Categoria: Opinião

  • Caldeirada à Abrunhosa 

    Caldeirada à Abrunhosa 


    A minha memória não é grande coisa, e ainda bem. Tirando os repetidos escândalos na banca, que nos perseguem há mais de uma década, vou esquecendo tudo o que vou lendo ao fim de pouco tempo. Gosto de atribuir essa falha à minha memória, mas há a hipótese, também real, do volume de cambalachos em Portugal ser de tal monta que, se torna humanamente impossível guardar espaço de processamento mental para todos.

    Parece que, a cada semana, temos mais um Mário Ferreira, mais um Rendeiro, um novo Vara, um aprendiz de Relvas. E antes que apareça o Leitor Provedor da Verdade a clamar por provas, adianto-me: tudo parece ser legal. É essa a beleza do nosso sistema. Tudo parece ser legal e, provavelmente, será.

    Ana Abrunhosa, ministra da Coesão Territorial

    Noticiou o Observador que duas empresas, detidas pelo marido de Ana Abrunhosa, ministra da Coesão Territorial, receberam cerca de 133.000 euros dos fundos comunitários, de um total de 303 000 euros que foram entregues a Portugal.

    Aparentemente, não há nada ilegal em receber dinheiro público de instituições tuteladas pela mulher. O comentador Sebastião Bugalho, sempre afoito na defesa de dinheiro público em bolso privado, dizia na CNN que um empresário em Portugal tem de recorrer a fundos europeus porque, cito, “há pouco capital no país”. E que, nesse cenário, não poderia ser prejudicado por uma simples certidão de casamento. O amor não olha a subsídios…

    Compreendo o jovem Sebastião – e, aliás, pela primeira vez até consigo concordar com cinco palavras oferecidas por ele. De facto, há pouco capital em Portugal, mas, como se percebe, não afecta maridos de ministras. E é nesse ponto que estas histórias me deixam sempre intrigado.

    stack of books on table

    A apregoada meritocracia raramente chega às manchetes dos jornais. Já casos aparentemente legais e difíceis de compreender, na lógica da moralidade, são o pão-nosso de cada dia.

    Só esta semana ficámos a saber da entrada no curso de Medicina da Universidade Católica de uma aluna sem média, mas filha de um benemérito… Perdão: um benemérito insigne. Os beneméritos ainda ficam à porta da Católica.

    Entretanto, Paula Amorim, uma das herdeiras do império, dizia no podcast de Balsemão, com um violino triste ao fundo, que teve que abandonar os estudos aos 19 anos para assumir um lugar no Conselho de Administração da empresa do pai. O drama, o horror, o mérito dos genes de uma teenager que, coitada, começa pelo topo sem passar pelas etapas dos comuns mortais.

    E agora temos uma empresa criada em 2020 pelo marido de uma ministra do centrão a conseguir receber, apenas dois anos depois, 133.000 euros de fundos comunitários. Parece aquela história do filho do Sérgio Figueiredo que, em menos de dois anos como empresário, já recebia um milhão de euros da Câmara Municipal de Lisboa presidida pelo amigo Medina.

    Tudo isto será certamente legal. Obviamente, veremos os papéis que precisamos e alguma página do Código Civil nos dirá que tudo aquilo está óptimo.

    Mas é um carrossel que nunca pára, não é?

    A História de Portugal na União Europeia é muito isto. Em vez de se usarem os fundos comunitários para criação de riqueza – o que, aliás, enfim, era a premissa inicial –, escolhemos andar mais de três décadas a enriquecer uma elite com as maiores fatias do bolo, e largamos, aqui e ali, umas migalhas para o povo. Passámos a ser gestores de subsídios com os partidos do centrão a revezarem-se na distribuição pelas respectivas clientelas.

    O português médio tem de passar o inferno burocrático para receber as esmolas anunciadas com pompa por António Costa em tempo de pandemia e/ou guerra.

    Já a um marido de uma ministra ou a um filho de um director de uma televisão, basta-lhes criar uma empresa no Simplex, e passados dois anos começa a chover fundos comunitários. E nem sequer é o primeiro marido de uma ministra ou o primeiro filho de um director. E não serão os últimos…

    close-up photo of assorted coins

    O povo embrulha-se em sangue para não perder casa, salários mínimos ou para cumprir critérios que lhes permitam um apoio de 125 euros. E fazem-no massacrados por uma carga fiscal absolutamente incompreensível, sobretudo se pensarmos nos serviços que acabam por não ser disponibilizados em troca dessas contribuições.

    Mas para quem está no sítio certo, no aparelho do poder e naquela minoria que vai, de facto, gerindo a riqueza que chega ao país, tudo isto são notícias de rodapé, vistas pelo canto do olho, enquanto se procura o saca-rolhas que abrirá uma reserva de 2009.

    E que por mais coincidências com aspecto de escândalo, nós vamos continuar a encolher os ombros, e continuar a pensar como é que o Ronaldo falha aquela “merda” com a baliza aberta…

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As formigas de Boliqueime são térmitas a corroer a nossa democracia

    As formigas de Boliqueime são térmitas a corroer a nossa democracia


    Em três décadas, entre 1991 e 2020, Portugal passou a ter mais cerca de 348 mil habitantes, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, mas aumentou o número de muito idosos (acima dos 80 anos) em quase 413 mil. Em 1991, por cada 1.000 portugueses, havia apenas 27 pessoas com mais de 80 anos; no início do século passou para 36; agora, o número é quase o dobro, tendo subido para 67 em cada mil.

    Aquilo que poderia ser um motivo de alegria social e prova de um sucesso civilizacional – viver mais, aumentar o número de gerações em vida, permitir ser usual crianças crescerem até bem adultos com os avós vivos e até conviverem muitos anos com bisavós –, acabou, porém, em Portugal por se estar a transformar em filmes de horrores, em cenas deploráveis, em quadros que mostram a triste natureza humana.

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    O caso da idosa num lar de Boliqueime, pejada de formigas, onde supostamente a provedora até mandava tirar rótulos de iogurtes fora do prazo, não é caso único. Nunca foi. E piorou a olhos vistos nos últimos dois anos com a pandemia, onde um manto de segredo paira em redor das chamadas Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas (ERPI). Não se sabe ao certo quantas pessoas morreram por ou com covid-19 desde Março de 2020, nem qual foi a letalidade de outras doenças.

    O PÁGINA UM tem tentado conhecer esses números desde Janeiro deste ano. Portugal é um dos poucos países europeus que nunca divulgou qualquer relatório. Mas, apesar de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), em Abril passado, o Ministério da Saúde “luta” no Tribunal Administrativo de Lisboa para não ceder essa informação.  

    A situação deplorável dos lares deve-se, em grande medida, à demissão do Estado – e dos sucessivos Governos – em olhar para a Terceira Idade com uma visão humanista. Para o Estado – e para os sucessivos Governos –, os idosos não são pessoas a quem a sociedade – toda e não apenas os familiares directos – paga um tributo e presta uma justa homenagem pelos seus contributos durante a “vida activa”. São empecilhos, sugadores de recursos económicos.

    greyscale photo of woman standing behind woman sitting on chair

    Na bitola de um ministro das Finanças, um pensionista – e ainda mais aquele que não tem recursos financeiros próprios para seguir para um lar privado, pagando-o integralmente – é sempre um encargo, uma despesa a ser rapidamente transformada em zero só e quando morrer.

    E, por isso, o Estado – e os sucessivos Governos – fazem de conta que se preocupam com os idosos. Numa população crescente de velhos, o Estado prefere manter um status quo assente num caduco e anacrónico pseudo-voluntarismo – como são as IPSS –, em vez de criar um sistema profissional e exigente, com regras e regulação apertada. Deixa à iniciativa das IPSS – ou de empresas privadas, quando em zonas “lucrativas” –, a implementação de oferta em vez de ser o Estado a satisfazer as necessidades da procura, muito diferenciada em função da região.

    Por isso, quando se olha para os relatórios da Carta Social – da responsabilidade do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social – só se pode antever uma desgraça social. Fora e dentro dos lares. Com efeito, se considerarmos toda a oferta disponível dos chamados lares de idosos (ERPI), de acordo com a mais recente Carta Social de Dezembro de 2021, verifica-se que a capacidade evoluiu de um pouco menos de 60 mil camas no ano 2000 para pouco mais de 100 mil em 2020, ou seja, mais 40 mil camas. Ora, nesse período, só considerando a população com mais 85 anos, tivemos um aumento de mais de 174 mil.

    Evolução da população portuguesa com mais de 80 anos. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Se no ano 2000 existiam 265 idosos com mais de 85 anos por cada 100 camas em ERPI; em 2020 esse rácio passou para 333 idosos por cada 100 camas. Estão a ver no que isto dá, certo? Numa espécie de jogo da cadeira… cada vez há mais jogadores e menos cadeiras.

    Tudo isto inclina o jogo para os aventureiros e pessoas menos escrupulosas – independentemente de muitas estarem travestidas de IPSS ou de Santas Casas da Misericórdia –, que se aproveitam da fragilidade do Estado – e dos sucessivos Governos – que não querem publicamente que se olhe por debaixo do tapete e se observe os horrores que se foram chutando (nem sequer é varrer, porque nem sequer se é meigo).

    Assim, tendo em conta que a única preocupação do Estado – e dos sucessivos Governos – é não se ver publicamente, em demasia, as lástimas sociais, permite-se assim, alegremente, que muitos lares se transformem em depósitos de velhos, antecâmaras da morte, purgatórios perpétuos, onde se fecham os olhos aos excessos de ocupação, se negoceiam vagas ao melhor preço (ou à melhor herança para a IPSS), à qualidade da comida, à frequência de cuidados médicos e de enfermagem, aos mínimos das equipas operacionais, etc., etc., etc..

    Chega-se, inclusive, a fechar os olhos aos lares ilegais (englobando aqueles em fase de licenciamento, mas a funcionarem já), cujos endereços o próprio Estado conhece, porque perante tantas carências (face à demissão do Estado), julga-se que tudo é melhor do que nada.

    Fiscalizações, então – esqueçam. Nunca em tempo algum uma vistoria a um lar encontraria sequer um ácaro microscópico debaixo do travesseiro de uma idosa acamada. Por uma simples razão: por regra, os serviços da Segurança Social avisam com um mês de antecedência os lares que vão fiscalizar. Está certo: convém não chocar os inspectores com imagens, enfim, “desagradáveis”. Não queremos funcionários do Estado traumatizados. Nem com formigas. Mesmo se estas revelam, afinal, uma Democracia a ser roída por térmitas.

  • Os presos são para esconder! 

    Os presos são para esconder! 


    As prisões portuguesas são um mundo vazio onde a vida fica suspensa, até que o recluso possa regressar à Liberdade.  

    Um tempo sem sentido, onde apenas se pensa em punir e se esquece, quase totalmente, a necessidade de dar meios e ferramentas a cada um dos condenados, que acabam por sair ainda mais marginalizados do que estavam antes de entrarem na Prisão.  

    Fomentar a inércia, por todos os meios possíveis, é a prática diária. 

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    Distribuem-se ansiolíticos à saciedade, de modo a ter os reclusos adormecidos e nada reivindicativos, facilitam a preguiça, permitindo playstations, consolas de jogos, leitores de CDs e rádios, para os conseguir ter nas celas, já que dar-lhes trabalho, permitir que estudem ou façam exercício físico, obriga a que funcionários e guardas também trabalhem… 

    A palavra reabilitação, que devia ser (e é, no espírito da Lei) o foco principal de todo o Sistema Prisional, é colocada em último lugar das preocupações de muitos responsáveis (?) e praticamente desprezada pela imensa maioria da classe política nacional.  

    Dizer-se que o objectivo que se pretende alcançar durante o cumprimento de penas, é “reintegrar” os cidadãos em reclusão é quase uma blasfémia. 

    white metal gate

    Os números mostram que entram e saem, por ano, cerca de 5.000 cidadãos necessitados de inserção social, e não de “reinserção”, dado que, na sua grande maioria, nunca estiveram realmente inseridos, pois viveram quase toda a vida à margem de uma sociedade que os ignora, fora das regras sociais estabelecidas, fora do mercado de trabalho ou sem capacidades (escolaridade, formação profissional ou mesmo formação cívica) para poderem sobreviver em Liberdade sem praticar crimes.  

    Não há ninguém que não conheça essa realidade, por muito que se faça (e faz) para a esconder.  

    A exclusão social é a prova mais evidente de décadas de má governação no nosso país.  

    E, pior, não se consegue vislumbrar uma qualquer medida que leve à inversão destas políticas vergonhosas.  

    Obviamente que o crime tem de ser combatido e o crime grave não pode merecer qualquer contemplação. 

    black barbwire in close up photography during daytime

    Mas o tempo de punição só ganhará algum sentido se for aproveitado na tentativa de construção de um novo projecto de vida, que não obrigue à prática de crime para sobreviver.  

    A verdade é que não existem condições de apoio a este tipo de cidadãos, mais vulneráveis e a necessitar de um apoio solidário e efectivo.  

    E para além de nada acontecer, durante a prisão, o encarceramento leva a que aconteçam tragédias inaceitáveis numa sociedade que se diz Democrática e Livre.  

    Um Mundo onde a exclusão física e psicológica – que leva a que a maioria dos reclusos se sinta rejeitado e fora da Comunidade – será uma bola de neve que só terminará quando TODOS nos sentirmos co-responsáveis pelos outros e, em especial, pelos que têm maiores dificuldades em sobreviver sem apoio da comunidade e do Estado, enquanto primeiro responsável por esta coesão social.  

    O Poder Político tem afirmado, quando quer usar o assunto para se promover e ganhar votos, que conhece a realidade.  

    Mas a verdade é que os presos, e as prisões, são temas que todos – a começar no Presidente da República, Governo, Deputados, Comunicação Social e até os Cidadãos comuns – evitam tratar.  

    Quanto menos forem falados melhor, porque ninguém gosta de tocar numa ferida que está a sangrar há muito tempo.  

    book lot on table

    Podemos todos falar dos maus-tratos que alguns infligem a animais – e de imediato se juntam centenas de pessoas para se manifestarem – mas quando os assuntos são sobre presos, e as condições inadmissíveis em que vivem, ninguém lhes quer tocar!  

    E, no entanto, há muitas medidas extremamente simples, que poderiam melhorar, substancialmente, o nosso Sistema Prisional.  

    Um exemplo: Num país onde o crime de condução sem carta leva mais cidadãos à cadeia (7,8%) do que o crime de homicídio, nas suas diversas formas (7,6%), fica claro que não existe intenção, ou motivação, para ir ao fundo das questões e corrigir o que deve ser corrigido.  

    Obrigar esses faltosos (a direita chama-lhes “bandidos”), ajudá-los até, se tal fosse necessário, a tirar a carta de condução, em vez de os meter na prisão, de onde sairão de igual modo indocumentados, seria um bom exemplo e retiraria das prisões milhares de cidadãos.  

    Ter políticas efectivas de Reabilitação, Reinserção e de construção solidária de vidas destruturadas que, de uma forma ou doutra, levam ao aumento de práticas violadoras das leis da República, seria outro caminho para o sucesso.  

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    Por isso a nossa insistência num combate sem tréguas à exclusão social.  

    É fácil dizer que a prisão é a Faculdade do crime.  

    Esquecem, contudo, que ninguém começa a estudar pela Universidade. 

    Quais são, então, as escolas pré-primárias, as primárias e os liceus do crime?  

    Estão à vista de todos: os bairros de lata, o desemprego, a fome, o absentismo escolar e a falta de oportunidades.  

    Analisar o Sistema Prisional sem ter em conta estas realidades é como tentar estudar trigonometria sem saber a tabuada.  

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os comentadores que nos “induzem” 

    Os comentadores que nos “induzem” 


    De uma análise recente sobre os comentadores das televisões portuguesas, ficámos a saber que não há comentadores residentes do Chega nem da Iniciativa Liberal. Isto não seria grave se não fosse também assim na televisão pública. 

    Ou seja, na democracia conduzida pelo partido do Governo (em Maio distribuiu 40 milhões de euros pelos media) comprova-se que o Bloco tem um espaço maior de representação nas televisões que os deputados todos do Chega e da Iniciativa Liberal. Também o PCP e o PAN estão à beira do eclipse e afogados no silêncio.  

     

    A democracia é uma coisa diferente disto, e por muito que custe, a representatividade e, portanto a própria democracia, estão em causa neste momento. A opinião, o comentário, deveria ser claro e transparente, indutor de informação e com contraditório, mas nada se passa assim.   

    Em 2011, um primeiro estudo importante sobre comentadores de televisão era também muito esclarecedor. “Concluindo, os painéis de comentadores residentes reflectem, sobretudo, dois sectores da sociedade portuguesa, deixando de fora todos os telespectadores que não se interessem nem por política nem por desporto. Estas áreas são, claramente, as que garantem mais espectáculo televisivo, na medida em que proporcionam confrontos e polémicas. E talvez estes ingredientes estejam a ser mais valorizados do que a preocupação de pluralismo e de representatividade”. 

    Podemos dizer que daqui para o estudo de 2020 nada mudou, e posso afirmar que muitos ainda são os mesmos comentadores residentes.  

    Para termos a noção da importância disto, analisemos a gestão do gosto, a indução do consumidor para um determinado género musical através das playlists.

    Quatro grandes empresas controlam mais de 90% do som que se divulga na rádio portuguesa. “As músicas não são proibidas agora, mas algumas são obrigatórias” dizia Fernando Quinas citado em “Provedor do Ouvinte – relatório de actividades de 2017” por João Paulo Guerra. 

    E basta ler Luís Montez, da produtora Música do Coração e detentor de um grupo de emissoras (Capital, Radar, Oxigénio, Festival, Nova): “A rádio é um bicho vivo, de 24 horas sobre 24 horas, as pessoas que ligam uma rádio esperam ouvir o que estão à espera. Querem que seja familiar, simpático, que corresponda às expectativas. Que seja regular” – e essa regularidade é fornecida pela playlist. Está a falar em seu benefício pois a Música no Coração é das quatro maiores a controlar o que os ouvintes podem ouvir. 

    Os portugueses mais interessados começam a perceber a matrix onde nos estamos a instalar e onde os cidadãos são instrumentalizados para os assuntos, induzidos para as opiniões e controlados no seu universo de possibilidades.

    Tudo está balizado, colorido, aprimorado por discursos com um mesmo foco. Reparem como não há comentadores para a interpretação da responsabilidade do PS no desastre do SNS, na condução da grande noite escura pela DGS entre 2020 e 2022, e ainda na presença de defensores da versão Bolsonaro na eleição brasileira, ou da versão russa da guerra na Ucrânia.

    Nunca aparece um comentador do Braga ou do Vitória de Guimarães, ou do Paços de Ferreira. Reparem como os grandes medalhados de outras modalidades não surgem nos ecrãs. 

    Os donos da informação podem conduzir esta manada sem precisar de muito pessoal. Bastam trinta e cinco construtores de opiniões parecidas e fazedores de medos ou injectores de opiniões não contraditadas. 

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os comentadores que nos “induzem”

    Os comentadores que nos “induzem”


    De uma análise recente sobre os comentadores das televisões portuguesas, ficámos a saber que não há comentadores residentes do Chega nem da Iniciativa Liberal. Isto não seria grave se não fosse também assim na televisão pública. 

    Ou seja, na democracia conduzida pelo partido do Governo (em Maio distribuiu 40 milhões de euros pelos media) comprova-se que o Bloco tem um espaço maior de representação nas televisões que os deputados todos do Chega e da Iniciativa Liberal. Também o PCP e o PAN estão à beira do eclipse e afogados no silêncio.  

    A democracia é uma coisa diferente disto, e por muito que custe, a representatividade e, portanto a própria democracia, estão em causa neste momento. A opinião, o comentário, deveria ser claro e transparente, indutor de informação e com contraditório, mas nada se passa assim.   

    Em 2011, um primeiro estudo importante sobre comentadores de televisão era também muito esclarecedor. “Concluindo, os painéis de comentadores residentes reflectem, sobretudo, dois sectores da sociedade portuguesa, deixando de fora todos os telespectadores que não se interessem nem por política nem por desporto. Estas áreas são, claramente, as que garantem mais espectáculo televisivo, na medida em que proporcionam confrontos e polémicas. E talvez estes ingredientes estejam a ser mais valorizados do que a preocupação de pluralismo e de representatividade”. 

    Podemos dizer que daqui para o estudo de 2020 nada mudou, e posso afirmar que muitos ainda são os mesmos comentadores residentes.  

    Para termos a noção da importância disto, analisemos a gestão do gosto, a indução do consumidor para um determinado género musical através das playlists.

    Quatro grandes empresas controlam mais de 90% do som que se divulga na rádio portuguesa. “As músicas não são proibidas agora, mas algumas são obrigatórias” dizia Fernando Quinas citado em “Provedor do Ouvinte – relatório de actividades de 2017” por João Paulo Guerra. 

    E basta ler Luís Montez, da produtora Música do Coração e detentor de um grupo de emissoras (Capital, Radar, Oxigénio, Festival, Nova): “A rádio é um bicho vivo, de 24 horas sobre 24 horas, as pessoas que ligam uma rádio esperam ouvir o que estão à espera. Querem que seja familiar, simpático, que corresponda às expectativas. Que seja regular” – e essa regularidade é fornecida pela playlist. Está a falar em seu benefício pois a Música no Coração é das quatro maiores a controlar o que os ouvintes podem ouvir. 

    Os portugueses mais interessados começam a perceber a matrix onde nos estamos a instalar e onde os cidadãos são instrumentalizados para os assuntos, induzidos para as opiniões e controlados no seu universo de possibilidades.

    Tudo está balizado, colorido, aprimorado por discursos com um mesmo foco. Reparem como não há comentadores para a interpretação da responsabilidade do PS no desastre do SNS, na condução da grande noite escura pela DGS entre 2020 e 2022, e ainda na presença de defensores da versão Bolsonaro na eleição brasileira, ou da versão russa da guerra na Ucrânia.

    Nunca aparece um comentador do Braga ou do Vitória de Guimarães, ou do Paços de Ferreira. Reparem como os grandes medalhados de outras modalidades não surgem nos ecrãs. 

    Os donos da informação podem conduzir esta manada sem precisar de muito pessoal. Bastam trinta e cinco construtores de opiniões parecidas e fazedores de medos ou injectores de opiniões não contraditadas. 

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Mentirosos pela Verdade 

    Mentirosos pela Verdade 


    Passei o fim-de-semana a construir um bunker e a actualizar as reservas de papel higiénico, pelo que consegui ler pouco daquilo que vocês escreveram. Mas ouvi muito, porque, para me armar em tecnológico, tenho sempre o Bluetooth ligado às orelhas.

    Se fosse fazer um ranking do que mais gostei, à la Catarina Furtado nos tempos do Top+ (we go way back!), diria que o mais tocado esta semana foram os Mentirosos pela Verdade.

    man in black shorts standing on beach shore during daytime

    Os Mentirosos pela Verdade são um clã – sem o sonho do GTI, atente-se – que patenteou, ali desde Abril de 2020, a Verdade Única e Universal (VUU).

    Eram as pessoas que, em Maio de 2020, nos juravam que a Suécia matava velhinhos para poupar nas pensões. Ou que eram criminosos por não fecharem escolas (com 0% de mortes por covid-19). Ou, ainda, que colocavam a Economia antes das pessoas.

    Entretanto, quando a factura chegou a Portugal, tanto em dívida como no número de mortos, lá acabaram por perceber as evidências e começaram a gritar com o Governo pela falta de apoios para debelar a crise.

    A mesma crise que aplaudiram e agradeceram, sentados nas varandas, durante o confinamento.

    Entretanto a Suécia saiu da pandemia de pé, e, de joelhos, os Mentirosos pela Verdade foram em busca de novo tema.

    aurora borealis over body of water during nighttime

    Chegada a guerra da Ucrânia e novo palco para verdades inquestionáveis. Desde logo, o novo conceito de solidariedade. Temos que ser parte activa. Se não formos, apoiamos Putin. Se questionarmos porque andámos 70 anos a ignorar outros invadidos, somos whataboutistas. Se não tivermos particular admiração por nenhuma das “democracias” no Donbass, somos cúmplices.

    Se apoiarmos refugiados ucranianos, devemos fazê-lo porque eles não escolheram a guerra. A russos não podemos, porque, lá está, eles não fizeram nada para a evitar.

    Afinal, o que é que lhes custava entrar no Kremlin e rebentar com aquilo tudo? O Tom Cruise conseguiu essa proeza, na Missão Impossível 4? Não deve ser assim tão difícil! Tão impossível!

    Se homens ucranianos choram na fronteira da Polónia, porque o Zelensky lhes fechou a fronteira, apoiamos o Zé. Se homens russos choram na fronteira da Finlândia, porque a Sanna lhes fechou a porta, apoiamos a Sanna.

    blue and brown hand painting

    Se a NATO envia armamento pelos seus estados-membro e a União Europeia suporta financeiramente, e, apenas graças a essa ajuda, a Ucrânia consegue resistir, logo surgem os Mentirosos pela Verdade a insistir que este é um conflito entre dois países.

    Quem não defende a invasão, mas também não quer ver a União Europeia envolvida, recordo, é um putinista. Lembro-me que no auge do whataboutismo diziam os analistas Mentirosos pela Verdade que os ucranianos estão mais perto, e que nada daquilo era comparável à Faixa de Gaza, lá tão longe onde o Criador (louro de olho azul) foi perder as botas entre as palhas em que dormia.

    A mesma verdade já não se aplica a russos – e compreende-se. São louros, mas estão geograficamente mais longe de Bruxelas. Especialmente aqueles da Sibéria que, ainda por cima, são meio achinesados. Estavam a pedi-las. Que fujam para Ulambatar e comecem uma tribo nómada.

    people having rally in the middle of road

    Hoje dizem-nos que o referendo no Donbass é ilegal. E acertam. É factual. É uma tentativa tosca e despudorada de anexação e violação do direito internacional.

    Em seguida falam os membros da NATO dizendo que se o Donbass for anexado, a reacção dos parceiros será rápida e poderosa.

    Dos parceiros que não participam, não financiam, não planeiam e não contribuem para a guerra… É isso, não é? Por favor, não se esqueçam desta parte.

    Não deve ser fácil, de facto, ver o Mundo só com duas cores. Mas, se for esse o caso, junta-te ao clã. A vida é muito mais fácil. As certezas quase eternas. Quase, aviso.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O nosso lixo vale dinheiro

    O nosso lixo vale dinheiro


    Os portugueses não recebem cheta da sua participação nos lucros da Sociedade Ponto Verde.

    E não é justo, porque ao comprarmos uma garrafa de água, pagamos também o vasilhame de plástico para ser recolhido e reciclado. E isso acontece em todas atividades que produzem “lixo”.

    A Sociedade Ponto Verde recebe tanto “lixo”, que colocou dois anúncios a cobrir a primeira e nas últimas páginas do jornal Expresso, que é caro.

    assorted-color disposable cup lot

    Não está em causa atividade desta empresa, mas a necessidade de pagamento dos resíduos.

    Reciclar não é apenas, como diz a Sociedade Ponto Verde uma ambição, mas um comércio.

    Em Portugal existem, por exemplo, empresas de reciclagem de plástico, com lucros evidentes e belos automóveis à porta, como verifiquei quando fiz, há poucos anos, uma reportagem sobre o assunto.

    O título do anúncio é claro: “Sabe quem é o responsável por 81% da reciclagem das embalagens em Portugal?”

    Claro que sabemos: são os portugueses que metem as embalagens nos ecopontos. E embalagens são pagas, quando se compra um produto.

    Publicidade da Sociedade Ponto Verde no jornal Expresso.

    É necessário instituir o direito de pesagem na entrega de embalagens e de “lixo” para que aconteça uma transação justa. Porque a Sociedade Ponto Verde não é uma instituição benemérita.

    Se todos receberem a sua parte neste negócio, não ficará no chão um único pedacinho de papel.

    E nem será necessário voltar a pôr anúncio no jornal Expresso. A vida custa a todos. O lixo vale dinheiro.

    José Ramos e Ramos é jornalista (CP 214)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Alerta CM: chantagem do Império 

    Alerta CM: chantagem do Império 


    Enquanto vou conduzindo para a Suécia (sim, sou um emigrante old school que ainda não se converteu aos aviões), vou pensando nesta coisa dos bluffs políticos. 

    Não precisamos deles para vender jornais e fazer Alertas CM, mas depois exigimos que o bluff seja mesmo bluff, porque o contrário atrapalha-nos mais a vida. 

    Confusos? Também eu. Mas vamos aqui pensar em círculo como se estivéssemos numa reunião dos A.A. 

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    Quando Putin disse que a NATO se estava a aproximar do quintal, ninguém quis saber, porque, obviamente, ele não teria coragem de largar uns mí­sseis. Afinal, a Rússia estava decrépita e refém de uma pequena economia… 

    Reparem que nesta discussão importa pouco o que é propaganda ou realidade. Até se dá de barato a argumentação utilizada, que todos percebemos ser apenas uma desculpa para um braço-de-ferro entre impérios. Ou vá, um I’m back à disputa do domínio mundial, versão Kremlin. 

    O que quero para já reter desta conversa é que ele, Putin, avisou que as negociações da Ucrânia com a NATO teriam consequências. E tiveram. Julgo que ao fim de sete meses, milhares de mortos, uma pazada de refugiados e várias taxas de juro depois, podemos todos concluir que aquele lunático não estava a brincar. 

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    Agora, enquanto se prepara um referendo para anexação de partes do Donbass que, já todos vimos, fará parte da narrativa seguinte de “ataques em solo russo” para justificar o uso de armas nucleares, volta a história do bluff

    Ouvi ontem na CNN, RTP e SIC, diversos analistas com uma ideia comum: Putin não terá coragem de despejar uma bomba atómica. Até ouvi, de boca um pouco mais aberta, que, quando muito, faria umas explosões nucleares controladas. Umas cargas mais pequenas, pelo desprezo da descrição, ali umas coisinhas de carnaval sem aquele cheiro a bufa. 

    Não sou grande jogador de póquer e não arrisco análises sobre intensidades de bluffs, mas fico sempre espantado com a ligeireza com que se julgam as palavras de um gajo que já não tem nada a perder. Ou que, como provam estes sete meses, não é grande jogador de cartas e parece não ter grande vontade para recuar. 

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    Se ele diz que a Rússia tem o maior arsenal nuclear do Mundo (é factual esta parte, espero não estar a dar uma grande novidade), e que o usará em caso de ataque em território nacional (que daqui a umas semanas terá uma parte do Donbass), porque insistimos nós na conversa do bluff? Ainda não morreu gente suficiente? 

    Putin disse no seu discurso à Nação que, caso o Ocidente continuasse a fornecer armas à Ucrânia, o conflito tenderia a escalar e passariam ao nível de armamento seguinte. A corja de velho encabeçada por Biden disse logo que, tudo bem, ele que venha que a NATO continuaria a fornecer a Ucrânia. O que se percebe.

    O cheiro a churrasco de uma ogiva em Kiev, em princí­pio, não atrapalha o aroma de um barbecue em Washington e, nesse sentido, Biden até vê com bons olhos pedrada da grossa no Leste europeu. Isso transformado em venda de armas, energia para a Europa ou, até, enfraquecimento do contrapoder russo, é Chopin para os ouvidos do Biden. Mas em piano, note-se, não violino como o Santana Lopes pensava existir…  

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    Li uma crónica com um argumento que me pareceu também fazer sentido. Dizia que não podemos ceder à chantagem do nuclear porque, desde Fevereiro, sempre esteve em cima da mesa e, seguindo esse raciocínio, estarí­amos sujeitos a que qualquer potência nuclear invadisse territórios quando bem lhe apetecesse. Concordo, em absoluto. Agora, o Alerta CM aqui é que (rufem os tambores!) já é assim que o Mundo funciona. Estão a ver essa parte? 

    Quando os Estados Unidos decidem invadir o Afeganistão porque uns sauditas lhes rebentaram dois prédios, fazem-no porque… podem. Quem é que se vai meter em frente daquele arsenal e dizer: “olha­, tentem antes o diálogo!”. 

    Se os israelitas carregados de armas nucleares ocupam territórios há 70 anos é porque, lá está, têm poder bélico para isso.

    Se os kosovares arranjaram um paí­s podem agradecer a uma “força de defesa”, por acaso também nuclear, que bombardeou os sérvios (pela paz, eu sei!).

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    A guerra civil na Sí­ria terminou quando uma potência nuclear entrou no conflito e a outra, que apoiava os rebeldes, achou melhor recuar.

    A Líbia derrubou o regime quando um exército mais poderoso invadiu o território sem que ninguém lhe fizesse frente.

    O Tibete deixou de ter voto na matéria quando um dos maiores exércitos do Mundo achou que era tempo de anexar.

    Os curdos não conseguem definir fronteiras porque ninguém se atreve a confrontar um exército com o poderio do turco.

    Ou seja, em resumo, desde o império romano, passando pelo Alexandre o Grande, vikings, os mongóis no século XIII e a armada invencível espanhola, no século XXI ainda é a força que dita leis. 

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    Espero continuar no domínio do banal e não estar a trazer novidades a ninguém. Portanto, quando se diz que não vamos ceder à chantagem do nuclear a minha resposta é, vamos. Vamos pois. Aliás, não temos feito outra coisa ao longo dos séculos. Manda quem a tem maior, neste caso ogiva. 

    Claro que me poderiam dizer: “ó Tiago, mas o Putin é um imperialista do pior, bem pior do que os outros a que já nos habituámos a obedecer e não podemos deixar passar; há que ficar na miséria e torrar tudo na Ucrânia”. Ora, vam’lá a ver: pessoalmente, o Putin mete-me tanto asco como qualquer parceiro europeu que lhe andou a apertar a mão (ou que ainda apertam dentro da União Europeia, seria engraçado discutirmos isso um dia). E as guerras criadas pelo imperialismo russo prejudicam-me tanto como as guerras financiadas ou criadas pelo império americano.

    As tangas que usam para as invasões são essencialmente as mesmas, embora o marketing americano seja melhor. Por exemplo, no Iraque, estivemos ali até à última para saber se apareciam as armas de destruição maciça ou não. Parecia o fim de uma novela na TVI e aquela incerteza de quem casa com quem. 

    Já o disse várias vezes que se tiver que abdicar da minha vida, pelo menos quero escolher a causa. E se o objectivo é empobrecer e comprometer o futuro de uma geração para libertar outros povos e mostrar solidariedade, então, se não se importam, eu gostaria de começar por quem sofre opressão não há sete meses, mas sim há 70 anos. 

    Querem os poderes mundiais continuar a combater uma guerra até ao último ucraniano, paga pelo endividamento dos europeus? Muito bem. Suspendam os pagamentos dos créditos bancários e metam as taxas de juro no… ia escrever aquela palavra com duas letras, a primeira um C e a última a quinta vogal do abecedário, mas isto é um jornal de respeito.

    Já nos basta a inflação e a perda de salários reais que, como qualquer economista vos dirá em 75 palavras e termos técnicos, corresponde ao empobrecimento geral das populações. 

    Portanto, se chegamos aqui praticamente de joelhos, sugeria que, quando outro maluco fala em bombas nucleares, façam o favor de não usar metáforas com jogos de casino como se isto fosse lá longe. 

    Não é. Nem longe e, provavelmente, nem bluff

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Qual é, afinal, o preço da Transparência?

    Qual é, afinal, o preço da Transparência?


    Desde o seu nascimento, o PÁGINA UM mostrou ao que vinha: queria rigor informativo, e, para tal, necessitava de informação. Queria informação.

    Um dos pilares da Democracia é a Imprensa livre e interventiva – aquela que observa e sindica os poderes sem concepções, sem receios e sem outra estratégia que não seja conhecer a Verdade.

    Tem sido essa a visão do PÁGINA UM.

    E, por esse motivo, foi com naturalidade, que o PÁGINA UM foi solicitando o acesso a documentos administrativos de diversas entidades, ainda no ano passado.

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    Perante a recusa sistemática por parte das diversas entidades, recorreu à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos. Recebeu, com uma excepção, pareceres favoráveis. Nenhuma entidade visada quis saber disso. Os pareceres da CADA não são vinculativos.

    Por isso, desde Abril, o PÁGINA UM tem intentado, com o apoio dos seus leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO, diversos processos de intimação junto do Tribunal Administrativo.

    Uma dúzia, 12, até agora.

    Não tenho memória de um outro qualquer órgão de comunicação social ter intentado tantos processos de intimação desta natureza, até porque poucas vezes há “coragem” ou “interesse” em confrontar entidades como Ministérios, institutos públicos ou direcções-gerais, o Banco de Portugal, universidades ou, last but not the least, até o Conselho Superior da Magistratura.

    Infelizmente, mais haverá, por certo, se houver condições financeiras e logísticas, embora o PÁGINA UM tenha a noção dos seus limites.

    O Obscurantismo está enraizado na Administração Pública e nas entidades com funções públicas.

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    Com efeito, aquilo que mais me tem surpreendido, na generalidade dos processos no Tribunal Administrativo de Lisboa em curso, é o profundo zelo e a compenetrada abnegação com que as entidades públicas visadas procuram recusar o acesso a documentos públicos. Usam todos os argumentos jurídicos, desde as mais picuinhas até às mais descaradas mentiras, chegam a “jogar sujo” (como já fez a Ordem dos Médicos “encenando” uma queixa-crime). Tudo lhes vale.

    E o que está em causa, afinal? Documentos públicos.

    Mas são também documentos que permitem analisar, avaliar e qualificar as acções de pessoas que conjunturalmente gerem a res publica, daquelas próprias que “lutam” para que uma imprensa livre não lhes ponha a vista em cima.

    Não estamos a falar de documentos com dados da vida privada de ninguém.

    São documentos sobre os quais não está em causa qualquer devassa. São “apenas” dados de inquestionável interesse público.

    Perante tantos obstáculos, e para também existir uma melhor percepão do esforço (que se espera não ser inglório) do PÁGINA UM , decidiu-se criar uma nova secção no jornal: TRANSPARÊNCIA.

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    Na secção TRANSPARÊNCIA – e porque os processos administrativos mesmo em curso não estão sujeitos a qualquer segredo –, o PÁGINA UM passará a disponibilizar uma cronologia e os documentos mais relevantes, designadamente os requerimentos iniciais, os argumentos da outra parte e os despachos e sentenças do Tribunal.

    Este será um processo lento – mais ou menos em função dos apoios que o PÁGINA UM venha a ter –, mas prometemos colocar informação de todos os processos, mesmo daqueles (ou sobretudo daqueles) em que não seja dada razão ao PÁGINA UM.

    Começamos hoje esta tarefa de TRANSPARÊNCIA com o processo de intimação contra o Infarmed por recusa em permitir o acesso à base de dados do Portal RAM, que detém informações sobre as reacções adversas das vacinas contra a covid-19 e do antiviral remdesivir.

    Mais de nove meses após termos pedido essa informação, o Infarmed luta para não ceder informação de interesse público.

    Qual é, afinal, o preço da Transparência?


    Nota: O PÁGINA UM decidiu “descontinuar” o P1 TV, uma vez que nos confrontámos com a impossibilidade de encontrar uma solução financeira que garantisse os princípios basilares do jornal, entre os quais a sua independência. O esforço financeiro que o P1 TV acarretou e acarretaria para o futuro do jornal – com a produção de documentários, reportagens, depoimentos, etc. – seria incomportável. O P1 Tv foi assim um embrião que não “vingou”, mas que ficará sempre como uma referência. Muito provavelmente, regressaremos com um novo modelo, apenas sonoro (podcasts), mais ágil mas também mais compatível com os nossos recursos. Gostaria pessoalmente de deixar os meus agradecimentos ao Nuno André e ao Júlio Barreiros pelo trabalho entretanto desenvolvido, com destaque para o documentário “O Pão Nosso“.

  • Para que é que foste acreditar em Deus?

    Para que é que foste acreditar em Deus?

    Falei-vos da importância que tiveram para mim os três últimos anos que passei nos Estados Unidos, mergulhada na emoção da voltar a escrever livros científicos e na alegria de voltar a dar aulas, ainda por cima a alunos selecionados para estarem ali por terem sido identificados como sobredotados. Comecei a sentir-me tão feliz e tão útil, tão leve, tão cheia de Força, que, logo na véspera de Natal de 2014, acordei às seis da manhã com o dia a romper, a neve a cair suavemente lá fora, e o primeiro parágrafo do meu novo romance a escrever-se sozinho na minha cabeça. Ainda lutei contra a investida daquelas frases todas, mas já não havia retrocesso possível. Levantei-me, fiz café, encharquei a cara em água fria, e comecei a escrever…


    Há que ver que eu tinha acordado a pensar naquele mesmo romance algures durante o Inverno de 1991. A mesma primeira frase do livro, a mesma última frase do primeiro capítulo. Sentei-me na cama entusiasmadíssima, com muito cuidado porque ainda era cedíssimo e o Dick continuava a dormir ao meu lado. Tenho sempre um bloco de apontamentos e uma caneta na cabeceira, para escrever tudo o que me vem à cabeça durante a noite, ou enquanto estou a ler. Já ia agarrar neles e desatar a escrevinhar furiosamente quando de repente me vieram as lágrimas aos olhos, deixei cair os braços, me encostei nas almofadas e acendi um cigarro para sofrer melhor[1].

    É que, em 1991, eu ia nos meus 31 anos. Era uma miúda. Não tinha, de maneira nenhuma, a maturidade, a capacidade de ver através das coisas e das pessoas, a sabedoria para ler sinais, que escrever um romance daqueles ia exigir de mim. Passei-o todo a pente fino na cabeça, ainda verti uma lagriminha, e deixei-o guardado para mais tarde.

    Para quando fosse capaz.

    E era agora, malta.

    Agora, 23 anos mais tarde, eu já ia nos 54. Já tinha comido o pão que o diabo amassou umas dez ou vinte vezes. Este diferencial tão acentuado era porque não sabia se deveria incluir as cirurgias ou não; e, se incluísse, se seriam mesmo todas, ou só as de anestesia geral[2].

    “Clarinha tenta ajudar um desgraçadinho fingindo que tem um orgasmo da treta, e nesse momento nem lhe passa pela cabeça que o grande malvado vai espetar com aquela porcaria toda na internet, declarando, assim, a sua crucificação definitiva.”

     Aos 54 anos, eu já tinha corrido o mundo inteiro. Já tinha sido incrivelmente feliz, e também já tinha sofrido de forma assaz indescritível. Já me tinha portado muito mal, mas também já tinha feito os impossíveis para trazer a felicidade aos outros. Mentira, e tinham-me mentido. Tinham-me insultado uma vez, duas vezes, três vezes – e depois tinham-me assassinado.

    Vivera rodeada de amigos, e depois ficara completamente sozinha. Agora estava insolvente, a sobreviver sabe Deus como com uma pequena bolsa da Fulbright numa das regiões mais caras dos EUA. Agora, agora sim.

    Agora eu estava mais do que pronta para escrever o meu romance.

    As memórias inventadas de uma gaja que nunca existiu, escritas à velocidade do seu pensamento.

    Escrevi com um prazer enorme, fiz milhares de revisões, de adições, de subtracções, de novas estruturas e outras tantas figuras – e, durante todo este tempo, acreditava sinceramente, nesta minha ingenuidade que não se resolve nem a estalo, que um romance daqueles, do alto do imenso poderio das suas oitocentas páginas, publicado logo a seguir à publicação de um livro científico feito em co-autoria com o Grande Papa[3] da Biologia do Desenvolvimento e dado à estampa por uma das melhores editoras académicas do mundo, ia de certeza reabilitar-me aos olhos dos portugueses e dar-me o direito a voltar a estar viva.

    Coitadinha da Clarinha, que até acredita em Deus.

    Cheguei à sessão de lançamento na FNAC/Chiado toda fresquinha, acabada de vir de fora, e a primeira coisa que notei foi que não estava lá um único membro da Comunicação Social.

    Céus,” pensei eu, “isto ainda vai ser mais duro do que aquilo que eu previa.” E, por acaso, foi pior ainda.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] É verdade, é. O que as coisas mudaram na América. Nos anos 90 ainda se fumava em casa, mesmo na cama, e os nossos companheiros nem se lembravam de nos xingar o juízo.

    [2] A pior coisa que um médico que eu não conheço pode perguntar-me, assim de chofre, é “quantas cirurgias fez?”. Tenho sempre que pedir-lhe que espere um bocadinho para contar pelos dedos. E, mesmo sabendo que o número bate algures nos vinte, também tenho que fazer a fatídica pergunta de contar só a anestesia geral, ou se também vale a anestesia local, que inflacciona logo os valores básicos. Sou uma doente profissional, o que é que querem? E, como é evidente, não fui eu quem escolheu nascer assim.

    [3] A expressão adequada talvez seja antes Grande Rabino, uma vez que o Scott é Judeu. Para as pessoas da nossa área de especialidade, este homem é, apenas, o Judeu que escreveu a Bíblia.