Categoria: Opinião

  • Da culpa e da inocência das árvores

    Da culpa e da inocência das árvores


    Espalhadas pelo mundo existem várias árvores mais velhas que este império, mais velhas até que o anterior e o anterior a esse, em silêncio, a observar.

    A casca da velha árvore fica espessa, nesta contemplação, dura, cansada mas firme.

    Quantas guerras já viu a árvore dos mil anos, e que mesmo assim dá fruto?

    girl in pink jacket and pink pants climbing on brown tree during daytime

    Com dois mil trezentos e oito anos, no Sri Lanka permanece uma figueira de nome Jaya Sri Maha Bodhi. Diz-se ter Buda ali atingido a iluminação, enquanto ela lá estava, simplesmente, a observar. A seus pés morreram pessoas, em massacres, como o de 1985, quando uma milícia separatista tentava reagir contra a perseguição da população Tamil no nordeste do país, olho por olho. Hoje a pátria de Jaya tem uma inflação de 73,7%, e na sequência de protestos desesperados, que chegaram a invadir o palácio presidencial, a vida continua, miserável, restando à figueira assistir.

    No Líbano, um olival que se mistifica como a fonte do ramo de oliveira que a pomba devolveu a Noé, conta já mais de cinco mil anos, embora ninguém arrisque ferir as Irmãs para contabilizar a sua real longevidade.

    Quanto já viram e viveram estas oliveiras ao ponto de estarem inscritas no Antigo Testamento? Enquanto isso, hoje o Líbano é flagelado por um surto de cólera, a população encolhe-se há tanto tempo sem rede eléctrica e, após a explosão em Beirute em 2020, ninguém se incomodou de saber ao certo se aquele povo precisava de nós e quem lhe tinha feito tal maldade.

    O Cipreste de Abarkuh, no Irão, com mais de quatro mil anos, que, reza a lenda, terá sido plantado pelo próprio Zaratustra, sentirá o ruído que ecoa da revolta das mulheres que cortam o cabelo em protesto contra a lei sharia, talvez anunciando o secularismo iraniano que a Pérsia não viu, ou talvez servindo de combustível para pavimentar a estrada americana para leste.

    Um teixo em Fortingall, no Reino Unido, conhecido pelo seu veneno, com mais de quatro mil anos estimados de contemplação, e que foi entretanto murado para sua protecção, suspira certamente pela libertação. Enquanto assim está, Assange apodrece na cadeia, perdido num limbo, esquecido por quem serviu.

    Curioso como um cidadão australiano, de repente, não tem pátria que o defenda. Assistimos que nem árvores imóveis, a tiranos de escalpe na mão, a arfar de regozijo por mais uma opressão enquanto maquinam estratégias que arredondem o gado em direcção ao matadouro em nome de países e muros e campos de girassóis cobertos de neve.

    Venham os discos voadores – e que não saibamos o que é o sabor de sangue e ferro na boca.

    macro shot of brown tree

    Em 1932 iniciaram uma experiência em Tuskegee, no Alabama. Recrutaram centenas de homens afro-americanos que viviam na pobreza, com a promessa de cuidados de saúde gratuitos. O objectivo era, porém, observar o que lhes sucedia em caso de apanharem sífilis que não fosse tratada, muito embora ninguém os informasse desse detalhe. Muitos morreram, provavelmente incontáveis, em troca de uma mão-cheia de nada. Apesar da penicilina estar largamente disponível a partir do final dos anos 40, a sádica experiência durou até 1972. Só se revelou a verdade em 1979. Só foram pedidas desculpas em 1997.

    Nos anos 60 do século XX, alguns cientistas laboravam na teoria do AZT como uma solução para combater alguns cancros, mas a ideia não pegou por falta de eficácia, nem atraiu investimento. Nos anos 80, outros cientistas agarraram a oportunidade da crise do HIV para voltar à carga com este veneno, e utilizaram-no como resposta sem direito a muitas perguntas. De novo, muitos morreram, provavelmente também difíceis de contabilizar, e ainda hoje se tenta raspar a neve destas lápides a ver o que lá está escrito.

    Na mesma época, outros laboriosos cientistas desenvolveram e testaram a tecnologia mRNA. O que queriam ser quando fossem grandes? Os senhores que curariam o cancro.

    man under tree during daytime

    De novo, no cancro não funcionou. Mas recentemente, devem ter ouvido falar, outros agarraram a oportunidade de um vírus respiratório que um morcego a sangrar passou a um pangolim, que depois foi comido numa sopa por um chinês [estou a brincar, mas tomem lá um vídeo todo catita que também foi disseminado em 2020 e as mais recentes correcções).

    As árvores são pilares entre este mundo e outros mundos, entre o que está em baixo, invisível e o que está em cima, inalcançável. No meio podemos nós escavar, ou trepar; nelas temos a certeza de encontrar a raiz das coisas, e do seu fruto, ou sua seiva, poder vir alimento.

    Os outros pilares, os que nós fizemos com grande artifício – a banca, a big pharma, o industrial military complex –, esses, arrasarão todas as árvores pela pura ganância de se manterem a devorar o mundo.

    Que culpa têm as árvores?

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Cemitérios e abandonos

    Cemitérios e abandonos


    Uma realidade que existe em vários países é a da manutenção da posse dos terrenos e o usufruto das construções apenas se se der uso, e este se mantiver digno. Em Portugal, isso aplica-se, por exemplo, nos cemitérios.

    Assim, se possuir um jazigo e não lhe fizer obras, não o limpar, a Câmara Municipal pode retomar a posse e colocar em hasta pública a edificação por cima da terra, pois a terra é sempre da Câmara.

    woman statue near green trees during daytime

    Esta tradição de nunca vender o terreno tem tradição na Holanda e na Inglaterra – e, portanto, terminados os sinais de vida, acrescido um prazo tido por de bom senso, o Estado faz-se gestor de tudo o que está sobre os seus terrenos.

    Esta ideia devia mostrar-se válida também para os terrenos abandonados há décadas – as florestas, os campos, e claro, propriedades espalhadas por todo o Portugal. Devemos acrescentar as edificações herdadas, e sobre as quais as famílias desavindas deixam degradar e que se desfazem sem qualquer resolução.

    Também há os terrenos de instituições do Estado que vão ficando abandonadas. Conheço dezenas de antigos quartéis, escolas decadentes e em estado de vergonha – Anadia é um exemplo maior –, e velhos hospitais, e antigas instalações de colégios.

    Portugal insiste em construir em terrenos nunca antes construídos para evitar as decisões de expropriação compulsiva, ou mesmo a retoma dos terrenos pela governação.

    Às autarquias também compete o levantamento do edificado e o conhecimento dos seus proprietários. E a elas compete notificar os proprietários sobre a degradação e insalubridade. Se não se faz nada por incapacidade financeira, pode-se decretar a venda, ou envolver-se em negociações de parceria. O abandono é intolerável.

    Nos cemitérios, sabe-se que o terreno nunca é pertença do dono do edificado. No final, não é ele realmente dono; é sim usufrutuário sob condições contratuais e de tradição. Todos os anos inúmeros jazigos vão para a hasta pública e são comprados.

    A verdade é que as Câmaras têm departamentos de conservação e organização dos cemitérios que permitem a sua persistência ou muitos eram lugares sombrios e impossíveis para visitas. Nos cemitérios ainda não estão os sem abrigo a fazer companhia aos que dormem a eternidade. Ninguém joga cartas ou fala das janelas, não se pedem pequenos-almoços e não é frequente ver restos de alimentos.

    angel statue

    Porém, infelizmente, os cemitérios vivem a decadência do desinteresse, da falta do valor da tradição e, portanto, estão a empobrecer as suas construções, a perder o emocional e o romântico das obras que durante centenas de anos foram gáudio de famílias abastadas e outras esforçadas. 

    A tradição destas instituições pode ser uma boa estratégia para salvar os centros das cidades, para trazer população para a zona antiga. Portugal precisa de governação que inove, que cumpra com uma visão de navegar ao longe. A política do dono da terra pode ser importante para muitas coisas e há muita experiência que nos vem dos mortos – podia lá eu imaginar!

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As contas de merceeiro do Polígrafo em prol da narrativa oficial

    As contas de merceeiro do Polígrafo em prol da narrativa oficial


    Na passada quinta-feira, o fact-checker (verificador de factos) Polígrafo, financiado a mais de 90% pelo Facebook, escrutinou como verdadeira a afirmação do primeiro-ministro António Costa de que “Portugal desde 2015 até 2019 cresceu em média 2,8% ao ano, sete vezes mais do que nos 16 anos anteriores“.

    Alcandorados a verdade oficial pelas redes sociais, os fact-checkers têm especiais responsabilidades, e, nessa medida, deviam munir-se de maiores talentos do que um simples lápis atrás da orelha e um papel pardo de embrulhar bacalhau, como antes faziam os merceeiros.

    No Polígrafo munem-se, para um caso desta natureza, de um licenciado em Jornalismo (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), pós-graduado em Direitos Humanos (Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra) e mestrando em Ciência Política e Relações Internacionais (Universidade Católica Portuguesa). E ainda de uma licenciada em Direito pela Universidade de Coimbra e pós-graduada em Direito da Comunicação na mesma institução.

    Podia bastar, mas não basta…

    Vemo-nos, por isso, obrigados a escrutinar, primeiro, os jornalistas do Polígrafo, para a seguir determinar se António Costa disse mesmo a verdade, ou se manipulou a estatística para tornar factos numéricos numa realidade virtual que é falsa na essência.  

    Para começar, os jornalistas Gustavo Sampaio e Marina Ferreira começam mal a mostrar os seus dotes de análise. Informam eles que no período em análise o crescimento em cada ano foi o seguinte: “+2,02% em 2016, +3,51% em 2017, +2,85% em 2018 e +2,68% em 2019”, rapidamente concluem: “Média de 2,76%, percentagem muito próxima da que foi indicada por Costa no debate de ontem na Assembleia da República.

    António Costa, primeiro-ministro de Portugal.

    Chumbados logo no primeiro teste. Os estimados jornalistas do Polígrafo deveriam saber que não se aplica uma média aritmética às taxas de crescimento anuais para um dado período, mas sim deve-se calcular o crescimento acumulado, e seguidamente anualizar.

    Como somos pela pedagogia, aqui estão os passos a seguir:

    • em primeiro lugar, calcula-se o crescimento acumulado do período: (1+0,0202) × (1+0,0351) × (1+0,0285) × (1+0,0268) – 1= 11,52%;
    • em segundo lugar, calcula-se a taxa de crescimento composta anualizada para o período: (1+0,1152)0,25-1= 2,764%.
    person using black computer keyboard

    Seguidamente, os jornalistas do Polígrafo partem para a análise dos 16 anos anteriores ao período em causa: “Relativamente aos 16 anos anteriores, como disse Costa, apontando para o período entre 2000 e 2015, verifica-se um crescimento acumulado de 7,15%, o que perfaz uma média de cerca de 0,44%”, escrevem.

    Aqui, para além de voltarem a insistir no erro da média aritmética, que deveria ter sido 0,4469%, em lugar de 0,44% – provavelmente para ajudar o primeiro-ministro –, enganam-se até a definir o período em análise, que deveria ter sido entre 1999 e 2015, e não entre 2000 e 2015 – pois apenas temos 15 períodos, e não 16.

    Eis o cálculo correcto, usando dados do Pordata:

    • em primeiro lugar, calcular o crescimento acumulado do período: (1+3,82%) × (1+1,94%) × (1+0,77%) × (1-0,93%) × (1+1,79%) × (1+0,78%) × (1+1,63%) × (1+2,51%) × (1+0,32%) × (1+0,32%) × (1-3,12%) × (1+1,74%) × (1-1,7%) × (1- 4,06%) × (1-0,92%) × (1+0,79%) × (1+1,79%) -1 = 7,04%;
    • em segundo lugar, calcular a taxa de crescimento composta anualizada para o período entre 1999 e 2015: (1+0,0704)(1/16)-1= 0,426%.

    Em resumo, na comparação entre os dois períodos, ocorreu um crescimento 6,5 vezes superior e não de 7 (2,764% vs. 0,426%), tal como afirmou António Costa.

    Mas, pronto, admitamos que um fact-checker não tenha de ser muito rigoroso, e que a sorte até o tenha bafejado desta vez, dado que o valor da simples taxa aritmética é “quase igual” à taxa de crescimento acumulado anual composta – que notem, não integra a palavra média. Aliás, o valor é “quase igual” exactamente porque não houve grande oscilações na Economia, o que é sobretudo um sinal de estagnação.

    Utilizemos outro exemplo do erro do Polígrafo em usar a média (aritmética) em Economia. Se houver um decréscimo de 10% num ano, seguido de um crescimento de 11%, a média aritmética daria 0,5% por ano, mas a taxa de crescimento anual composta (e bem real) seria negativa em 0,25031%.

    Mas além de tudo isto, um jornalista – e ainda mais um fact-checker – deve sempre questionar o uso das estatísticas que os governantes lhes vendem: por essa razão, no passado, muitos os definiram como o Quarto Poder.

    Vejamos então aquilo que está em causa com os números apresentados pelo primeiro-ministro, sobre os quais o Polígrafo mostrou incapacidade de análise crítica, o que pelo menos recomendaria que estivessem quietos.

    green plant on brown round coins

    Olhemos então o “problema” de outra forma:

    • O crescimento nominal do PIB entre 2015 e 2019 foi de 19,29%, segundo o Eurostat. Ou seja, comparando o PIB a preços correntes, temos 214.374,6 milhões de Euros em 2019 vs. 179.713,2 milhões de Euros em 2015;
    • Seguidamente, apliquemos o deflator do PIB, usado pelo Banco de Portugal, para o período entre 2015 e 2019:  (1+3,3%) × (1+2,4%) × (1+3,4%) × (1+4,2%) -1 = 13,97%
    • Depois, calculemos o crescimento real entre 2015 e 2019: (1+19,29%) ÷ (1+13,97%) -1 = 4,67%;
    • No final, a taxa de crescimento anual composta para o período entre 2015 e 2019: 1,15%;
    • Se aplicarmos o mesmo raciocino para o período entre 1999 e 2015, temos: (i) um crescimento nominal de 50,26% (179.713,2 milhões de Euros vs. 119.603,3 milhões de Euros) e um deflator do período de 26,68%; o que resultaria no crescimento anual composto de 1,07% ao ano.

    Em conclusão, em lugar de 6,5 vezes, já só é um ritmo de crescimento de 1,1 vezes, deitando por terra toda a exuberância do crescimento económico da Geringonça.

    timelapse photo of train

    Afinal, o ritmo de crescimento é de 10% e não de 550%.

    Seria a mesma coisa que nos dizerem que a partir de 100 euros passávamos a ter 650 euros, quando a realidade nos mostrava que só passámos a ter 110 euros. Isto é, a diferença de 540 euros são uma miragem.

    Noutra analogia, é a mesma coisa que Costa dizer-nos que andou a 700 quilómetros por hora quando os outros andavam a 100 – e a verdade mostra-nos que ele andou apenas a 110 quando antes andaram a 100. E enquanto isto, o Polígrafo diz-nos ser verdade que Costa andou mesmo a 700 quilómetros.

    O diabo está nos detalhes. E o Polígrafo vai com eles.

  • As hienas

    As hienas

    O que é bom na nossa absoluta ignorância do Além é que nada nos impede de acreditarmos que, durante esta última semana, num lugar que nenhum de nós pode sequer imaginar, aquela senhora de 93 anos, que morreu aqui em Estremoz, e o homem que vinha de muito longe, ao encontro dela, conseguiram, por fim, encontrar-se. E agora, para serem felizes, têm toda a eternidade pela frente. Passamos a vida a fazer dela um bicho de sete cabeças, mas, honestamente, a eternidade não tem nada de especial. Tem apenas a paz luminosa de nunca precisarmos de estar com pressa…

    Agora, uma coisa é respeitarmos a nossa ignorância do Outro Mundo, e outra, muito diferente, é sermos mantidos deliberadamente na ignorância Deste Mundo. Essa é uma ignorância que toda a gente sabe que se mantém de geração em geração perpetrada pela mão criminosa do mesmo velho bando de hienas que se autoperpetua à custa de milhões de carcaças, porque é a incapacidade de pensar das enormes maiorias que sustenta no poder as minúsculas minorias.

    E, para um bom exemplo de como a Comunicação Social nos vende com grande afinco tudo o que seja jogo sujo de Não Pensar, vamos lá respirar fundo e voltar à morte do pequeno Archie.

    Ora então – coitado do puto, que não há nada de mau de que não tenha sido exemplo – a título de segunda descasca…


    … Ora então muito bem.

    Concluída que está a primeira série de impropérios relativa ao desperdício de informação servido aos portugueses numa bandeja aquando da morte do pequeno Archie, permitido que vos foi respirar fundo e fazer rir os outros com o urso polar de patas para o ar do Mário Castrim, recordemos que a minha primeira descasca teve a ver com a total ausência de debate sobre permitir ou não que existam redes assassinas como o TikTok – e que os pais achem normal deixarem os filhos sozinhos em casa com acesso total àquela arma mortífera.

    Falta passarmos à segunda descasca, tão ou mais grave ainda do que a primeira: ninguém, em canal nenhum, a hora nenhuma, se deu ao trabalho de convidar um bom neurologista, ou qualquer outro bom especialista do cérebro – temos vários, todos muitíssimo bons, e todos de linguagem muito clara quando estão a falar para audiências desprevenidas – que esclarecesse as hostes perplexas sobre se quem tem o coração a bater, mas tem o cérebro morto, está morto ou não está morto.

    Se ao menos toda a gente tivesse ficado esclarecida a este respeito, graças ao jovem Archie evitavam-se, a partir deste Verão, imensas angústias sobre desligar ou não “a máquina”.

    Em poucas palavras, é possível voltar a fazer funcionar um coração morto. Mesmo assim, para que ele continue a funcionar “sozinho”, assim que recomeçar a bater há que ligá-lo à tal “máquina”.

    Mas um cérebro morto, em contrapartida, a partir do momento em que morre, está irremediavelmente morto – e, como é óbvio, o seu portador morre com ele.

    Não era importante ter explicado isto aos portugueses?

    Grandessíssimos cães da pradaria, que deviam estar todos de férias[1].

    Pelo meio de toda a saga melosa do jovem Archie, com os pais sempre a implorarem que não lhe desligassem a máquina porque o seu coraçãozinho continuava a bater, a nossa Comunicação Social ainda teve a baixa moral de fazer aos portugueses mais um desfavor vergonhoso: a lata de equiparar um coração que bate a uma pessoa que está viva. O que não podia ser um erro mais grosseiro[2]. Palavra de honra, é que conversas destas… eu sei que não são…, mas é que PARECEM mesmo, mesmo, e mesmo-mesmo, compostas de propósito para estupidificar ainda mais os espectadores incautos. Que, obviamente, são quase todos. E, à mulher de César, não lhe basta ser honesta.

    É verdade que o coração humano – um dos primeiros órgãos que se formam no embrião, e que, a partir daí, asseguram a possibilidade do seu restante desenvolvimento – nos alimenta, nos oxigena, e nos limpa. Mas o seu mecanismo de funcionamento, que começou muito cedo, estendeu a sua teia de capilares através de todo o embrião muito antes da formação da vasta maioria dos outros órgãos, já está todo formado à nascença, e tem um mecanismo básico de razoável simplicidade – a mesma simplicidade que lhe permitiu manter vivo o embrião, e depois o feto, desde a mais tenra idade do desenvolvimento. É por isso que as manobras de reanimação de um coração que parou de bater são tão simples. É por isso que foi possível oferecer ao nosso grande herói Salvador[3] um transplante de coração, assim como é possível fazer operações de bypass, ou instalar pacemakers; ou, como no caso do Archie, ligar o coração a uma máquina, com a certeza absoluta que essa máquina asseguraria a continuação do seu batimento pelos séculos dos séculos, se fosse caso disso.

    …Pois dar de beber à dor é o melhor…
    Com a maior das modéstias, Clarinha subscreve Amália e a Mariquinhas.
    Note-se que traja, para este momento especial do seu arquetípico
    “e não tenho medo de ninguém”
    o magnífico casaco até aos pés de vison branco, comprado com o dinheiro ganho a escrever quatro versões diferentes do guião de um filme, e magicamente desaparecido aquando de todo o caos que presidiu à sua mudança do Penedo para Xabregas.
    Ninguém, mesmo aqueles de entre vós que possuam um cérebro extremamente criativo, poderá alguma vez imaginar a quantidade de coisas preciosas que desapareceram da minha vida para todo o sempre quando os meus amigos[4] vieram ajudar-me a pôr cremes, bolsas, jóias, calçado, e roupa, dentro dos caixotes mais elegantes e em melhor estado, trazidos diretamente de um gabinete da tropa por um amigo que tinha um irmão militar.
    O contentor onde estavam todas as botas, por exemplo, marchou logo.
    Os casacos compridos e os blusões de camurça tão macia que parecia um pecado, todos eles pendurados dentro de plásticos no armário do meu quarto que era o único que eu trancava… estranho, estranho, é o poder do pecado capital da gula. Desde que dissessem Ralf Lauren, Yves Saint Lauren, Calvin Klein, Versace, Karl Lagerfeld, Donna Karan New York, e até um blazerzinho que eu adorava e dizia Chanel – ainda não era meio-dia e a porta do armário já estava escancarada. Lá dentro, só restavam algumas descobertas felizes das feiras da região.
    Estas pilhagens em massa são organizadas pelo nosso cérebro. Não é propriamente o córtex reptiliano que entende o interesse de um objecto com uma etiqueta a dizer Karl Lagerfeld. Se o córtex reptiliano soubesse ler, claro…

    … … …

    Esta mudança, o meu verdadeiro padrão da pobreza, foi desencadeada pela insolvência, logo seguida, ao fim de trinta anos de paz e amenidade, pela súbita ordem de despejo que a D. Laura decidiu fazer-me chegar por uma advogada “porque ela quer ver se pode subir a renda para o dobro e ganhar muito dinheiro com a casa, compreende, porque, de repente, a vida se tornou muito difícil para todos nós”… e, para completar o quadro, pela expulsão dos meus filhotes da América[5], o que fez de mim, por muitos e bons anos, e literalmente, A MÃE DOS BANDIDOS[6].

    Apesar de todos os esforços e boas intenções do Dick, é evidente que, a bem dizer, curtiram os dois ferozmente a bandidagem lá do sítio, fizeram todos os piores amigos que dois adolescentes estrangeiros conseguem fazer em menos de um mês, engataram miúda atrás de miúda, e chegaram (bem, foi só o Ricky, a quem nós chamávamos desde pequenino, porque estava mesmo na cara, o TRICKY RICKY), a dar-se ao desplante de ir mandar quecas para a cama do Pai, enquanto três “amigos pretos[7]” ficavam a controlar entradas e saídas, enquanto batiam “nuns tambores[8]” a acompanhar “um daqueles raps do Eminem a dizer aquelas porcarias todas sobre a mãe[9]”.

    Passei-me,” continuava ele no Skype, embora já me tivesse contado aquela história várias vezes. “Passei-me. Subi os degraus a correr, entrei no quarto, vi o Ricky com a miúda na minha cama[10], gritei “RICKY!!! WHAT THE FUCK DO YOU THINK YOU’RE DOING?????”, Clarinha, ouve, eu disse mesmo WHAT THE FUCK! E atirei um para cada lado e chamei a polícia. E foram todos presos por B&E, e eu fui com eles para apresentar a minha queixa. E nisto perdi UM DIA INTEIRO. É horrível. Tenho visto muito bem o que é que acontece aos Pais de Filhos Criminosos que são apanhados nesta teia de aranha de Polícia, Prisão, Psicólogo, Papeladas, reuniões de Pais Anónimos…

    Era o maior terror do Dick, ainda eu vivia no Penedo, ainda os nossos filhos estavam de novo na Prisão de Menores, cada vez mais ricos de vender toda a coca limpíssima, que por vezes alguns visitantes insuspeitos lhes passavam nas visitas, aos guardas que depois a vendiam aos presos, e às vezes até ao enfermeiro de serviço, um rapaz sólido como um rochedo mas sempre cansado, porque fazia turnos consecutivos de 18 horas para conseguir amealhar o suficiente para assegurar à noiva o casamento de conto de fadas que ou era mesmo de conto de fadas ou não havia casamento, a certa altura constou que até a namorada se tinha metido no consumo, porque fazia directa atrás de directa para ultimar absolutamente tudo no enxoval perfeito do casal perfeito que eles tinham absolutamente que ser:

    Clarinha, please, tu estás bem a ver a gravidade disto? PEOPLE LOSE THEIR JOBS!!! As pessoas têm que ir a tantas reuniões, a tantas prisões, a tantas identificações, a tentar explicar tantas más intenções, que acabam por ser chamadas à chefia e postas na rua. Entendes? Já vi Pais de Bandidos, como eu, perder os empregos por terem que andar o tempo todo atrás dos filhos!

    Ter que ouvir aquilo era extremamente ofensivo para mim, abandonada à triste vida de Mãe Solteira desde o 11 de Setembro.

    Claro que o Dick nunca perdeu o emprego, pelo amor de Deus. Tinha tenure no Amherst College, um pilar chiquérrimo do ensino superior, onde, entre outras Grandes Figuras, estudou o Príncipe Carlos do Mónaco, visitado pelas duas irmãs na festa que assinala o final de cada ano lectivo, para grande felicidade de todos os rapazes e todos os velhotes presentes. O que a questão do tenure queria dizer era que tinha um contrato para a vida até à idade da reforma, numa posição semelhante à de um catedrático em Portugal. Numa instituição tão perfeitamente Ivy League como o College, tinha de certeza um óptimo ordenado e imensos benefícios colaterais. Francamente. Vir-me chorar no meu ombro que “people lose their Jobs”…

    Há que ter um cérebro absolutamente vivo, e muito bem musculado, para lidar com tudo isto.

    Há que manter o sentido de humor mas ser firme.

    E, antes mesmo de os principezinhos endiabrados desembarcarem em Lisboa, havia que comprar tudo o que eu conseguisse comprar em segunda mão, e arranjar um transporte à altura das minhas posses que a bem dizer não existiam, para pôr a casa de Xabregas toda bonita e nos habituarmos a sermos felizes lá dentro.

    É para momentos destes que precisamos de um cérebro sempre atento, e não propriamente de um coração. Ao coração só se pede que bata. Ao cérebro pede-se que urda estratégias para acolher dois jovens bandidos em casa, e que se vá acertando o rumo dessas estratégias para que tudo acabe por correr em paz, sossego, e muito riso

    É por isto mesmo que o cérebro, ao contrário do coração, tem uma formação e um funcionamento que são tudo menos simples. Muito pelo contrário, são complicadíssimos. E controlam tudo. A porção do cérebro encaixada dentro da nossa caixa craniana rodeia, no chamado lobo frontal que só existe nos humanos[11], a sede da nossa inteligência. O restante conteúdo da caixa craniana prolonga-se por dentro das vértebras, do pescoço ao cóccix, chama-se sistema nervoso central, e assegura o processamento inteligente de todas as informações que recebemos, para que possamos responder-lhes da forma mais correcta possível.

    A partir do momento em que morre toda esta estrutura finíssima, e dificílima de montar (basta pensar na sua subsequente associação a todos os nossos nervos), acabou-se. ACABOU-SE, GAITA. Estamos mortos, mesmo. Um cérebro morto já não volta a acordar, seja por que artes mágicas de que máquina inexistente for. E, quanto mais passarem os dias depois da morte, como no caso de Archie, mais o cérebro degenera.

    Agora.

    É impressão minha, ou teria sido extremamente importante explicar isto a toda a gente, na sequência daquela morte absurda e perante a nossa condenação a vermos a mãe do menino em lágrimas de meia em meia hora? E não era boa ideia, como eu comecei por dizer, que essas explicações fossem prestadas por óptimos especialistas que são também óptimos comunicadores, com muito mais conhecimento de causa na matéria do que eu? E se neste preciso momento caísse um raio em cima da cabeça de todos os directores de informação portugueses?

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Recorde-se, uma vez mais, que era Agosto. A Comunicação Social costuma entrar em parafuso em Agosto, porque é um mês em que nunca se passa nada. Em Agosto, nunca caem DC9s das Turk Ava Yollari. Em Agosto, ninguém tenta disparar contra o Papa. Então e esta história, com tantos ângulos para estudar – não teria sido um enorme bónus para compensar o restante famoso vazio do mês de Agosto? A sério. Eu pasmo.

    [2] Estas pessoas são consensualmente denominadas como “vegetais”, e o termo é duro, mas está perfeitamente correcto. Um vegetal não é um animal. Um vegetal nunca mais fará tudo o que nós fazemos, todos os dias. Se há pessoas que às vezes, miraculosamente, acordam depois de vegetarem depois de dezenas de anos? Há, sim. Mas são milagres. Como tal, são extremamente raros. Significativamente, não chegam a ter expressão.

    [3] O excelente músico e cantor Salvador Sobral não tem culpa nenhuma: era o que as revistas e jornais de baixo nível lhe chamavam nesse Verão.

    [4] Depois nunca mais os vi.

    [5] Apesar de todos os esforços do Dick, a verdade é que naqueles dois anos passaram mais tempo enfiados em casas de miúdas que viviam nos projects a fumar muitos charros e a ouvir muito rap e claro que não só; ou então estavam nas esquinas a distribuir E pelos clientes habituais e a ganhar pipas de massa porque à época o ecstasy ainda era uma invenção recente e até as avozinhas a cair da tripeça, que só se lembravam de violência doméstica, de gajos completamente bêbados ou completamente mocados que as fodiam em pé contra a parede a chamar-lhes todos os palavrões deste mundo, e quando chegavam à parte em que elas eram umas gandas putas que ofereciam aquela cona suja a toda a gente, vinham-se logo e toda a cena nem chegava a durar cinco minutos mas doía muito – alguém se surpreendeu quando, depois de uns belíssimos jogos de sedução do meu mais velho que se sentava todo bonito ao lado delas, a cheirar bem, e lhes falava das coisas boas que a vida tem sempre para nos oferecer, se quisermos procurar e arriscar, subitamente quiseram todas ser felizes e desataram todas a consumir com gosto, por vezes em festas só delas, em casa de uma ou de outra, com bolinhos e licores, e tudo? Claro que não. Às vezes convidavam o meu Mike para tirar a T-shirt (ainda não tinha a tal tatuagem, mas tinha uma musculação perfeita), e dançar para elas. O meu filho delirava com tanta atenção. E pronto, no resto do tempo, estavam na prisão de menores, onde se musculavam até não conseguirem encostar os braços ao corpo, e onde às tantas, o Ricky descobriu a Bíblia e ficou fascinado – fascinado com tanta crueldade, tanta violência, tantas guerras, tanta gente a matar tanta gente de formas tão horrorosas. Até metia medo. O seu figurino perfeito. Começou a falar com o padre da cadeia, que era um evangélico qualquer que tratou de aterrorizá-lo ainda mais. Quando chegou a Lisboa, o Ricky ainda vinha com a Bíblia da prisa. Impressionadíssimo. Passou os nossos últimos anos em família a fazer-me perguntas tremendas. Fiz questão de responder sempre em grande detalhe a todas.

    [6] Todos os que acompanharam a verdadeira loucura da minha vida com os meus queridos leõezinhos que eu adoro, que se foram tornando cada vez mais eficientes na arte de me roubarem tudo o que me restava depois de eu já estar falida e desempregada, quase me imploravam que escrevesse um livro com este título onde descrevesse a minha experiência incrível de viver com dois gangsters do gang da Boavista, considerado (dizem-me os putos com muito orgulho) o mais perigoso de Lisboa. Talvez mais tarde escreva. Mas só se for em colaboração com eles e com o Pai. Na realidade, houve ali umas fases em que se esteve mesmo bué bem. A maternidade foi a experiência mais rica e mais avassaladora da minha vida.

    [7] Não é meu: é o Dick que fala assim. Deveras. Mesmo sendo o americano mais porreiro que eu alguma vez conheci em vinte anos de quotidiano em terra alheia.

    [8] É o Dick a falar.

    [9] À época estes raps do Eminem eram tão conspícuos, e, francamente, tão bem construídos, que ATÉ O DICK sabia que o puto gostava de rap a dizer mal da mãe.

    [10] Grande cabrão. Até senti um nó na garganta. Era a NOSSA cama e era EU que a tinha comprado num mercado de antiguidades mesmo no meio da floresta. Também era EU quem a tinha montado, com a ajuda de um Prof do meu Departamento que adorava bricolage. E MAIS: era EU, sim o MEU dinheiro, que tinha comprado todos aqueles lençóis, edredons, almofadas, colchas, mantinhas, tudo do bom e do melhor, tudo do mais bonito que existisse onde quer que fosse, para dar bons sonhos ao Rei Leão. Agora “A MINHA CAMA”. Filho da puta. Grandessíssimo filho da puta…

    [11] E que foi descoberto por Egas Moniz no início do século XX, embora eu dê explicações e nunca tenha ouvido esta memória da boca de qualquer aluno, nem visto qualquer referência ao nosso Prémio Nobel nos estranhos “Livros de Texto” que agora os obrigam a usar, que eles não conseguem perceber, e que muito provavelmente eu também não conseguiria, se fosse da idade deles.

  • Alemanha: por uma vez, no lado certo da História

    Alemanha: por uma vez, no lado certo da História


    Por estes lados, onde me encontro, diz-se que, se a Alemanha cair, caímos todos. Isto é, se o motor da Europa parar, seguir-se-á o efeito dominó que nos deixará a todos numa situação de instabilidade. Ou mesmo esparramados no chão.

    Nesse sentido, vejo com algum agrado o esforço que a Alemanha faz para manter a sua indústria a funcionar, injectando vários milhões em ajudas para o pagamento das energias.

    França e outros membros da União Europeia ficaram particularmente furiosos com esta atitude individualista do governo alemão, furando directivas europeias e, de certa forma, financiando as vantagens competitivas das suas empresas.

    Bem sei que não estamos habituados a colocar o nosso futuro em mãos alemãs, mas dificilmente alguém, que viva do seu trabalho, poderá criticar as opções do governo germânico.

    De facto, uma coisa é decidir em Bruxelas um pacote de sanções à Rússia; outra, bem diferente, é aguentar a pressão interna quando os custos de produção disparam ou a energia fornecida não chega para os gastos. Os sindicatos na Alemanha não são para brincadeiras e a sua influência nas políticas do trabalho é bem real.

    Portanto, o governo alemão decidiu o seu rumo e ignorou os parceiros europeus. E fez bem. Era o que eu diria se lá vivesse.

    Parte da hipocrisia dos actuais dirigentes europeus passa muito por esta irritação, especialmente dos franceses, com as opções alemãs. Contudo, é bom que compreendamos uma coisa: as sanções não afectaram todos os países da mesma forma. A Alemanha tinha uma enorme dependência do gás russo. Outros países não.

    blue flag on top of building during daytime

    É um pouco como as sanções que agora se impõem ao Irão por causa dos drones fornecidos à Rússia, depois da invasão, em Fevereiro, ter sido executada com equipamento comprado a diversos países europeus.

    Ou seja, nós (europeus) fornecemos parte do armamento utilizado contra os ucranianos. E mesmo durante o período de guerra, financiámos os russos, através da compra de energia. Mas desatamos a distribuir sanções por quem queira fazer semelhante negócio.

    A hipocrisia de quem nos governa chega a ser deprimente. Até na moralidade das negociatas queremos mandar.

    Esta divisão europeia, cedo ou tarde, fará com que o apoio à guerra deixe de ser “as long as it takes”, como a nossa Ursula gosta de repetir.

    A Alemanha é a maior Economia europeia e começa a trilhar o seu caminho. Há mais três ou quatro países com governos de extrema-direita que simpatizam com o regime de Putin. A Europa está dividida e, por mais discursos emproados em Bruxelas que von der Leyen faça, esta é a realidade.

    blue and yellow striped country flag

    Com a ajuda que Lagarde deu ontem – nova subida da taxa de juro –, deu-se mais um passo para o desespero das populações e um afastamento cada vez maior da solidariedade demonstrada quando a guerra só chegava pela televisão.

    Entretanto, passámos a deixar o salário no supermercado, na conta da luz, nos combustíveis e na prestação da casa. Escrevi, há umas semanas, que a preocupação com a guerra dos outros deixa de existir, ou esbate-se na espuma dos dias, quando não sabemos o que meter na mesa para os nossos filhos. Ou sequer sabermos se ainda teremos mesa no dia seguinte.

    Começam a aparecer os primeiros protestos, em diversos países europeus, contra a pobreza a que parecemos estar destinados.

    Ninguém se quer sentar. Ninguém quer falar. Entre quem manda, a guerra parece não trazer dissabores. Putin tem apoio em partes da Europa, em África, no Médio Oriente, na América do Sul e na Ásia. China e Índia não se afastam – e depois do último congresso do partido comunista chinês, houve mesmo um apoio formal à Rússia.

    man in black jacket and black pants carrying black and white backpack walking on sidewalk during

    Mesmo assim, a porta-voz da Casa Branca disse, na última conferência de imprensa, que os russos estão cada vez mais isolados. É uma visão do mundo muito própria consonante com quem chama “world series” à final de um campeonato de basebol entre equipas norte-americanas. É um mapa-mundo muito especial, que começa no Maine e termina na Califórnia.

    O problema é que não é essa a realidade.

    Putin recolhe apoios, forma novas parcerias, garante as ajudas para o “as long as it takes”, versão russa. Tal como Zelensky, que diariamente pede dinheiro à União Europeia e armamento aos americanos. De um lado e de outro há apenas o desejo de continuar e deixar que o Inverno faça o seu trabalho.

    Entretanto, os ucranianos foram mandados para o século XIX e combatem o frio com lenha. Quase 20% da população quer negociações de paz. O recrutamento de mercenários e combatentes estrangeiros tornou-se um negócio próspero. O Kremlim foi bater à porta do regime talibã para pedir chefias militares. O ex-grupo terrorista, que passou a governo amigo quando Biden lhes devolveu o poder, está a dias de voltar a ser um inimigo. A insustentável leveza da hipocrisia nos jogos de poder e do cruzamento de interesses.

    silver and gold round coins

    E como a coisa não está complicada que chegue, Joe Biden achou boa ideia afirmar que queria manter a vantagem militar sobre os chineses. Numa altura em que Xi Jinping deu uma demonstração de poder interno, mudando a constituição para se perpetuar no poder e tornar o seu pensamento doutrina inquestionável, Biden quer levar o Donbass um pouco mais longe e repetir a dose em Taiwan.

    A China – que nunca mudou de regime, note-se – foi um parceiro óptimo nestas últimas duas décadas, produzindo tudo aquilo que a Europa e os EUA precisavam, com mão-de-obra barata. Ninguém quis saber de direitos humanos, de Taiwan ou do Tibete. Ninguém quis saber do regime. Ninguém quis saber da estabilidade, liberdade ou justiça. Quisemos foi produzir os nossos iPhones, aviões, carros e electrodomésticos a baixo custo. Quisemos manter o nosso estilo de vida à custa de trabalho escravo.

    E agora, quando esse regime autoritário continua a ser o que sempre foi, a Europa faz um mea culpa, dizendo que não é um parceiro de confiança. Agora, com o apoio demonstrado a Putin. Agora, com as empresas chinesas espalhadas pelos cinco continentes e investimentos que garantem emprego um pouco por todo o Mundo. Agora, que têm os EUA pelos fundilhos com a dívida externa. Agora, que controlam empresas com monopólios em países europeus e espalharam as suas tecnológicas por toda a Europa. Agora, querem… o quê?

    Este estado de conflito à escala mundial pode ajudar os norte-americanos, que não sofrem com os cortes energéticos e mantêm a máquina de guerra a funcionar, mas pouco ou nada trará de bom ao Velho Continente.

    low angle photo of flag of U.S.A

    Nada temos a ganhar, nós europeus, com a guerra na Ucrânia e muito menos com um alargamento do conflito à China. A cidade onde eu vivo, no mais recente país da família NATO, ficaria com milhares de desempregados se o investimento chinês desaparecesse. Eu seria um dos que iria para a fila do fundo de desemprego. Portanto, quando vejo as elites europeias a brincarem com a pobreza dos seus habitantes e os americanos a meterem em risco os nossos empregos, lamento, mas a minha solidariedade termina. Não é esta a minha luta.

    E por isso compreendo a estratégia do Governo alemão e o seu distanciamento ao suposto alinhamento de Bruxelas. Se os ucranianos fornecem a carne neste jogo de marionetas, o resto da Europa parece querer oferecer a nossa pobreza como contributo para a guerra.

    Não se vê uma estratégia europeia que não seja a de cumprir ordens vindas do outro lado do Atlântico, e chega a ser embaraçoso ver este desempenho dos governantes europeus num momento de viragem histórico. Bem sei que não é Churchill quem quer, mas merecíamos algo melhor.

    Por tudo isto, os alemães fazem o que devem fazer na defesa dos seus trabalhadores. E arrisco dizer que, por uma vez, estão do lado certo da História.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Banco de Portugal e a protecção dos infractores: a imprensa mainstream só denuncia; e o PÁGINA UM é o único que luta contra o anonimato

    Banco de Portugal e a protecção dos infractores: a imprensa mainstream só denuncia; e o PÁGINA UM é o único que luta contra o anonimato


    Esta tarde, o Expresso divulgou que o Banco de Portugal, dirigido por Mário Centeno, multou um banco em um milhão de euros por práticas ilícitas, mas manteve o anonimato do infractor porque este pagou a coima.

    Também hoje, a generalidade dos media mainstream noticiaram que o mesmo Banco de Portugal instaurou, durante o primeiro semestre deste ano, um total de 59 processos de contraordenação a 25 instituições – também todas sob anonimato – que resultaram, maioritariamente, “de indícios de violação de normas em matéria de movimentação da conta de depósito à ordem, de denúncia do contrato de abertura de conta e de bloqueio de instrumento de pagamento”.

    Ainda no ano passado, em 19 de Julho, o mesmo jornalista do Expresso, Diogo Cavaleiro, já referia que 80% das coimas aplicadas pelo Banco de Portugal não tinham a identificação da instituição financeira infractora, destacando que Portugal era o “único [país] que tem condenações sob anonimato no Mecanismo de Supervisão”.

    E, presumo, que em 2023 continuará a fazer o mesmo…

    Os portugueses, como contribuintes, têm aparado, ao longo das últimas décadas, os mais atrozes desvarios financeiros de bancários e seus sequazes, sob a suposta supervisão do Banco de Portugal. A partir da sua torre de marfim – por inépcia, por compadrio ou por irresponsabilidade –, altos funcionários públicos permitiram casos como os do Banco Português de Negócios (BPN) e do Banco Espírito Santo (BES), só para citar os que criaram mais mossa. E aqueles que estão vivos, ainda estão bem e recomendados.

    Perante isto, que devem fazer os jornalistas?

    clear glass bottles on white background

    Fazer como a imprensa, como o Expresso, que, ano após ano, lá vai batendo o ponto, noticiando a falta de transparência assumida pelo Banco de Portugal, protegendo os infractores da censura pública, e convidando-os a continuar a prevaricar, até porque o “valor do crime” compensa as eventuais multas a pagar?

    Ou fazer como o PÁGINA UM que, ao invés dessas “passivas denúncias” da imprensa mainstream, se mune de um espírito de jornalismo interventivo e independente, e com o apoio dos seus leitores, luta – com armas muito desiguais, é certo – para que o anonimato termine, para que o obscurantismo cesse?

    O tempo da simples denúncia tem de terminar. Por isso, em 21 de Julho passado, requeremos formalmente ao governador do Banco de Portugal o acesso integral ao processos de contra-ordenação de 2021 e do primeiro semestre deste ano.

    Como recusou, interpusemos em 25 de Agosto passado uma intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa contra o Banco de Portugal. Nunca nenhum outro órgão de comunicação social defendeu assim o direito de acesso à informação consagrado na Constituição e na Lei da Imprensa.

    brown wooden stand with black background

    E sabíamos o quão difícil seria quebrar este “estado de coisas” até porque o PÁGINA UM não recolhe, compreensivelmente, a simpatia da imprensa mainstream e, portanto, não teríamos a sua “solidariedade”, pelo menos divulgando o nosso acto que seja: o PÁGINA UM surgiu sobretudo porque a imprensa não tem apenas o dever e o direito de informar. Nem apenas de denunciar. Tem o dever de defender a democracia, quer esta esteja ausente; ou apenas presente no papel, mas não nos actos do quotidiano.

    Ainda ontem, nem de propósito, o PÁGINA UM interpôs um recurso para o Tribunal Central Administrativo do Sul. Gastou mais 306 euros em taxas de justiça que seguem para o Estado, porque perdemos na primeira instância. Perdemos na primeira parte, e continuaremos até saber se é lícito pensarmos que vivemos ainda numa democracia em Portugal, ou se o obscurantismo e a protecção de certas elites fala mais alto.

    E recorremos sobretudo porque não ficámos satisfeitos com a sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, no passado dia 10 de Outubro, que determinou que quem tem competência para decidir sobre se os processos de contra-ordenação são ou não consultáveis por um jornalista é o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, sediado em Santarém.

    green plant in clear glass cup

    Está bem de se ver a “estratégia”: não sendo um jornalista uma das partes directas – apenas querendo o acesso público aos documentos administrativos –, e sabendo-se que a esmagadora maioria dos processos de contra-ordenação levantadas às instituições financeiras nem sequer chega ao tribunal (porque os tornaria públicos após o seu término), o juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa – este em particular, pelo menos – quis embrulhar tudo para se manter tudo em contínuo anonimato, em contínuo obscurantismo. O Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão jamais pode determinar o acesso a processos que nem sequer lhe chegaram…

    Além disso, não se poderia ficar indiferente a um preocupante detalhe desta sentença de primeira instância do Tribunal Administrativo de Lisboa: o juiz do processo é casado com um alto quadro do Banco de Portugal, que aliás já foi assessora num ministério. O PÁGINA UM tem, aliás, documentos que provam essa ligação.

    Pessoalmente, já tenho muitas dúvidas de que um tribunal de recurso venha a dar razão ao PÁGINA UM, concedendo-lhe o direito de consultar estes documentos administrativos – que é isso que são os processos de contra-ordenação concluídos em qualquer entidade pública.

    Honeywell home wall appliance

    E se tenho dúvidas não é por duvidar da legalidade ou da justeza dessa pretensão – que, aliás, deveria ser um direito de qualquer contribuinte.

    Tenho dúvidas sim por ter plena consciência de que a luta do PÁGINA UM em prol da transparência será quixotesca, enquanto a imprensa mainstream continuar como anda: papagueando apenas aquilo que o Banco de Portugal e os outros poderes querem mostrar, e pouco mais fazendo do que denunciar, ano após ano, um perpétuo obscurantismo.

    Sem uma “vaga de fundo” da nossa imprensa – que abane consciências –, o pântano que se anda a criar em redor da nossa democracia só nos pode levar ainda mais para o fundo.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Até ao momento, o PÁGINA UM está envolvido em 13 processos de intimação, quatro dos quais em segunda instância, e ainda em duas providências cautelares. Até ao momento foram angariados 11.653 euros, um montante que começa a ser escasso face à dimensão e custos envolvidos nos processos. Na secção TRANSPARÊNCIA começámos a divulgar todas as peças principais dos processos em curso no Tribunal Administrativo. Este processo específico do Banco de Portugal pode ser consultado aqui.

  • Greta Thunberg: o flop da activista pop

    Greta Thunberg: o flop da activista pop


    Dei o benefício da dúvida à sueca Greta Thunberg – ou até mais do que isso –, quando, há quatro anos, começou a dinamizar movimentos sociais de jovens para uma “emergência climática”.

    Que existem impactes atmosféricos e climatéricos das actividades humanas, não tenho já qualquer dúvida. Antes mesmo de se ter tornado uma “moda” e todos se mostrarem muitos crentes, a tal ponto que se tornou uma espécie de “profissão de fé” para muitos, que não fazem mais do que greenwashing. Há muito, desde os anos 90, acompanho este tema, escrevo sobre assuntos ambientais, e sei distinguir o trigo do joio.

    A poluição atmosférica, desde a Revolução Industrial, é uma triste realidade. O incremento da industrialização e do tráfego automóvel é, sobretudo nos grandes centros urbanos, e mesmo em Portugal, uma das principais causas de problemas respiratórias e cardíacos.

    As mortes anuais causadas pela poluição atmosférica – incluindo por partículas finas, por chumbo e outros metais pesados, e ainda por excesso de ozono troposférico como poluente secundário – estão estimadas entre os 5,9 milhões e os 7,5 milhões de pessoas. Se juntarmos a poluição da água e de outros tipos pode-se acrescentar mais dois milhões. Vale a pena ler um artigo de Maio deste ano sobre esta matéria no Lancet Planet Health.

    As alterações climáticas decorrentes das emissões de dióxido de carbono (e de outros gases com efeito de estufa) colocam questões muito mais complexas e heterogéneas, porque nem sempre quantificáveis nem sempre negativas em todos os países, e mais dependentes de vontade dos políticos (e das políticas) do que dos comportamentos individuais. Aliás, não vale a pena mexermos uma palha na Europa, nem apelar a qualquer sacrifício colectivo ou individual, se por exemplo a China (maior emissor de dióxido de carbono) não alterar o seu paradigma energético.

    Por isso, na minha opinião, tem sido contraproducente a monopolização da temática das alterações climáticas no debate científico, e sobretudo político, porque tem menorizado ou relativizado todos os outros, mesmo aqueles que lhe estão intimamente associados. Aliás, com a desculpa das alterações climáticas, enviesa-se a causa fundamental de muitos problemas ambientais, que têm um histórico, radicando especialmente em ineficiência (energética e não só) e má gestão.

    Por exemplo, a escassez de água que Portugal pode vir a atravessar no futuro não advirá apenas dos efeitos das alterações climáticas, mas sobretudo da sua crónica má gestão dos recursos hídricos. Temos o exemplo gritante da péssima gestão dos perímetros de rega em Portugal, de que o Alqueva é um paradigma. Água (quase) de borla é e continuará a ser insustentável mesmo se invertêssemos agora as alterações climáticas.

    O mesmo se aplica ao caso dos incêndios rurais. As alterações climáticas têm vindo, aliás, a servir como bode expiatório da péssima gestão florestal, de um território abandonado, de uma externalização (negativa) dos benefícios sociais concedidos pelos espaços florestais sem qualquer vantagem para os proprietários, e de uma política de status quo na prevenção e combate assente, em Portugal, num obsoleto e ineficaz sistema de pseudo-voluntariado. O nosso país arde em média mais agora do que ardia nos anos 80 do século passado; os outros países mediterrânicos ardem muito menos.

    white and black ship on sea under white clouds

    Também à conta das alterações climáticas, temos agora um lobby dos carros eléctricos, que não passa de uma estratégia de substituição de um modelo poluente por outro um pouco menos poluente (ou com outro tipo de problemas de poluição). A questão da mobilidade e do consumo energético – e da poluição atmosférica e, daí, das emissões de dióxido de carbono – coloca-se ao nível de um novo paradigma de planeamento territorial e de transporte colectivo, mais seguro, fiável e confortável; não muda passando a usar mais carros eléctricos do que a combustão. Não podemos, por exemplo, ter um autarca em Lisboa muito preocupado com as alterações climáticas e nem ser capaz de pôr a funcionar de forma minimamente decente as bicicletas eléctricas Gira.

    E temos agora também, à conta das alterações climáticas, o ressurgimento em força do lobby das centrais nucleares, apresentadas como uma (falsa) panaceia, esquecendo que este tipo de energia apenas produz electricidade, que representa somente cerca de 20% de toda a energia necessária. E que constitui, e constituirá sempre, um perigo em termos de segurança, não apenas por acidentes ou por guerras, mas também pelos resíduos e pela possibilidade dos países produzirem armamento nuclear.

    E, no meio disto, agora, deparo-me com a nossa ressurgida jovem Greta Thunberg a confirmar-se como apenas uma activista pop star, um ícone, uma flor da lapela da irreverência juvenil, sobre a qual os adultos (leia-se, políticos) até apreciam apaparicar… e manipular.

    brown wooden boat on brown sand during daytime

    Estando “apagada” desde 2020, por força da pandemia, vejo que, em dois anos, a jovem Greta cresceu mal. Há cerca de duas semanas, veio ela criticar o encerramento já há muito previsto, após amplo debate, de centrais nucleares na Alemanha.

    Torci o nariz.

    Mas pior ainda fiquei, para a manutenção de qualquer ténue esperança de estarmos perante uma jovem visionária, quando li hoje a sua entrevista no jornal Público.

    Eis ali um completo vazio de ideias, um discurso cheio de chavões e lugares-comuns, sem uma proposta concreta, um rasgo inovador – o que já não se compreende, atendível ao facto de ela ter, certamente, ao fim de alguns anos, uma boa equipa de marketing e de consultores, além de todos os contactos ao maior nível científico e técnico.

    Bem sei que é uma miúda de 19 anos, mas é descoroçoante ler uma entrevista de uma potencial Prémio Nobel da Paz (ou do que se quiser) e ver as suas duas últimas respostas:

    Público – Pensa em ir para a universidade?

    Greta Thunberg – Não sei. Gostaria, mas ainda não sei. Tenho de decidir em breve.

    Público – Seguiria alguma área específica?

    Greta Thunberg – Não sei. Sei que, independentemente do que faça, continuarei a ser uma activista, só resta saber de que forma. Porque a necessidade de termos activistas climáticos não vai abrandar, só aumentará – sobretudo tendo em conta o actual estado do mundo.

    E eu, perante isto, também não sei o que diga mais sobre Greta Thunberg…

    Há, por certo, pessoas mais válidas e com ideias concretas que deviam estar a ser ouvidas. E não estão, porque um ícone pop, um autêntico flop, lhes está a ocupar o espaço mediático. Talvez fosse mesmo bom que a nossa Greta passasse a saber se quer ir mesmo para a universidade e, se sim, qual a área específica.

    Depois sim, pode e deve regressar, com saber, para nos ajudar mesmo a salvar o Planeta – é que o activismo, por si só, é um vazio…

  • O fundo está lá bem no fundo, e ainda não chegou

    O fundo está lá bem no fundo, e ainda não chegou


    Quando vi as imagens de atum protegido por sensores e caixas rígidas, que habitualmente via em iPhones e artigos do género, pensei que fosse uma campanha de marketing da Bom Petisco.

    Convenhamos, seria uma bela tirada de propaganda, elevando o valor de cada lata a algo que deveria ser protegido por um sistema de segurança mais caro que a própria lata.

    Depois de perceber que era real, que, de facto, se gastavam sensores em latas, a minha interrogação foi mesmo para o custo-benefício da operação. Quantas latas é que são precisas nos bolsos alheios para pagar o custo dos sensores?

    Parecia-me uma tentativa de matar uma mosca com um elefante. Mas não. A realidade, aparentemente, não só justifica como ainda poupam dinheiro com os sensores, segundo uma responsável de uma grande superfície que comentava os porquês aos microfones de uma jornalista com a mesma dúvida.

    Aritméticas de gestão à parte, o que isto significa é que estamos perto de bater no fundo. Quando o roubo de bens de primeira necessidade é de tal ordem que justifica este tipo de investimento na prevenção, percebemos que as famílias estão a passar por dificuldades.

    Não seria no entanto preciso chegar ao caso das latas de atum para percebermos isto. A estatística é pública; sabe-se hoje que, segundo dados do Pordata, cerca de 43% da população portuguesa vive em risco de pobreza antes das transferências sociais (pensões, apoios, etc).

    Ou seja, para quem critica o Estado Social e defende um país com menos impostos, menos solidário e sem rede para os mais desfavorecidos, fica a informação de que quase metade da população portuguesa estaria abaixo do limiar da pobreza sem a componente de apoio social.

    Claro que devemos discutir como sair desta situação e conseguir crescimento económico, para que a população não dependa de transferências sociais, mas talvez não seja este o momento.

    Depois de dois anos e meio de pandemia, perda de empregos e direitos fundamentais, seguiu-se uma guerra, inflação, novamente perda do poder de compra, redução de salários e pensões, em simultâneo com uma enorme carga fiscal.

    Portanto, com os jovens diplomados a abandonar o país, os portugueses cada vez mais pobres e o Estado a arrecadar uma fortuna em impostos extraordinários, enquanto a União Europeia investe o futuro de todos numa guerra sem sentido, não sei bem como é que se pode falar na redução dos apoios à população.

    E reparem: os dados do Pordata são de 2020. Ou seja, a situação hoje ainda deve ser bem pior, e é mais ou menos fácil de perceber que o número de pobres cresceu nos últimos dois anos.

    E se a União Europeia aceita dispensar 19 mil milhões de euros para a reconstrução e armamento da Ucrânia, poderá certamente devolver-nos, a todos os europeus, parte dos impostos que a inflação nos leva. Pode aguentar as taxas de juro, pode segurar a voracidade dos bancos, pode aumentar salários na exata medida da inflação. É difícil? Não, não é. São opções políticas.

    Ao contrário do que defendia o Governo do PS, a inflação não será temporária e dificilmente os preços voltarão aos níveis pré-guerra. Não podemos continuar a discutir o Orçamento de Estado ou qualquer política vindoura com base em fundamentos errados.

    Basta ir a um supermercado para ver produtos com aumentos de 15, 20 ou 30% e depois, chegamos a casa, e vemos o Governo a anunciar aumentos de 5% como sendo 1% acima do valor estimado para a inflação. Parece uma conversa de surdos. Ou então uma conversa onde um dos lados assume que do outro estão apenas idiotas. Adivinhem lá qual é o nosso lado?

    Fui muito crítico na altura dos confinamentos, e escrevi, repetidamente, que o Estado Português optava por meter gente saudável em casa, pagando os lay-offs à custa do aumento da dívida. E, na altura, lembro-me de ouvir aquela conversa de que “tínhamos que salvar vidas” (como se dependessem de confinamentos) e que “logo se veria a Economia”. Ora, o que acontece agora é uma consequência directa disso.

    person holding brown leather bifold wallet

    O Governo do PS apresenta agora, orgulhosamente, um orçamento de “contas certas”, ou seja, recusa endividar-se mais, uma vez que passou os últimos dois anos a fazê-lo. Entretanto a inflação comeu o poder de compra e não é possível aumentar salários na mesma proporção porque, como nos explicaram na concertação, há que manter o défice controlado.

    Meus amigos, isto é exatamente uma factura das políticas da covid-19 e um resultado do “a Economia logo se vê”.

    Contribuimos todos para o nosso próprio empobrecimento e ainda batemos palmas à janela.

    José Soeiro, do Bloco de Esquerda, explicou na Assembleia da República, repetindo um número já feito com lego, de que forma o Governo estava a reduzir as pensões dos mais idosos. O caso da redução efectiva das pensões é ainda mais escandaloso porque segue um foguetório onde esta foi apresentada como um aumento, e acabou, como hoje sabemos, num simples corte e, ainda por cima, ilegal.

    Novos ou velhos, com ou sem emprego, hoje a realidade do país é de uma pobreza que já não é envergonhada. É mesmo assumida.

    Mais de três décadas depois de subsídios europeus, conseguimos, ainda assim, não ter produção tecnológica significativa, só apostamos fortemente no turismo e dependemos, quase em exclusivo, dos quadros comunitários de apoio para comer. Somos cada vez mais a República Dominicana da União Europeia.

    textile under the wall mounted hooks

    O jargão “a Economia logo se vê” deveria estar a ser usado agora. Era hoje, e não em 2020, que deveríamos mandar a Economia às malvas e ter folga orçamental para combater o empobrecimento generalizado que está a acontecer à população portuguesa. Ou pelo menos, o Governo deveria conseguir reverter os impostos extraordinários a favor dos salários dos trabalhadores, dos impostos da empresas e das casas das famílias. Era o mínimo decente a fazer. E já nem falo da famosa bazuca, porque essa sabemos estar, desde a sua origem, destinada aos amigos do regime.

    Entretanto, esta semana fizeram-se testes nucleares na Europa, numa “missão de rotina”, que a NATO nos garante ser apenas para rodar os bombardeiros B52 que estavam a enferrujar lá no hangar no Dakota do Norte. Portanto, não só compreendemos que estamos a empobrecer a uma velocidade estonteante como, ao contrário do que escrevi no início deste texto, ainda temos alguma folga até batermos mesmo lá no fundo.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Prender inimputáveis 

    Prender inimputáveis 


    Em primeiro lugar, há que tentar compreender quem, à face da Lei, deve ser considerado inimputável.

    Para haver um crime, a acção que lhe corresponde tem de ser culposa.

    Isto é, deve haver um juízo de censura que se dirige ao autor do crime.

    man in black long sleeve shirt raising his right hand

    Logo, atendendo aos seus conhecimentos e às circunstâncias concretas do crime, este pode ser censurável ou não.

    Ora, o inimputável é aquele que é incapaz de culpa. Ele pratica condutas que não são admitidas pelo Direito – são ilícitas – mas sem culpa.

    O regime da inimputabilidade está previsto nos artigos 19.º e 20.º do Código Penal.

    No artigo 19.º estabelece-se a inimputabilidade em razão da idade: “os menores de 16 anos são inimputáveis” e inclui, para estes, um regime em risco (assistencial) e um outro com medidas tutelares educativas, sem caráter sancionatório, mas antes corretivo.

    O artigo 20.º, por sua vez, consagra a inimputabilidade em razão de anomalia psíquica.

    shade photo of woman

    Essa anomalia tem de impedir o agente de distinguir aquilo que é permitido do que não é permitido (o lícito do ilícito). Ou, conseguindo distinguir, ser-lhe impossível controlar-se e agir de acordo com o que é permitido.

    Em termos de consequências da classificação como imputável ou como inimputável, há que ver a diferença entre penas e medidas de segurança. No Direito Penal, não pode haver uma pena sem que haja culpa; ora, ao inimputável, por ser incapaz de culpa, não pode ser atribuída uma pena.

    Portanto, o ordenamento jurídico-penal, deve limitar-se a aplicar-lhe medidas de segurança.

    Estas não têm como objetivo a punição do autor do delito mas, atendendo à sua especial perigosidade, a proteção da sociedade.

    Assim, o inimputável não pratica crimes, mas tão só ilícitos e devem ser-lhe aplicadas medidas de segurança, e não penas, dado que essas são dirigidas a quem é passível de atuar com culpa (imputável).

    No entanto, qual é a realidade em Portugal?

    O número de camas, nos hospitais psiquiátricos, tem vindo a diminuir, mas o número de doentes mentais não.

    Pelo contrário.

    Portugal tem uma das mais elevadas prevalências de doenças mentais da Europa.

    A par desta constatação surge uma outra que demonstra que há um défice de cuidados acentuado e que perto de 65% das pessoas com perturbações mentais moderadas e 33,6% com perturbações graves não recebem cuidados de saúde mental adequados.

    Resultado provocado por estas duas situações: quem acompanha e trata destes doentes são as suas famílias, ou profissionais em infraestruturas que não estão vocacionadas para o seu tratamento.

    Quando os doentes mentais se tornam perigosos, com agressões a familiares ou amigos, ao ponto de estes terem de ser observados em hospitais, há a obrigação da intervenção das autoridades.

    Os problemas agravam-se, então, sobremaneira.

    woman lying on hallway

    Os relatórios das agressões têm de ser enviados aos Tribunais o que leva, em muitas ocasiões, a que os Juízes decretem o internamente compulsivo desses doentes em hospitais psiquiátricos.

    Dada a falta de vagas nestes, contudo, a opção tem sido, muitas vezes, o “internamento” em prisões.

    Daí que, nas nossas cadeias, haja presos que nunca foram condenados por qualquer delito.

    Os números da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, de 2021, indicavam 183 inimputáveis, com medidas de segurança aplicadas, internados em clínicas psiquiátricas prisionais e 195 em clínicas e hospitais psiquiátricos não prisionais.

    Estar preso por ser doente é algo que ultrapassa tudo o que é admissível e nos deveria envergonhar, a todos, enquanto cidadãos.

    À “APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso” foram relatados vários casos de familiares revoltados com o modo como os seus são tratados pelo Estado.

    Um pai foi agredido pelo filho que lhe fez um golpe, no pescoço, com um “x-ato”.

    Identificado no hospital viu o seu caso levado a Tribunal.

    O Juiz decretou que o jovem fosse internado no “Pavilhão Forense” do Hospital Júlio de Matos. Não havendo vagas foi conduzido ao Estabelecimento Prisional de Lisboa onde ficou mais de três anos.

    O pai diz-se arrependido de ter denunciado o filho.

    E não se pense que estes casos são raros.

    São dezenas de cidadãos nestas circunstâncias em diversas cadeias portuguesas.

    O Estado, incapacitado de os tratar condignamente em hospitais apropriados, opta por escondê-los atrás dos muros das cadeias com gravíssimo prejuízo para eles (que são, diariamente, alvo de todo o tipo de abusos) e dos restantes reclusos, guardas prisionais e funcionários, que podem ser alvo de ataques violentos de quem não se consegue controlar.

    Problemas que, repito, deveriam envergonhar todos aqueles que aceitam estas situações degradantes como se tal não fosse a demonstração mais evidente de vivermos num Estado falhado que despreza aqueles pelos quais devíamos zelar com mais cuidado e de modo prioritário.

    person looking out through window

    E já nem quero perguntar se não estaremos perante uma ilegalidade e uma inconstitucionalidade.

    Temos, agora, como Director-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, um investigador e psicólogo forense, o Prof. Doutor Rui Abrunhosa Gonçalves, com vários trabalhos publicados sobre este tema e conhecido crítico da situação que relatamos.

    Tenhamos, então, esperança numa mais que premente alteração ao actual sistema.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O eclipse do jornalismo ou as fake news virais da Lusa

    O eclipse do jornalismo ou as fake news virais da Lusa


    Há metáforas tramadas. Por exemplo, eclipse.

    A Lusa – sempre a Lusa –, useira e vezeira, em mau serviço público, escreveu ontem sobre um eclipse que seria visto hoje, neste momento que vos escrevo. Erradamente.

    Mal não traria ao mundo se, enfim, mesmo existindo esse mau serviço pago pelos nossos impostos, a imprensa mainstream não fosse preguiçosa e, mais ciosa de cliques do que em informar e diversificar, e não se predispusesse acriticamente a divulgar takes atrás de takes vomitados por esta agência noticiosa do Estado e da Global Media, que são duas entidades que estão bem uma para a outra, para mal dos nossos pecados.

    O eclipse da desgraça do jornalismo português, ou o Sol no bairro da Graça, hoje em Lisboa, pelas 12:43 horas, sem vislumbre de um “anunciado” eclipse.

    Vejamos a tal notícia do eclipse parcial do Sol deste ano, tratada por um take da Lusa, e viralizada pela imprensa mainstream. Pela noite dentro, em cerca de uma hora, o dito take foi copiada pelos principais órgãos de comunicação social, fluindo em títulos e textos similares. Um fartote, ontem à noite:

    O Diário de Notícias, pelas 20:44 horas, titulava: “Eclipse parcial do Sol visível na terça-feira em Portugal se tempo deixar”.

    A Rádio Renascença, pelas 20:49 horas, titulava: Eclipse parcial do Sol visível na terça-feira em Portugal… se o tempo deixar”.

    Transmissão ao vivo do eclipse em space.com,mas não visível em Portugal.

    A TSF, pelas 20:56 horas, titulava: “Eclipse parcial do Sol visível na terça-feira se o tempo deixar”.

    O Observador, pelas 21:40 horas, titulava: “Eclipse parcial do Sol visível esta terça-feira em Portugal. Mas é preciso que as condições meteorológicas o permitam”.

    O Público, pelas 21:42 horas, titulava: “Eclipse parcial do Sol poderá ser visto em Portugal – se o tempo deixar”.

    O Jornal de Notícias, pelas 21:44 horas, titulava: “O último eclipse parcial do Sol de 2022 é esta terça-feira”.

    Em hora indeterminada, mas perto das 22:00 horas, a CNN Portugal titulava: “Vai poder ver em Portugal um eclipse parcial do Sol… se o tempo deixar”.

    Idem, a SIC Notícias titulava: “Eclipse parcial do Sol visível na terça-feira em Portugal”.

    E podia continuar… Houve muito mais a viralizar o infecto take da Lusa.

    Todas notícias iguais. Com variações de palavras no título. Quase sem alterações no conteúdo, remetendo todas até para um site credível de Astronomia, o Space.com.

    Sucede, porém, que todas sem excepção eram completamente falsas. E para confirmar isso bastaria, enfim, clicar no próprio site do Space.com…

    Na verdade, para se conseguir ver em território português este eclipse solar, que está neste momento a ocorrer, não precisaríamos apenas que o São Pedro ajudasse – como até ajudou, porque está um ensolarado dia (escrevo-vos de Lisboa); precisaríamos que, em vez de ter sido Napoleão a invadir Portugal, fosse D. João VI a invadir a França e Paris fosse ainda hoje parte de Portugal.

    E o mais ridículo é que o próprio site referenciado no take da Lusa, e replicado por toda a imprensa mainstream, explicitava de forma taxativa que o eclipse seria visível na Europa, excepto em Portugal. Até um mapa dinâmico mostravam, e até se podia colocar um pin para confirmar se em determinado local seria visível ou não,

    Nenhuma alminha, antes de colocar a notícia no ar, foi confimar a veracidade daquilo que oferecia aos seus leitores. Nem o jornalista da Lusa se deu ao trabalho de entrar no site que referenciou no take. Nem ninguém com responsabilidades editoriais dos outros órgãos de comunicação social foi confirmar.

    Sai na Lusa, sai tudo igual

    Enfim, a Lusa fez (mais) uma fake news. E a imprensa mainstream num par de horas tratou de a viralizar, tornando-a “verdadeira”, mesmo que de forma efémera.

    Mapa do Space.com indicando regiões da Europa onde o eclipse foi visível, podendo obter-se a informação explícita de não ser visível em Portugal.

    De facto, é certo que, com as evidências (não houve eclipse visível em solo português, apesar do céu limpo), e certamente chamadas de atenção de leitores, muitos órgãos de comunicação social foram “corrigindo o tiro”, embora muitos sem assumir o erro, a fake news, que tanto os preocupa mas apenas se forem nas redes sociais e em temas em que se mostram comprometidos.

    Este caso do falso eclipse em Portugal não teria grande gravidade se não fosse paradigmático do clima desbragado de notícias erradas, de autênticas fake news, que grassam diariamente pela nossa imprensa mainstream: incompetente, negligente, preguiçoso, homogénea ou monotemática, sem mostrar competitividade, não se importando de fazer igual aos demais, replicando textos como vírus, independentente de serem verdadeiras ou falsas.

    Fazem tudo isto em conjunto, em manada.

    E com isto eclipsam a sua credibilidade, esquecendo que sendo uma evidência que existem fake news a pulularem nas redes sociais, tal fenómeno se deve ao actual descrédito do jornalismo e dos jornalistas. Por causa de “coisas” como o eclipse.

    Viu-se isso vezes sem conta nos últimos anos, com a pandemia e a forma manipulatória, enviesada, incorrecta e mesmo falsa (por omissão ou de forma explícita) de muitas notícias. Vê-se isso agora, vezes sem conta, com a propaganda em redor de muitos assuntos, desde a guerra da Ucrânia às medidas governamentais, e tendo muitas vezes como rastilho a agência noticiosa do Estado.

    A Lusa faz e a imprensa mainstream transforma-se numa caixa de ressonância que, em demasiados casos, qual Midas, transmuta merda em ouro, mentira em verdade.

    Lamentavelmente, ao contrário do que sucede nos eclipses, que duram poucos minutos, temo que este eclipse do jornalismo perdure, ajudando a corromper a nossa já débil democracia.