Categoria: Opinião

  • Crónica de uma vergonha anunciada: como a imprensa mainstream (se) vendeu (a)os certificados digitais

    Crónica de uma vergonha anunciada: como a imprensa mainstream (se) vendeu (a)os certificados digitais


    Em 17 de Março de 2020, no dia seguinte à primeira morte por covid-19 em Portugal, o director do Público, Manuel Carvalho, como se (já) fosse um ideólogo do regime em matéria de políticas de saúde, traçava aquilo que viria a ser uma linha orientadora do seu jornal e, talvez não por coincidência, da narrativa oficial e das medidas de mitigação da covid-19. No seu editorial, escrevia:

    “(…) E mesmo que o estado de emergência não altere significativamente o modo de vida que a maioria dos portugueses já adoptou, o simples facto de ter sido activado vai servir para convencer os mais recalcitrantes ou os que teimam em considerar que a epidemia não passa de um exagero.”

    person in black knit cap and gray sweater

    E continuava:

    “(…) Não é populismo, nem cedência aos impulsos primários dos cidadãos que se trata: é a urgência de garantir a cumplicidade das pessoas e de criar um sentimento de comunidade que precisamos mais do que nunca para derrotar a epidemia. Em momentos drásticos como o de hoje, é necessário recorrer a medidas drásticas. Essa atitude não bastará para travar as consequências da doença. Mas servirá ao menos para todos sentirem que o seu esforço, o seu desconforto e as suas ansiedades são reflectidas por quem nos governa.”

    Recordo estas palavras, supostamente de grande sentido de responsabilidade humanitária e patriótica, porque ajudam a compreender os equívocos, as falácias, os enviesamentos de semântica e a manipulação que grassaram (e nos desgraçaram) ao longo da pandemia, alimentada pela imprensa mainstream. Viu-se isso em todas as medidas de gestão da pandemia, na forma acrítica (e entusiástica) como eram aceites pelos directores dos órgãos de comunicação social.

    Isso passou-se para as vacinas, e daí para uma das suas alegadas (e mais polémicas) características, que justificou a mais infamante medida discriminatória de que há memória na nossa geração: o certificado digital.

    shallow focus photo of black corded microphone

    Mais do que um instrumento de gestão epidemiológica, o certificado digital (de vacinação e de recuperação) foi, na verdade, apenas uma arma de persuasão ou de coação em prol da vacinação, porquanto “castigava” quem não o detivesse. Ou seja, quem não se tivesse vacinado, independente do motivo ou da motivação. Invocava-se ainda por cima a Ciência, mas nada houve de científico, embora muito argumento de autoridade tivesse sido vergonhosamente usado.

    Não deveria ser necessário recordar que, numa sociedade, temos direitos e deveres, subsumindo-se daí que, existindo inúmeras vantagens da integração individual num grupo, tal não significa que o indivíduo possa ser sacrificado por ter como consequência uma vantagem para o grupo. Em concreto, mesmo que uma vacina contra a covid-19 pudesse trazer mais vantagens inequívocas globalmente se todos os indivíduos fossem vacinados – a tal imunidade de grupo –, mesmo assim não seria lícito, pelo menos eticamente, obrigar todos os indivíduos se a vantagem para si não fosse inequivocamente superior às eventuais desvantagens. E, havendo uma desvantagem potencial, é lícito que o indivíduo possa recusar.

    Ainda mais sabendo duas coisas fundamentais: o risco da covid-19 é incomensuravelmente diferente nos diversos grupos etários; e não se conhecem ainda todos os efeitos adversos das vacinas face à sua tecnologia nova e à inexistência de um histórico.

    Mas ainda se poderia colocar a hipótese de estarmos mesmo num “momento drástico”, e que as vacinas contra a covid-19 pudessem mesmo criar a “imunidade de grupo” – isto é, quebrar as cadeias de transmissão –, erradicando assim o vírus. Não seria impossível, mas pouco provável em tão curto espaço de tempo.

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    Na verdade, apenas dois vírus foram virtualmente erradicados por acção das vacinas (varíola e peste bovina), estando outra (poliomielite) em vias desse desfecho. Foram, contudo, necessárias algumas décadas neste processo. A pressa é, em Medicina, uma péssima conselheira. E nunca com uma vacina em fase inicial da sua implementação – para não dizer que se encontra numa fase experimental, tantos são os estudos de farmacovigilância em curso) –; e nunca através de um programa de vacinação maciça que pretendia abranger em apenas um ano pelo menos 70% da população mundial.

    Contudo, na verdade, em relação à covid-19, nunca estivemos sequer perto de almejar vacinas com capacidade de criar imunidade de grupo – ou seja, medicamentos que, além de reduzirem o risco de hospitalização e morte, concedessem uma menor transmissibilidade. Se tal pudesse suceder, ainda se poderia admitir a legitimidade ou de não de premiar os vacinados em detrimento dos não-vacinados – através designadamente de certificados digitais.

    Porém, essa discussão somente deveria ser colocada se, efectivamente, ficasse provada, pela Ciência, que a vacina reduzia de forma muito relevante a capacidade de um vacinado infectar outros, quer vacinados quer não-vacinados.

    E isso nunca ficou provado antes – e mesmo depois – da aprovação do certificado digital imposto pela Comissão Europeia em 14 de Junho de 2021, onde, no ponto 7 do preâmbulo, se diz o seguinte:

    man in red crew neck shirt

    As pessoas vacinadas ou as que obtiveram um resultado negativo num teste de despistagem à COVID-19 recente e as pessoas que recuperaram da COVID-19 nos seis meses anteriores parecem ter um risco reduzido de infetar outras pessoas com o SARS-CoV-2, de acordo com dados científicos atuais, ainda em evolução. A livre circulação de pessoas que não representam um risco significativo para a saúde pública de acordo com provas científicas sólidas, por exemplo porque são imunes ao SARS-CoV-2 e não o podem transmitir, não deverá ser restringida, uma vez que tais restrições não seriam necessárias para alcançar o objetivo de salvaguarda da saúde pública. Se a situação epidemiológica o permitir, estas pessoas não deverão ser sujeitas a restrições adicionais à livre circulação relacionadas com a pandemia de COVID-19, tais como testes para despistagem da infeção por SARS-CoV-2 por motivos de viagem, ou cumprimento de quarentena ou autoisolamento por motivos de viagem, a menos que essas restrições adicionais sejam, com base nos dados científicos disponíveis mais recentes e em conformidade com o princípio da precaução, necessárias e proporcionadas para o efeito de salvaguardar a saúde pública, e não sejam discriminatórias.

    Foi neste pressuposto – “dados científicos actuais, ainda em evolução” –, completamente falso, que se baseou o certificado digital, primeiro para viagens transfronteiriças, e mais tarde para segregar não-vacinados mesmo no seu país.

    Como se sabe, a Pfizer veio este mês admitir que, nos seus ensaios iniciais, nunca estudaram a questão da menor transmissibilidade dos vacinados. E, de facto, nunca houve uma assumpção clara das farmacêuticas de que as vacinas tinham esse nível de eficácia. Mas as farmacêuticas, nem que fosse por omissão, foram entrando no “jogo”, não se comprometendo e até “patrocinando” a imprensa e os políticos que iam “vendendo” as vacinas como “bóia de salvação” com efeitos milagrosos. Por isso, quando foi “vendida” ao povo a ideia de que a vacinação evitava a transmissão, as farmacêuticas sabiam que assim venderiam mais. Por omissão, pactuaram.

    person in white gloves holding white plastic bottle

    Onde esteve o jornalismo mainstream durante este processo que levou à imposição do certificado digital baseada numa falsidade?

    Denunciaram a falácia?

    Não! Esteve, como confessou um defensor do Público, a “criar consenso social em favor da vacinação”.

    E, para isso, valeu tudo.

    Até ser incongruente.

    De facto, jornais como o Público – muito antes de se discutir a aplicação do certificado digital – estiveram a fazer lobby pela vacinação, mesmo para aqueles que fossem recuperados.

    Por exemplo, em 14 de Janeiro de 2021 – ou seja, cerca de duas semanas após o início do programa de vacinação em Portugal –, o Público noticiava que até as pessoas com a chamada imunidade natural (adquirida através de uma infecção prévia) seriam capazes de transportar o SARS-CoV-2 no nariz e na garganta e transmiti-lo a outras pessoas.

    E estavam empenhadíssimos em falar da imunidade de grupo, como se fosse uma evidência. E da necessidade de promover rapidamente taxas de cobertura elevadas.

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    Por exemplo, em 26 de Janeiro de 2021, o Público divulgava nas suas páginas um artigo do Washington Post, onde surgia a seguinte passagem: “(…) embora as vacinas sejam um passo crítico para abrandar a propagação de um vírus que já causou mais de dois milhões de mortes em todo o mundo, os especialistas têm alertado repetidamente que ser vacinado não significa um regresso imediato à vida pré-pandémica.”

    E porquê?

    Porque, explicava-se, “as autoridades de saúde pública dizem que pelo menos 70% da população precisa de ser inoculada para que o país alcance a imunidade de grupo e pare a propagação do vírus”, e acrescentava-se que “com o vírus a continuar a propagar-se rapidamente por grande parte do país [e pelo mundo], muitas formas de socialização implicam algum nível de risco, incluindo reuniões entre pessoas que estão totalmente vacinadas”.

    Ninguém estranhava esta falácia: tinha de se chegar aos 70% para haver imunidade de grupo, mas até os totalmente vacinados estariam pouco seguros entre eles enquanto essa meta não fosse atingida?

    Esta notícia é, aliás, paradigmática do enviesamento da Ciência ao longo da pandemia sempre que usada pela imprensa mainstream. Apesar de diversos cientistas, entre os quais um médico de doenças infecciosas de Houston (Robert Atmar), acabarem a fazer uma declaração de fé: aqueles que receberam as suas vacinas “deram um passo para nos aproximar a todos daquela luz ao fundo do túnel e voltar a ter uma certa sensação de normalidade”.

    E continuou. Em 11 de Fevereiro de 2021, o Público titulava “CDC [agência norte-americana de controlo e prevenção de doenças] diz que as pessoas vacinadas (com as duas doses) não precisavam de cumprir quarentena após exposição de risco”. E porquê? Porque “a vacinação demonstrou prevenir quadros sintomáticos de covid-19”. Mas, e quanto à transmissão? Podiam transmitir, se novamente infectadas. O CDC dava a resposta: “o risco de transmissão do SARS-CoV-2 de pessoas vacinadas para outras ainda [era] incerto”, mas acrescentava-se na notícia que “os especialistas acreditam que as pessoas que se encontram na fase sintomática e pré-sintomática ‘têm um papel maior na transmissão’ do que as pessoas que permanecem sem sintomas”. Acreditam! Eis a fé.

    O primeiro trimestre de 2021 foi, efectivamente, o período em que a imprensa mainstream seguia, sem pestanejar nem questionar, a tese da menor transmissibilidade dos vacinados, através de declarações de “profissão fé” por parte de especialistas, mesmo se esses especialistas jamais apresentassem provas. Não precisavam: o argumento de autoridade bastava por si.

    Por exemplo, o Público divulgou um take da Lusa, nesse mesmo dia 11 de Fevereiro de 2021, sobre um suposto estudo da Universidade de Aveiro que indicava ser prioritário vacinar primeiro os chamados “super-disseminadores”, ou seja, pessoas “com contacto directo com um grande número de pessoas”. Isto porque, supostamente, vacinando-se aquele grupo se “limita[ria] muito mais a propagação do coronavírus e pode[ria] diminuir o número global de mortes do que a estratégia que está a ser seguida pelos países da União Europeia (…), de vacinar primeiros os idosos e sucessivamente os grupos etários de idades inferiores”

    stack of white yellow green and blue textiles

    É certo que, no dia seguinte, 12 de Fevereiro de 2021, até se divulgava que para a Organização Mundial da Saúde “não é claro” que os vacinados não transmitissem covid-19. Mas a responsável da OMS dava uma no cravo e outra na ferradura, não se querendo comprometer: “há relatos de que quem está vacinado, se ficar infectado, a carga viral será menor. Por isso, a hipótese de infectar os outros é menor.” Palpites!

    Mesmo assim, numa altura em que se estava já a preparar o certificado digital, a OMS foi talvez a única entidade que, inicialmente, colocou reservas. Em 3 de Março de 2021, o Público noticiava, através de um take da Lusa, que a OMS defendia que “estar vacinado contra a covid-19 não pode ser um requisito para viajar”, realçando que a “utilização de ‘certificados de imunidade’ para viajantes internacionais (tanto para os que foram vacinados como para os que possuem anticorpos após superar a doença) não é recomendável nem está sustentada actualmente por provas científicas”.

    Pouco importou. A falácia e a semântica falaram mais alto. Em 25 de Março de 2021, uma resolução do Parlamento Europeu, instava a “Comissão e os Estados-Membros a desenvolverem, com caráter prioritário, um certificado de vacinação comum e um sistema de reconhecimento mútuo dos procedimentos de vacinação para fins médicos, acrescentando que “uma vez que as vacinas tenham sido disponibilizadas ao público em geral e existam provas científicas suficientes de que as pessoas vacinadas não transmitem o vírus, o certificado pode ser considerado, para efeitos de viagem, como uma alternativa aos testes PCR e aos requisitos de quarentena (…).

    Repita-se: teriam de existir “provas científicas suficientes de que as pessoas vacinadas não transmitem o vírus”…

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    Nunca surgiram essas provas, mas também a imprensa mainstream – imbuída do espírito de missão em prol do “consenso social” para a vacinação – nada questionou quando o certificado digital foi implementado em 14 de Junho de 2021.

    Aliás, em meados do ano passado, foi dando palco a sucessivos “especialistas”, cheios de argumento de autoridade, que continuavam a falar da imunidade de grupo como a quimera para o término da pandemia, mesmo quando a vacina tinha sido desenvolvida para uma variante que não a então dominante (Delta).

    E que se deveria então fazer? Ora, fazer o absurdo: vacinar mais, como defendeu mais um “especialista” na imprensa mainstream, como no Público (20 de Junho de 2021) ou no Diário de Notícias (29 de Junho de 2021). Com efeito o médico intensivista José Artur Paiva, imbuído do seu estatuto de autoridade, acriticamente aceite pelos jornalistas, teve o desplante de dizer que com a variante Delta, a imunidade de grupo só se deverá atingir perto dos 85% de taxa de vacinação em vez de ser nos 70%.

    Mas, a esquizofrenia epidemiológica do Público continuava. No dia 21 de Junho, o diário de Manuel Carvalho divulgava a opinião de Miguel Castanho que, embora recomendando a vacinação em quase tudo o que mexesse, dizia taxativamente que “essa ideia [imunidade de grupo] está ultrapassada porque as vacinas não são 100% eficazes, por um lado, mas sobretudo porque as vacinas não protegem contra a infecção e contra a capacidade de transmissão e, portanto, qualquer pessoa mesmo vacinada em algum grau contribui para a transmissão do vírus”.

    Em 30 de Julho de 2021, o Público escrevia que “a variante Delta”, então já dominante, “se propagava tão facilmente como a varicela à medida que os casos aumentam nos Estados Unidos e novas investigações sugerem que as pessoas vacinadas podem espalhar o vírus.”

    man sitting on bench reading newspaper

    Escrevia ainda que vários estudos mostravam “que indivíduos vacinados que foram infectados com a variante Delta podem ser capazes de transmitir o vírus tão facilmente como aqueles que não estão vacinados”, acrescentando que “as pessoas vacinadas que ficaram infectadas com a variante Delta têm cargas virais semelhantes àquelas que, não estando vacinadas, estão infectadas com a variante.”

    Alguém da imprensa contestou que não fazia sentido continuar com o certificado digital? Claro que não: o Público, então, continuava a sua cruzada para obter o “consenso social” em torno da vacinação, em vez de fazer jornalismo.

    Tanto assim que continuou a dar palco ao mais destrambelhado clínico desde os tempos de Viriato: Gustavo Carona, que não teve pejo em escrever o seguinte na sua croniqueta de 19 de Agosto de 2021 em prol da vacinação pediátrica: “A vacina previne infecção e transmissão na ordem dos 50 a 80%, diminui a carga viral caso infectada, e diminui os dias de potencial contágio. Ou seja, as crianças têm muito menos probabilidade de levar o vírus para casa, com o que daí possa vir.”

    Em 29 de Outubro de 2021, a “machadada final” em qualquer justificação científica para a manutenção do certificado digital: um take da Lusa, também publicado pelo Público, revelava que um artigo científico na revista The Lancet Infectious Diseases concluía que “as pessoas infectadas com a variante Delta do vírus SARS-CoV-2 registaram um pico de carga viral semelhante independentemente do estado de vacinação contra a covid-19”.

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    Porém, em 25 de Novembro de 2021, a generalidade da imprensa mainstream “aplaudiu” a medida do Governo de António Costa que usou o certificado para segregar não-vacinados, obrigando que este vergonhoso passaporte sanitário passasse a ser “obrigatório no acesso a restaurantes, estabelecimentos turísticos e alojamento local, eventos com lugares marcados e ginásios” a partir do mês seguinte, e que esteve em vigor até finais de Fevereiro deste ano.

    Vergonhosamente, para branquear esta infâmia, o Público ainda deu palco a epidemiologistas que se venderam ao sistema, como Henrique Barros, como se viu numa entrevista inclassificável em 31 de Dezembro de 2021. Intitulava-se: “As vacinas são para prevenir uma doença que eu posso transmitir aos outros. Não são um tratamento individual”. De uma forma surpreendente, dizia ele, nessa altura, que “quando eu decido vacinar-me, eu estou a fazer um contrato entre mim e os outros em que beneficio eu porque me protejo e em que beneficiam os outros porque eu, ao proteger-me, também os estou a proteger. A vacina, como medida de saúde pública, é diferente de um tratamento que uma pessoa queira ou não queira fazer para a sua doença. Não é um tratamento, é um esforço de prevenção. Por outro lado, previne uma doença que eu posso transmitir aos outros; e transmito aos outros no lado mais indispensável do ser vivo, que é respirar.”

    Balelas. O essencial não era dito: as vacinas nunca provaram os pressupostos subjacentes ao certificado digital e, por maioria de razão, às medidas segregacionistas a si associadas.

    woman in black leather jacket wearing white framed eyeglasses covering her face

    Além disso, se prova ainda fosse necessária de que a vacina jamais teve a capacidade de evitar a infecção e a transmissão, basta observar o que sucedeu após o surgimento da variante Ómicron a partir de Novembro de 2021. Em menos de um ano, com uma taxa de vacinação de cerca de 85%, mais de 40% dos portugueses foram infectados (casos positivos). Ou seja, grosso modo, metade da população vacinada “alegremente” foi infectada e infectou-se…

    Nunca mais se ouviu alguém defender a capacidade das vacinas em evitar a infecção ou a transmissão do SARS-CoV-2. Só a Direcção-Geral da Saúde e o Instituto Nacional da Saúde, nos seus habituais relatórios de monitorização, a dizerem, sem se rir, que a malvada variante Ómocron (que, na verdade, foi uma “bênção” face às outras variantes, muito mais letais) tem “uma capacidade de evasão à resposta imunitária”… concedida pela vacina… e também concedida pelo soro fisiológico… ou pela água da torneira….

    Mas mais vergonhoso ainda foi ver o desprezo com que a comunicação social mainstream (não) acompanhou a consulta pública da renovação do certificado digital na primeira metade deste ano. Foi, de muito longe, o mais participado diploma legislativo em discussão na União Europeia, como o PÁGINA UM foi salientando durante o período de consulta pública, entre 3 de Fevereiro e 8 de Abril deste ano. Foram 385.463 comentários de cidadãos e entidades.

    silver and black framed eyeglasses on white textile

    Não houve nenhum debate. Nenhum órgão de comunicação mainstream fez uma só notícia sobre a validade da renovação, e, sem isso, pouca ou nenhuma relevância deram ao tema os nossos partidos políticos.

    Mas já deram notícia sobre a aprovação da renovação do certificado digital em Junho passado, por mais um ano.

    E continua em vigor, embora caduco, porque nenhum país já o usa, pela sua própria inutilidade.

    Mas não o devemos esquecer. Nunca. Nem esquecer que o papel da imprensa mainstream, da qual o Público é um paradigma, num dos momentos de discriminação mais torpes que se possa imaginar, porque colocou no papel de odioso as pessoas que, legitimamente, não se quiseram vacinar pelos mais diferentes motivos.


    Nota final: Como é do conhecimento público, não me vacinei, porque, com base na Ciência, confiei nos estudos que foram confirmando e reforçando os dados sobre a imunidade natural, após ter ficado doente, e em estado bastante grave, em Junho do ano passado.

    Tenho acompanhado os meus níveis de imunidade natural realizando, desde Dezembro passado, análises serológicas (IgG) com periodicidade trimestral. No passado mês de Julho, testei positivo e com sintomas bastante ligeiros compatíveis com a variante Ómicron, confirmando assim a forte e duradoura imunidade natural, que prescinde a toma de vacina em condições normais, mesmo por pessoas que tiveram em estado grave numa primeira infecção.

    Poucos dias depois desta reinfecção, fiz novo teste serológico com um resultado de 846 BAU/ml, que confronta com os 331 BAU/ml que obtivera em finais de Junho, pouco antes da infecção. Estava, portanto, com imunidade natural antes dessa nova infecção; reforcei a imunidade natural com a nova infecção. Estou, portanto, com a imunidade reforçada porque não andei a fugir do vírus.

    Considero que, com base nos estudos e dados disponíveis, a Ómicron apresenta, independentemente da eficácia das vacinas, uma muitíssima menor taxa de letalidade face às anteriores variantes, sem prejuízo de continuar a ser uma infecção respiratória eventualmente relevante para pessoas vulneráveis. A Ciência deve prevalecer; não uma estúpida e incompreensível burocracia.

    Nunca usei nem usarei o certificado digital, mesmo tendo tido “direito”. Constitui um factor de discriminação sem qualquer justificação epidemiológica.

  • Pobres: ai agora é que os media se preocupam?!

    Pobres: ai agora é que os media se preocupam?!


    Os governantes de diversos países, incluindo Portugal, e os bancos centrais só conseguiram destruir a Economia e fazer disparar os níveis de pobreza graças à ajuda preciosa dos principais órgãos de comunicação social. Sem a sua submissão, em geral, jamais se teria feito a destruição que se fez em termos económicos, sociais e de saúde e bem-estar da população.

    Muitos, além de submissos, ainda assumiram o papel de cheerleaders das muitas políticas e medidas impostas desde 2020, na pandemia e não só. Aplaudiram (e aplaudem), promoveram, publicitaram e encorajaram. Com os seus “especialistas” em coro, queriam mais. Pior. Perseguiram quem a elas se opôs. Querem hoje, de novo, mais medidas. Com os seus “especialistas”. Com os seus editoriais. Pedem mais, sempre mais. Mais medidas. Mais doses de vacina. “Mais” guerra. Mesmo que tudo isso implique menos saúde, menos liberdade, menos democracia, menos jornalismo. Menos Europa. Menos comida.

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    Os media ajudaram, desde 2020, a amassar o pão que hoje não chega às mesas de muitas famílias. O pão que não sobra para alimentar os mais pobres e frágeis.

    Tudo o que os governos têm feito nos últimos dois anos, tem sido acompanhado pela aprovação e até sonoros aplausos por parte dos principais media. Contraditório? Zero ou quase nenhum. Os media, em geral, escolheram o seu lado em 2020, pisando o Jornalismo e os deveres dos jornalistas. Os media escolheram o seu lado em 2021 e em 2022, ajudando a destruir a economia e a saúde dos portugueses (e dos europeus). Agora, é que se lembram dos pobres?

    Durante dois anos, a maioria dos principais órgãos de comunicação colocaram-se do lado de medidas extremas que tiveram como base o “combate à pandemia de covid-19”. Agora, aparecem como “denunciantes” da fome e do aumento da pobreza. Começam a “denunciar” e a tomar “as dores” dos que sofrem devido à crise económica.

    Na sua maioria, defenderam todas as medidas, colocaram zero questões a todas as ilegalidades cometidas. Os que levantaram a voz contra as medidas foram insultados pelos media (ou através deles), que não deram qualquer hipótese ao contraditório, em geral.

    two people shaking hands

    Mas agora, em 2022, os media preocupam-se com os “pobrezinhos”, com os que passam fome. Com os desempregados. Agora? Depois de terem apoiado todas as medidas que provocaram a crise e dado a mão aos governantes que as decidiram? Agora vêm tarde.

    Sabe-se hoje o que já se sabia em 2020: confinar era um erro colossal. Todas as restrições que países como Portugal decidiram adotar – alinhado, em geral, com os restantes países europeus – causaram uma catástrofe económica. Já se sabia que isso iria acontecer, desde 2020. Na altura, era moda dizer “primeiro, salvar vidas; a Economia vê-se depois”.

    Não. A Economia não se vê depois. Porque a Economia somos todos nós. E, além disso, não se salvaram vidas a confinar e a impor medidas grotescas e ilegais. Pelo contrário, pelo que se vê da comparação entre a gestão da pandemia na Suécia e em países como Portugal. E vê-se agora também nas mortes em excesso.

    Em 2020 e em 2021, analistas alertaram para o enorme risco de uma crise alimentar. Economistas alertaram para o perigo da inflação. De nada valeu. Estamos, de novo, perante uma grave crise que está sobretudo a afetar as famílias e os mais frágeis da sociedade.

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    Nesta crise, os media são cúmplices. São responsáveis por ela. Os media são co-responsáveis pela pobreza causada por políticas nefastas e irracionais. Os media são responsáveis pelo desemprego criado. Pela fome. Não foi a covid-19. Não foi a guerra na Ucrânia.

    Foram os governos ajudados pelos media e todo o seu arsenal de “especialistas/ consultores”. Com as suas manchetes amigas dos governos e as aberturas de noticiários alinhados com “as autoridades”, os media foram um braço importante dos que criaram a atual crise que vivemos. Uma crise que está a ser uma oportunidade para retirar direitos e eliminar a democracia.

    Virem agora sacudir a água do capote e fingir que estão muito preocupados com os “pobres” e que querem denunciar que há fome, é mais do que hipócrita. É um insulto. É um insulto para quem perdeu o seu emprego. Para quem não tem o que pôr na mesa ao jantar.

    É um insulto para os economistas que há muito alertavam para o perigo da inflação. Para os analistas que avisaram sobre a crise alimentar. É um insulto para os que têm processos disciplinares por defenderem os mais frágeis. Para os que têm levantado a voz e dado a cara, arriscando a carreira, contra as medidas irresponsáveis e até criminosas que têm sido adotadas.

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    E não me refiro apenas à gestão da pandemia mas também às decisões irresponsáveis e anti-europeias que Bruxelas tomou em 2022. Mais uma vez, tentam vender a ideia de que todas as decisões são “para o bem”, que querem defender “a liberdade” e “a democracia”. “A democracia, a liberdade e os valores europeus que têm sido amputados e espezinhados desde 2020?

    E Bruxelas ainda tem o desplante de dizer que está a “defender a democracia”. Tudo isto com os media sempre prontos para, com submissão perante os governantes, massificarem as frases e palavras-chave do marketing político. Um coro. Afinados. A tocar a mesma música.

    Mas, apesar de terem já começado a “tomar as dores” dos “pobrezinhos” e dos que passam fome, os media ainda não tomaram as dores dos que estão doentes. Dos jovens apanhados por uma pandemia de doenças mentais devido às medidas que lhes foram impostas.

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    Não tomaram as dores dos que sofrem com reações adversas graves devido a doses de vacinas que foram, muitos deles, forçados a tomar para manterem o emprego.

    Os media não pensam ainda nos milhares de famílias dos europeus que têm morrido sem grande explicação ou investigação. Lá foram começando, a custo, a noticiar as mortes em excesso, mas sem grande acompanhamento do tema.

    Os media ainda não tomaram as dores dos mortos e dos que ficaram doentes devido ou na sequência de medidas impostas. Talvez porque, no fundo, bem lá no fundo, os media sabem. Que são eles também responsáveis por estas mortes e estes doentes. No fundo, eles sabem que ajudaram a destruir vidas e famílias, além de empregos, além da economia. Eles sabem. E nós também.

  • In Liz we can’t trust

    In Liz we can’t trust


    Para começar, sobre consumo de hidratos de carbono, digo-vos já que sou um fã de arroz. Massa é porreira e tal, mas, se o Mundo estivesse à beira do fim, a minha escolha para decorar o bunker seria um saco de 5 quilos de arroz. Está comigo desde que nasci, nunca me desiludiu e, convenhamos, fica bem com tudo. Tudo. Desde a mesa mais pobre ao prato mais gourmet. Até naquelas coisas de fusão aparecem uns bagos coloridos.

    O discurso dos liberais portugueses é um pouco como o arroz. Dá para juntar a quase tudo e, com alguma imaginação, até sentimos sabores diferentes. O problema está somente no sal da retórica utilizada. Nunca, em momento algum, se ligam os pontos com o tempero mestre, e tal como um arroz mal feito, uma pessoa acaba com aquela cara enrugada do “falta sal” quando os ouve.

    Liz Truss, primeira ministra demissionária do Reino Unido.

    Assim, vamos ao que interessa: os projectos do departamento de marketing da Iniciativa Liberal (IL) seguem a metodologia Agile. Traçam objectivos, executam e avaliam a cada 15 dias. Dali resultam maravilhosos outdoors e toda uma comunicação bastante atrativa. E não estou a ser irónico.

    Inevitavelmente, a realidade contraria as jogadas de marketing ao fim de umas semanas e, nessa altura, aparece o plano B (uma espécie de emenda ao Agile), que consiste num longo texto do Carlos Guimarães Pinto a explicar-nos que não percebemos nada do que eles queriam dizer. Os liberais seguem o mantra e respiram de alívio, esperando que o próximo exemplo de liberalismo em qualquer parte do Mundo, de facto, resulte.

    Quando Liz Truss entrou a matar em Downing Street com aquela ideia de reduzir impostos aos mais ricos porque isso, segundo ela, faria o dinheiro chegar às camadas mais pobres, fiquei a pensar nos inúmeros exemplos de ricos que libertam dinheiro para os pobres. Como aquelas cascatas de champanhe nos casamentos onde, a partir de um copo no topo da pirâmide, se enchem os demais. Curiosamente não me lembrei de nenhum exemplo, mas também não sou grande coisa de memória.

    Liz Truss anunciou que reduziria os impostos das empresas e não taxaria os lucros extraordinários. Ora, isto foi exactamente o que Carlos Guimarães Pinto defendeu num debate televisivo a propósito dos lucros extraordinários da GALP. O departamento de marketing da IL começou a pintar os cartazes com a Liz, mas antes de darem a segunda demão já os mercados, também amigos dos liberais, explicaram que a Truss não sabia o que estava a dizer.

    A libra desabou e os juros da dívida dispararam. O caos instalou-se e Liz ficou isolada, acabando por substituir o ministro das Finanças por outro que se aguentou três dias. Os mercados decidiram que Governo deve vigorar, substituindo os eleitores. Contudo, se forem perguntar aos liberais eles vão dizer que só defendem os mercados até ao momento em que eles definem de facto o rumo das nações.

    A IL reuniu de emergência e afinou o discurso. “O que é que se pode arranjar para dizer que somos diferentes?”, perguntou o Cotrim. Guimarães, o mais afinado estratega do momento, soltou o Eureka! e apontou para a despesa pública. Liz ia reduzir impostos e aumentar a despesa. A IL defende a redução de impostos e da despesa. E deixou cair o microfone…

    Houve palmas e suspiros de alívio. Estava feito! Por hoje…

    Cotrim de Figueiredo, líder da Iniciativa Liberal.

    Mas um dos estagiários, sentado lá ao fundo, perguntou: “então, e se nos questionarem sobre o nosso modelo de liberalismo, dizemos que seguimos qual?”

    “Nórdico, pá!!”, gritou o Cotrim enquanto acabava o chá de tília. “Mas…”, ripostou o outro, “esses gajos não têm uma despesa enorme porque 30% do mercado de trabalho é Função Pública? Como podemos dizer que defendemos o modelo nórdico e despesa baixa? Os gajos dão tudo de borla!!”

    Cotrim coçou a cabeça e Guimarães agarrou no queixo. Voltaram ao brainstorming com termos em inglês, e outro estagiário, mais desatento, gritou: “e se fosse liberalismo do Báltico?? Já temos os cartazes e tudo!”. Fez-se silêncio na sala e rolaram olhos naquele sentimento de “f***-se, quem é este gajo?”. O parceiro de carteira disse-lhe ao ouvido que a Estónia já estava com a inflação nos dois dígitos e os cartazes jaziam na salamandra da sede.

    “E se assumíssemos a nossa Meca?! O liberalismo americano: cada um por si e Deus por todos?”, sugeriu um daqueles deputados que fica atrás do Cotrim na Assembleia da República a exclamar sempre “muito bem!” mas que ninguém conhece.

    Guimarães, que deu aulas em Hanói e se fartou de comer arroz, agarrou nos cabelos a pensar como é que tinha ido ali parar.

    O problema não está tanto no liberalismo porque esse tem poucos segredos e, com uma ou outra variante, nós percebemos o caminho que nos destina. Ou melhor, como diria um liberal, nós conseguimos visualizar a big picture. E os membros da IL também sabem exactamente o que defendem: é arroz, branco, com açafrão, chau-chau, tomate. É o tipo de arroz que cada um de nós quiser e encaixa em todo o lado. Agora basta que nos consigam convencer que, mesmo sem sal, faz falta e sabe bem.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Histórias de amor

    Histórias de amor

    No dia em que te conheci
    Rasguei todos os meus mapas
    (passagem de um antigo poema árabe)


    Aqui em Estremoz, morreu uma senhora de 93 anos que esteve óptima de corpo e de cabeça até há cerca de uns dois meses.

    Tantos anos, tantos anos.

    Provavelmente, viveu a vida inteira à espera do dia em que chegava de muito longe um desconhecido que se detinha à sua frente, a olhava até ao fundo dos olhos, e lhe punha a mão no ombro. E ela saberia logo quem ele era, embora, aqui em Estremoz, nunca o tivesse conhecido. Também nunca teria sonhado com ele. Ou, se tivesse sonhado, de manhã já se teria esquecido. Talvez o cheiro dele lhe fosse familiar. Talvez fosse o toque nítido da pele da palma da mão dele contra a pele do ombro dela. Talvez fosse a cor dos cabelos, ou então talvez fosse a cor da roupa. Ela ficava parada, confiante, a retribuir-lhe o olhar como num sorriso. E era então que ele lhe dizia exactamente o que dizem aqueles dois versos de um poema meio perdido, fragmentado pela erosão do tempo e pela evolução da língua. Era um código oculto, e ela reconhecia-o logo embora não o conhecesse antes. A partir daí, faria finalmente sentido enfrentar todos os desafios, superar todos os medos, levantar todas as amarras, e recomeçar a vida do zero, transformada numa viagem sem fim através do coração de tudo o que há de belo na vida, e que as pessoas sem código, aquelas que andam sempre de olhos postos no chão, nunca conseguem ver.

    Ora acontece que esse desconhecido que ela conhecia tão bem, portador dos dois versos antigos com qualquer coisa como poderes mágicos, e que ela esperara ouvir ano após ano após ano, vinha de tão longe que precisava de caminhar sem fim até chegar a Estremoz. E, como em qualquer outra época das civilizações humanas, estava sempre a perder tempo com desvios à sua rota mais rápida, para não morrer de cada vez que atravessasse o território de qualquer uma das guerras que há agora. Sempre foi assim, porque houve sempre muitas guerras. No fundo dos seus segredos, ela nunca deixou de esperar por ele durante os seus 93 anos de vida. E ele estava a caminho, e ela sabia que ele estava. Mas a distância era tão grande que se interpôs entre a vida e o sonho. Ela conseguiu esperar por ele até aos 93 anos. Mas, mesmo assim, ele não conseguiu chegar a tempo.

    E pronto. Em muito poucas palavras, e mesmo que elas ainda nunca tenham dado por isso, esta é, mais coisa menos coisa, a verdadeira história da vida de todas as mulheres do planeta.

    Nenhum mamífero, ou seja, nenhum animal como nós, pode considerar-se dado ao amor. Por natureza, nenhum mamífero é romântico. Uma das melhores provas disso é que nenhum mamífero é monogâmico. Mas, como no mundo vivo não há valores absolutos, conhecem-se 3% de excepções a esta regra. E a excepção mais excepcional de todas, por qualquer razão inexplicável que não atinge nenhuma das espécies que lhe são mais próximas, é… palavra de honra… a biologia não tem por força que fazer sentido… o mamífero mais empedernidamente monogâmico do mundo é o cão da pradaria!

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora

  • Vamos dar tudo, mas mesmo tudo, pelo Donbass? 

    Vamos dar tudo, mas mesmo tudo, pelo Donbass? 


    A ofensiva ucraniana em Kherson não vem, confesso-vos, na melhor altura. Aproxima-se o primeiro teste da época para o Benfica e precisávamos de, no mínimo, três dias para discutir o penalti do Taremi e a expulsão do Otamendi. Já todos sabemos o que por ali acontece, mas fingimos sempre que é a primeira vez. Um pouco como os incêndios no Verão ou as cheias no Inverno que, enfim, apanham todos, ano após ano, de surpresa.

    Na verdade, os nossos dramas com a política internacional podem sempre esperar quando a bola rola, uma figura pública faz publicidade à Prozis ou os Coldplay anunciam um quinto concerto. Também aí somos únicos…

    Alguns países ainda avisam os seus cidadãos para abandonarem a Ucrânia (entre eles a China), e eu pergunto-me o que saberão eles que a nossa CNN ainda não nos contou?

    Entretanto, Putin declarou lei marcial nos territórios anexados e já classifica a Ucrânia como invasor. O Mundo ao contrário, neste caso.

    Dizem os especialistas que quase 60 mil homens estão às portas de Kherson e a evacuação de civis, por parte das tropas russas, significa que a cidade deve estar por horas.

    Em determinados momentos deste conflito, achei mesmo que a diplomacia acabaria por resolver a coisa. Neste momento, a escalada é de tal forma grave que não consigo ver um fim para a guerra.

    O apoio à Ucrânia à custa do empobrecimento está para durar e russos a largarem territórios é um cenário que se vê de século a século. Portanto, estamos naquele momento de impasse no diálogo em que a única garantia é que continuarão a morrer jovens russos e ucranianos, com ou sem armas nas mãos.

    Falava com um amigo, já reformado, que me dizia com toda a honestidade que estava pouco interessado no destino do Donbass. A frase dele foi, literalmente: “nem sei bem onde fica aquela merda”, e acrescentou: “mas o Putin ainda é pior que o Zelensky. Os ucranianos podem respeitar pouco eleições, mas o Putin até as leis do país muda para se perpetuar no poder. É um ditador! Espero que acabe esta aventura a fazer tijolo!”

    rules of third photography of sniper rifle

    Quando lhe perguntei se a guerra devia parar por troca com a diplomacia, disse-me que não. Não podemos discutir com russos que só percebem o som das balas. De modo que, então, pois bem, era de continuar, até dar cabo deles.

    No fim, já meio a rir, lá disse: “não podemos deixar aqueles comunistas virem por aí fora! Além do mais, não tenho créditos bancários, portanto, por mim isto pode durar o tempo que for preciso!”

    Depois de lhe explicar que o Putin não é propriamente comunista, mas sim do outro lado da barricada, fiquei a pensar na honestidade do ancião. A reforma está garantida, detesta o Putin “comunista” e a casa está paga. Os filhos estão criados. Com algum jeito isto até traz alguma excitação à vida e aos debates no café com os amigos.

    Depois pensei no que o meu filho me disse, após me ouvir ao telefone com o banco a tentar evitar uma subida para mais do dobro na taxa de juro do nosso crédito à habitação. “Não te preocupes pai, se tivermos de vender a casa não há problema. Eu compreendo.”

    De facto, ele compreende. Tem uma curiosidade pelo mundo que o rodeia, e faz-me perguntas sobre tudo, desde que me lembro. É aluno de “A” em temas de política, e discute, quase diariamente comigo, as possíveis soluções para a situação da Ucrânia. Não concordamos em tudo o que me agrada, e ele já partilha opiniões que me fazem pensar.

    four children standing on dirt during daytime

    Mas aquilo que me espantou foi ver uma criança disposta a sair do bairro onde viveu toda a vida, onde tem os amigos e a escola, ao perceber a minha angústia com a onda que se abaterá sobre nós. Ele, tal como eu, entende que o fim da guerra virá mais tarde do que o tempo que nos resta do crédito fixo acordado há mais de quatro anos. Nada nos trará imunidade perante a guerra por procuração que se trava na Ucrânia.

    Pergunto-me: porque terá a vida do meu filho de ser alterada por uma guerra que nenhum de nós escolheu, concorda ou apoia? Ou sequer onde nenhum dos países em que vivemos está envolvido? Ou estarão? Já podemos dizer que estamos todos envolvidos nesta guerra?

    Prometi-lhe que faria tudo para que não tivéssemos de vender a nossa casa, mas sinceramente não sei bem como. Tudo escapou da minha mão. A este ritmo de escalada no conflito, dentro de alguns meses teremos sorte se conseguirmos manter os empregos e as fontes de rendimento.

    Voltei a pensar no ancião que clamava por mais bombas e gente musculada que se fosse desancando para entretenimento. Não está só, este meu amigo.

    brown leather Chesterfield sofa

    Quem nada tem a perder, uma família para sustentar ou uma casa para pagar, pode pedir tudo e entrar neste moralismo da solidariedade selectiva que nunca dispensámos a qualquer outro povo invadido.

    Quem não corre riscos, nem sequer o de ter de ir parar ao campo de batalha, pode no conforto do lar exigir as famosas bombas pela paz. Mais, mais e mais…

    Homens na reforma, mulheres, pessoal sem casa própria ou com vencimento dependente do Estado, estão entre aqueles que vou lendo a exigirem mais empobrecimento, mais armas, mais taxas de juro. Tudo, mas mesmo tudo, pelo Donbass.

    Com a nossa inacreditável passividade, a guerra continuará e alguém tratará de ir pagando as facturas.

    Um puto de 13 anos percebeu que a nossa vinha a caminho. Nem tudo é mau, afinal. Ainda vamos a tempo de perceber que esta geração será, provavelmente, bem mais esperta do que a nossa.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As promoções em Portugal 

    As promoções em Portugal 


    Chegar ao topo das carreiras é o objectivo da maioria dos portugueses.

    Pretensão que seria legítima, e de elogiar, se acreditássemos que tal exigiria empenho, talento e muito trabalho.

    Só que, também neste campo, o nosso país é diferente.

    Em Portugal as promoções raramente se fazem por mérito e, no que toca a funcionários do Estado, nunca esse critério é o essencial sendo substituído pela “antiguidade”.

    person standing near the stairs

    As promoções são, na imensa maioria das vezes, automáticas e baseadas nesse único preceito.

    Um funcionário com 10 anos de carreira, por mais calão, incompetente e acéfalo que seja, atingirá primeiro um lugar de chefia do que um outro com oito anos “de casa” e que seja responsável, qualificado e inteligente.

    Vejamos, por exemplo, as nossas Forças Armadas.

    Uma tropa fandanga com 27.741 efectivos.

    Destes, 49% (13.593) são “Praças” sendo que os restantes 51% (14.148) são Sargentos ou Oficiais.

    Os últimos dados, conhecidos, do Ministério da Defesa revelam que estão em efetividade de funções 106 generais, assim distribuídos: cinco almirantes/ generais (quatro estrelas), 20 vice-almirantes/ tenente-generais (três estrelas), 47 contra-almirantes/ major-generais (duas estrelas) e 34 comodoros/ brigadeiro-generais (uma estrela).

    crowd walking at sunset

    Mais, que aos 106 generais em efetividade de funções, acrescem 114 na reserva, dos quais 40 estão na efetividade de serviço. Ou seja, exercem funções.

    Outros países, obviamente menos preocupados com a defesa dos seus territórios, contentam-se com números inferiores. Muito inferiores, alguns deles.

    Vejamos: a Espanha tem 28 generais, a França tem 55, o Brasil tem 100 e a Alemanha, 189.

    O que me deixou boquiaberto foi o número de generais nos Estados Unidos da América: 31!

    Como é que umas Forças Armadas, com 1.390.000 militares, pode ser eficiente com, somente, 31 generais?

    A média é de um general para cada 44.838 militares.

    O mais certo é que nenhum desses generais se venha a cruzar, ao longo da sua carreira, com a maioria dos militares que comanda!

    soldiers in truck

    Já as Forças Militares Portuguesas, com os seus 27.741 efectivos, funcionam como uma família.

    Um general comanda 261 militares. Deve saber o nome de todos.

    Se seguíssemos o péssimo exemplo dos Estados Unidos nem um general poderíamos ter.

    Os nossos 27.000 militares seriam comandados, na melhor das hipóteses, por um major.

    Tentei perceber a lógica da opção dos Estados Unidos.

    A primeira ideia foi a falta de verba para pagar a generais.

    Sei que são caros porque os portugueses custam, ao Estado, mais de 14 milhões de euros anualmente.

    Fui ver o Orçamento que os americanos têm para as suas Forças Armadas: 706 mil milhões de dólares para o ano de 2022.

    Sinceramente, nem sei o que isso significa.

    black and gray canon near body of water during daytime

    Mas acredito que não seja por falta de dinheiro que não aumentam o número de generais.

    Ser militar nos Estados Unidos deve ser deprimente!

    Mas não se pense que é só nesta área que tal acontece.

    Se estivermos atentos veremos que, por exemplo, qualquer quartel de bombeiros tem mais comandantes, segundos comandantes, chefes e sub-chefes do que bombeiros.

    Nas empresas não é diferente.

    A TAP tem 11 administradores – e não 79 como espalharam pelas redes sociais – e 94 aviões.

    A média não está má, pensaríamos, até sabermos que a Lufthansa tem 6 administradores e 763 aviões.

    white and red passenger plane on airport during daytime

    Como toda a gente sabe, os germânicos, com a mania de quererem ser superiores, são capazes de trabalhar oito horas por dia sem uma distração, ou uma pausa para o café, e nem sequer compreendem o que é passar pelas brasas depois de um “almoço de negócios” com um uísque velho, para brindar, no final. 

    Continuam a trabalhar como se estivessem no século XIX.

    Mesmo as nossas micro e pequenas empresas, como diz o “partido das classes trabalhadoras”, são exemplares no modo como tratam os seus funcionários.

    Uma empresa “unipessoal” tem a dirigi-la um “sócio-gerente”.

    Se tiver um funcionário, ele será o “director de vendas”.

    Se tiver dois, o segundo será o “director de compras”.

    Um terceiro ocupará o cargo de “director de recursos humanos”.

    people sitting on chair in front of computer

    Não poder ter um título para poder exibir no cartão de visita é, em Portugal, só por si, motivo para não aceitar um qualquer cargo.

    Eu mesmo estou a pensar, seriamente. em exigir, dada a qualidade das minhas crónicas, o cargo de Director-Adjunto do Página Um (dado o respeito que tenho pelo actual Director não pretendo o seu lugar… ainda).

    Se estão à espera que passem dez anos para chegar a sub-chefe de redacção, estão muito enganados…

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


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  • É tempo de ir para a rua 

    É tempo de ir para a rua 


    Quando ouvi António Costa a anunciar as linhas gerais do Orçamento de Estado fiquei com alguma expectativa. Escrevi, nessa altura, que o cálculo da inflação parecia muito optimista, mas a subida do salário mínimo para 900 euros, num espaço de três anos, mostrava alguma abertura ao diálogo.

    Quando Medina assumiu as rédeas da apresentação, no dia seguinte, já fiquei mais inseguro. Por um lado, ele anunciava protecção às famílias com créditos à habitação, enquanto, ao mesmo tempo, dizia que os bancos apenas seriam obrigados a responder a pedidos de renegociação de crédito. Ora, uma “obrigação de responder” é uma mão cheia de nada e limitar-se-ia a confirmar, por escrito, o futuro das famílias.

    Fernando Medina, ministro das Finanças, a entregar formalmente o Orçamento de Estado para 2023 ao presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva…

    A banca continuaria protegida. À medida que toda a Oposição foi detalhando o Orçamento, ficou mais claro o que ali estava. E se dúvidas tivesse, ficaram desfeitas com a rapidez com que os patrões chegaram a um acordo na concertação social.

    Alguns produtos alimentícios sofreram aumentos reais entre 9 e 18%. Material escolar subiu em cerca de 16%, combustíveis à volta de 17% e a energia mais de 20%. Portanto, nesse cenário, o acordo significa apenas que os reformados e os funcionários públicos com vencimentos acima do salário mínimo vão, na realidade, perder, e muito, poder de compra.

    Já vários partidos da Oposição se manifestaram contra o Orçamento. Da esquerda à direita, ninguém parece muito interessado em votar a favor, ainda que por razões diferentes. Segue-se o esperado pela parte de quem não assinou este acordo, a CGTP, e a contestação, que agora recomeçou este fim-de-semana, já tem novas datas marcadas. A rua voltará a trazer a voz do descontentamento.

    … e que teve uma inopinada queda em directo para as televisões.

    Se a realidade dos preços mostra que a inflação estimada pelo Governo é um sonho de uma noite de Verão, torna-se relativamente simples perceber que sem aumentos na casa dos dois dígitos, dificilmente a classe média conseguirá recuperar o poder de compra. E quando digo classe média refiro-me a qualquer pessoa que receba 1.000 euros, aquilo a que na Europa do Primeiro Mundo se designa por “pobre”.

    Portanto, já estamos com a fasquia incrivelmente baixa, mas corremos o risco de a ver descer ainda mais. E por lá ficar longos anos.

    Há, no entanto, algumas coisas, raciocínios bastante simples, que favorecem o argumento de quem está na rua a lutar por aumentos reais dos salários. É um facto que os preços aumentaram e que, em virtude disso, não só o lucro das empresas cresceu como, por consequência, o Estado arrecadou um jackpot de impostos à boleia da inflação.

    Portanto, o dinheiro existe, está lá. Saiu em maior quantidade da carteira dos trabalhadores para pagar a escalada de preços, transformou-se em lucro das corporações, e daí passou a imposto extraordinário para o Estado. Certo? Até aqui ainda não precisamos de um Nobel da Economia.

    Agora, o verdadeiro problema começa quando o Governo não quer devolver o que arrecadou, ainda por cima se considerarmos a urgência que as famílias vivem. É que aqui não existem grandes hipóteses para quem quer manter a decência e ajudar os trabalhadores no mundo real, não apenas num mar de intenções escarrapachado num PowerPoint.

    O Governo pode baixar os impostos às empresas e garantir que estas transferem esse dinheiro para os aumentos dos salários, e deve, como empregador que é, usar os impostos extraordinários que recebeu e aumentar os salários dos funcionários públicos, na exacta medida da inflação.

    Ao não fazer, a fundo, nenhuma destas medidas, o que o Orçamento de Estado está a conseguir é, na prática, transferir o dinheiro dos trabalhadores (salários) para o capital (lucros das empresas), e depois a usar os impostos arrecadados para, na melhor das hipóteses, abater dívida pública. Ou, na pior, distribuir pelas clientelas do costume.

    Traduzindo por miúdos, este Orçamento vai empobrecer uma população que já é pobre, vai enriquecer (mais) quem já é rico e vai criar um fundo de maneio bem jeitoso para alimentar a elite que vive na órbita do Estado.

    person holding brown leather bifold wallet

    Ainda por cima, os economistas da praça já nos avisaram que, ao contrário do que nos foi vendido, a inflação não será passageira. Uma vez que a população se reajuste para pagar preços escandalosamente altos, as corporações não os trarão para o valor pré-guerra. Poderão não ficar tão altos como hoje, mas certamente que a adaptação será feita do nosso lado. Os mercados, os famosos mercados, não reduzem preços; quando muito não os aumentam tanto.

    Portanto, quando os funcionários públicos vão gritar para a rua e exigir que o dinheiro arrecadado (a eles) volte em boa parte para eles, estão a assumir uma luta justa, lógica e a única que não nos deixará ainda mais pobres. No fundo estão a disputar uma batalha, esta sim, que diz respeito a todos os portugueses que trabalhem por conta de outrem. Era bom que por uma vez percebêssemos onde devem estar as nossas prioridades.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os muros do medo e da intolerância

    Os muros do medo e da intolerância


    A convicção como fundamento da prova é um assunto muito discutido no direito e teve como grandes opositores os iluministas que entendiam ser esse um abuso do poder dos juízes. “Eu acho que tens cara de ladrão, logo vais preso até se investigar!”

    A prova do crime era livre e arbitrária, e permitia-se que o juiz entendesse como suficiente o que lhe parecia ser, dando origem ao encarceramento ou à limitação de liberdade. A obrigação de fundamentação das provas veio mais tarde, e tornou-se a opção dos países democráticos.

    No pico da crise pandémica, e no advento da coação para silenciar os que pensavam diferente – aqueles que então eram denominados negacionistas ou chalupas; os incrédulos para a Igreja Pandémica, que os entendia como inimigos – valia toda a força discriminatória, e valia o antecipar a pena pelo delito não julgado.

    O pressuposto é o de que a Comunicação Social deve ser um meio de influência, deve cercear garantias, deve ajudar o populismo penal dos novos fascistas que militam nos partidos, nas facções e nas falanges da nova política.

    John Locke (1632-1704) coraria de espanto. Voltaire (1694-1778) rasgaria os seus conselhos aos jornalistas. A pandemia construiu-se de um drama pessoal, com uma banda sonora épica e “amordaçante” que transporta o medo e a insanidade que dele resulta.

    Não somos capazes de controlar o vento, não podemos dominar o mar, não conseguimos destruir o avanço dos vírus e a sua relação com a predisposição genética e a sua incorporação na nossa vida. Devemos e tentamos reduzir o custo do seu avanço, mas o seu percurso é como o do mar que quer levar a praia – leva e depois talvez a deixe regressar.

    abstract painting brick wall

    A pandemia trouxe-nos de volta a 1640, com a acusação fundamentada na convicção. Sabemos pouco de quase tudo e a diversidade de actuações permite-nos contradições chocantes. Sabemos que é a primeira pandemia com preferência pelos ricos, pelos doentes bipolares, pela obesidade (que não controlámos em tempo útil).

    Sabemos que a morte não dizimou as favelas do México, nem de Luanda, nem de Bombaim.

    Sabemos que os resultados da surpreendente Suécia ombreiam, para muito melhor, com os nossos, apesar do que fizemos mais convictamente. A realidade não paga tributo a convicções nem a crenças.

    Sabemos que os jovens do futebol foram testados incessantemente e não conhecemos nenhum caso em cuidados intensivos.

    man in brown coat wearing white face mask

    Sabemos que foi permitido ao Facebook filtrar expressão, invocar verdades como regra de discurso. O fascismo das multinacionais foi pedido e advogado por cientistas incultos; foi júbilo quando taparam a boca a Trump.

    Está legitimado agora pela esquerda o seu próprio silêncio quando o poder mudar de mãos. Aqui bate todo o erro para o qual Agamben, Slavoj Žižek, e vários outros pensadores, têm alertado nesta deriva autoritária que o medo – a emoção primária – justifica.

    Neste contexto se enquadra o discurso que ouço quase de queixo caído aos que querem prender os que recusam vacinas, os que querem cercas sanitário-políticas aos opositores, que pretendem tornar asséptica a vida.

    Embebidos em medo construído por perigosos servidores da convicção como as televisões e alguns jornais, eles defendem obrigações de separação – muros, portanto, legislação penalizadora do incumprimento, a recusa de tratamento em quem não pensa como eles.

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    Não lia nada tão fascista desde a minha infância!

    Amanhã mandam prender os diabéticos tipo II, exigem chicotadas aos fumadores, recusam internamento aos alcoólicos, tudo gente merecedora do castigo por não se absterem!

    Vai ser difícil despir máscaras aos medrosos, aos assustados, aos convencidos. Mesmo se, por exemplo, a realidade numérica diz que morrem três milhões de tuberculose por ano e 2,5 milhões de covid por ano… Vantagem para a tuberculose, e pior ainda foi a enorme vantagem das mortes por doença vascular (AVC, enfarte) no mesmo período.

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Querem saber o que são os impostos? Um assalto!

    Querem saber o que são os impostos? Um assalto!


    Perguntam-me, o que são os impostos?

    Eu digo-vos já: trata-se de um assalto de tais proporções que nem mesmo o mais arguto criminoso seria capaz de conceber tal coisa. A violência estatal sobre o cidadão – ameaçando e coagindo com prisão, multas, penhoras, congelamento de activos… – é infinitamente superior à exercida por um assaltante de pistola em punho. O assalto é permanente, até à morte, uma agressão à propriedade privada sem fim.

    Façamos o seguinte exercício: no final de Agosto de 2022, a receita fiscal e as contribuições para a Segurança Social – sim, são impostos, trata-se de um confisco dos trabalhadores activos a favor dos pensionistas – cifravam-se em 54,3 mil milhões de euros; com o mesmo ritmo mensal até ao final do ano, estima-se que 2022 terminará em 81,4 mil milhões de euros, o que representa 7.900 euros aproximadamente por cada um dos 10,3 milhões de portugueses.

    Imaginemos então que em lugar de pagarmos IRS, IVA, Segurança Social, seja do empregador ou do trabalhador, ISP e mais uma centena de outros impostos, o Estado apenas apresentava uma conta única. No final do ano, com tudo. E assim, no final do ano, uma família de quatro pessoas recebia uma conta 31.600 euros (7.900 × 4)!

    Alguém no seu perfeito juízo imaginaria tal coisa possível? Seguramente uma revolução teria lugar no momento seguinte à apresentação da conta.

    Por isso, tudo é cobrado de forma sub-reptícia.

    As empresas substituem-se aos cobradores fiscais, retendo a colaboradores e clientes uma panóplia de impostos, com os seus representantes legais a serem responsabilizados pela correcta retenção, guarda e entrega ao Estado. Caso não actuem desta forma, correm o risco de calabouço, penhora e o pagamento de pesadas multas, pois, com o ladrão-mor ninguém se mete!

    Quem inventou tal método, em lugar de se aplicar um único pagamento anual num dado mês?  Nada mais nada menos que esse grande “liberal” da Escola de Chicago, Milton Friedman, nos idos anos 40 do século transacto. Aliás, agora compreendemos bem porque tantos políticos o bajulavam: foi o “cozinheiro” para um grande banquete que ainda hoje dura.

    O “contribuinte” – um eufemismo para designar uma vaca cheia de leite – é confundido e enganado da forma mais inventiva possível. Através de um exemplo, vejamos de que forma um assalariado é depenado sem quaisquer contemplações. Na figura seguinte podemos observar que para um salário bruto de 1.500 euros – um milionário nos dias que correm –, o empregador paga 1.856 euros e o colaborador recebe apenas 60% desse valor, ou seja, 1.116 euros, ficando o restante, 40%, para o salteador Estado.

    Incidência de contribuições e IRS num salário de 1.500 euros brutos (casado, com dois dependentes; taxas de retenção de 2022). Análise: Luís Gomes.

    Tudo embrulhado em vários conceitos, tipo “onde está a bolinha”, em que se dá entender que a Segurança Social do empregador é paga por este, enquanto o IRS e a Segurança Social são pagas por este último, quando na prática saem sim 1.856 euros do bolso do empregador, em que 40% é para o bandido e 60% para o trabalhador.

    Tomemos atenção ao seguinte, que é importante: mesmo antes de o trabalhador começar a consumir, terá ainda de pagar IVA, ISP, IMT, IMI. Nada na vida do cidadão escapa a este gigantesco esquema de extorsão: rendimento, consumo, poupança, património, em alguns casos, até a morte.

    Em lugar de uma conversa com um padre, todos os cidadãos no segundo trimestre de cada ano fazem a sua confissão junto do bandido: “Excelência, ganhei tanto, está aqui, envie-me a conta”.

    Em muitos casos, existem tansos que ficam felizes com as “devoluções”, esquecendo-se de que foram assaltados sem apelo nem agravo ao longo do ano. Emprestaram dinheiro ao Estado sem juros. É uma agressão sem fim da privacidade, onde todos os segredos da vida financeira devem ser revelados a burocratas sem rosto.

    10 and 20 euro banknotes

    Para incrementar a confusão, até dizem que os colaboradores do trabuqueiro – vulgo funcionários públicos e políticos – pagam impostos! No nosso exemplo, ao Estado custa-lhe apenas 1.116 euros, enquanto o empregador paga 1.856 euros (mais 66%) por cada funcionário, actuando com uma clara vantagem – para ele é tudo mais barato!

    A manipulação é tal que até nos fazem crer que há uma luta sem tréguas entre “ricos” e “pobres”, em que o sistema tudo faz para “espremer” os primeiros e dar aos segundos, quando, na verdade, o que existe são duas classes: (i) os beneficiários do saque, receptores líquidos de impostos (políticos, funcionários, empresas com licenças do Estado, monopólios públicos, clientela política, reguladores, burocratas…); e (ii) os assaltados, os otários da história. O opróbrio sobre os segundos é total quando tentam evitar o roubo – não pagou impostos!

    A propaganda paga com o fruto do saque até tem o despudor de afirmar que o assalto representa a Civilização! A doutrinação até começa cedo na escola, um dos exemplos é este livro infame, com o título:  A Joaninha e os Impostos!

    woman in white long sleeve shirt kissing girl in white long sleeve shirt

    Aquilo que se deveria explicar às crianças seriam os valores que tornaram a Civilização Ocidental especial: respeito pela propriedade privada, moeda séria e poupança; o que não é consumido da produção do período é dedicado à poupança, servindo para ser aplicada em bens de capital. É isto que torna uma sociedade próspera. Ninguém vai poupar e investir se é assaltado em todas as esquinas. Não é uma casualidade que Cuba, Coreia do Norte e Venezuela sejam uma sociedade de miseráveis; tudo reverte para o assaltante.

    Imaginemos um indivíduo analfabeto numa ilha deserta, sem bens de capital, qual a diferença de produtividade em relação a um engenheiro nessa mesma ilha deserta? Nenhuma. Para produzir bens de capital, como uma cana, uma vara ou instrumentos de caça, o indivíduo tem de recolher alimentos numa quantidade superior ao seu consumo por forma a sustentar-se nos dias em que se dedica à produção de bens de capital. Sem poupança não há civilização. A tributação é a destruição da poupança, impedindo a prosperidade das sociedades e gerando uma montanha de pobres.

    Em relação a Portugal, desde 1973 que a tributação não pára de crescer em percentagem do PIB, enquanto as taxas de crescimento da nossa carteira não cessam de diminuir. Em 1973, o crescimento anual do PIB per capita foi de 11% e o peso das receitas fiscais (não inclui contribuições) no PIB era inferior a 10%; em 2020, em percentagem do PIB, as receitas fiscais eram superiores a 22%, enquanto o PIB per capita decrescia quase 9% em resultado de um confinamento criminoso da população.

    Evolução desde 1973 do crescimento das receitas fiscais (em percentagem) do PIB e do crescimento anual per capita do PIB. Fonte: Banco Mundial. Análise: Luís Gomes.

    Quanto mais pobres, maior a justificação para mais impostos: “temos que redistribuir”, diz-nos o ladrão. “Não se preocupem, pois irei devolver parte do saque pelos famélicos e desfavorecidos, através de serviços ‘gratuitos’ à população”, acrescenta. E muitos, mesmo muitos, acreditam. Estamos na presença de uma população com o Síndrome de Estocolmo: “eles, afinal, até são bonzinhos, vão ajudar os pobres e dar-lhes serviços gratuitos”!

    Esquecem-se é de explicar que a tributação diminui a poupança e a acumulação de capital, impedindo a subida de salários, lucros, oportunidades de investimento e emprego, essenciais à melhoria das condições de vida dos mais desfavorecidos…

    Mas atiram-nos: e então os países escandinavos, onde é tudo uma espécie de “Alice no País das Maravilhas”?

    Como podemos constatar na figura seguinte, até aos anos 50 do século transacto, a Suécia era um país de reduzida tributação, com um capitalismo pujante, tornando-se num dos países mais ricos do Mundo, graças a mercados livres, reduzida regulação e tributação.

    Evolução das receitas fiscais e contribuições para a segurança social em percentagem do PIB na Suécia entre 1860 e 2010. Fonte: Magnus Henrekson e Mikael Stenkula

    Brincar ao socialismo desde então teve consequências nefastas para a Suécia, que desde 1970 apresenta taxas de crescimento ridículas, em que em muitos anos são expressivamente negativas, como em 1977, 1991-1993, 2009 e 2020. Ainda hoje, a Suécia está a viver da prosperidade obtida durante a maior parte do século XX, em particular na sua primeira metade.

    Vamos agora ao “Estado Social”, onde nos prometem a “redistribuição” – apesar de ninguém lhes ter pedido nada –, através de serviços “gratuitos”, como a Educação, a Saúde e as pensões, que são um esquema em pirâmide ao melhor estilo Madoff. Se há coisa que ficou provada com o colapso da União Soviética foi a ineficácia do planeamento central.

    Vamos supor que aplicávamos o actual modelo estalinista da Saúde no sector da alimentação, igualmente “essencial” à população – felizmente, o capitalismo conseguiu praticamente eliminar a fome nas sociedades ocidentais. Teríamos então cantinas públicas, com um único menu, com uma contratação e recrutamento centralizados.

    Evolução (%) entre 1961 e 2020 do crescimento anual per capita do PIB da Suécia. Fonte: Banco Mundial. Análise: Luís Gomes.

    Os cozinheiros, os empregados de mesa, os administrativos, tudo seria contratado por um burocrata sentado num ministério. Estão a ver o desastre que isto seria, certo? Corrupção – não lhes custou a ganhar o dinheiro, as receitas são fruto de um assalto – a rodos, ineficiência e desperdício sem fim. Por que razão vamos achar que isto irá funcionar na Educação e na Saúde? Aliás, durante a putativa pandemia, foi notório o desnorte das baratas tontas que estavam à frente da coisa.

    Para além do “Estado Social”, também temos a “justiça social”, onde se utilizam taxas progressivas nos impostos directos. Onde prefere um assaltante praticar um assalto? A um bairro de ricos ou de pobres? Claro está, a um bairro de ricos.

    Como dizia um membro de um partido trotskista do regime: “Temos de perder a vergonha de ir buscar a quem está a acumular dinheiro”. Há muito que perderam a vergonha, não é de agora.

    Ainda temos aquela expressão altissonante, em particular vindo daqueles que se propõem a “reformar” ou a modificar as leis tributárias: “os impostos têm de ser justos”. Como é que um assalto, uma agressão à propriedade privada, alguma vez pode ser justo?

    close-up photo of assorted coins

    Pergunta-me agora o leitor? Mas está contra qualquer tributação?

    Não, na minha opinião deve existir alguma taxa, paga por todos os cidadãos, que permita garantir que o Estado proteja a propriedade privada (polícia, defesa, notários…) e assegure o cumprimento dos contratos (tribunais). Nada mais.

    Por fim, a assistência àqueles que ficaram para trás, incapazes de se alimentarem e terem um tecto. Numa sociedade livre, sem estar refém de uma classe parasitária, essas pessoas serão uma pequena franja, devendo a comunidade organizar-se para as ajudar. Não é difícil, numa sociedade de mentalidade católica como a nossa, seguramente funcionará.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • Uma viagem rara: da Jordânia à Arábia Saudita – parte II

    Uma viagem rara: da Jordânia à Arábia Saudita – parte II

    O dia amanheceu tranquilo e mal imaginávamos o dia que nos esperava. Adivinhando as dificuldades de entrada na Arábia Saudita, que só abriu portas ao turismo em 2019, um mês antes desloquei-me à sua embaixada em Lisboa. Ninguém me recebeu, mas o segurança deu-me um e-mail para onde poderia colocar todas as questões.

    Enviei um e-mail com os nomes de todos os viajantes, os vistos que iríamos tirar, avisando que tencionávamos passar a fronteira de Tabuque. Só me esqueci de referir que íamos guiando um carro no trajeto.

    Quando alugámos o carro, em lado nenhum perguntava se pretendíamos atravessar a fronteira de um país e, graças às boas relações entre os países, achei que seria pacífico. Só que não!

    A cerca de uma hora da fronteira, um dos carros parou numa aldeia para abastecer, pois já estava com pouco combustível. Ainda gritei: “confirma se é gasóleo ou gasolina”, mas todos concordaram que uma carrinha de 9 lugares funciona a gasóleo…

    Seguimos viagem e, já estávamos a 800 metros da fronteira, quando recebemos uma mensagem a dizer que o carro não andava… Bruxa! A nossa maré de sorte tinha começado. O carro avariou no meio de nenhures, mesmo em frente à única oficina mecânica do deserto.

    Limparam o motor, fizeram todos os truques de magia que só os mecânicos sabem fazer e 1h30 depois tínhamos a carrinha pronta para andar. Otimistas, seguimos confiantes rumo à fronteira, tentando recuperar o tempo perdido.

    Na fronteira, ainda do lado jordano, mas já com véus na cabeça e sem falarmos com os homens, mostrámos toda a documentação, vistos comprovativos de alojamento. Olhando para o carro, disseram: este carro não pode passar. Têm visto para o carro? NÃO TÍNHAMOS!

    Ligámos para a rent a car que nos disse que nenhum carro particular ou alugado podia pedir visto para passar a fronteira. É sempre necessário cruzar a fronteira com um guia ou motorista credenciado e fluente em árabe para nos acompanhar na viagem…

    E agora? Desistir não era opção. Era o ponto alto da viagem, o pretexto para voltar a Petra, mas o objetivo principal. Ao nosso lado, chegou um táxi para passar a fronteira. Rapidamente pedimos ajuda para encontrarmos um táxi, ou melhor, dois.

    Fez uns telefonemas e consegue. “Têm de ir até Ma´na, a 1h30 daqui. Vão encontrar Zaccaria que vos arranja os carros. Vêm de Amã, demoram 2 horas”.

    No caminho, a gasolina era pouca, pelo que optámos por parar num dos postos de controlo da polícia pedindo para nos ajudarem a chamar alguém que pudesse trazer a gasolina. Mais 1 hora de espera. Ali fomos recebidos pelos guardas como visitas. Ofereceram-nos o seu almoço, as suas maçãs. A hospitalidade jordana é única e valorizam a importância dos visitantes para o desenvolvimento do país.

    Chegou a gasolina e seguimos para Ma´na, onde rezávamos para encontrar os nossos motoristas ou quase estarem a chegar. Numa loja – onde não percebíamos bem qual o negócio – orientaram-nos para entrar. Algumas pessoas do grupo estavam a achar o momento estranho. Não falavam inglês, recorriam ao tradutor. Muito difícil, a conversação. Depois de 10 minutos de dialetos, conseguimos falar com alguém do outro lado do telefone e, decorridos 5 minutos de negociação, garantiram-nos 2 carros dali a 2 horas.

    As 2 horas passaram a 3 horas e meia. O cansaço era muito, já tínhamos perdido as atividades pagas na Arábia Saudita e vislumbrávamos cada vez mais longe a chegada.

    Chegou o primeiro motorista que estava com vontade de iniciar a viagem, mas optámos por seguir juntos. Mais 1 hora e eis que chegou o segundo motorista. Tirámos as malas e seguimos viagem. Chegámos novamente à fronteira, onde os guardas admiravam a nossa persistência.

    Horas depois, e já de noite, atravessávamos a fronteira. Os motoristas estavam nervosos, os guardas do lado Saudita não eram afáveis e nem sequer nos olhavam bem. Passámos o primeiro controle e os restantes que culminavam com cães guarda a farejarem as nossas malas.

    Passámos a fronteira. Era tempo de abastecer os carros, comprar chocolates, águas e sumos para nos ajudarem na viagem. A primeira estrada era boa mas a condução na Arábia Saudita é assustadora. Vemos carros em fúria a ultrapassarem pelas bermas, uma condução Fast and Furious nunca vista.

    Parámos em Tabuque e começámos a outra parte da viagem por estradas piores, com sinalética de possibilidade de camelos na estrada. Estávamos de rastos, mas como qualquer deserto, depois de ultrapassado, chegámos ao oásis.

    Mais do que um oásis, chegámos ao Habitas Alula, um hotel destino integrado nas paisagens naturais de Alula. É ali a porta de entrada para Hegra, o mais recente património da UNESCO, a cidade dos nabateus na Arábia Saudita, encontrada em 2008 e que apenas em 2019 abriu portas ao turismo.

    Chegados ao Habitas Alula, foi como se tivéssemos chegado ao paraíso. Para mim, é o melhor exemplo de beleza, conjugando a simplicidade com o luxo da natureza. Um projeto sustentável e o futuro das tendências para a hotelaria que valoriza o lifestyle e a sustentabilidade.

    Habitas, o nome do grupo, significa Casa que é como toda a equipa tentou fazer-nos sentir. A magia das estrelas num céu azul profundo, um calor do deserto e a sensação de que tudo valeu a pena e, sem dúvida, que toda a sincronicidade de acontecimentos foi para nos trazer aqui.

    Acordámos no paraíso. O pequeno-almoço era dos deuses e aproveitámos a piscina mais bonita do mundo e o hotel que mais queria conhecer de sempre. Expectativas? Altamente superadas.

    Era tempo de tentar mais um milagre, pois as tours compradas para a véspera, se não comparecêssemos, não eram reembolsáveis nem reagendáveis. Fui para a recepção. Num país rigoroso e rígido como a Arábia Saudita, tentar apelar à excepção… desconfio que não conheçam a prática do termo.

    Mas no Habitas todos conheciam a nossa história. A equipa uniu esforços para me ajudar a ter o reagendamento da tour em Land Rover Vintage e reembolso das Heli Tours, que apenas operavam de quarta a domingo e, como era segunda, não conseguíamos o reagendamento.

    Durante 1h30 de espera, falei com Rasha Faris que, estando de folga, me deu o conforto de estarem a tentar ajudar-nos. Disse-me que falaríamos com Ahmad Alblawi que, na ausência dela, nos tentaria ajudar com a empresa parceira, para o reagendamento das atividades.

    Ahmad ligou-me, dizendo que precisava de um documento que provasse o problema que tivemos, pois sem prova não aceitariam o nosso pedido. Falámos com o Zaccaria e, milagrosamente, no seu modus lento, em menos de 1 hora, chegou o documento em árabe explicando o sucedido. Li na expressão de Ahmad que, como eu, estava admirado de termos conseguido. Nunca menosprezar um tuga!

    Na recepção, Fahad tratou de nos entreter e fazer com que o tempo de espera não fosse sentido. De 5 em 5 minutos recebíamos café, chá, frutas, sumos, pulseiras, livros. Olhei o relógio e percebi que tinha passado 1 hora e meia.

    Era altura de fazer a visita ao hotel com o diretor, que nos apresentou o conceito e os fatores diferenciadores do Grupo Habitas para os restantes grupos. Terminada a visita, almoçámos junto à piscina e ali recebemos a resposta afirmativa ao pedido para reagendamento da Tour a Hegra.

    Escoltados pelos nossos motoristas, seguimos para o Winter Park, de onde saem as tours. Estava deserto. Apenas os 2 Land Rover vintage à nossa espera. Mais um sonho realizado, imaginando como seria Petra há 30 anos atrás, como Hegra, com muito poucos visitantes.

    A guia fez uma visita muito interessante. Só lhe víamos os olhos, mas adivinhávamos a sua doçura e simpatia.

    Hegra é uma antiga cidade situada a norte de Hejaz, na Arábia Saudita. Dista 22 quilómetros da cidade de al-Ula e está a cerca de 320 quilómetros de Petra, na Jordânia. Em conjunto, as duas localidades são um testemunho histórico da arquitetura dos povos da região, sobretudo os nabateus.

    Na Antiguidade, a região – denominada Hegra, – era habitada pelos tamudis e nabateus. Os monumentos tumulares apresentam inscrições e gravações do século II a.C., sendo que foram construídos até ao século I d.C., pelos nabateus. Outras relíquias da arquitectura histórica da região datam de períodos posteriores, coincindentes com as civilizações tamudi e liã.

    O Sítio Arqueológico de al-Hijr foi declarado Património Mundial, em 2008, tornando-se a primeira localidade na Arábia Saudita a integrar a Lista do Património Mundial da UNESCO.

    Madaim Salé é, a seguir a Petra, considerada o mais importante testemunho vivo da cultura e arquitectura do povo nabateu. Foram descobertos 131 túmulos esculpidos nas rochas, muralhas, torres e várias esculturas, ao longo de uma área de 16 quilómetros.

    Seguimos de coração cheio de regresso à Jordânia para a reta final desta viagem e 10 horas depois chegaríamos ao Kempinski Hotel, no Mar Morto. Ali dormimos nas melhores camas da viagem e, mesmo num sono supersónico, sentimos o conforto da cama e da roupa que a vestia e nos confortava.

    O Kempinski Hotel Mar Morto é um hotel inspirado nos jardins suspensos da Babilónia. Apresenta um serviço irrepreensível. Tem nove piscinas e acesso ao Mar Morto com grande conforto. Aproveitámos todo o dia no hotel. Outra parte do grupo visitou o local de baptismo de Jesus e participou na cerimónia de baptismo no Rio Jordão.

    Foi um momento alto no final desta viagem que trouxe o aconchego que precisávamos, depois de tantas noites mal dormidas e algumas preocupações. Celebrámos mais um final de dia com um bonito pôr-do-sol nas montanhas israelitas, um cenário de sonho e uma paisagem que não dá para esquecer.


    No final do dia, foi tempo de passearmos pela capital, Amã, onde degustámos os doces tradicionais e nos deixámos levar pelos sons e luzes da cidade ao anoitecer. No caminho para o hotel, passámos pela zona nobre e sofisticada: o Boulevard.

    O dia amanheceu e iniciámos a viagem de regresso a casa, já descomprimidos e com pressa de chegar. Mas ainda tínhamos um dia inteiro em Chipre – mais um país para a coleção.

    Ainda no aeroporto de Amã, quando passei o controlo das malas, um polícia chamou-me pediu-me para abrir a carteira. Fez uma série de perguntas sobre as moedas dos nabateus. Queria ficar com uma delas ao que eu disse, prontamente, que não. Chegou a Interpol e, depois, mais alguns polícias. Perceberam que o horário do voo estava a aproximar-se e pediram o meu número de telefone. Fotografaram a moeda e o meu passaporte.

    Em Chipre, alugámos um carro (parte do grupo regressava via Paris e já não teve tempo de visitar Chipre). Deixámos parte do grupo no Beach Club, onde íamos passar o dia a recuperar as energias, com mergulhos de mar e banhos de sol.

    Seguimos para o Túmulo dos Reis, um parque arqueológico também património da UNESCO, em Paphos, e a apenas 10 minutos da praia onde escolhemos passar o dia.

    Foi um dia de praia muito divertido. A amizade, cooperação e os momentos que passámos e ultrapassámos juntos, fizeram de nós pessoas mais ricas e com a perfeita noção da sincronicidade dos acontecimentos que o Universo tratou por nós, em que tudo acaba bem.

    Que aventura, que viagem! Umas das viagens sem regresso nem repetição.

    Nota: Dedico este artigo a todos e a cada um dos meus companheiros de viagem! Aos beduínos de Petra, em especial Raaed e Ibrahim que trago no coração e que espero continuem a conseguir viver em liberdade e a tornar mágicos os momentos de quem visita a cidade rosa. Dedico também o artigo a Rasha Faris, Ahmad Alblawi, Fahad do Habitas Alula que fizeram tudo para tornar a nossa estadia na Arábia Saudita memorável. Conseguiram!

    Raquel Rodrigues é gestora, viajante e criadora da página R.R. Around the World no Facebook e no Instagram.