Categoria: Opinião

  • Hoje: sem desculpas

    Hoje: sem desculpas


    Passei a manhã toda a ouvir: “às 16 horas, Portugal entra em acção”. Permitam-me discordar.

    Portugal entra em acção todos os dias, entre as 8 e as 9 da manhã, quando cinco milhões de pessoas trocam 8 horas do seu dia por menos do que 900 euros líquidos ao fim do mês. Ou quando um batalhão de professores de português, espalhados pela diáspora, picam o ponto em cada manhã. Ou quando centenas de enfermeiros portugueses entram ao serviço, todos os dias, em hospitais ingleses.

    Ou até, aqui na minha cidade de Gotemburgo, quando largas dezenas de engenheiros, vindos de todas as partes do território nacional fazem mais uma linha de código para desenvolver tecnologia de ponta. São os milhões que trabalham desse lado e os milhões espalhados pelo Mundo que entram em campo, cada dia, para dignificar o estatuto de um povo.

    Mais logo, às 16 horas, em verdade, vão entrar em campo um conjunto de milionários, liderados por outro milionário que, para além de incompetente, gosta pouco de contribuir para o Estado social, já que pagar impostos não parece ser com ele. O futebol move mundos e paixões, mas, aqui e ali, convém não perdermos de vista quem nos realmente representa.

    O meu filho, que passou o dia a gozar com o amigo argentino (acho que desde os 5 anos que discutem quem é o melhor entre Messi e Ronaldo), dizia-me “agora espero que o Fernando Santos não faça asneira”.

    Eu disse-lhe que, com todo o respeito pela selecção do Gana, se uma equipa como a portuguesa não conseguir ganhar à sexagésima primeira classificada do ranking mundial, então é melhor pararem de gastar dinheiro dos impostos e regressarem, sem muito barulho, às mansões de onde saíram.

    Lembrei-me da entrada em competição da selecção de 2002, que também tinha uma geração de ouro no auge da forma, vindos de um europeu magnífico. O tal onde, 20 anos depois, já podemos dizer claramente que o Abel Xavier meteu a mão na bola e ofereceu um penalti a esse rapaz, de bons pés, chamado Zidane.

    Nesse mundial de má memória, a selecção estreou-se com uma derrota contra os Estados Unidos, por 3-2. Um país que até ao presente dia ainda não sabe o nome da modalidade e acha que futebol é uma coisa que se joga com um melão, capacetes e almofadas nos ombros.

    Lembro-me de, no calor da derrota, alguns jogadores dizerem que entraram nervosos pela espera de vários dias. Tinha sido uma das últimas equipas a entrar em campo. Ora, é exactamente a situação da nossa equipa hoje. Uma das últimas a entrar em competição e a ver selecções mais fortes como Argentina, Alemanha, Bélgica, Croácia e até Holanda, em sérias dificuldades frente a adversários mais fracos.

    Quero só dizer que, se a coisa correr mal, não usem essa desculpa. Já tem 20 anos e não envelheceu bem.

    Como qualquer português que gosta de futebol, passei o dia a imaginar o 11 de Fernando Santos. Arrisco o seguinte:

    Diogo Costa, Cancelo, Pepe, Ruben Dias e Nuno Mendes na defesa, Um meio-campo de “segura até não dar mais”, composto por William Carvalho, Ruben Neves e Otávio, com Bernardo Silva e Bruno Fernandes mais soltos a tentarem meter a bola em Ronaldo, o único com apetência no 11 para chegar a um cruzamento, numa equipa que o mais parecido que tem com extremos são os defesas laterais.

    Depois, Fernando Santos dirá a Ruben Neves para evitar remates de longa distância, como aqueles que faz na Premier League, não vá aquilo dar em golo.

    Félix, Rafael Leão, Gonçalo Ramos e todas as opções que existem para tornar esta selecção numa trituradora de ataque, ficarão guardados para queimar tempo aos 83 minutos, quando Portugal estiver a ganhar 1-0, ou para os 60 minutos, caso Portugal esteja a perder por 1-0.

    No meu íntimo, tenho a secreta esperança de, sabendo que esta é a sua última competição à frente da equipa lusa, o nosso Fernando decida arriscar e não ficar na História como o treinador mais medroso que orientou, provavelmente, a melhor e mais talentosa geração de jogadores portugueses de sempre.

    Se ele entrar com Rafael Leão, Ronaldo e Félix na frente, deixando o meio-campo entregue a Bernardo Silva, Bruno Fernandes (ou Otávio) e apenas um trinco, retiro tudo o que escrevi e deixo aqui umas loas amanhã ao nosso engenheiro, que não gosta de impostos.

    Certo, certo, é que, mesmo que a selecção nacional entre em campo com Diogo Costa, Ronaldo e nove trincos, ainda assim, terá a obrigação de vencer a equipa do Gana.

    Diria mais: num grupo com Gana, Uruguai e Coreia do Sul, tudo o que não seja o primeiro lugar, é falhar.

    Já vai sendo altura de cumprirem, no campo, o estatuto que carregam.

    Sem desculpas. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Mortes súbitas? Efeitos adversos? Cancros fulminantes? Eles não querem saber…

    Mortes súbitas? Efeitos adversos? Cancros fulminantes? Eles não querem saber…


    Todos os dias, sou confrontado com alertas, avisos, denúncias, alarmes, suspeitas, receios. Dizem-me que há por aí um aumento de mortes súbitas. Que há um inusitado número de pessoas com problemas cardíacos, mesmo em atletas de alta competição. Que há uma escalada de casos de tumores galopantes e surpreendentemente metastizados. Que há cada vez mais crianças (do sexo feminino, claro) de tenra idade com menstruação. Que há abortos com maior frequência.

    Para todos estes casos, sempre defendo: sempre houve mortes súbitas; sempre houve pessoas com problemas cardíacos, mesmo em atletas de alta competição; sempre houve cancros galopantes; sempre houve meninas com menstruação demasiado precoce; sempre houve abortos.

    gray and brown stones on gray ground

    O problema é que o advérbio “sempre” e o verbo “haver” dizem pouco. Ou nada. Não conseguem quantificar; e a quantificação é a única forma que se tem de avaliar se estamos perante uma anormalidade, quer por défice quer por excesso.

    Que existem sinais, durante a pandemia – e no pós-pandemia – de um excesso de mortes, não parece existir qualquer dúvida. O SARS-CoV-2 desestruturou directa e indirectamente os sistemas de saúde, e a ele já se atribuíram muitas mortes – mais de 6,6 milhões em todo o Mundo em quase três anos e cerca de 25.300 em Portugal –, embora se eternize a discussão sobre se “com” ou “por” covid-19.

    Para mim, cada vez mais, a discussão sobre o impacte da pandemia – e houve uma pandemia – não pode, porém, cingir-se aos impactes directos do coronavírus, mas também à estratégia de gestão política – que inclui, neste âmbito, o próprio processo de aplicação das medidas não farmacológicas – e aqui englobando a decisão de secundarizar o diagnóstico e tratamento das outras doenças – e, de forma indubitável, à própria vacinação.

    Ninguém com um pingo de seriedade e com uma gota de rigor científico pode assumir como hipótese que um excesso de mortalidade advenha, por exemplo, de sequelas da covid-19 – a famigerada long covid – e excluir, em simultâneo, na análise, a hipótese de eventuais efeitos adversos das vacinas contra esta doença ou de impactes da secundarização das outras enfermidades desde 2020.

    man walking on forest

    Aquilo que, verdadeiramente, me irrita no debate sobre as causas do excesso de mortalidade que se vem assistindo desde 2020, é falar-se sem estar disponível informação estatística séria. E ela existe.

    Portugal é, na verdade, um dos países mundiais com maior quantidade e melhor qualidade de informação estatística para apurar, de forma praticamente imediata, as causas para o excesso de mortalidade por faixa etária.

    Tem bases de dados para isso, mas o Governo tudo faz para não as ceder, e mesmo as iniciativas do PÁGINA UM – o ÚNICO órgão de comunicação social que aparenta preocupar-se com isso – têm esbarrado com um muro de silêncio e de obstáculos à transparência que nem os processos de intimação, até agora, têm quebrado.

    E quando digo tem bases de dados, quantifico quantas são: 6 (seis), pelo menos. E vou dizer quais são.

    Vejamos.

    photo of 5-story library building

    Portugal tem desde 2014 o Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), uma base de dados geralmente usada pela comunicação social para relatar o número de óbitos por todas as causas num determinado dia ou período. Porém, esta base de dados incorpora uma riqueza de informação inimaginável, não disponível ao público, como seja a causa de morte atribuída pelo médico legista para cada óbito. Para todos os óbitos. De forma imediata, à distância de um clique, e com a devida anonimização, pode saber-se se existem desvios em qualquer enfermidade, por grupo etário, por região. Tudo.

    Mas a Direcção-Geral da Saúde não quer disponibilizar essa base de dados, nem o Ministério da Saúde deseja usá-la para apurar as causas do excesso de mortalidade, remetendo um estudo para as calendas, como se fossem necessários meses para algo que levaria, numa equipa independente, alguns dias. O PÁGINA UM está, desde há meses, a tentar obter acesso a essa base de dados – protegida por legislação especial –, estando neste momento a decorrer um recurso no Tribunal Administrativo Central do Sul.

    De igual modo, e no que diz respeito ao impacte da covid-19, também o Estado tem disponível o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE), que já existia muito antes da pandemia, e onde estão registados também todos os casos positivos de covid-19, com os respectivos desfechos, bem como informações sobre a vacinação. Também para este caso, a Direcção-Geral da Saúde não quer revelar, e também para este caso decorre um recurso no Tribunal Administrativo Central do Sul.

    person using laptop

    Outra base de dados fundamental é a relativa aos Grupos de Diagnósticos Homogéneos (BD-GDH), que consiste num sistema de classificação de doentes internados em hospitais de agudos, agrupando assim doentes em grupos clinicamente coerentes. Consegue-se assim analisar a evolução dos internamentos por doenças e grupos etários, possibilitando comparações, e identificando assim os desvios mais relevantes em todas as doenças e enfermidades desde 2020.

    Além disso, nesta base de dados pode fazer-se a “prova dos nove” relativamente ao verdadeiro impacte da covid-19 na gestão hospitalar – e até à verdadeira quantificação dos doentes por aquela doença e onde esta teve origem. No entanto, a Administração Central do Sistema de Saúde também não quer disponibilizar esta base de dados, correndo assim mais um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa.

    A quarta base de dados fundamental para avaliar os efeitos da pandemia é o Portal RAM do Infarmed, relativa à notificação de reacções adversas e efeitos indesejáveis de medicamentos, que incluem também, obviamente, as vacinas contra a covid-19. No site do Infarmed diz-se que “o Portal RAM permite a inserção da reação adversa suspeita de forma fácil, acessível e rápida, sem intermediação de terceiros”, colocando uma ligação. Mas a facilidade é só para inserir dados, porque para consultar a base de dados mostra-se mais difícil.

    silhouette of woman holding rosary while praying

    Desde Dezembro do ano passado, o PÁGINA UM tenta obter acesso aos dados detalhados das reacções adversas das vacinas contra a covid-19 (e também do remdesivir), sem sucesso. Nem depois de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos. O processo está no Tribunal Administrativo de Lisboa desde Abril deste ano, onde o Infarmed move mundos e fundos para convencer a juíza a não ceder a possibilidade do PÁGINA UM aceder à dita base de dados.

    Além destas quatro bases de dados, o PÁGINA UM requereu recentemente o acesso a duas outras com informação fundamental: o Registo Nacional de Oncologia e o Registo Oncológico Pediátrico Português. Com a devida anonimização – uma tarefa corriqueira em programas informáticos –, estas bases de dados possibilitam também avaliar desvios na incidência dos diferentes tipos de neoplasias, um ponto de partida fundamental para encontrar causas e debelar efeitos futuros.

    O PÁGINA UM apresentou um requerimento ao Instituto Português de Oncologia – que gere ambas as bases de dados –, mas parece-me quase certo que, pelo comportamento das entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde, o processo acabará também por ser dirimido em tribunal.

    Eis, portanto, por esta amostra – porque existem ainda mais bases de dados – que o problema em Portugal em se desconhecer o que se está a passar não se deve a qualquer tipo de lacuna informativa nem sequer dificuldade de compilação e tratamento de dados.

    sun rays inside cave

    Basicamente, os políticos – e os burocratas da Administração Pública, que os protegem, em vez de protegerem os cidadãos e a nossa saúde individual e colectiva – não estão interessados em saber. Ou melhor, não querem que saibamos.

    Não estão interessados que saibamos se há mesmo por aí um aumento de mortes súbitas. Se há mesmo um inusitado número de pessoas com problemas cardíacos, mesmo em atletas de alta competição. Se há mesmo uma escalada de casos de tumores galopantes e surpreendentemente metastizados. Se há mesmo cada vez mais crianças (do sexo feminino, claro) de tenra idade com menstruação. Se há mesmo abortos com maior frequência.

    Querem os políticos – e os burocratas da Administração Pública – que estejamos e nos mantenhamos na ignorância. Querem que vejamos e aceitemos a perda dos nossos próximos na mais completa ignorância. Querem, enfim, que morramos sem saber, caladinhos, em silêncio. Sem incómodos.

    E porquê? E até quando?

    Até os tribunais começaram a decretar sentenças lúcidas que “convençam” os políticos que vivemos numa democracia?

    Espero que sim; mas espero também que não seja tarde demais para demasiados.

  • No está(ú)dio da Sport TV é mais feijão com arroz

    No está(ú)dio da Sport TV é mais feijão com arroz


    Ao quarto de dia de competição, e no momento em que escrevo, três selecções confirmaram credenciais: Espanha, Inglaterra e França. É certo que nenhum deles defrontou adversários com grandes créditos, mas, ao contrário de Argentina e Alemanha, que também defrontaram equipas teoricamente mais fracas, não deixaram qualquer dúvida sobre quem seria o vencedor.

    A equipa inglesa parece prometer algo mais do que o habitual, dispondo uma geração que foi finalista no último Europeu e acabou o Mundial de 2018 em quarto lugar. Inglaterra é, para mim, um mistério constante nestas competições. Pensar-se-ia que, para quem inventou este jogo, deveria ver o sucesso bater-lhe mais vezes à porta. Mas não. Mais de um século depois, tudo se resume a um Mundial bem “caseirinho”, o tal de 66, e sucessivos falhanços fora dessa bolha.

    Durante muitos anos, as selecções inglesas eram um reflexo do típico jogador inglês: pontapé para a frente e luta pelo ar. Fossem eles do Cazaquistão, e dir-se-ia que era chutão para o ar – mas como em Inglaterra, já se sabe, tudo se faz com algum chá, o estilo era definido por ser um futebol mais “vertical” ou “directo”, como dizia o saudoso Gabriel Alves.

    No fim do século XX – veja-se o Mundial de 98, em França –, a selecção inglesa começou a aparecer com jogadores que não castigavam tanto a bola: Beckham, Ince, Scholes, Owen, McManaman, Fowler, a que se juntou a enchente de dinheiro que desabou na Premier League, fez com que a competição interna inglesa começasse a atrair os melhores jogadores e treinadores do Mundo.

    Há uma clara evolução no jogador inglês, também por essa explosão da Premier League, e hoje, em vez do enfadonho “jogo vertical”, Inglaterra apresenta intérpretes capazes de segurar, rodar, driblar. Aproximou-se dos princípios de jogo que apenas selecções com jogadores mais tecnicistas tinham.

    Hoje, liderados por Harry Kane e com Mount, Foden, Sterling, Saka, Rashford, Alexander-Arnold, Grealish, entre outros, já é outra música. As últimas duas competições mostraram que têm qualidade. Resta saber se conseguirão confirmar os bons indicadores neste Mundial… e mostrarem-nos como é que um país inventa um jogo para apenas o compreender 100 anos depois.

    Entretanto, neste grupo E, e depois da surpresa oferecida pelo Japão – vencendo a Alemanha por 2-1 –, teremos uma segunda jornada explosiva, onde os alemães serão obrigados a vencer a Espanha de Luís Enrique, que joga naquele irritante tiki-taka que já ninguém suporta, mas poucos conseguem contrariar. Num Mundial onde tantos jogadores emblemáticos se despedirão, Manuel Neuer corre o risco de ir bem mais cedo para casa.

    Nestas competições que centram agora a atenção do Mundo, e fazem com que tudo o resto pareça parar (deixei de ouvir falar na Ucrânia), há uma autêntica legião de jornalistas, analistas e ex-jogadores que vão comentando. E noto, por vezes, nos painéis portugueses uma certa arrogância no tratamento aos intérpretes.

    Vejo assim jogadores que tiveram carreiras pouco mais do que medíocres a falarem de quem está entre a elite, e num Mundial, como se soubessem sequer o que aquilo é. E pior: ouço jornalistas a falarem de internacionais pelos seus países com um desprezo que me envergonha.

    Assim, enquanto Espanha triturava a Costa Rica (7-0), via eu, na Sport TV, o Miguel Prates a ir ao Olimpo de cada vez que Busquets ou Gavi tocavam na bola.

    Já quando esta chegava a Azpilicueta, o nosso Miguel dizia: “pois, com Azpilicueta tem de ser mais feijão com arroz” – que é uma forma cool dos comentadores actuais, quando não usam a palavra da moda “diferenciado”, se referirem a um jogador de quem se espera apenas bola no pé, passe simples, recebe e toca. Nada de inventar, porque pode partir um tornozelo.

    Ora… eu acho que é preciso ter mesmo uma falta de noção para estar sentado, num estúdio de televisão, a dizer que outro homem, que por acaso está no 11 de uma selecção como a espanhola, e que há 10 anos é titular do Chelsea (não é do Portimonense), e que ganhou todos os títulos nacionais e internacionais de clubes, é um gajo de “feijão com arroz”.

    A jogar no sofá e a mandar postas de como seria se nos levantássemos, não há pai para nós. Somos “diferenciados” nessa arte. E “verticais”, mas rasteirinhos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Esboço embrionário em envelope lacrado

    Esboço embrionário em envelope lacrado


    Já se encontra no Tribunal Administrativo, entregue em mão em envelope lacrado, o famoso “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”, a peça de elevada Ciência do Instituto Superior Técnico sobre o impacte das festas populares de Junho na mortalidade.

    Cabe agora à juíza do processo saber se o “esboço embrionário” é semelhante a uns rabiscos num guardanapo de papel que, enfim, acabou como notícia alarmista na Lusa (e a viralizar na imprensa mainstream, que o publicou sem nunca o ver), ou se estamos perante um “estudo” (independente da sua qualidade) que deverá ser escrutinado do ponto de vista científico.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes na sede do Ordem dos Médicos, em Julho do ano passado, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico recusa divulgar os estudos e os dados, e tem agora defendido que, em Julho passado, fez apenas um “esboço embrionário”, que foi noticiado pela imprensa mainstream como um estudo científico credível.

    Se o Tribunal Administrativo de Lisboa considerar que se está perante um “esboço”, o PÁGINA UM não terá acesso, mas fica-se a saber que a Lusa fez uma notícia alarmista vendendo a “notícia” como tendo por base um relatório (que não existia), fazendo mesmo supostas citações. E que toda a imprensa mainstream viralizou uma fake news.

    Mas se o “esboço” for afinal uma péssima desculpa para não mostrar um mau estudo científico, então teremos uma excelente oportunidade de esquadrinhar o modus operandi da investigação em Portugal nos estranhos tempos que correm, onde a ausência de rigor e a falta de transparência e humildade convivem com maus cientistas.

    Este caso é exemplar: que saiba, esta será a primeira vez que uma instituição universitária se vê pressionada pela imprensa a prestar contas públicas sobre a qualidade científica daquilo que sai sob sua chancela.

    A questão central, saliente-se, não é a idoneidade do Instituto Superior Técnico; pelo contrário: é em defesa desta instituição que o PÁGINA UM está nesta cruzada.

    Não é aceitável que determinados investigadores, ainda por cima encabeçados pelo seu presidente, usem a credibilidade científica de uma centenária instituição universitária para passarem, activa ou passivamente, informação não validada.

    E ainda mais quando se estava perante um assunto da máxima sensibilidade social. E nem sequer já vale a pena salientar a postura com que os investigadores do Instituto Superior Técnico, e em particular o seu presidente, Rogério Colaço. A indisfarçável soberba com que recusaram prestar quaisquer contas a um jornalista que lhes solicitou provas das conclusões que estavam a circular em nome daquela instituição é o paradigma daquilo que não pode ser a Ciência, daquilo que não deve ser a relação entre os cientistas e a sociedade.

    Note-se que no pedido do PÁGINA UM estão incluídos também os anteriores relatórios do Instituto Superior Técnico desde Junho do ano passado, que nunca foram classificados como “esboço embrionário”; e por isso, independentemente, da decisão da juíza, certamente haverá possibilidade de analisar criticamente os outros relatórios elaborados desde Junho do ano passado em articulação com a Ordem dos Médicos.

    Isto é a democracia a funcionar. E o jornalismo independente e sem medo a trabalhar. Incomoda? Claro. Mas se não incomodasse não seria jornalismo.

  • O bromance e os outros, incluindo o Engenheiro

    O bromance e os outros, incluindo o Engenheiro


    Há uma história ligeiramente hollywoodesca nos bastidores deste Mundial com guião de sonho, escrito para que um dos dois maiores da História da Ludopédia, Cristiano Ronaldo ou Messi, se despeça da elite com o título que lhe falta. O drama está garantido, porque, enfim, não há possibilidade de ex aequo, pelo que, na última oportunidade que a idade lhes proporciona, somente um poderá ser coroado.

    Para os fãs que se dividem pelos dois ídolos – tal como Mundo se dividia em dois blocos na Guerra Fria –, as restantes selecções estão lá para fazer número. Ronaldo e Messi estão ali, e estão ali para encerrar definitivamente o duelo, e assim determinar quem será o number one da História.

    Reconheço ser o bromance mais interessante deste Mundial. E, no plano teórico, Ronaldo parte na frente. Explico porquê.

    Messi é, neste momento, um jogador que ainda faz a diferença em campo. Vemo-lo na selecção e esta época no Paris Saint-Germain. Com Neymar e Mbappé a acompanhá-lo na frente de ataque, tem sido ainda assim Messi a brilhar mais. Na Liga dos Campeões, no Estádio da Luz, foi Messi que marcou o ritmo e a atirou a contar.

    Quanto a Ronaldo, continua a ser o melhor avançado do Mundo, dentro da área, mas já pouco acrescenta à equipa. Mesmo na selecção, onde joga o tempo que quer, tem atrapalhado mais do que ajudado nos últimos meses. No seu clube, o Manchester United, nem vale a pena falar, porque esta época pouco ou nada tem jogado. Independentemente das incompreensíveis decisões de Ten Haag, Ronaldo já não é o que era. É um facto.

    Ainda assim, devo dizer que pertenço ao grupo de portugueses que acha que Ronaldo tem o direito de exigir o seu lugar, mesmo quando o corpo já não ajuda. Eu lembro-me o que eram as presenças em Mundiais e em Europeus antes de Ronaldo e depois de Ronaldo. A memória não pode ser curta ao primeiro trambolhão.

    Fosse o futebol um jogo individual e não teria dúvida que este seria o Mundial de Messi. Contudo, a equipa que estás atrás de Ronaldo é incomparavelmente superior à da Argentina. Ou seja, no papel, se Ronaldo “encostar” nos passes que os outros 10 lhe vão fazer, tem sérias hipóteses de chegar ao ouro.

    Há anos que digo isto e mantenho essa opinião: Portugal tem uma das melhores equipas do mundo. Entre o Euro 2016 e o Mundial 2018, entraram nomes como Ruben Dias, Raphael Guerreiro, Renato Sanches, Bernardo Silva, Cancelo, Gonçalo Guedes, Diogo Jota ou Bruno Fernandes. A que se juntaram mais tarde João Félix, Nuno Mendes, Vitinha, Palhinha, Diogo Costa, Dalot e Rafael Leão. Ficaram veteranos como Ronaldo, Pepe, William ou Danilo.

    No papel, posição por posição, só encontro uma selecção mais recheada – a França – e outras de igual nível – a Bélgica e a Alemanha. Todas as outras são, na minha opinião, piores equipas do que esta geração de jogadores ao serviço de Fernando Santos.

    E é aqui, no treinador, que as outras selecções dificilmente ficariam pior servidas do que a nossa. É este o maior risco para a história de sonho de Ronaldo.

    Portugal tem uma equipa verdadeiramente de luxo, que deveria jogar sempre, mas sempre, a massacrar qualquer adversário, excepcão feita à Franca, Alemanha, Brasil e Bélgica. Contra qualquer outra, a palavra de ordem teria de ser apenas uma: atacar.

    Mas com Fernando Santos, isso não é possível. O seleccionador nacional joga para o empate, para a defesa a todo o custo, para o pontinho ou o milagre do contra-ataque. Entre rezas à santinha e uma fé desmedida no losango defensivo do meio-campo, que o acompanha desde os tempos do Estoril, a capacidade de Fernando Santos em aproveitar a qualidade dos jogadores é quase nula.

    Por isso, e por mais fraco que sejam os grupos de qualificação, consegue sempre ir aos playoffs, onde a sorte o acompanha – a Itália que o diga, que até lhe fez o favor de perder com a Macedónia.

    Foi assim no Euro 2016, onde um golo tardio da Islândia nos colocou na fase seguinte, num grupo absolutamente miserável, onde contra Áustria, Islândia e Hungria, Fernando Santos não conseguiu ganhar um jogo.

    Foi assim na qualificação para este Mundial onde, a ganhar em casa contra a Sérvia, começou a defender aos 50 minutos, acabando por perder no último minuto, seguindo para um playoff que poderia ter corrido mal.

    Foi assim na Liga das Nações contra uma Espanha débil, onde um empate bastaria e onde desistiu de atacar ao fim de 45 minutos.

    Quando vi Diogo Costa a defender quatro penalties seguidos na Liga dos Campeões só imaginei a felicidade de Fernando Santos, a fazer contas aos empates que poderia ter no Catar. Se pudesse, Santos jogaria com Diogo Costa, Ronaldo, quatro centrais e cinco trincos.

    Dito tudo isto, e ainda assim, e com uma equipa tão boa, e mesmo com Fernando Santos a atrapalhar, acho que Ronaldo parte ligeiramente à frente de Messi, nesta corrida a dois.

    E a Arábia Saudita – conhecida ditadura do bem, que já decretou um feriado para o dia de amanhã – parece querer dar-me alguma razão.

    Agora é pedir aos nossos rapazes que ouçam bem, mesmo bem, o que o Engenheiro lhes diz. E depois, façam exactamente o contrário.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Vou boicotar o Campeonato do Mundo de Futebol

    Vou boicotar o Campeonato do Mundo de Futebol


    Finalmente estou de acordo com a imensa maioria do povo português incluindo, obviamente, os experts de Facebook, comentadores de café, taxistas e barbeiros.

    É absolutamente condenável que se aceite que o Qatar – um país que viola constantemente os Direitos Humanos, considera as mulheres como seres inferiores, não admite liberdade sexual e explora os imigrantes – organize um campeonato de futebol.

    Por acaso é o mesmo país que foi visitado por um nosso ministro dos Negócios Estrangeiros numa altura em que fomos mendigar que nos comprassem a nossa dívida soberana.

    woman in white dress standing on gray concrete pathway during daytime

    E também um dos mais visitados por empresários portugueses desejosos de conseguirem ganhar os concursos para construção de empreendimentos megalómanos.

    E ainda aquele que é procurado por centenas de jovens recém-formados, portugueses e de outros países modernos, democráticos e europeus, que o consideram o país ideal para reconhecer os seus talentos e lhes pagarem o valor merecido pelos seus desempenhos.

    Mas isso não é para aqui chamado.

    Independentemente dessas realidades, estou de acordo em que um cidadão consciente não deverá assistir a jogos de futebol em países onde haja tamanho desrespeito pelos verdadeiros valores da democracia.

    Essa chamada de atenção, dos críticos do Mundial em Qatar, funcionou, para mim e para muitos milhares de adeptos do futebol, como uma verdadeira epifania.

    Por mim, já decidi, não tornarei a entrar num estádio de futebol em Portugal.

    Continuarei a apoiar o meu Benfica (tal como continuarei a apoiar a Selecção Nacional), mas agora, depois destes alertas sobre o Qatar, não poderei esquecer os milhares de imigrantes explorados no nosso país, onde trabalham de sol a sol, dormindo em camaratas nojentas, em troca de um salário mínimo, ao qual é descontado o valor da comida e “alojamento”.

    Nem como são qualificados por alguns políticos democraticamente eleitos pelos meus concidadãos, na “Casa da Democracia”.

    Também terei de recordar os números assustadores das mulheres espancadas e assassinadas, em casos de violência doméstica, no nosso país, e, principalmente, as decisões de alguns magistrados que tentam justificar esses actos.

    Mesmo que quisesse – e não quero –, também não esquecerei o “bullying” de que são alvo, desde as escolas, aqueles que têm preferências diferentes no que ao sexo diz respeito.

    Problema que acompanha essas minorias ao longo de toda a vida, independentemente da sua profissão e classe social.

    Ainda há dias um ex-ministro denunciou um Procurador da República que terá afirmado que aquele só estava em liberdade porque o Juiz que tal decidira o fizera por ser gay.

    close-up photography of person lifting hands

    Logo, não merecedor de credibilidade.

    Portugal é, a exemplo do Qatar, um país racista, xenófobo, machista.

    Para mais… pobre.

    Tem todos os defeitos do Qatar, mas falta-lhe o dinheiro para comprar as consciências dos críticos.

    Os dirigentes do Qatar quiseram o Mundial e compraram os votos necessários para tal, há doze anos! Em 2010!

    Durante todo este período, ninguém se revoltou.

    Todos os pequenos sinais de desagrado foram sendo silenciados com centenas de milhares de dólares.

    As obras de construção dos estádios e infraestruturas causaram 15.000 mortos, garante uma Amnistia Internacional que, ao que parece, só soube disso depois de todos os estádios estarem construídos e de todas as empresas construtoras terem recebido as fortunas que cada um deles custou.

    brown game pieces on white surface

    Algumas consciências podem ter sono pesado ao ponto de só despertarem quando as horas de descanso deixam de ser pagas.

    Resta saber se era pior o seu silêncio ou este despertar carregado de hipocrisia.

    A luta contra os males apontados ao Qatar é absolutamente imperiosa e urgente.

    Podíamos começar lutando, no nosso país, contra todos e cada um deles ao invés de nos querermos mostrar superiores.

    Eu próprio, que informo, em título, que irei boicotar o Campeonato Nacional, poderei abrir uma excepção se me oferecerem os bilhetes.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Isto não é o Record. E a moral é para os pobres, também aviso já!

    Isto não é o Record. E a moral é para os pobres, também aviso já!


    O diretor deste jornal acha que não tem sarna suficiente para se coçar e resolveu pedir-me para fazer uma crónica diária sobre o Mundial. Até começar a escrever estas linhas, não sabia de que forma deveria abordar um evento futebolístico num jornal que não pretende rivalizar com o Record (e, ainda bem, digo eu) e uma competição onde, até ver, a bola é mesmo o que menos interessa.

    Ninguém percebe muito bem por que raio se joga um Campeonato do Mundo num país que não respeita os direitos humanos e onde a democracia é um elemento tão estranho como a própria bola.

    Felizmente, eu tenho a resposta: porque eles pagaram para isso; e a FIFA não é – roubando as palavras de Vítor Bento, presidente da Associação Portuguesa de Banco – uma instituição de caridade.

    E, meu caros, sejamos claros: se os qataris compram o Paris Saint-Germain, os emiradenses compram o Manchester City, os sauditas compram o Newcastle e os russos compram o Chelsea, e todos, em tempos diferentes, concorrem em competições da FIFA e da UEFA em desigualdade de circunstâncias com a concorrência, devido à sua capacidade financeira, porque deveria o Mundial ser diferente? O dinheiro tudo compra, a moral é para os pobres.

    Como dizia Lobo Xavier, na SIC Notícias: “não há prova de que tenham morrido 6.500 trabalhadores na construção dos estádios”. Podem ter sido só 6499, acrescentaria eu. Ainda vou investigar se ele também tem umas estufas em Odemira.

    Aproveitando a justa indignação com o evento, sugeria assim que não guardássemos a nossa revolta apenas para o desporto-rei. Tentemos contribuir para o fim da barbárie em intervalos menores do que quatro anos.

    person playing soccer

    E, pensando em países que não respeitam os direitos humanos, ou que não são grandes fãs de democracias, diria que podíamos:

     a) não comprar t-shirts da Adidas feitas no Bangladesh;

     b) não comprar bolas da Nike cozidas por miúdos no Paquistão;

     c) não comprar iPhones porque são feitos na China;

     d) não andar de carro a combustão porque o petróleo veio provavelmente de uma ditadura;

     e) não andar de carro eléctrico porque o lítio foi sacado a uma região pobre deixando os malefícios para os locais; 

     f) não ir de lua-de-mel para a Tailândia;

     g) não comprar copos no IKEA feitos na Turquia;

     h) tomar banho de água fria porque o gás português vem da Argélia;

     i) deixar as especiarias indianas em paz.

    Portanto, é só dar cabo da lista de Natal, mudar hábitos alimentares, voltar a andar de metro e regressar à Moviflor, e a coisa faz-se.

    Depois do dia 18 de Dezembro, o tal em que o nosso Fernando nos prometeu que receberíamos a selecção em festa, há que manter a coerência.

    Feitas as apresentações, falemos de bola então… Mas amanhã…

    Ontem, subiu ao relvado o Qatar e, hoje, no segundo jogo do Mundial, digno de nota só a selecção do Irão a ser trucidada por uma rajada capilar britânica.

    Até ver, não houve grande história para contar, e o único facto de relevo parece ser uma fotografia de um jogo de xadrez entre Messi e Cristiano Ronaldo.

    Que abertura de Mundial teria sido. Mas veio o Morgan, e também foi bom.

    Até amanhã.   

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Eis aqui a verdadeira Nova Ordem Mundial! Na versão boa

    Eis aqui a verdadeira Nova Ordem Mundial! Na versão boa


    Quando entrevistei, recentemente, Michael Levitt, um Prémio Nobel da Química, fiquei sensibilizada com o tom com que falava do seu “novo amigo” John Ioannidis. Os seus olhos brilhavam ao mencionar o seu nome. Alargava-se nos elogios ao epidemiologista norte-americano, o mais respeitado e citado do Mundo. Era como se estivesse a ouvir Michael Levitt numa versão de criança, contagiado de alegria por uma nova amizade. (Talvez não estejamos habituados a ver adultos a falar de forma tão efusiva dos seus novos amigos.)

    Eu compreendo a alegria de Levitt. E desconfio que o leitor também compreende porque, desde 2020, muitos de nós “perdemos” amigos que dávamos como garantidos para a vida, e “ganhámos” novos amigos que parece estarem connosco desde sempre.

    four person hands wrap around shoulders while looking at sunset

    Serão talvez as chamadas “almas gémeas” que se encontraram a partir de 2020, não no sentido amoroso, mas no afectivo e empático: somos do mesmo “planeta”; viemos da mesma “nave”.

    No caso de Levitt e de Ioannidis, são agora parceiros na investigação científica. Mas não só. Partilham agora uma amizade forte, forjada em tempos desafiantes, onde todos fomos testados.

    As amizades forjadas nesta pandemia – em tempos de retrocesso civilizacional, de “guerra” aos humanos e à comunidade, em tempos de censura, desinformação e segregação – ficarão para a vida, suspeito.

    Mas não só amizades. Não são simples amizades, estas que têm sido formadas nos últimos quase três anos. Porque a estas amizades somam-se muitas outras também nascidas na pandemia e que, no seu todo, formam comunidades.

    Ainda esta semana, Aseem Malhotra, um especialista em cardiologia britânico que tem feito uma campanha para suspensão da administração de vacinas mRNA contra a covid-19, partilhou a sua alegria no Twitter, após ter finalmente conhecido, em carne e osso, Ryan Cole, um reputado patologista que tem educado sobre o que as vacinas causam no corpo humano. Ambos têm sido alvo de censura e perseguição, numa altura em que o dinheiro da indústria farmacêutica e dos seus associados – incluindo políticos, grupos de media e tecnológicas – ainda tem algum poder.

    A foto de alegria dos dois, sentados lado a lado, na plateia de uma conferência, em Oslo, na Noruega, dizia tudo. Não necessitava de legendas.

    Pessoalmente, vivi também esta sensação de alegria que se sente ao conhecer pessoalmente alguém com quem se partilha algo importante em comum. Em 2020, escrevia eu nas redes sociais – sobretudo no Facebook e no LinkedIn – sobre o que não batia certo na narrativa oficial sobre a pandemia. Os dados que não estavam correctos, a cobertura dos media mainstream que, além de sensacionalista, era, por vezes, falsa e persecutória. Etc, etc. Assistíamos todos, ao vivo, a crimes a serem cometidos contra a população. Tínhamos de fazer algo, além de escrever e expor os crimes nas redes sociais.

    Conhecer os “colegas” da Plataforma Cívica – Cidadania XXI foi mais do que uma alegria. Foi mágico. Como se estivesse destinado a acontecer. Montar as Tertúlias da Junqueira e moderá-las, semana após semana. Tudo presencialmente, numa altura em que se espalhava medo e até pânico pela população. Mas nunca parámos. Fizemos muitas noitadas. Debatemos, discordámos, rimos. Foi intenso. E foi bonito. Cada convidado que aceitava participar, cada painel que ficava fechado, era como… se algo superior estivesse a operar. Tudo se encaixava.

    Dirão que estou a entrar num registo lamechas. Talvez. Mas não fica por aqui, o meu relato. Recordo também como foi conhecer cada um dos convidados das Tertúlias. Cada um dos que se deslocaram semanalmente ao Vinyl para ouvir o contraditório que não se ouvia em mais lado nenhum, em Portugal, praticamente. Lá, revi amigos que não via há muito. Fiz novas amizades. Algumas são hoje cruciais na minha vida.

    Seguiu-se o Farol XXI. E, claro, o PÁGINA UM com o Pedro Almeida Vieira.

    Posso, hoje, não conseguir dar atenção por igual a todas as amizades novas que fiz desde 2020. Mas são muito especiais para mim. Claro que amizades que já tinha se mantiveram e, algumas, até se reforçaram.

    Mas, para muitos, desde 2020 que se formaram novas ligações afectivas, profissionais. Novas comunidades.

    E era aqui que eu queria chegar.

    No meu caso, da Cidadania XXI ao PÁGINA UM, passando por todos os projetos que outros “colegas” e amigos criaram em defesa da Ciência, da medicina, da democracia, dos direitos humanos e civis, estão formadas diversas novas comunidades.

    Tivemos de criar páginas nas redes sociais e na Internet, tivemos de aderir a plataformas encriptadas como o Signal e o Telegram. Tudo para divulgar e partilhar informação rigorosa e verdadeira, contrariando a propaganda e a desinformação divulgada no mainstream. Uma aventura! O mesmo se vê “lá fora”. Tanto na Ciência, na academia, no jornalismo, na advocacia. Muitas comunidades se formaram. E muitas com base em novas amizades bonitas e fortes que se forjaram.

    person in red sweater holding babys hand

    Mesmo sem a pandemia, e antes da pandemia, já várias comunidades se formavam, indiferentes a Governos, políticas… e a Novas Ordens Mundiais.

    Desde comunidades em torno da permacultura, até a sistemas de ensino focados na natureza e nas crianças e suas diferenças e criatividade, passando por novas formas de “dinheiro”, muitas comunidades se desenvolveram. E cresceram.

    Para mim, só o facto de ter começado a cultivar uma horta – por coincidência, em Março de 2020 –, trouxe-me todo um novo conjunto de amizades boas e bonitas. E, não uma, mas várias comunidades onde hoje me integro.

    Ver nascer novos projetos, novos jornais, plataformas cívicas, grupos de cientistas, de médicos, de professores, … Vislumbra-se o nascimento de um novo mundo. Uma verdadeira Nova Ordem Mundial. Mas na versão boa.

  • Ucrânia: o acordo de paz que só atrapalha

    Ucrânia: o acordo de paz que só atrapalha


    As atenções no conflito ucraniano passam agora para a mesa das negociações e, até nesta temática, conseguimos formar barricadas de opinião. Discute-se sobre quem está de boa-fé ou a quem um acordo de paz não interessa.

    Por vezes, fico com a sensação de que nos embrenhamos tanto num tópico, que acabamos por perder o contacto com a realidade e, sem querer, assumo, estamos a debater a paz como quem troca o Rossio pela Avenida da Liberdade no Monopólio.

    red and yellow abstract painting

    Nesse caso, do Rossio, todos sabem que é mau negócio, mas no caso das conversações de paz, poderíamos baixar o nível de arrogância e tentar vestir a pele de quem está no terreno. 

    Dos vários discursos que ouvi, o prémio “pimenta no cu dos outros é refresco” vai para o major Isidro de Morais Pereira, que anda há seis meses a vender a receita da NATO para conflitos de longa duração. Dizia ele que, neste momento, um acordo de paz não faria qualquer sentido para a Ucrânia, porque, segundo a doutrina dos conflitos, o tempo seria desfavorável aos russos e a iniciativa estava do lado ucraniano. Traduzindo, queria ele dizer que o poder negocial da Ucrânia aumentaria com o tempo e o inverso aconteceria com os russos.  

    Esta é a posição de quem analisa o conflito a 5.000 quilómetros de distância e que, quando chega a casa, vê paredes inteiras, aquecimento e a família dentro de portas. Tenho alguma dificuldade em conceber que quem está na linha da frente, a morrer todos os dias (seja de que lado for), pense lá no seu íntimo que é melhor aguentar mais um mês ou dois a fugir de bombas para o Zelensky ou o Putin terem mais cartas para meter na mesa.

    yellow and red round plastic

    É um pouco aquele pensamento das elites que se dignam a pensar e escolher como deve a plebe morrer. Aguentem, vão morrendo mais uns pais de família em nome do melhor timing de negociação. E não se preocupem porque, se faltar dinheiro, há mais uns milhões de europeus para esmifrar. Para tudo, menos o Inverno frio, as elites parecem ter uma solução. Sempre, obviamente, à custa do couro alheio.

    Pessoalmente, acho que, não se evitando a guerra, um acordo de paz deve ser o objectivo desde o primeiro dia. Mas aceito que deve ser um pensamento utópico. Há que ir matando uns quantos pobres por dia até que os milionários que nos dirigem decidam que a altura de falar chegou. Assim como assim, também temos pobres para dar e vender, estamos só a escoar produto.

    Zelensky apresentou uma lista de exigências para se sentar à mesa que é uma espécie de máquina do tempo para um dia qualquer de dezembro de 2013. Russos fora do país, territórios devolvidos, fim dos ataques, reparações e mudança de regime [ou pelo menos outro a decidir que não Putin].

    Para muitos, esta é uma lista realista e justa porque, lá está, a Ucrânia foi invadida. Concordo com esse argumento, o de voltar tudo ao que era, mas isso transformar-me-ia num negacionista da guerra. Já me bastou a experiência com os confinamentos…

    red white blue and yellow round textile

    Tendo existido a invasão, e tendo a Ucrânia perdido territórios, a realidade é essa, pelo que, chegar com uma lista exigências ao nível de “vamos fingir que não aconteceu nada”, é o mesmo que dizer que não se quer negociar.

    Se a Rússia aceitasse as exigências do Zelensky para se sentarem… iam discutir o quê? Se o pagamento seria feito em rublos ou dólares? É que não haveria muito mais para discutir.

    E repito: justo seria a total retirada russa sem perdas de território para a Ucrânia, mas, normalmente, não é esse o cenário depois de uma invasão de uma potência mais forte. E, numa guerra, vence o mais forte, não o mais justo.

    Bem sei que, neste momento, aplicamos um filtro histórico para condenar o invasor, enquanto nos 70 anos anteriores não nos preocupámos muito com o tema, quando o invasor tinha as nossas cores, mas é assim que, normalmente, estas coisas acabam. Regra geral, com o nosso consentimento.

    Portanto, nesta luta de barricadas pela moral adquirida em 2022, eu pergunto, de forma pragmática: qual é a solução?

    blue and yellow striped country flag

    Ainda há quem acredite nas conversas da Ursula do “as long as it takes” (leve o tempo que levar)? Os alemães já avisaram que o stock de armas está em baixo, os italianos já não têm nada para dar, os americanos também já começam a apertar o bolso.

    Os indianos, chineses e turcos fazem negócios com os russos, sendo que os turcos jogam nas duas frentes. Os bálticos, sempre afoitos na condenação aos russos, como se viu no “míssil russo que caiu a Polónia”, já vão nos dois dígitos de inflação.

    Portugal envia equipamento que não funciona, os iranianos produzem armas para os russos, a Escandinávia está com um custo de vida descontrolado, o Sul da Europa está cada vez mais pobre e, na Alemanha, vão-se fazendo negócios à margem da estratégia europeia para garantir empregos e menos convulsão social.

    Neste cenário de catástrofe, repito a questão: qual é a solução? Até quando podemos pagar esta guerra que não nos diz respeito? E, por favor, não me venham falar em democracias, que é para não ter que ir buscar a posição da Rússia ou da Ucrânia no ranking das democracias até ao dia 23 de Fevereiro de 2022. 

    walking person holding blue and brown striped banner

    Quantas vezes temos que ver o aumento da prestação da casa, perder empregos ou ficar sem comida na mesa? Quantos russos ou ucranianos pobres é que têm que morrer mais na frente da batalha? Digam-me, qual é a solução que não esteja presa a um acordo de paz?

    Eu vejo três hipóteses:

    a) chegam a acordo agora e a Ucrânia perde territórios;

    b) chegam a acordo mais tarde e a Ucrânia perde territórios, mais soldados morrem e mais europeus empobrecem;

    c) a NATO entra oficialmente no conflito, havendo a hipótese de os ucranianos recuperarem o terreno todo. Morrem muitos mais soldados, empobrecem muitos mais europeus. Estamos na III Grande Guerra.

    Perdoar-me-ão os moralistas que acordaram para a História das Nações em 2022, mas, visto daqui, a escolha é tremendamente simples. Para hipocrisia, já me chegaram os 20 anos em que a Europa apertou a mão ao Putin e com ele fez todo o tipo de negócios, sem querer saber de democracias ou teorias imperialistas.

    São, somos, cúmplices do que se está agora a passar. Já que não o soubemos evitar, tenhamos pelo menos a capacidade de lhe colocar um fim.  

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A Reforma do Serviço Nacional de Saúde obriga a muitos Rs

    A Reforma do Serviço Nacional de Saúde obriga a muitos Rs


    O Serviço Nacional de Saúde (SNS) precisa de reformas urgentes, que tentarei de forma sucinta identificar nestas linhas.

    1) A relação da saúde com a tecnologia carece de uma reforma de mentalidade e de modo de actuar. Muitos contactos com o Serviço Nacional de Saúde (SNS) poderiam fazer-se por WhatsApp ou sistemas similares como o Skype, ou o Signal, ou Telegram, onde a presença com imagem se tornaria mais apelativa e diagnóstica. A massificação deste método permitiria poupar milhares de deslocações e reduziria listas de espera. Com uma conversa que seria olhos nos olhos estava construída uma relação de proximidade e com muitas características de modernidade, pois as análises, os exames complementares podiam ser realizados à distância e vistos e repassados por técnicos de saúde e doentes.

    person wearing lavatory gown with green stethoscope on neck using phone while standing

    2) Uma melhor aposta na literacia em saúde em vez de um investimento absoluto no rastreio. Devemos ensinar os sinais de perigo de muitas doenças e devemos ensinar a conviver com pequenos problemas e pequenas lesões, sem drama, sem acrescento de ansiedade. O saber não ocupa lugar, e isso retiraria muita gente das urgências por lesões de lana caprina. Os rastreios não se mostraram melhores que a prevenção ganha por literacia em saúde. Ver e palpar a mama, e reconhecer o que é anormal.

    3) A prevenção passa por educar para uma vida mais saudável, que recusa os excessos alimentares, que reduz os consumos, que responsabiliza as escolhas dos cidadãos. Temos de intervir na dieta da população, educando, negociando com as produtoras de hidratos de carbono e de comida que não é alimento. Responsabilizar pelos excessos de lixo e de hidratos e proteínas animais, criando impostos assertivos, dirigidos, para premiar os que optam pela sustentabilidade e a alimentação saudável.

    4) Investir na redução de lixo dos hospitais. As quantidades enormes de consumíveis e de objectos não reutilizáveis foi uma filosofia e uma ideologia que premiava o negócio mais do que a sustentabilidade. A quantidade de lixo produzida por embalagens, pacotes e plásticos deve ser estudada, e idealizado outro caminho.

    two men playing chess

    5) Os doentes com clínica importante devem estar nos hospitais mais do que em outras instituições. Nessa linha deve apostar-se em hospitais melhores que os cuidados continuados, onde a resposta à doença é realizada com vista à autonomia. Reabilitar doentes de pé diabético, obesidade mórbida, doença oral, doença psíquica com distúrbio social, fisioterapia do trauma e da doença vascular, pode ser feito em hospitais que rentabilizariam a sua acção na educação, ensino. Teriam uma componente hoteleira não hospitalar, mas uma funcionalidade de ambulatório com resposta emergente, se necessário, e de diagnóstico e encaminhamento às especialidades. Hospitais que chamaríamos de retaguarda, sem pijamas, com roupa de casa, com jardins, com caminhadas, com patuscadas.

    6) A reforma da saúde oral e da saúde mental são urgentes. A segunda está a conduzir doentes aos presídios. A primeira é um sintoma da pobreza e da má condição social do país.

    7) Independência dos doentes. Há uma importante caminhada a fazer para ter os doentes nas suas casas, construir encaminhamentos cultos e suportados que permitam que no domicílio, sempre que possível fora de instituições, as pessoas enfrentem os seus infortúnios sentindo-se acarinhados, apoiados, sem dor, sem manifestação clínica exuberante. Se estas surgem, o doente deve estar internado no hospital adequado. Na noção de independência incluo saber fazer pensos, retirar pontos, perceber o que está bem e não está.

    man and woman sitting on bench facing sea

    8) Reavaliar protocolos insanos onde se coloca medicação encarniçada para pessoas em fim de vida. Ser idoso não obriga a tomar estatinas, a ser consumidor de anticoagulantes, a tornar-se detentor de uma caixa de vinte fármacos. Com coragem há que rever os protocolos que conduzem cada pessoa que vai a um hospital, cada pessoa com mais de 85 anos acamada, a um calvário de estudos dispendiosos e muitas vezes inadequados e desnecessários. Protegem-se muito os funcionários com linhas orientadoras que consomem inúmeros recursos. 

    9) Investir no envelhecimento saudável. Um envelhecimento no lugar de sempre, no apoio à melhoria das habitações, corrigindo constrangimentos, mudando banheiras em polibans, apoios para não cair, legalidade em favor da mobilidade. Sou manifestamente mais a favor de sustentar os indivíduos do que levá-los para instituições. As doenças infectocontagiosas comprovam que a concentração institucional dos idosos é uma barbaridade com mortalidade. Construir mecanismos que apoiam as famílias a serem cuidadoras dos seus idosos, com formação adequada, gerando emprego aos que o não tinham ou aos que queiram converter-se em cuidadores. Estas medidas reduzem o número de instituições cuidadoras e melhoram as famílias.

    Tenho consciência de que estas propostas não estão na linha mestra ou no foco dos dirigentes da saúde, que preferem claramente o tratamento à prevenção, que escolhem manifestamente as instituições ao envelhecimento em casa junto das famílias, que odeiam a independência dos doentes, porque constroem negócios de cuidar.

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.