tornar cozinheiro, a minha procura de emoção, todos os meus horrendos erros na busca do prazer. Culpo aquela ostra por tudo. De uma forma simpática, claro.”

    Depois de ler isto só nos apetece comer ostras.

  • Manual de instruções para amar

    Manual de instruções para amar

    Título

    8 regras do amor

    Autor

    JAY SHETTY

    Editora (Edição)

    Albatroz (Janeiro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Jay Shetty é um autor britânico de origem indiana, que ficou muito conhecido pela obra Pensa como um monge, editado em Portugal pela Albatroz, tal como este, 8 Regras do amor.

    Depois de ter vivido vários anos, na Índia, a aprender a prática védica com monges em ashrams, Shetty começou a partilhar as suas ideias e conteúdos no mundo virtual e digital.

    Actualmente, além destes dois bestsellers, Shetty tem um dos podcasts mais ouvidos no Mundo, On purpose, e é um dos life coachs mais conhecidos e seguidos na Internet.

    As 8 regras do amor, sugeridas pelo autor, dividem-se em quatro partes: Tempo a sós, Compatibilidade, Cura e Conexão.

    Jay Shetty agrupa estas etapas e descreve as regras, recorrendo às lições dos livros primordiais da tradição oriental e fazendo uma analogia com as quatro etapas de vida descritas pelos Vedas, como se cada ashram fosse uma “sala do Veda”, “uma escola de aprendizagem, crescimento e apoio” (p. 14):

    1. Brahamacharya ashram – “Preparação para o amor”, que inclui as duas primeiras regras.

    Para aprender o amor a dois, é preciso apreciar o tempo que se está a sós – a Regra 1: “Deixe-se estar sozinho”. Com a Regra 2, “Não ignorar o carma”, o autor diz-nos que: “O carma é um espelho que nos mostra onde as escolhas nos levaram…” (p. 53).

    2. Grhastha ashram – “Pôr o amor em prática”, a partir de 3 regras.

    Nesta parte, o autor ajuda a compreender que o amor é um processo contínuo e a dois, e que, antes de se tomar uma série de decisões, é preciso perceber se somos compatíveis. Ou seja, “antes de decidirmos que estamos apaixonados, de declararmos o nosso amor a alguém e de determinarmos o que significa quando essa pessoa nos diz o mesmo, devemos ter em conta a nossa definição de amor” (p. 95) – a Regra 3: “Definir o amor”.

    Regra 4: “A pessoa com quem está é o seu guru” – “Se escolhermos partilhar a vida com alguém com quem possamos crescer, então estaremos sempre a aprender” (p. 123).

    Regra 5: “O propósito vem em primeiro lugar” – Nesta parte, Shetty lembra os condicionalismos a que todos somos sujeitos desde a infância e que, por vezes, nos levam a romantizar “a ideia de fazer sacrifícios e de nos dedicarmos a outra pessoa (…). Mas conheço pessoas que deixaram de lado os seus próprios propósitos e anos depois sentiram-se perdidas ou enganadas” (p. 151). No fundo, a recordar que, na vida a dois, há duas pessoas a serem respeitadas.

    3. Vanaprastha ashram – “Proteger o amor” apresenta 2 regras, com as quais se pode aprender a resolver conflitos – Regra 6: “Sejam vencedores ou perdedores juntos” – e a terminar um relacionamento, se necessário for – Regra 7: “Ninguém morre com o fim de uma relação”.

    Nesta secção, o autor descreve o tipo de discussões que se pode travar com a pessoa com quem escolhemos viver, sendo certo que existem discussões produtivas e outras que servem apenas para aumentar ainda mais os conflitos. Uma espécie de minicurso de gestão de conflitos.

    Entretanto, todos sabemos, mas se calhar é bom lembrar que a vida continua. O dramatismo é uma forma de dar consistência às histórias que precisamos para dar sentido à nossa vida, mas há algumas, cujo ponto final, é difícil de registar.

    4. Sannyasa ashram – “Aperfeiçoar o amor”. Com a Regra 8 – “Ame uma e outra vez” –, estamos preparados para “experienciar o amor em qualquer momento com qualquer pessoa” (pp. 16-17).

    Ao longo deste guia do amor, o leitor encontra, ainda, ‘fichas de trabalho’ com uma série de exercícios individuais e a dois. Com tal, é para se ir lendo, para se ir aprendendo, exercitando, refletindo, também, e, de preferência, com tempo.

    É possível que o grande sucesso que este livro tem alcançado se deva ao facto de o autor sistematizar e congregar uma série de ensinamentos num único livro, numa escrita intimista, dando exemplos da sua própria vida e dos seus clientes – muitas celebridades entre estes, nomeadamente a Jennifer Lopez, Khloé Kardashian e Oprah Winfrey.

    A estratégia de marketing é, realmente, forte. Desde logo pelo título: “Regras”; e parece funcionar, talvez pela ideia de que existe alguém a orientar-nos. Nesta sociedade fragmentada e de mosaico, as pequenas histórias são produtivas, sobretudo quando se baseiam em grandes e clássicas narrativas, como as do livro dos Vedas – esta abordagem resulta na nossa sociedade (quase) sem referências divinas, mas sedenta de orientação.

    Também na contracapa, onde se lê que “ninguém nos ensina a amar”, “mas não tem de ser assim”, uma vez que neste livro encontramos “um guia completo para viver cada etapa do amor”.

    O livro é, com efeito, um manual muito interessante para todos aqueles que querem aprender um pouco mais sobre si próprios e sobre como manter (ou mesmo terminar) e aprofundar uma relação amorosa.

  • Vinde a nós, belo pitéu

    Vinde a nós, belo pitéu

    Título

    Sardinha: o sem fim da pesca do cerco

    Autor

    HÉLDER LUÍS

    Editora (Edição)

    Câmara Municipal da Póvoa de Varzim (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Se há produto português que merece todas as atenções, honrarias e homenagens, esse produto é a sardinha, de seu nome científico Sardina pilchardus. E este livro de fotografia documental da autoria de Hélder Luís está à altura de tão elevada demonstração de veneração e respeito, dedicando-lhe esta soberba edição. 

    Se mais livros existissem assim, acerca dos nossos produtos, certamente teríamos mais consideração pelos homens e mulheres que todos os dias trabalham para que esses mesmos produtos nos cheguem à mesa. Só conhecendo a sua História, as suas curiosidades e tudo o que esses produtos fizeram para se tornarem nos ex libris da nossa gastronomia, conseguiremos ser consumidores esclarecidos e melhor honraremos as nossas tradições culinárias, as nossas memórias e a nossa identidade.

    Esta é uma belíssima edição promovida pela Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, profusamente ilustrada com o trabalho fotográfico de Hélder Luís, fotógrafo, designer, artista de multimédia e músico, enriquecida também pelas numerosas páginas que se abrem num tríptíco onde encontramos inúmeras curiosidades, como a descrição pormenorizada da “Anatomia de um barco do cerco”, apresentando juntamento os “Diferentes tipos de barcos de pesca do cerco”, ou ainda as páginas dedicadas ao método de pesca  conhecido como “cerco”, revelando um cuidado na concepção deste livro e uma atenção aos pormenores, permitindo assim um conhecimento mais profundo sobre as matérias em apreço.

    Esse cuidado na comunicação de informação pertinente, curiosa ou simplesmente factual, encontra-se igualmente na maneira atenciosa como nas legendas das fotografias o autor prolonga toda a sua experiência e vida a bordo de inúmeras embarcações para documentar esta prodigiosa faina humana. As legendas de cada fotografia não só cumprem a sua função como acrescentam mais informação e contexto ao que cada imagem retrata, oferecendo ao leitor mais profundidade acerca do documentado.

    Este livro é o resultado de um trabalho levado a cabo por Hélder Luís ao longo de quatro anos (2018-2022), “sobre a pesca do cerco, a partir do norte do país”, enquadrado numa residência artística “dedicada à cultura marítima, e apoiada pela Câmara Municipal da Póvoa de Varzim”. “Passei uma boa parte desses quatro anos a bordo de barcos de pesca da Póvoa de Varzim, das Caxinas e de Vila do Conde, acompanhando as tripulações em dezenas de viagens, observando, fotografando e filmando.”

    Tendo a Póvoa de Varzim como ponto de partida para a sua empresa fotográfica, cedo o autor compreendeu que teria de alargar horizontes e navegar até outras paragens, mais a sul do país, “desde Matosinhos até ao Algarve”, passando por Aveiro, Figueira da Foz ou Peniche. Contudo, este alargar de horizontes permitiu que Hélder Luís tivesse “uma visão global sobre a pesca do cerco e sobre as diferenças entre a forma de trabalhar dos pescadores do norte e os do resto do país”.

    Eis um livro que seguramente fará as delícias de todos aqueles que se interessam pela História da Alimentação em Portugal, pelos ingredientes da nossa culinária e sobretudo pelas histórias de vida associadas ao trabalho de tantas pessoas invisíveis que possibilitam que esses produtos nos cheguem à mesa e possamos desfrutar desses sápidos tesouros. Não basta apregoar que temos o melhor peixe do mundo. É preciso conhecer a sua História, saber de onde vêm e de como nos engrandece o prato.

    Além do autor, também a autarquia da Póvoa de Varzim está de parabéns por ter proporcionado a Hélder Luís as condições necessárias para a criação deste belíssimo e histórico trabalho. Bravo!

  • Verão, vestidos e bonecas

    Verão, vestidos e bonecas

    Título

    Vozdevelha

    Autora

    ELISA VICTORIA (tradução: Cristina Rodriguez e Artur Guerra)

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Janeiro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Elisa Victoria nasceu em Sevilha, em 1985. Orgulha-se da sua colecção de bonecas, bem como do facto de ter usado gorro vermelho para vender pizzas e hambúrgueres. Estudou Filosofia e Ensino de Educação Infantil.

    É professora de escrita criativa e tem contribuído para diversos sites, fanzines e antologias. Antes deste Vozdevelha ser o Livro da Semana no El País, em 2019, tinha publicado dois livros: Porn & Pains, em 2013, e La sombra de los pinos, em 2018, ambos com Esto no es Berlín. Aguardamos com alguma expectativa a tradução do seu mais recente livro, El Evangelio.

    Esta história é sobre tudo ou nada do que aconteceu nos longos meses de um Verão do fim da infância de uma menina de nove anos, Marina. Cheira ao Verão seco e escaldante de Sevilha, onde o sol abrasador queima as ruas desertas na hora da siesta. Cheira a churros, asas de frango frito, algodão doce e também a cocó, xixi, e outros odores domésticos que integram a paisagem olfativa de um subúrbio da Sevilha pós-Expo’92.

    A linguagem burlesca da narradora, a menina Marina, para descrever com densidade os usos e costumes, neste caso, de um bairro dos subúrbios do início da década de 1990, deve-se à influência literária em que o livro se enquadra, o costumbrismo. Será, por isso, muito fácil que os nascidos em meados da década anterior se sintam profundamente identificados com os programas de televisão, os desenhos animados e os brinquedos da época, como a Barbie, a Chabel ou o Nenuco.

    O ritmo oscila entre os roncos sonoros da avó, também Marina, a alegria de Diana Ross e o flamenco de Rocío Jurado. Há muitas mulheres; o tema do género está bem presente, sobretudo pela ausência dos ascendentes masculinos da menina – o pai aparece apenas uma vez. Domingo, o namorado da mãe, também Marina, é a sua única influência masculina, mais pelo que deixa à disposição para ler e arregalar os olhos, como as revistas de pornografia e o livro que lê numa piscina cheia de crianças do condomínio, “A máquina de foder”.

    Neste Verão, Marina parece obcecada com o sexo e cocó e as suas reflexões mais ou menos profundas vagueiam entre a eventual morte da mãe – doente oncológica – e as possibilidades de sentir um orgasmo, seja com outras meninas da sua idade, seja pelos filmes de terror, seja ainda pelo misterioso filme pornográfico gravado numa cassete VHS com uma etiqueta, na qual se lê “Jogo do Betis”.

    Nesta história pouco infantil, o futebol e a política lutam pelo mesmo espaço da religião. No ano em que o “charmoso” Felipe González ganha as eleições, Marina aprende a importância de ser baptizada – a primeira comunhão será o passo seguinte, mas só se for obrigatório para se integrar no grupo de meninas do bairro para onde vai viver no final desse Verão.

    É disto mesmo que o livro também trata: sobre como o processo de socialização, durante a infância, contribui para que as crianças, por intermédio dos diversos agentes de socialização (desde a família, os pares, os media, até à escola e religião, neste caso, católica), aprendam os seus papéis recorrendo a guiões, nem sempre fáceis de compreender, tão-pouco passíveis de serem alcançados pelos mais velhos que pensam que controlam… o incontrolável.

    Tudo concorre para criar confusão, desordem e sobretudo, para desenvolver a personalidade forte de uma criança precoce, inteligente, curiosa e, naturalmente, cheia de dúvidas. O monólogo vívido, detalhado sobre questões existenciais e corriqueiras, agarra o leitor mais nostálgico, mas sem melodramas.  

    É um romance divertido e jovial, enquanto toca no que parecem ser os temas mais relevantes de uma criança que questiona tudo. A sua avó, a figura mais presente e influente durante o longo e quente Verão de céu esbranquiçado, responde a tudo de igual para igual, contando as histórias dos seus casamentos – é duplamente viúva.

    Um Verão preenchido de brincadeiras, quedas, dente partido, revistas de banda desenhada pornográficas, em que o rádio e a televisão, com meia dúzia de canais abertos, são os únicos meios para ludibriar os longos minutos dos dias de Verão.

  • Hoje há segredos revelados, amanhã não sabemos

    Hoje há segredos revelados, amanhã não sabemos

    Título

    A História secreta dos alimentos

    Autor

    MATT SIEGEL

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Com o subtítulo, Histórias estranhas, mas verdadeiras, sobre as origens de tudo o que comemos, o escritor gastronómico norte-americano Matt Siegel conduz-nos numa viagem pelo tempo, desde que o Homem começou a usar o fogo para confeccionar os alimentos, revelando-nos curiosidades e factos pouco conhecidos sobre muito daquilo que comemos.

    Cada capítulo é dedicado a um alimento, mas a informação disponibilizada não se esgota nele ou se resume apenas a esse alimento. O autor, com mestria e um conhecimento enciclopédico, entrecruza inúmeras histórias e dados científicos, que dão corpo ao tema principal, guiando-nos através de vários campos do conhecimento e saciando o nosso apetite por estas curiosidades gastronómicas, numa visão por vezes bastante radical ou irreverente. Um olhar fresco e salutar sobre aquilo que pensávamos saber sobre os alimentos que nos chegam à mesa, num rosário de pequenas histórias que fizeram a História.

    O mel, por exemplo, serviu como arma de guerra ao longo dos séculos, tendo sido utilizado para infligir danos aos inimigos em vez de flechas, numa prática que remonta à Idade da Pedra: “Os homens das cavernas cobriam-nas com lama e atiravam-nas para cavernas inimigas; os exércitos romanos carregavam as catapultas com elas; os ingleses medievais atiravam-nas sobre as muralhas do castelo”. Curiosamente, a palavra bombardear vem do grego bombos, que significa “abelha”.

    Antes dos primeiros colonos chegarem ao continente norte-americano, a bordo do Mayflower, apenas setenta variedades de maçãs eram conhecidas e encontravam-se catalogadas em Inglaterra. Dessas, trinta e seis já haviam sido descritas e mencionadas no século I, na Roma antiga, por Plínio, o Velho. Contudo, no Novo Mundo, as maçãs não existiam, com excepção de algumas maçãs de jardim não comestíveis, pelo que os colonos plantaram as suas sementes trazidas de Inglaterra por volta de 1620. Numa geração, aquelas primeiras macieiras provocaram uma revolução  na história da maçã e prestes “deram origem a cerca de dezassete mil novas variedades, não incluindo as inúmeras experiências que não eram particularmente atrativas ou que não valia a pena catalogar.”

    As malaguetas “são agora as especiarias mais utilizadas no mundo, sendo cultivadas em todos os continentes”, inclusivamente na Antártida, onde foram plantadas numa estufa, “concebida para testar tecnologias de cultivo de plantas desenvolvidas para exploração espacial”. Diariamente, cerca um terço da população mundial consome malaguetas, um dos ingredientes essenciais na cozinha mexicana, norte-africana, coreana, tailandesa, indonésia, entre tantas outras.

    Por entre as grandes histórias surgem também as pequenas histórias ou curiosidades, que o autor vai desvelando com esmero e graça, como aquela das mulheres atenienses que coziam o pão “em forma de pénis e utilizavam azeite como lubrificante para fazerem brinquedos sexuais económicos, chamados olisbokollix (“dildo de pão”)”. Séculos mais tarde, na Inglaterra de Setecentos, as mulheres preferiram cozer “pães com a forma dos seus próprios órgãos sexuais (literalmente pressionando a massa contra a sua pele como um molde), devido a uma crença mágica de que os homens que os comessem se apaixonariam por elas.”

    Todo o livro transborda de gula e curiosidade, mas o único pecado que se poderá apontar talvez seja o facto dele ser um tanto ou quanto etnocêntrico, alicerçado numa influência norte-americana, bem como nos seus hábitos consumistas. É certo que as invenções culinárias dos “americanos” conquistaram e transformaram o mundo, mas ainda há mais mundo gastronómico com os seus segredos por desvendar. Não nos falte o engenho e o apetite.

  • A melancolia da vida enquanto se envelhece

    A melancolia da vida enquanto se envelhece

    Título

    Memorial de Aires

    Autor

    MACHADO DE ASSIS

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Setembro de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Última obra escrita pelo grande Machado de Assis, Memorial de Aires é de uma delicadeza contemplativa, lírica mas irónica, que, ainda hoje, deslumbra quem lê este romance.

    Não tem a loucura e sarcasmo de Memórias póstumas de Brás Cubas nem o drama angustiante de Dom Casmurro, mas não lhe fica atrás, sobretudo por via de uma narrativa contemplativa mas crítica de um Brasil no último quartel do século XIX, a que acresce a forma como aborda a melancolia da vida enquanto parte do envelhecimento.

    Romance epistolar, diarístico, este memorial do conselheiro Aires, diplomata aposentado que aparecera no romance anterior, Esaú e Jacó (1904), onde era personagem e autor ficcional. consiste num vasto conjunto de cartas a um seu amigo imaginário, relatando aspectos da vida quotidiana na cidade do Rio de Janeiro, entremeadas com reflexões sobre a sociedade brasileira, ainda marcada pela escravidão e por uma forte influência europeia.

    Mas mais do que essas contemplações de um “refomado”, o romance deambula por uma série de personagens secundários, entre os quais o casal Aguiar (e a sua “orfandade às avessas”) e sobretudo a jovem viúva Fidélia – misteriosa, enigmática e supostamente inalcançável –, por quem o conselheiro Aires acaba por se apaixonar.

    A relação entre os dois transforma-se em ambiguidade e tensão, tornando-se asssim o romance numa reflexão sobre o amor e sobre as relações entre homens e mulheres naquela época.

    Sendo uma óbvia ficção, em Memorial de Aires vemos talvez a mais autobiográfica das obras de Machado de Assis, sentindo-se a envelhecer, e desse modo se encontra ali depurado toda a sua ironia e sarcasmo para, dessa forma, estabelecer uma crítica contundente à hipocrisia e ao oportunismo e aos demais vícios da natureza humana.

    Leitura imprescindível no século XXI, embora seja obrigatório ler, antes ou depois, as outras obras de Machado de Assis, incluindo os seus contos, em especial após a fase romântica.

    Destaque também para o posfácio de Abel Barros Baptista e Clara Rowland, que coordenam a colecção da Tinta da China dedicada à literatura brasileira, intitulada “Os melhores deles todos”,  e que entretanto já integra as obras Vai, Carlos!, de Carlos Drummond de Andrade, e Primeiras histórias, de João Guimarães Rosa.

  • A prodigiosa aliança da Natureza e do engenho humano

    A prodigiosa aliança da Natureza e do engenho humano

    Título

    Pão, azeite e vinho

    Autor

    PEDRO RODRIGUES; MOUETTE BARBOFF; FRANCISCO LINO; e SASHA LIMAUI

    Editora (Edição)

    Objecto Anónimo (Janeiro de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Ao chegarmos ao fim da leitura deste livro, uma pergunta nos assalta o espírito: como pode este pequeno rectângulo a que chamamos Portugal, tão entalado junto ao extenso mar, ser detentor de tamanhas riquezas

    Vejamos.

    Para o Pão, confesso que é difícil aferir a variedade existente. Em todas as regiões do país abundam diversos e primorosos exemplares das artes da panificação, portentosos no sabor e nas suas idiossincrasias locais e regionais.

    Mas para o Azeite “existem seis Denominações de Origem Protegidas para Azeites, a saber: Azeite de Moura, Azeite do Norte Alentejano, Azeite de Trás-os-Montes, Azeite do Ribatejo, Azeite da Beira Interior e Azeite do Alentejo Interior.” Além disso, para a produção deste “ouro verde” podemos contabilizar em Portugal mais de 40 variedades de azeitona. Um prodígio da Natureza e do engenho humano.

    No que diz respeito ao Vinho, “Portugal tem a maior diversidade de castas por metro quadrado quando comparado com qualquer outro país. Acrescente-se o facto de só 70 dessas castas registadas serem consideradas de origem exterior à península Ibérica.”

    Na listagem das castas viníferas normalmente utilizadas na produção de vinho, Portugal regista, hoje em dia, cerca de 343. “Um número muito superior à maioria de outros países produtores” Acrescente-se a isto, o facto de existirem “em Portugal 24 zonas de produção de vinhos com denominação de origem (DOC).” Mais uma demonstração prodigiosa da Natureza e do engenho humano.

    Sobre esta prodigiosa tríade, diz-nos Pedro Rodrigues, coordenador do livro: “Eis que vos apresento o pão, aconchegante, que alimenta o corpo; o azeite, sedutor, que amacia o coração; e o vinho, mágico, que alegra o espírito.”

    Além da coordenação editorial, Pedro Rodrigues assume também a autoria das fotografias, das receitas e da confecção dos pratos propostos, assinalando-se ainda a colaboração da saudosa Mouette Barboff (1941-2021) como autora dos textos sobre o Pão, de Francisco Lino para os textos dedicados ao Azeite e ainda de Sasha Lima, que escreveu acerca do Vinho em Portugal.

    Através de textos simples, escorreitos, numa linguagem clara e objectiva, claramente destinada a informar, mergulhamos num mundo cheio de particularidades que não só importa conhecer, como também preservar, compreender e não deixar esquecer. Receitas antigas, novos conhecimentos, abordagens irreverentes, criativas e por vezes disruptivas. Assim se dá forma a uma nova culinária, a um estar à mesa com os familiares e amigos que, ao fim ao cabo, são a génese de um estilo de vida proporcionado pela Dieta Mediterrânica.

    Apresenta-se este livro como uma espécie de curso abreviado de introdução ao universo destes três ingredientes fundamentais da nossa culinária e, principalmente, da nossa identidade. Tudo envolvido numa edição graficamente muito bem cuidada, com variadas fotografias, em particular nas receitas, num passo-a-passo, interessante. Três produtos nobres da nossa cozinha que seguramente são merecedores de uma edição assim tão cuidada. Parabéns.