Os anos sucedem-se e assim mais um se vai findar, o que sempre acontece para as barrigas cheias ou para as barrigas vazias, por entre ventos frios no hemisfério norte ou brisa morna no hemisfério sul, porque assim todos concordaram.
No fio dos últimos dias do ano, Nostradamus escrevia em enigmas para acertar na hora que o relógio apontava, pelo menos duas vezes em cada dia. Vibrava com a antecipação da tragédia e, com o aproximar da meia noite derradeira, vários discípulos imaginários do império dos rios sem dono começavam a rabear para apostar as fichas na leitura dos seus vaticínios.
Desde pequenino que ensaiava seus poemas por entre o bafio de salas fechadas, ele próprio então desconhecedor de seu poder transcendente. Bem que cantarolava o que se avizinhava para as aranhas debaixo da cadeira mas elas não ouviam. E que teriam sentido as pobres, de pernas esmagadas e vida sumida por entre as suas teias envoltas no pano húmido que a avó foi buscar, para prontamente limpar aquela inaceitável invasão?
Terão porventura pensado, “o menino bem avisou”? Nostradamus duvida que tenham tido sequer tempo. Zás! E morreram.
Quando, anos mais tarde, em corredores frios de pedra, Michel (era este o primeiro nome do jovem) aprendeu as artes da medicina, já seu coração ia recheado de pensamento, astrologia e literatura. Que alquimia aquela!
Tão notável era que se notabilizou pelo protocolo contra a peste, que assolou um então não tão velho continente, mandando remover os mortos abandonados pelo pânico, limpar os doentes e dar-lhes vitamina C. Autêntica magia, hoje sabemos que completamente desacreditada pela sienciah (como a astrologia).
Mas eis que Nosferatu se cruza com o nosso profeta e, em silêncio, rouba a vida da pobre mulher de Michel, sem sequer poupar a vida a seu filho. Zás! E morreram. (Mas foi coincidência.)
Nosferatu era um esquálido rapaz, que sempre fazia questão de rejeitar todos os cookies dos sítios de internet que utilizava. Lia muito, por isso via mal ao longe, e suas unhacas compridas afastavam potenciais senhorios pelo que era um problema conseguir casa para arrendar.
Atraído pelo cheiro de carne humana, Nosferatu não resistiu aos encantos exalados pela esposa de Nostradamus e lá lhe sorveu a vida e espalhou pragas em redor. Fontes próximas deste anorético demónio, que também acompanhavam de perto as campanhas do senhor doutor, asseguram que, não tivesse este episódio histórico acontecido – se acaso tivesse ele conseguido um T2 em Olivais Sul – e na verdade Nostradamus não se confrontaria com o verdadeiro alcance do seu poder de divinação, ao sofrer a viuvez antecipada pelo esfaimado rapazote.
Isto só prova a importância de um bom agente imobiliário. Como muitas outras coisas na vida.
Já em Portugal, um operador de telemarketing chamado Noel, lê esta nossa saga, de barriga cheia de sonhos pela quadra natalícia, maravilhado com a suma importância desta crónica na sua vida íntima, flagelada que é nos últimos anos por ter seu nome de baptismo em constante confusão com um acrónimo que mata qualquer reputação: No Observed Adverse Effect Level (NOAEL).
Muito transtorno profissional e social acometia Noel todo este tempo, por esta confusão. Pois está bom de ver, que toda a gente sabe, que não há nada mais arrepiante do que não causarmos efeito algum. Ora, imaginem o que sentiria ele, se caminhasse na praia e, olhando para trás, não visse as suas pegadas?
Teria sido o mar? O vento? Nosferatu deslizando numa última e fatal travessura de quebrar o espírito?
Malogrado o dia em que se lembrou Nostradamus de prever que Noel, de todas as pessoas do mundo, seria a nova encarnação de praga bem mais contínua e silenciosa: a da impotência e ausência. A invisibilidade e nulidade, de viver a vida sem deixar pegadas, sem causar efeito, sem sequer matar as aranhas debaixo da cadeira da sala bafienta.
Pois será que foi profecia, ou o dito causou o acontecido?
Há quem sinta que é melhor nem ler, nem ver, sob risco de o fazer verdade. E a verdade não é para todos, e todos sabem disso.
Os anos passam, mais um passará e outros sempre virão, para quem esteja e para quem não esteja também.
Ditoso o leprosário onde se movem os incautos.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Quando comecei a pensar neste texto, senti necessidade de ir ao site do Ministério da Administração Interna para confirmar a data das últimas eleições legislativas. Lembrando o infindável número de trapalhadas com que este governo nos tem presenteado, na minha cabeça essas eleições tinham acontecido há muito, muito tempo. Mas não. Foram a 30 de Janeiro de 2022. Menos de um ano, portanto.
Sendo António Costa um político verdadeiramente hábil – é essa, pelo menos, a qualidade que mais vezes ouço ser-lhe atribuída pelos analistas –, torna-se difícil compreender como, em tão pouco tempo, nos provou empiricamente, por que razão não são nada saudáveis as maiorias parlamentares.
Alexandra Reis, em entrevista à revista digital Executiva, publicada no passado dia 1 de Setembro, como presidente da NAV.
O Partido Socialista (PS) governa num regime de arrogância, de prepotência e de absoluta falta de vergonha, como eu não me lembro de ter visto em democracia.
São trapalhadas com ministros que carregam incompatibilidades grosseiras, ministras que gerem fundos públicos que acabam nas empresas dos maridos, bazucas turísticas que desaguam em empresas de turistas espaciais, ministros da Saúde que dirigem empresas da mesma área, antigos directores da TVI a quem se pagam favores, secretários de Estado com processos de corrupção em tribunal que se acham atacados pela corte de Lisboa…
São estudos e mais estudos para novos aeroportos e eternas discussões sobre localizações, agora com Santarém a surgir no meio do nada. Falcatruas descaradas com as pensões dos mais idosos, vendendo a ideia de que um corte para a vida seria, afinal, um aumento. Eu sei lá…
Com a minha péssima memória, consigo lembrar-me apenas de alguns exemplos em catadupa, porque chegámos a um ponto em que as trapalhadas são semanais.
E o curioso nisto tudo é que, de cada vez que me cai o queixo, dou por mim a pensar que pior não fica. Mas até aí me engano.
A cada nova polémica, descobrimos que, afinal, ainda dá para cavar mais um pouco na lama e descobrir um novo mínimo aceitável para o estatuto de República das Bananas.
Em menos de um ano, António Costa – e o seu não sei quantas vezes remodelado Governo – já nos explicou, tintim por tintim, por que são perigosas as maiorias, e imagino o quanto os eleitores não estarão arrependidos da concentração de votos no PS.
O caso de Alexandra Reis é um daqueles em que dizemos: ”ok, é mau, mas agora é que é; agora é que atingimos o fundo; tem de ser; isto tem de ser o fim da vergonha e da impunidade”. Aliás, reparem nas habituais barricadas pró e contra que se formam nestes casos. Desta vez, há um consenso geral e uma impossibilidade de defender algo que não tem mesmo ponta por onde se pegar.
Fernando Medina, ministro das Finanças.
Vejamos. Alexandra Reis é nomeada, por quatro anos, para a administração da TAP, em Setembro de 2020. Em Fevereiro de 2022, rescinde esse contrato e, por umas cláusulas que ninguém consegue ler, porque são confidenciais, tem direito a uma indemnização de 500.000 euros. Diz ela que, caso fosse ilegal, teria todo o gosto em devolver o guito. Todos já percebemos que, provavelmente, não será ilegal, mas certamente é imoral. Quem com ela fez um contrato destes deveria estar numa comissão de inquérito no dia seguinte e, três dias depois, para ter tempo de ir a casa tomar um banho, deveria estar preso em Pinheiro da Cruz.
Meio milhão de euros de indemnização ao fim de 16 meses de trabalho? Numa empresa absolutamente vital para Portugal como a TAP (é essa a minha opinião e já a defendi vezes sem conta), assente neste momento no erário público, isto é desferir novo golpe na sua credibilidade por parte dos corpos dirigentes.
A quantidade de rasteiras que a administração da companhia aérea tem passado aos trabalhadores daria para escrever um livro. São despedimentos, cortes e trabalhadores exaustos a compensarem os que saíram para, em poucos meses, uma administradora receber MEIO MILHÃO de indemnização por uns meses de reuniões. É gozar com os contribuintes, com os trabalhadores e, de certa forma, com o estado da nossa democracia.
O Governo de António Costa, perante a inutilidade da oposição do PSD, tem servido, inconscientemente imagino, de rastilho ao crescimento da extrema-direita que, na habitual ausência de ideias e programa, cavalga nestas trapalhadas como Lucky Luke no seu Jolly Jumper em direcção ao sol poente. E capitalizam votos, descontentamento e mais ódio da população empobrecida.
Como é que se explica a uma população – onde três em cada quatro recebem uma esmola pensando que é um salário – que uma administradora pode fazer um contrato leonino com uma empresa pública e ficar rica ao fim de 16 meses de trabalho?
Como é que se explica isto a alguém que viu a renda aumentar com a subida da Euribor, e está em risco de perder a casa porque não tem mais 200 euros por mês?
Mas isto não ficou por aqui. Poucos meses depois de sair da TAP, Alexandra foi escolhida pela tutela – Ministérios das Infraestruturas e das Finanças – para presidir à NAV, a empresa pública que gere o espaço aéreo português. Por ali ficou mais uns meses até que Medina a nomeou como secretária de Estado do Tesouro.
Não se percebe se a TAP rescindiu contrato por incompetência da administradora ou se esta escolheu vir-se embora. Certo é que, competente ou não, passou pelas administrações das duas maiores empresas nacionais de aviação e, dali, para a tutela. Se não era competente para administrar, resta perceber como é que seria competente para gerir os fundos que a essas empresas serão atribuídos.
Torna-se agora um pouco irrelevante discutir, em concreto, o perfil de mais um boy (ou girl neste caso), mas é particularmente importante compreender como é que estes casos de abuso – constante e repetido – de dinheiros públicos não parece ter fim.
Sempre que um caso destes vem a lume, eu imagino quantos não continuarão nas sombras dos corredores. Quantos gestores de empresas públicas não acumulam verdadeiras fortunas em pouquíssimos anos de trabalho, enquanto nós, que pagamos impostos e todas as mordomias, nos vamos conformando com este roubo continuado que a classe política, e os amigos do regime, nos vão impondo.
Quando ouço que “é tudo legal”, percebo que o primeiro problema está de facto na lei. Se o contrato de Alexandra Reis com a TAP é legal – e o seu percurso até ao Governo, passando pela NAV, absolutamente inatacável do ponto de vista da lei –, então é por aí que esta conversa deveria começar: pela lei.
Não podemos continuar a respeitar leis que permitem o roubo descarado de dinheiro público com a culpa a morrer entre corredores e sem nomes. Não podemos correr o risco de ver esta vergonha a ser denunciada pelo líder de um partido de extrema-direita que, depois de ajudar na fuga de capitais dos mais ricos, aparece nas televisões como um Robin dos Bosques.
Temos de ser um pouco mais inteligentes do que isto, mas também temos de exigir mais de quem nos governa. Temos de exigir responsabilidades. E sim, temos que começar a despedir gente, cortar as asas a alguns abutres e parar, de uma vez, com esta clientela que enriquece à nossa custa.
O serviço público é importante e uma marca em qualquer país desenvolvido de primeiro mundo. Não podem existir mais Alexandras Reis, maiorias absolutas ou uma população absolutamente miserável que luta por migalhas diariamente enquanto as elites se enchem à nossa custa.
Não há justificação. Não há desculpa. E já não há paciência para tamanha corja de ladrões.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Há um mistério na vida política portuguesa: por mais porcaria que, como pessoa e político, Fernando Medina faça, tudo se lhe mantém igual. Ele é o iceberg que afunda o Titanic, e ainda faz uma perninha a tocar na orquestra enquanto o transatlântico afunda.
Do seu percurso profissional, a política partidária, sempre ligada ao Partido Socialista, é a sua única imagem de marca, sempre com bons padrinhos. Nada há de marcante na sua vida que não seja a política, mas sem qualquer pensamento que nos fixe ao homem. Desde cedo assim tem sido. Ainda nos anos 90, da então verdura dos seu 20s, foi assim que chegou a assessor ministerial, primeiro através de Marçal Grilo, para a Educação, e depois para o gabinete de António Guterres até à demissão do então primeiro-ministro em 2002.
Um “tacho” – não há outro termo – na Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) permitiu-lhe curta travessia no deserto durante a governação social democrata de Durão Barroso e de Santana Lopes, até a liderança do Governo ter caído no colo de José Sócrates, outro “político de profissão”. Pois bem: como entrado estava nos 30s, José Vieira da Silva chama-o para secretário de Estado do Emprego e Formação Profissional, depois segue para a Secretaria de Estado da Indústria e Desenvolvimento.
Perdidas as eleições para Passos Coelho, seguiu ele a carreira política na Assembleia da República, em oposição, até lhe surgir novo padrinho. António Costa levou-o para a Câmara de Lisboa como número 2, e ainda com um presente suplementar: a cadeira do poder na autarquia se, como sucedeu, o actual primeiro-ministro assegurasse o cargo de secretário-geral do Partido Socialista.
Estávamos então em Abril de 2015, e aos 42 anos lá chegava Fernando Medina a um verdadeiro lugar de responsabilidade. E pôde então começar a mostrar a sua fantástica incompetência. Numa época gloriosa de turismo na capital, Medina conseguiu piorar a qualidade de vida dos lisboetas, com uma gestão caótica desde os transportes à recolha de lixos e limpeza urbana, passando por intervenções urbanas onde Manuel Salgado punha e dispunha.
Perder as eleições de 2021 – que até o rato Mickey ganharia se fosse socialista, nas condições políticas de então – foi somente o corolário da sua patente incapacidade de liderança do principal município português, mais ainda manchado pela divulgação de um procedimento torpe e intolerável num país democrático: o envio da identidade de manifestantes em Portugal à embaixada da Rússia, bem como às de outros países “repressivos”, como Angola, China e Venezuela.
Num país decente, perder umas eleições não seria a única consequência deste “feito”. Mas foi, para Medina. E pior, para nós: recebeu ele a tutela das Finanças do novo Governo de António Costa.
Ser ministro das Finanças com uma visão de merceeiro é o que Fernando Medina nos tem mostrado: com uma inflação galopante, tem ele apenas sido um façanhudo porteiro da caixa-forte, aproveitando-se da intolerável inflação para sacar mais dinheiro dos contribuintes. Vamos ter de o ouvir, num país de baixa literacia financeira, a vangloriar-se de um produto interno bruto (PIB real) a crescer 6,8%, mas a omitir que se usou um deflator de 3,6%, quando a inflação será de 8,1%. Ou seja, na verdade, o PIB cresceu poucochinho (2,3% se considerado um deflator de 8,1%). O Governo português, como outros, manipula números e apresenta os brilharetes, aproveitando o desconhecimento do povo.
Mas Medina poderia ser apenas um sofrível ministro das Finanças, sem rasgo nem ousadia, porque já tivemos similares, e teremos piores, por certo. Porém, é mais do que isso: Medina consegue meter-se em sarilhos, culpando os outros, encontrando bodes expiatórios.
Já em funções governamentais, vimos então ainda Medina envolvido no convite ao ex-jornalista Sérgio Figueiredo – que o levara a ser comentador na TVI – para consultor especial no Ministério das Finanças. A polémica levou ao afastamento de Figueiredo, e não de Medina.
E agora tivemos o caso moralmente abjecto da secretária de Estado do Tesouro, Alexandra Reis, com a sua saída da TAP com uma indemnização legal, mas indecente. Medina, que a escolhera este mês, sai também aparentemente incólume. As notícias dizem mesmo que ela se demitiu do cargo governamental “a pedido de Fernando Medina”.
E numa nota do Ministério das Finanças diz-se que a demissão de Alexandra Reis visa “preservar a autoridade política do Ministério das Finanças num momento particularmente sensível na vida de milhões de portugueses”, tendo em consideração ser “essencial que (…) permaneça um referencial de estabilidade, de autoridade e de confiança dos cidadãos.”
Troque-se, na última frase, Alexandra Reis por Fernando Medina, e esta passaria a ser verdadeira. De contrário, não. Mas seria uma violação dos “princípios” do ministro das Finanças que, em cada mês, mostra e demonstra ser um incompetente sempre-em-pé, que derruba a nossa esperança num mundo de decência.
Há muitos anos, um colega de turma perguntou ao professor:
– “Afinal, senhor professor, que diferença pode haver entre gerir uma empresa pública e uma privada?”
O professor fez uma pausa de segundos e contou:
– “Numa sexta-feira, ao final da tarde, o administrador financeiro de uma empresa pública entrou, preocupadíssimo, no gabinete do presidente do conselho de administração e disse-lhe:
“Senhor presidente, estamos perdidos. Os nossos dois maiores clientes declararam falência e, dado o montante das suas dívidas para connosco, é certo de que iremos falir por arrastamento.”
O presidente levantou-se, arranjou o nó da gravata, e começou a caminhar para a porta enquanto exclamava:
“Meu Deus! O que eu me vou preocupar na segunda-feira de manhã!”
Lembrei-me deste episódio quando ouvi a história da indemnização, de meio milhão de euros, dada pela TAP à sua ex-administradora exclusiva, Alexandra Reis, de cujos serviços terá prescindido (segundo alguns) ou aceitado a sua demissão (segundo outros), a meio do seu mandato de quatro anos.
Vejamos, então, como se gere uma empresa que depende do Estado.
A TAP, é sabido, é uma empresa que vive a balões de oxigénio, com o Estado a salvá-la, consecutivamente, da falência graças a injeções de capital na ordem dos milhares de milhões de euros.
O número de funcionários, e de aviões, reduz constantemente.
Enfrenta greves sucessivas dos funcionários que consideram não receber o salário que lhes é devido nem ter as condições de trabalho necessário para um desempenho eficaz.
O serviço da companhia – que já foi considerado dos melhores do mundo – degrada-se de dia para dia: os atrasos são constantes, o serviço de bordo é péssimo, os preços dos bilhetes, principalmente para alguns dos destinos com mais procura, por não terem concorrência, são de agiotagem.
Tudo isto só pode levar à conclusão de que a sua administração é de uma incompetência atroz.
O que não impede que os seus membros aufiram ordenados principescos, como aliás o próprio Presidente da República reconheceu (até porque lhe toca na pele): “é sempre o problema de haver uma série de cargos empresariais de empresas direta ou indiretamente relacionadas com o Estado ou propriedade do Estado, que são muito superiores àquilo que são os vencimentos, não digo dos portugueses, mas mesmo dos titulares do poder político ao mais alto nível”.
Na realidade, a senhora de quem vimos falando, recebia um salário duas vezes superior ao do Presidente da República…
É muito, há que reconhecer, mesmo não tendo em conta a falta de qualidade do seu trabalho, nem os resultados alcançados.
Se já era grave “premiar”, para mais com 500.000 euros, o despedimento (ou a saída de “motu próprio”) de uma funcionária cujo trabalho era medíocre (para ser simpático nesta época natalícia), o que se seguiu foi, ainda, mais incompreensível.
O mesmo “patrão” contratou a senhora para outra das suas empresas, mas promovendo-a a presidente.
Não conheço o salário que foi receber mas deve ter tido um “aumentozito”, em relação ao último, dada a promoção, o que possibilitou, certamente, que não tivesse de recorrer ao dinheiro da indemnização para poder pagar as contas do dia-a-dia.
Uns meses depois, todavia, também deixou esse cargo.
Não se sabe se por ter sido despedida, ou se por sua iniciativa, nem mesmo se recebeu outra indemnização.
Sabemos, somente, que foi contratada, para outro lugar e, de novo, pelo mesmo “patrão”.
Duvido que conseguisse o mesmo trajecto numa empresa privada, mas isso não é para aqui chamado…
É, agora, secretária de Estado do Tesouro.
Considero uma excelente escolha e aplaudo-a veementemente.
Espero bem que consiga aumentar o Tesouro Público na mesma proporção que consegue aumentar o seu. Privado.
Vamos ser a inveja da Europa!
Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
No Índice da Liberdade de Imprensa dos Repórteres Sem Fronteiras (RSF), a China ocupa a 175ª posição, em 180 países, apenas à frente de Myanmar, Turquemenistão, Irão, Eritreia e Coreia do Norte.
No seu site, a RSF salienta que a China “é a maior prisão mundial para jornalistas e o seu regime conduz uma campanha de repressão contra o jornalismo e o direito à informação em todo o Mundo”, estimando-se que estejam detidos 120 profissionais da imprensa. Além disso, o regime chinês “usa vigilância, coerção, intimidação e assédio para impedir que jornalistas independentes façam reportagens sobre questões que consideram sensíveis”. Os jornalistas independentes e mesmo autores de blogs “que se atrevam a relatar informações sensíveis são frequentemente colocados sob vigilância, perseguidos, detidos e, em alguns casos, torturados.” E ainda, “para receber e renovar suas carteiras de imprensa, os jornalistas devem baixar um aplicativo (…) que pode colectar seus dados pessoais.”
Portanto, sobre informação fidedigna das autoridades chinesas e sobre o que, na realidade, se passa naquele vasto território de mais de 1,4 mil milhões de habitantes, deveríamos estar conversados. Em assuntos políticos, em assuntos económicos, em assuntos sociais e… em assuntos de saúde.
Em consequência, nos assuntos relacionados, hélas, com o SARS-CoV-2 e com a pandemia da covid-19.
Ainda hoje, três anos após o “baptismo” do SARS-CoV-2 e da covid-19 – que terá surgido na cidade chinesa de Wuhan – desconhecemos qual a sua origem: se foi um salto zoonótico, através da passagem da doença de um outro animal para os humanos; ou se um acidente laboratorial. Por muito que a China e até a imprensa ocidental tenham sempre “preferido” a primeira hipótese, as autoridades chinesas nunca permitiram um acesso integral aos dados, e os Estados Unidos, a Organização Mundial da Saúde e os países europeus por arrasto, nunca estiveram muito interessados em desvendar o mistério.
Atente-se, aliás, num artigo científico de um investigador italiano, Mario Coccia, publicado em Agosto passado na revista Environmental Research – e não é o único a abordar esta temática –, onde se aponta que “a probabilidade média de ocorrência de um grande desastre natural que gera em dois anos (…) mais de seis milhões de mortes no Mundo ou mais de 958.400 mortes nos Estados Unidos, como a covid-19, é infinitamente pequeno – ou seja, a probabilidade de ocorrência é um evento raro”. Na verdade, é aproximadamente 0%.
Ao invés, o mesmo investigador salienta que “muitos laboratórios e instituições, antes do surgimento do novo coronavírus, desenvolveram muitas pesquisas científicas sobre a relação entre morcegos e SARS-CoV, detectadas em uma pesquisa aprofundada no banco de dados on-line da Scopus”, acrescentando que “a nível global, desde 2005 (primeiro ano disponível na base de dados da Scopus, 2022) até 2018 (antes da emergência da COVID em 2019), existem 133 resultados documentais no tópico específico relativo a ‘Morcego e SARS-CoV’”.
Desses estudos, atente-se, 75 foram desenvolvidos pela China (incluindo Hong Kong) e um pouco menos de meia centena nos Estados Unidos. O National Institute of Allergy and Infectious Diseases, liderado por Anthony Fauci, financiou 27 destes estudos; diversas entidades governamentais chinesas um total de 32. Nessa perspectiva, Coccia estima que a probabilidade de uma falha de biossegurança causar a saída de um vírus causador desta mortalidade é de entre 13% e 20%.
Contudo, em Março do ano passado, a Organização Mundial de Saúde publicou um extenso documento de 120 páginas com as conclusões de uma investigação conjunta, previamente acordada, com as autoridades chinesas sobre a origem do SARS-CoV-2. E descartou logo a possibilidade de um acidente nos laboratórios existentes em Wuhan, dizendo taxativamente que é uma “hipótese extremamente improvável” [extremely unlikely pathway].
Como argumento contra essa possibilidade explicitou-se apenas, em menos de meia página, que “não há registo de vírus intimamente relacionados ao SARS-CoV-2 em qualquer laboratório antes de Dezembro de 2019, ou genomas que em combinação poderiam fornecer um genoma SARS-CoV-2”, adiantando que “os três laboratórios em Wuhan, trabalhando com diagnóstico de coronavírus (CoVs) e/ou isolamento de CoVs e desenvolvimento de vacinas, tinham instalações de nível de biossegurança de alta qualidade (BSL3 ou 4) que eram bem administradas, com uma equipa de saúde e programa de monitoramento sem relato de doença respiratória compatível com covid-19 durante as semanas e meses anteriores a Dezembro de 2019, e nenhuma evidência sorológica de infecção em trabalhadores por triagem sorológica específica para SARS-CoV-2”. Isto apesar do laboratório do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) de Wuhan se ter mudado em 2 de Dezembro de 2019 para perto do mercado onde oficialmente surgiu o primeiro surto.
A verdade depende do poder. E foi nesta nebulosidade sobre as origens do SARS-CoV-2, nesta insustentável incerteza informativa, que nasceu e proliferou uma pandemia que colapsou o Mundo nos últimos três anos.
E é sobre a verdade imposta pelo poder que temos estado, todos nós, sujeitos. A verdade depende, cada vez mais de quem detém o poder para dizer : “isto é A verdade”; e não tanto da realidade. Sempre foi assim no passado, com os governos absolutos, com a Inquisição, com as ditaduras – desenganem-se os ingénuos se pensavam que num mundo maioritariamente democrático seria muito diferente.
Ora, mas como alguém de bom senso pode acreditar em qualquer informação da China a respeito da covid-19? Seja ela proveniente de via oficial ou oficiosa ou de fontes não identificadas ou alegadamente anónimas.
Um jornalista tem o dever de não publicar se não tiver uma confirmação segura; mais do que o direito de publicar. E isso nunca sucede quando se trata da China.
Mesmo com a estratégia de covid zero, seria insensato julgar que o berço da pandemia tivesse uma mortalidade pela doença causada pelo SARS-CoV-2 de quatro óbitos por milhão de habitantes, sendo assim um dos países com menor letalidade do Mundo. Poder-se-ia acreditar nisto? Claro que não.
Por exemplo, Portugal apresenta, neste momento, 2.536 mortes por milhão. Até nos dois países com políticas radicais mais próximas de uma covid zero chinesa – a Nova Zelândia e a Austrália, ambas ilhas – se conseguiu valores daquela ínfima ordem de grandeza. No primeiro daqueles países a taxa de letalidade é, actualmente, de 701 óbitos por milhão de habitantes; no segundo de 650.
Mas, perante falsos números do governo chinês seria lícito especular sobre números da covid-19 naquele país e sobre a eficácia de aplicar da sua estratégia em países ocidentais, como sucedeu em 2020 e 2021? Não. Porém, foi isso que sucedeu: os lockdowns ocidentais “nasceram” na China, foram beber a um modelo que falseava descaradamente dados.
Posto isto, ninguém de bom senso deveria assim acreditar em qualquer número oficial passado, presente ou futuro apresentado pela China.
Porém, o obscurantismo chinês não pode ser agora, e só agora – para simplesmente ressuscitar o pânico –um salvo conduto para a imprensa ocidental cometer os mais desvairados atropelos aos princípios deontológicos e de rigor do jornalismo.
Sobretudo nas últimas semanas – após a inédita contestação popular ter levado as autoridades chinesas a levantarem as restrições –, a comunicação social ocidental não tem parado de especular em redor da pandemia em território chinês. Até ao absurdo.
Sendo previsível que haja um aumento de casos positivos na China numa população que terá pouco imunidade natural – e sem que a eficácia da “sua” Sinovac tenha tido sequer a possibilidade de ser verificada no “terreno” –, não podem é os jornalistas especular com base em fontes não identificadas, que vão desde as alegadas filas de carros funerários com mortos até supostos extenuados trabalhadores de crematórios, e muito menos através dos habituais modelos matemáticos de-trazer-por-casa, onde surgem valores redondinhos para impressionar, mas sem qualquer contexto. E onde se pode sempre usar o “pode” no título e corpo da notícia.
A especulação desbragada é, na verdade, desinformação, mesmo se se estiver perante um país com obstáculos à informação.
Não se deve, por isso, como tem estado a fazer a imprensa mainstream, noticiar acontecimentos na China com base exclusivamente em fontes anónimas e em supostos documentos que nunca se verão nem será jamais suposto ver-se.
Por exemplo, hoje, tanto o Financial Times como a Bloomberg – que, por sua vez, constituíram fonte de replicação pela generalidade da imprensa mundial, incluindo a portuguesa – garantem que só na passada terça-feira terão sido detectados 37 milhões de casos positivos em toda a China, ou seja, cerca de 2,6% da população.
Trecho da notícia da Bloomberg sobre a incidência da covid-19 na China, com base numa minuta oficial que não apresenta fonte.
Mas como se soube? A Bloomberg diz que soube através de minutas de um alto responsável de saúde, mas não as revela. Temos de acreditar. OK, acreditemos. Mas isso está ao nível da crença, similar à religião. O bom jornalismo não é uma questão de fé.
Já o Financial Times, que indica 250 milhões de infectados este mês (que contrasta com apenas cerca de 75 mil novos casos desde 1 de Dezembro apontados pelas autoridades chinesas) garante que os números foram assumidos por Sun Yang, subdirector do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) chinês durante um briefing, mas a informação chegou através de “two people familiar with the matter” [duas fontes anónimas conhecedoras do assunto].
Depois o jornalista escreve ainda que Sun disse, nessa reunião, que a taxa de transmissão da covid-19 estava ainda em crescimento e que “estimava que mais de metade da população em Pequim e Sichuan estava já infectada”.
Foi mesmo isso que o senhor Sun que disse? Bom, o Financial Times afinal acrescenta que foram “the people briefed on the meeting” [pessoas que terão tido acesso à informação da reunião]. E mais adiante ainda se acrescenta que a “explosão” de casos assumidos pelo senhor Sun, no decurso do levantamento das restrições – que tinha mantido prevalências baixas, através de testes maciços, quarentenas obrigatórias e lockdowns draconianos – contrastava com os números oficiais baixos. Ah!, mas salientava ainda, enfim, que os números do senhor Sun “were provided in a closed-door meeting” [foram fornecidos numa reunião à porta fechada”.
Trecho da notícia do Financial Times sobre os níveis de infecção na China.
Ou seja, tudo, tudo, tudo, fontes anónimas – por três vezes o Financial Times sustenta um número de suma relevância, que sabia vir a ser disseminada por milhares de órgãos de comunicação social, sem um documento, baseada em alegadas informações não confirmáveis. Tudo isto sem um documento. Tudo isto tão passível de ser falso como falsos serão os números oficiais chineses.
Tudo isto para concluir que este tipo de notícias não é informação; é especulação.
Este tipo de especulação pode bem ser tão falsa como falsa sempre foi a informação vinda da China sobre a pandemia. E o jornalismo não deve responder à falsidade com dados não confirmáveis. De contrário, vale-tudo. E o vale-tudo não deve valer num mundo democrático, porque senão é bastante arranjar “two people familiar with the matter” ou obter declarações de “the people briefed on the meeting” ou sacar informações que “were provided in a closed-door meeting” para, por exemplo, comprovar sem duvidar que o PÁGINA UM faz mau jornalismo. Ou que, enfim, o António Costa é um péssimo primeiro-ministro.
Os dados sobre a pobreza em Portugal são demolidores e devem-se sobretudo a duas décadas de incompetência governativa.
Antes das transferências sociais, 43% das famílias portuguesas são pobres. Depois dos apoios sociais, são 23%. Aquilo que dói nestes números é que a maioria destas famílias trabalha.
Anteontem, 23 de Dezembro, estive a ouvir um programa da Antena 1 em que a historiadora Raquel Varela teve uma prestação intocável, curta, precisa, concisa, assertiva. Em 1994 era muito diferente, para melhor. Ou seja, desde que pagamos mais impostos. Desde a subida do IVA, dos escalões brutais de IRS, do IRC dos mais excessivos da Europa, das taxas acopladas a pagamentos, das subidas do IMI, do Imposto sobre circulação automóvel, do pagamentos às Entidades Reguladoras, etc.. Congelaram os salários, “afogaram” a classe média, perdemos milhares de camas no SNS, temos pior justiça. Portanto, desde então, vivemos muito pior.
Há portugueses em sofrimento real, sem aquecimento da habitação, sem obras de beneficência da habitação, sem uma única visita a um dentista. Há milhares a recorrer a ajudas alimentares.
Mas não há dinheiro? Mas não há capacidade financeira para vivermos todos melhor?
Claro que sim. Houve lucros importantes da cobrança de impostos devido à inflação. Houve fim de gastos com as medidas pandémicas. Há um PRR a insuflar vontades governativas.
Aquilo que Portugal tem que o consome e destrói é uma dívida externa colossal que urge abater. Portugal carece de uma solução energética que pode e deve ser discutida de modo aberto e público. Carecemos de uma opção pela água, uma política de gestão dos recursos hídricos e, talvez, de dessalinização. O que não precisamos é de mais estruturas públicas que impeçam a prioridade – reduzir a dívida.
Depois de reduzir a dívida, temos de avançar com a reforma administrativa e reduzir o número de municípios, mais que a demagogia que sempre fala nos deputados.
Portugal precisa de ser governado, e isso significa ter um foco nas pessoas, ter uma estratégia de melhoria de vida, ter uma política pública de colocar dinheiro nas mãos dos cidadãos. As prestações sociais são um penso para que todos tenhamos esta ferida social menos sangrenta, menos dolorosa.
Num país ideal, todos trabalham, todos recebem com dignidade, todos têm funções adequadas às suas capacidades. Não somos todos iguais e nem todos produzimos com a mesma eficiência, mas todos podemos ser necessários.
O problema é que o ideal é idílico, é utópico e temos de nos ficar pelo melhor ganho para todos. A pobreza é uma chaga que não beneficia ninguém, mas nas políticas para a sua redução não pode haver contradições, falta de transparência e, sobretudo, tem de haver combate duro à fraude.
Os lucros excessivos da pandemia, como os excessivos das energias, da banca e das farmacêuticas devem ser um contributo essencial à redução da pobreza também.
Diogo Cabrita é médico
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
“Oh Betinha, coma mais um bocadinho!” E eu comia. Ela ficava tão feliz de nos ver a todos comer. Sentia certamente que o seu dever estava cumprido, sempre que todos comíamos mais um bocadinho.
No Natal, fazia fatias douradas. Eu gostava pouco de fatias douradas. Mas comia, nem que fosse um bocadinho. Ela ficava tão feliz por comermos as suas fatias douradas.
Como ele, o avô, ficava, por comermos o doce antigo que ele fazia ritualmente todos os Natais. Praticamente, só eu e ele o comíamos. No início, quando o provei a primeira vez, não gostei. Mas, lá está: ficou tão feliz por eu ter provado. Desde esse primeiro Natal, passou a preparar-me uma taça para trazer parte do doce para minha casa. Com os anos, fui gostando mais e mais.
Há uns anos que não temos o doce do avô no Natal. Tinha pão, açúcar, vinho do Porto e passas. Talvez canela também. Infelizmente, não aprendi com o avô como fazia o seu doce (ou aprendi e já está escondido algures na minha memória).
Este ano, dei-me conta de que não me consigo recordar do nome do doce que o avô fazia. Penso nele, vejo-o feliz com o seu doce no tacho de barro, a ver se me lembro do nome. Nada. A avó dizia sempre: “pra quê fazer tanto doce, se ninguém o come”. Mas ele fazia e comia. E dizia sempre: “a Beta também come”. Como comia as fatias douradas da avó.
No outro dia, com a árvore de Natal ainda por decorar na sala, apeteceu-me fazer fatias douradas. De vez em quando, faço panquecas aos fins de semana. Os miúdos gostam. É uma forma diferente de começar o dia à mesa. Cada um gosta de as comer à sua maneira, doces ou salgadas. Mas naquele dia, apetecia-me fazer fatias douradas.
Fiz de conta que aquelas fatias de pão que tinha em casa serviam para o propósito. Não eram as ideais. Mas era o seu destino, acabarem fatias douradas.
De repente, ali na minha cozinha, ouvia a voz da avó Fernanda a dar-me indicações. E ela ria. Tenho saudades do seu sorriso. “Faça mais, Beta! Os meninos vão querer!”, ouvi eu na minha cabeça. Era o que ela diria se estivesse ali. E eu fiz. Não sobrou nenhuma.
(Lembrei-me que também a minha avó Conceição – cá em casa chamamos de bisavó – fazia fatias douradas. Era, aliás, o único doce que me lembro vê-la a fazer no Natal. E, assim, passaram a estar as duas ali na minha cozinha, ao meu lado, a ver-me fazer as fatias.)
Comer aquelas fatias douradas foi como se voltasse atrás no tempo. Parecia que a qualquer momento, ela iria ligar cá para casa, como fazia. “Olá Betinha! Tá boazinha?”. “Olá Fernandica!”, respondia eu. “Então, querem cá vir almoçar no domingo?”…
Este Natal é o primeiro sem as suas fatias douradas. Eu posso fazer, mas não são iguais. Gosto das minhas. Mas não são as dela. Mas vou fazer fatias douradas este ano. Vou tentar replicar o doce do avô Ventura (sem o tacho de barro, que não tenho). Vou colocar na mesa, para a ceia da véspera de Natal. Ficará ao lado dos doces mais populares (mousse de chocolate e azevias).
O aroma das fatias douradas e do doce dos avós, encherão a casa, misturando-se com o das couves cozidas, do bacalhau… E eles não estarão aqui. Mas estarão um bocadinho.
Fechando os olhos, consigo vê-los sorrir de orelha a orelha ao ver os netos a abrir os presentes, a brincar com os seus brinquedos novos, pela primeira vez.
“Oh Betinha, comprei-lhe esta camisola que é a sua cara. É muito quentinha e macia – toque aqui. Mas pode trocar se quiser, veja lá se gosta”. E gostava sempre. Como das fatias, que tinham tanto amor.
Aproveitar os feriados de Dezembro é algo muito apetecível, especialmente quando conseguimos transformar um fim-de-semana de dois dias num prolongado de quatro.
Continuando na preparação da época mais maravilhosa do ano, depois da visita à Aldeia do Pai Natal, na Lapónia, melhor, só visitar o Mercado de Natal Rei – Colmar na Alsácia.
Nesta viagem, passei pelo Festival das Luzes de Lyon, Eguisheim, Colmar, Dijon e Vinhas da Borgonha.
Quando decidir visitar os Mercados de Natal, convém lembrar que centenas de pessoas têm a mesma ideia, seja pela época ou pela grande promoção dos destinos pelas agências de viagens. Neste sentido, convém marcar com a devida antecedência e, de preferência alternativas a meio caminho dos locais a visitar.
Tudo o que seja no centro das cidades está a preço de época excepcional, ou seja, mais alto que na época alta. Se tiver de escolher entre o fim-de-semana de 1 de Dezembro ou de 8 de Dezembro, não hesite e marque a 1 de Dezembro, pois no de 8 também é feriado em Espanha, França e Suíça, o que faz com que a visita aos mercados seja apetecível a muita gente.
O voo de Lisboa saiu cedo, o que fez com que chegássemos a Lyon mesmo a tempo de um tradicional “petit-déjeuner” francês. Baguetes do melhor que há, sumo de laranja natural, café com leite e “pain au chocolat”. Depois do retemperante pequeno-almoço estávamos preparados para conhecer a cidade.
Começámos o circuito na Praça Bellecour, o coração de Lyon, onde os habitantes se reúnem para todo o tipo de eventos. Ali vemos a estátua de Luis XIV a cavalo. Seguindo pela Rua Emile Zola, começámos por uma das praças mais bonitas de Lyon, a Place Jacobins, continuámos pela Rua Jean Fabre e chegámos à Praça Celestins, com o magnífico teatro italiano Celestin.
Atravessámos a ponte Bonaparte, que permite atravessar o rio Saône para chegar ao coração do bairro medieval e renascentista, também conhecido como Vieux Lyon. Ali, começámos por visitar a Catedral de S. João Batista, de arquitetura Gótica, com a sua gigantesca rosácea, gárgulas e os elementos decorativos deste estilo arquitectónico. Subimos depois até à colina de Fourvière, onde a imponente Basílica de Notre-Dame de Fourvière nos recebe de braços abertos.
A Basílica foi construída em agradecimento à Virgem, por ter poupado Lyon da invasão prussiana em 1870. O interior da Basílica é de uma beleza que não estávamos à espera. Majestosa, rica e bela. Dali seguimos para o Lugdunum, um grande teatro romano do século XV a.C., o Templo de Cybele, Odeon que preserva alguns dos seus belos mosaicos.
Se estiver com vontade de almoçar, o restaurante Christian Tedoie é um bom plano, pois oferece a “formule déjeuner” com uma cozinha gourmet, num terraço panorâmico com vista para Lyon.
Depois do almoço, fizémos a escalada em Gourguillon, descendo a Rue Pierre Marrion, virar à esquerda na Rue des Farges para entrar na escalada Gourguillon, rua pouco conhecida pelos turistas, uma das ruas mais antigas de Lyon com os seus paralelepípedos e as suas casas medievais do século XV.
Chegando à “Vieux Lyon”, tempo de petiscar nos mercados de comidas e vinhos quentes, para quem gosta e ver as muitas opções para compras de Natal. No final do dia, começa o evento mais importante da cidade, o Festival das Luzes de Lyon, onde os edifícios são iluminados com momentos da história da cidade e de França. Terminar o dia com um passeio na Roda Gigante, ver Lyon toda iluminada foi a cereja no topo do bolo.
No dia seguinte, retomámos a “Vieux Lyon” para percorrer os traboules, pequenos trechos característicos da cidade que permitem passar de uma rua para outra ou de um bairro para outro. Lyon tem mais de 300 e são verdadeiras atrações turísticas. Partilho a lista dos mais visitados para umas horas divertidas pelas ruas de Lyon: Rue Royale – Quai Lassagne; pequena Rue des Feuillants – Lieux Tolozan; 2 Lieux de Terreaux; 4 Rue Désirée – 7 Rue Puits-Gaillot; 3 Lieux Louis Pradel – 1 Rue Luigini; 5 Rue Joseph-Serlin – 2 Lieux Louis Pradel; 13 Rue de la Poulaillerie – 2 Rue des Forces; Passage de l´Argue; 2 Rue Charles – Dullin – 1 Rue Gaspard-André.
De Lyon, seguir para a região dos vinhos da Borgonha, e a menos de duas horas temos o Clos de Vougeot, a maior vinha Grand Cru da Borgonha. A história destes vinhos nasce com os monges cistercienses, cuja ordem foi única proprietária até 1789 quando, durante a revolução francesa, foi tomado como bem nacional. O castelo “Château” de Clos Vougeot foi erguido por volta de 1551 recebendo durante anos visitantes ilustres como Luís XIV.
O “Château” foi danificado na II Guerra Mundial e depois restaurado. Hoje, é propriedade da confraria “Chevaliers du Tastevin”, fundada em 1934 para promover os vinhos da Borgonha. Ali podemos escolher entre visita, incluir prova de vinhos e até almoço. Visitar esta região com paisagens deslumbrantes, património da Unesco deve fazer parte desta viagem.
Seguimos para o nosso alojamento, no campo francês para ficarmos próximos da nossa próxima paragem: Eguisheim e Colmar.
Acordar junto a um rebanho de ovelhas, com os campos de neve, é um sinal muito auspicioso de um dia feliz pelos mercados de Natal da Alsácia. Em menos de duas horas, chegámos a Eguisheim, uma pitoresca vila da Alsácia, considerada vários anos como a vila francesa preferida pelos franceses.
Parece que, no Verão, a sua beleza é sem igual, com as janelas e portadas enfeitadas com flores, mas, no Inverno, a sua a beleza faz jus ao título. Esta vila de casas coloridas é uma das cidades mais românticas e faz parte da rota dos vinhos da Alsácia.
O mercado de Natal abrange toda a cidade, além das casinhas montadas para o efeito, as lojas estão com as montras decoradas a preceito e tudo é muito bonito. Ali nasceu o Papa Leão IX e, por isso, a praça principal tem a sua estátua.
Por detrás, encontra-se o “Chateaux” da cidade e a Igreja do Papa. Um bom exemplo de vila da Alsácia bem organizada e que gostei muito de passar. Almoçámos uma boa sopa quente e seguimos para Colmar, o Rei dos Mercados de Natal.
Quinze minutos é o tempo que separa Eguisheim de Colmar e, quando chegámos, percebemos a diferença de dimensão desta vila Natal para a anterior. Todos os parques de estacionamento estavam completos e restou-nos dar algumas voltas e esperar que algum carro saísse.
Estacionamos e fomos para o centro da cidade que estava o caos. A última vez que me lembro de ver tanta gente foi em Macau, nas ruelas a caminho das Ruínas de São Paulo, onde as pessoas não tinham espaço de circulação. Ainda assim, com toda a confusão seguimos o nosso plano. Situada entre vinhas, casinhas típicas, canais e com um encanto sem igual, Colmar parece tirada de um conto de fadas e colocada na belíssima Alsácia.
A proximidade de Colmar com a Alemanha e Suíça faz com que este destino de Natal seja muito desejado nesta altura.
E para quem esteve há pouco tempo na Lapónia, tenho a dizer que, Colmar não fica nada atrás. Só não vi o Pai Natal, mas de certeza que andava por lá. Os divertimentos eram tantos e as casinhas de venda de Natal, uma mais bonita que a outra.
Passeámos pela Praça da Catedral e o Colegial Saint Martin, a Maison Adolph de 1350, a Grand Rue, a Igreja de S. Mattieu, a Maison Pfister, a Rue des Boulangers e a Rue de Serruriers, a Maison des Têtes, a Rue des Clefs, a Maison Koifus (Alfandega), um mercado com feira de Natal no interior, a Quai de la Poissonnerir, o Quartier de Tanneurs, o Café de la Lauch e a Little Venice de Colmar.
Tudo é bonito em Colmar e estava a nevar. Melhor, só se estivesse tudo a ver o jogo Portugal – Marrocos e deixassem a cidade com menos gente! Mas ainda assim, o título de Rei dos Mercados de Natal é de Colmar, não tenho uma dúvida.
Terminámos o dia com uma tarte flambée doce, uma especialidade típica da Alsácia, antes de seguirmos para a próxima paragem.
Debaixo de um grande nevão, começámos a viagem de regresso até ao nosso próximo alojamento, perto de Dijon, a nossa última paragem.
Dijon, é a capital da Borgonha, internacionalmente conhecida pelas rotas dos vinhos, cidade gastronómica e casa da também mundialmente conhecida mostarda de Dijon. Esta foi a maior surpresa da nossa viagem, uma cidade moderna, bem preservada, com bom gosto, estilos arquitectónicos que vão desde o gótico até ao art déco.
O símbolo da cidade é a Coruja e existe um percurso, “Parcours de la Chouette” que passa pelos monumentos de visita obrigatória da cidade que passo a enumerar: Notre Dame de Dijon; Maison Millère; Hotel de Vogué; Igreja Saint-Michel; Palácio dos Duques e Museu de Belas Artes; Igreja de Saint-Philibert (século XII); Catedral Saint-Bégnine; Place Darcy.
Chegámos cedo, assistimos à cidade acordar e, nem com os -4 graus que se faziam sentir, deixaram de se ver pessoas nas ruas. O percurso da coruja é muito interessante e passa pelos locais emblemáticos. As lojas bem decoradas, os carrosséis, os mercados e músicas de Natal tornaram esta paragem inesquecível.
A loja e Casa de Chá, Comptoir des Colonies é um lugar muito aconchegante para um café guloso “gourmand” e para comprar chás e cafés de todo o mundo. Tivemos ainda tempo para visitar a Maille, a loja mais antiga de mostardas, com possibilidade de degustação e bem a tempo de trazer como lembrança de Natal para os amigos “Gourmand”.
Já no aeroporto de Lyon, a caminho de casa, li esta frase na parede do aeroporto: “Rester c’est exister mais voyager, c’est vivre” (ficar é existir, mas viajar é viver). Não poderia estar mais de acordo.
Feliz Natal e um 2023 com muitas viagens. 😊
Raquel Rodrigues é gestora, viajante e criadora da página R.R. Around the World no Facebook e no Instagram.
Estadia: Hotel Silky by Happy Culture (1ª noite) Pause à la campagne (2ª noite); Les Cottages de la Norge (3ª noite)
Alugar de carro: Rentalcars (procurar com aluguer rodas de neve gratuito ou incluído)
Mala de viagem de cabine: 3 pares de calças; 3 camisolas; cachecol, luvas; roupa interior e roupa interior de neve; botas après-ski; guarda-chuva pequeno; necessaire; venda e auscultadores para dormir no avião.
“Devemos trabalhar com o que é nosso porque só as coisas da
nossa terra é que estão dentro da nossa compreensão.”
João Paulo Borges Coelho
As duas sombras do rio
Que lindo. E que bom. Que sensação tão agradável, esta, de termos orgulho nos nossos dirigentes. Acabámos de saber que o Presidente da República vai visitar a Ucrânia em 2023[1]. Enfim, claro, eu sei. Eu sei que este é um daqueles gestos relativamente fáceis de executar, e muito provavelmente também fáceis de programar para serem vistosos[2]. Mas que se lixe. A malta precisa. Pão e circo. A crise vai dura. Para todos os efeitos, estes gestos são tão bonitos, e vamos lá, por muito que possam ser demagógicos,[3] na verdade, na verdade temos de admitir que são também, antes de tudo o mais, tão indiscutivelmente corajosos que não é qualquer um que tem envergadura para eles[4]. É perante gestos destes que esperamos um eclipse momentâneo diante da vitória da Argentina no Campeonato do Mundo[5], e até um novo pico para a moral do esfalfadérrimo dirigente das Nações Unidas[6]. Mas, se o nosso PR quer visitar a médio prazo resistentes e heróis – não vai visitar já as nossas Urgências Hospitalares porquê? Eu sei que já falei nisso antes, mas entretanto o pesadelo não desapareceu. E há hospitais que nem Urgências têm. Sempre gostava de saber para onde é que os Bombeiros da região levam aquelas macas que estão sempre, sempre, sempre, sempre a chegar[7]. Enquanto houver Bombeiros, não é[8]? Senhor Presidente?…
… Falei-vos de formas de acudir aos pacientes que não foram, como é evidente, nem da escolha nem da responsabilidade do pessoal hospitalar que as executa. Percebia-se muito bem pelo tom das dezenas de mensagens e perguntas que os leitores me mandaram que quase ninguém acreditou em mim. Ou estava a gozar, ou estava a inventar, ou pronto, para efeitos de encorajar à leitura estava a recorrer indecentemente a tudo quanto era figura de estilo excessiva. E claro, estava a falar de mim. Aquilo foi um fait-divers. Não aconteceu a mais ninguém.
Mas sabem uma coisa?, a minha vida é minha e eu não sinto nenhuma espécie de interesse em andar para aqui a partilhá-la com centenas de pessoas que não conheço. E, se não gosto de falar da minha vida, ainda gosto menos de falar das minhas doenças. Só me faltava agora começar a despedir-me de toda a gente com o fatídico “então boas melhoras”. Não, eu só falo destas experiências quando percebo que elas estão a estender-se aos portugueses em geral. E ali, nas Urgências de Évora, onde ficávamos semanas a fio nas nossas macas à falta de camas nas enfermarias, os portugueses não eram só os que estavam doentes, como nós. Eram também os nossos cuidadores.
Os médicos, enfermeiros e auxiliares faziam o seu trabalho com muito carinho. Mas debatiam-se com uma tal falta de meios, aquilo ali era tudo tão extremo, que todos os dias tinham de recorrer a uma corda feita de lençóis cortados em tiras para amarrar as mãos de uma senhora à maca. Era para a protegerem de si própria. Senão, ela arrancava a algália, tirava a fralda, coçava-se até fazer sangue, desaparecia – e não podia estar sempre alguém ali ao seu lado.
Portanto, eles mantinham a máquina a funcionar com o que tinham à mão e sabiam usar.
Pelo menos com uma senhora.
Chegava a ser com duas ou três.
No fim disto tudo, os turnos eram muito lentos. E ficavam muitas pessoas a dormir em hotéis. Quando se passam dez dias numa Urgência, ouvir os telefonemas dos outros transforma-se muito depressa numa rotina. E admirar a sua dedicação também. Desculpem, mas eu vim de lá a admirá-los, mesmo.
E a considerar que mereciam ser condecorados pelo PR, seriamente.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Reparem que eu escrevi “vai visitar”, e nunca na vida “tenciona visitar”. Já ninguém duvida da seriedade do PR quando ele nos transmite as suas intenções.
[2] Reparem que, mesmo assim, nunca escrevi “demagógicos”. É evidente que o nosso PR já há muito que conquistou o nosso respeito.
[3] Pronto, lá saiu o palavrão. Para esta frase fazer sentido, tinha mesmo que sair.
[5] Vamos lá ver, eu gosto imenso de bola, e o Campeonato do Mundo é pura adrenalina. Mas sobrelotar as notícias com a vitória da Argentina – porquê? Temos alguma ligação especial com a Argentina que eu não esteja a ver, na minha imensa ignorância? Esta vitória é bastante mais simpática do que a alternativa de ter ganho a França, mas, insista-se: a Argentina é um país com o qual não temos nenhuma relação de proximidade que justifique tanta berraria portuguesa. E está bem que todos os directores de informação têm necessidade de encher os chouriços dos seus canais, mas neste momento o Mundo está cheio de notícias grosseiras que se vêem muito bem, e reparem que ainda nem o Eduardo Cabrita nem a mãe da pequena Jessica, dependendo do gosto de quem está a ler-me, começaram sequer a ser adequadamente fustigados na praça pública.
[6] António, vá lá. Então? É preciso repetir-lhe que não está sozinho? Não está, mesmo. Nenhum de nós gosta do Putin. É uma praga do Egipto ainda pior do que o Trump, nenhum deles há de ir embora tão cedo, e na realidade ninguém sabe o que é que aconteceu às Pussy Riot. Vamos lá, homem. Lidere-nos. Peitaça para fora.
[7] Estão mesmo. É um sufoco. Vamos concentrar-nos em resolver este dilema, ou quê? Somos ou não somos uma Nação?
[8] Foram os Bombeiros que arrombaram a minha porta e me levaram já inconsciente para o Hospital de Évora. Se o Governo, na sua total frieza de maioria absoluta, escolher mesmo começar a deixar de financiá-los, quem é que vai acudir às pessoas como eu?
Quando o Pedro Almeida Vieira, director do PÁGINA UM, me explicou o conceito de um novo projecto jornalístico e me convidou para aqui escrever com regularidade, logo no início desta história, fiquei dividido.
Por um lado, fico sempre contente com a possibilidade de escrever, já que essa É a minha maior paixão na vertente profissional. Por outro, tinha as minhas dúvidas sobre a sustentabilidade de um projecto que dependia integralmente dos leitores.
Não sou jornalista, a minha formacão é noutra área, mas sempre me pareceu que o mundo da imprensa era dominado por dois ou três grupos, e algumas publicacões que, ao longo dos anos, mais ou menos alinhadas, se iam aguentando. E claro, sempre com publicidade paga, o que, desde logo, garantia o silêncio em algumas temáticas.
Crónica “Visto de Fora”, desde 12 de Fevereiro de 2022.
Portanto, em teoria, a ideia do Pedro era óptima, mas a sua execucão prática parecia-me algo romantizada. Ainda assim, resolvi aceitar o convite, essencialmente porque o nosso director “é um tipo sério” – foi esta a frase utilizada para o descrever, quando uma amiga comum nos pôs em contacto algures durante a pandemia.
Um ano depois, e cerca de 150 textos mais velho, percebo o quão enganado eu estava.
O PÁGINA UM é, na minha opinião, uma história de sucesso, até ao momento. Tornou-se, em muito pouco tempo, o jornal mais lido entre os novos projectos que apareceram fora da chamada “imprensa mainstream”, e até para os consagrados da praça, serviu várias vezes de fonte para notícias de primeira página – sem que nos fizessem a fineza de referir o nome, mas isso são outros quinhentos paus, como se diz aqui na margem sul.
Com uma equipa pequena, o PÁGINA UM conseguiu fazer jornalismo de investigacão, sem amarras ou condicionamentos, e obter furos que foram depois repetidos por outros. Sem perder a qualidade da escrita ou a devoção pela verdade, o nosso jornal abanou quem precisava de ser abanado e questionou quem tinha respostas para dar. Sem nunca entrar no sensacionalismo bacoco ou nas teorias da conspiração que lhe retiraria credibilidade. Foi, essencialmente, uma redacção que, com curtíssimos meios, andou, neste primeiro ano, atrás da notícia e não a fazer de repetidor e tradutor de agências noticiosas estrangeiras.
Rubrica “Recensão Eleitoral”, entre 16 de Janeiro e 2 de Fevereiro de 2022, sobre as eleições legislativas.
E, de facto, tudo isto é possível apenas porque o financiamento é garantido por quem nos lê. Não há tabus, não há temas proibidos, não há necessidade de escolher notícias. A liberdade é total.
Pessoalmente, tem sido um enorme prazer assistir ao crescimento do PÁGINA UM, e tentar, na medida das minhas possibilidades, ajudar na caminhada.
No início de tudo isto disse ao Pedro que não tinha grande jeito para elaborar a escrita de forma a que esta pudesse sair em condições de chegar ao grande público. Nem sequer os temas me aparecem de forma lógica. Eu gosto de escrever em cima do que sinto, e isso, muitas vezes, aparece em forma de desabafo, irritação, estupefacção. Não é o tom que habitualmente se espera numa coluna de opinião.
O Pedro disse apenas: “tudo bem, escreve o que quiseres, como quiseres”. E de facto assim foi. Por vezes, nem as ****lhadas [N.D. racalhadas] que me saem no meio de um texto mais polémico ele “censura”. Ou seja, tenho mesmo a sensação que estou a escrever para um amigo que me conhece desde sempre, mas, no fim, isto chega a mais gente. De forma pura e sem filtros.
É essa a magia de escrever com liberdade e sem tentativas de agradar a esta ou aquela corrente de pensamento ou ideologia.
Isto já me valeu uns insultos, claro que sim, mas também me deu a conhecer pessoas muito simpáticas que me fazem ter vontade de continuar a escrever com regularidade. Ou seja, a experiência do primeiro ano do PÁGINA UM mostrou-me, no fundo, o mundo real, onde o cruzamento de opiniões nem sempre é pacífico, mas, quase sempre, se torna estimulante.
Crónica “Pelota em Pelota”, entre 21 de Novembro e 18 de Dezembro de 2022, sobre o Mundial de Futebol.
Agrada-me também que o PÁGINA UM se abra a diferentes correntes de opinião, e permita que, entre todos os que aqui escrevemos, se consigam encontrar opiniões literalmente opostas. É na pluralidade de pensamento que crescemos e, certamente, vamos ao encontro de mais leitores.
Tem sido um gosto e um orgulho fazer parte deste primeiro ano. Assim vocês, leitores, o queiram, e chegaremos ao fim do segundo ano também.
Depois de dois anos de pandemia e um ano de guerra (agora no radar de todos) na Europa, 2023 não promete ser muito melhor. A inflação, os baixos salários, as lutas sociais e a volta dos Excesso, garantem desde já um 2023 ao nível dos últimos três anos. Em princípio, continuaremos todos a não ficar bem, mas, com alguma certeza, o PÁGINA UM dir-nos-á o que aconteceu. Antes dos outros.
Por tudo isto, camaradas do PÁGINA UM, muitos parabéns e obrigado pela vossa dedicação. Continuemos.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.