Se analisarmos, ao longo de uma semana, os temas das suas conversas, os textos publicados em jornais e revistas e, principalmente, os programas de rádio e televisão, ficaremos estarrecidos.
Principalmente, se tentarmos perceber algumas das razões de determinadas opções.
Vemo-los, por exemplo, a analisar os valores de contratações e salários mensais de jogadores de futebol, com vinte anos, sempre na ordem das centenas de milhares de euros, e a criticarem os dirigentes dos clubes não por hesitarem em pagar esses valores obscenos mas por demorarem na assinatura dos contratos.
E justificam essa pressão por entenderem que a qualidade deve ser bem recompensada e que o clube tem de pagar o justo valor a quem lhes garanta sucesso.
Atitude bem contrária, todavia, quando a conversa muda para a gestão da “coisa pública”.
Aí, as mesmas criaturas insultam todos os governantes e políticos criticando os “ordenados principescos” que auferem.
Dizer-lhes que um ministro recebe, de ordenado mensal, menos do que alguns futebolistas juniores, de dezassete ou dezoito anos, é-lhes indiferente.
Pelo contrário, aceitam, sem uma palavra de desagrado, que um treinador que seja despedido receba, só de indemnização, mais do que todos os ministros juntos (e são muitos), durante os quatro anos dos seus mandatos.
A necessidade de se pagar bem a quem dirige o país, a quem tem de gerir milhares de milhões de euros, a quem tem a responsabilidade de zelar pela Saúde, Justiça e Educação, àqueles que têm por missão criar as leis que nos regem, é algo considerado de somenos importância.
Para cúmulo, há políticos de partidos populistas, que tudo fazem para agradar à imensidão de demagogos que nos cercam, que também garantem que não devem ser aumentados.
O resultado é conhecido: os nossos governantes são, na imensa maioria das vezes, gestores medíocres que as empresas privadas de topo jamais contratariam.
Pelo menos antes de terem passado pelo Governo, já que, depois, trazem consigo uma extraordinária mais-valia que é a lista de contactos de gente influente e poderosa nas decisões políticas.
Inexplicavelmente, grande parte da população tem a mesma atitude crítica, por exemplo, com os salários de médicos, enfermeiros, polícias e professores.
Saber o ordenado que os portugueses consideram justo pagar a quem lhes pode salvar a vida, ensinar os filhos ou garantir a sua segurança, em comparação com o que aceitam como correcto para quem lhes proporciona a alegria da conquista de uma vitória desportiva, é algo de incompreensível.
Os governantes, há que dizer, conseguem melhorar a situação com alguns estratagemas que vão passando mais ou menos despercebidos da maioria dos maledicentes.
Ao ordenado, os ministros e deputados somam uma série de subsídios e prebendas que tornam o lugar mais apetecível e remunerado.
Os polícias, e outras forças de autoridade, recebem “subsídio de risco”, como se não fosse claro que a sua profissão é de risco e como se não fosse natural que esse “subsídio” se somasse ao ordenado normal.
Ainda assim, é deprimente saber que há médicos que recebem, mensalmente, menos do que um futebolista num “prémio de jogo” que junta ao seu salário milionário.
E mais deprimente saber que há quem considere isso como normal.
Escrevem-se artigos e mais artigos de jornais com críticas violentas sempre que surge um artigo a defender um aumento aos salários dos nossos governantes.
Esquecem (ou não consideram importante) que o resultado óbvio desta opção de pagar pouco é ter, em lugares de extrema importância para a Nação, somente os mais incompetentes e os incapazes de conseguirem lugares em empresas privadas onde o mérito é condição base para se ser admitido.
A opção pela excelência, para os portugueses, limita-se a alguns desportos.
Talvez mudem de opinião no dia em que, nos hospitais, nas escolas e nas esquadras haja profissionais com o mesmo nível de competência que existe nos ministérios e no Parlamento.
Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Como muitíssimos brasileiros mal informados, estava eu tranquilo a assistir televisão – uma pacata e sangrenta partida do enlameado rúgbi inglês – quando uma nota no telefone celular me informou que uma baderna em verde e amarelo estava destroçando instalações do Palácio do Planalto (sede do Poder Executivo), do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.
Porquê mal informado?
Porque no dia anterior as águas turvas chamadas redes sociais – nas quais não navego – já haviam antecipando a possibilidade desses atos de pirataria política.
Busquei o socorro de um ditado popular para tentar começar a explicar a um amigo português, Pedro Almeida Vieira, a minha visão – perfunctória e apressada – do acontecimento:
– Arrombada a porta da casa, coloca-se o cadeado.
[N.D. Os adágios na língua de Camões têm distintas versões de um lado e do outro do Atlântico; em português europeu dizemos simplesmente “casa arrombada, trancas à porta”]
Vamos aos fatos.
Pouco horas depois da arruaça vandálica, o governador de Brasília, Ibaneis Rocha, demitiu seu Secretário de Segurança, Anderson Torres, que há poucos dias era – vejam só! – o ministro da Justiça de Jair Bolsonaro.
Onde estava Anderson em dia tão movimentado? Nos Estados Unidos, na Flórida, onde, por acaso (será?) se encontra exilado por vontade própria o ex-presidente.
Em Anderson foi posto o primeiro cadeado.
Horas mais tarde, o ministro Alexandre de Moraes, o mais temido do Supremo Tribunal Federal, afastou, por noventa dias, o próprio governador.
Segundo cadeado posto.
Ora, a tomada e destruição dos prédios mais simbólicos da democracia brasileira certamente não se restringirá a esses dois cadeados. Exigirá outros. Mas quem os colocará? E em quem?
Isso é o que veremos nos próximos capítulos da novela televisionada que teve início ontem.
Para irmos mais além dos furibundos editorais da imprensa e dos sempre inflamados discursos dos políticos, que pedem cabeças e mais cabeças, seria interessante darmos um passeio pelas esquisitices da administração pública brasileira, esquisitices que seguramente contribuíram para o descalabro de 8 de janeiro.
O Brasil é constituído por 26 Estados e um Distrito Federal (onde fica Brasília, claro). Tem um Estado que é mais populoso que muitos países: São Paulo, com seus 45 milhões de habitantes. E tem Estados com menos de um milhão de habitantes. Todos eles contam com forças policiais fardadas e armadas: as Polícias Militares.
O Distrito Federal, como diz o nome, deveria ser um distrito, ou seja, uma unidade administrativa dependente de autoridade maior. Além da capital federal, também conhecida como Plano Piloto, o Distrito Federal conta com uma dezena de povoações menores, chamadas cidades-satélites.
Criado em 1960, o Distrito Federal tem hoje 3,5 milhões de habitantes. Até 1988 era chefiado por alguém indicado pelo Presidente da República. Mas, no auge de euforia democrática da Constituinte de 1988, recebeu o direito de escolher pelo voto seu governador, três senadores, oito deputados federais e vinte e um deputados locais (chamados distritais).
Agora, simultaneamente à carnificina que foi a última eleição presidencial, o Distrito Federal reelegeu governador um simpatizante do Governo Bolsonaro: o advogado Ibaneis Rocha.
Então o paradoxo que temos hoje é: um aliado (ou ex-aliado, nunca se sabe porque os políticos brasileiros mudam facilmente de posição) de Bolsonaro no comando da cidade onde ficam as sedes das embaixadas e os prédios dos três poderes, entre os quais está o palácio de despachos do presidente Lula.
Embora tenha obtido a liberdade de escolher seus políticos, o Distrito Federal continuou recebendo verbas federais para pagar suas forças policiais e os funcionários do sistema de saúde e educação (primeiro e segundo graus). Ou seja, continuou distrito.
Ibaneis Rocha, governador do Distrito Federal (Brasília)
Essa baderna, arruaça, barbárie ou mesmo tentativa de golpe – embora anunciada pelas estrondosas trombetas das redes sociais – não foi contida pela força oficialmente encarregada de impedi-la: a Polícia Militar do Distrito Federal. Daí as punições às autoridades de Brasília.
Ocorre, porém, que o Governo Federal tem seus próprios mecanismos de vigilância: as poderosas Polícia Federal e Agência Brasileira de Informação (Abin), e mais os sistemas de informação das forças armadas que, em tese, todos eles, deveriam estar alertas para a eclosão de um atentado predatório de tais dimensões.
Foi mesmo uma tentativa de golpe?
Muita gente acha que sim. Mas as perguntas são muitas. Os que invadiram os palácios estavam à espera de alguém que viesse assumir a cabeça do complô? Quem seria esse alguém? Por que se retiraram sem resistência dos prédios públicos se eram tão numerosos?
Destruídos os palácios, chega o momento de descobrir quem financiou a vinda de tanta gente à capital (fala-se em quatro mil pessoas, transportadas em cem ônibus, centenas delas já presas). Quem são e quantos são?
Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Jair Bolsonaro (ao lado), é o Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal. Fez entretanto um pronunciamento sobre os acontecimentos de ontem.
Nas redes sociais há milhares de rostos exibidos em retratos tirados dentro dos edifícios invadidos. Serão todos acusados?
Cabe ainda uma pergunta indigesta: haverá punidos dentro do próprio governo federal que, a rigor, estava no comando da nave chamada Brasil fazia uma semana?
Enfim, só nos resta esperar que agora as autoridades brasileiras, que tanto falharam, se mostrem à altura de enfrentar esse novo desafio, que é esclarecer como, num certo domingo sem futebol, o país ganhou negativamente as manchetes de todo o Mundo.
E profetizar, como o faria um iracundo editorialista de um jornal do século XIX: “Faltarão cadeados!”
Lourenço Cazarré vive em Brasília e é jornalista e escritor, sendo autor, entre outros, dos romances Kzar Alexander, o louco de Pelotas e A longa migração do temível tubarão branco
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Cada vez que vejo os escândalos envolvendo políticos, corrupção ou a má gestão do bem público, lembro-me sempre de um prédio onde vivi há uns anos. A situação foi inesperada e um abre-olhos. Percebi – ao viver naquele prédio – porque Portugal chegou à situação vulnerável a que chegou, em termos sociais, políticos e económicos.
O prédio era novo em folha. Tinha um jardim por construir. Um problema de licenciamento nas garagens. E tinha alguns problemas de isolamento e construção para resolver.
Inaugurado o prédio, faltava criar um condomínio. Aqui começaram as lições.
Primeira lição: se quem gere o bem público tem o “rabo preso”, não vai defender os interesses do condomínio. O construtor já lá tinha uma empresa de gestão de condomínios, ao estilo chave-na-mão. Além dos preços altos que cobrava, não parecia estar virada para resolver problemas com o construtor.
Segunda lição: se queremos melhorar as coisas, temos de assumir a nossa parte e agir. Depois de consultado o mercado, dado os problemas que havia para resolver, decidimos então, eu e outros proprietários, avançar com a constituição do condomínio de raíz. Cuidar nós mesmos do que é nosso pode dar trabalho, mas conseguimos resolver os problemas, com custos mais controlados (e também conhecemos pessoas novas e podemos fazer amigos).
Terceira lição: há malta que não quer pagar a sua parte. Criado o condomínio e o respectivo Regulamento, havia que cobrar as quotas. Pois havia condóminos que não queriam pagar, mesmo que isso implicasse ficar sem luz no prédio ou elevadores.
Quarta lição: as reuniões de condomínio não só são suportáveis como até se tornam em algo divertido… após um necessário aperitivo e petiscos.
Quinta lição: tolerância zero para marquises, furos nas fachadas e nas lajes e atentado à propriedade. Informar é chave. Dar um primeiro aviso com prazo para retirada de antenas ou outras irregularidades é chave. Se um instala uma antena, todos vão querer instalar.
Sexta lição: resolver problemas envolve boa vontade e muita negociação. O jardim que o construtor não queria construir, lá está hoje construído. Mas foi preciso reunir, telefonar, explicar, persuadir, negociar. Tudo acabou bem e sem ter de se ir para Tribunal.
Sétima lição: a maioria prefere pagar a outros para gerirem “a coisa pública” só para não terem trabalho. Após algum tempo, quando o condomínio estava “montado” e a funcionar, quisemos passar a pasta da administração para cumprir o Regulamento, o qual previa que a gestão seria rotativa entre condóminos. Mas alguns condóminos “ofereceram-se” para gerir a coisa durante o tempo que fosse necessário, sendo pagos, claro. A maioria votou a favor desta opção.
Oitava lição: quem herda algo que não construiu, quer também deixar “marca”…. Com o dinheiro “público”. Ora, mal assumiu a administração, a nova gestão queria… fazer obra. Aproveitando os milhares de euros de pé de meia do condomínio, a ideia era fazer uma mega marquise…. Apesar de estarem proibidas alterações à fachada do prédio por indicação do arquitecto.
Nona lição: quem é pago para gerir “a coisa pública” … pode querer receber mais. Se há problemas ainda por resolver e um dos administradores é advogado… negociar a bem pode não ser o que procure. Sobretudo se puder “torrar” em processos o dinheiro comum.
Décima lição: há pessoas que preferem fechar os olhos a situações na administração, desde que não tenham de ser chamados a colaborar na resolução de problemas comuns.
Muitas outras lições tirei da experiência, mas sempre fiquei a pensar: isto é o país, este prédio resume o país.
No fundo, ninguém quer ter trabalho e chatear-se. Alguns pagam para que outros o façam, mesmo que não o façam bem – e até o façam mal. Não interessa! O que interessa é que OUTROS o façam! Depois, pode-se sempre reclamar. Mesmo os que não pagam, reclamam. Tudo está mal. Mas, desde que haja elevadores, a porta da garagem abra, está tudo bem.
No meu caso, vivi situações bizarras, quando estive na administração daquele condomínio. Houve de tudo: casos cómicos; voyeurismo; assédio; crimes; mistérios; romances; dramas.
Soube de outros condomínios com questões e problemas diversos. Como um prédio de gente “famosa” e rica onde havia quem tivesse arcas frigoríficas na arrecadação para poupar eletricidade em casa. Ou um prédio onde havia migrantes chineses a viver em arrecadações. Ou outro onde condóminos tiravam água da garagem para poupar água em casa.
Em cada prédio, há uma comunidade. Como cada comunidade gere o bem comum, diz muito do que se passa no país. Se há compaixão, respeito, vontade em encontrar soluções para problemas comuns… Mesmo que sejam comunidades “quebradas”, com cada um a viver a sua vida, sem querer saber do prédio, também isso é um tipo de comunidade. Uma em que o exercício do “poder” cívico foi transferido, concessionado. Fiscalizar e monitorizar essa concessão é importante. Se nem isso é feito, o “poder” não é vigiado. E pode não ser bem usado.
No outro dia, estava num jantar com amigos, e um deles estava em telefonema com um inquilino. Tinha havido uma discussão e ameaças entre dois vizinhos por causa de um lugar de garagem. Lembrei-me como era no tempo em que estive a viver no tal prédio. Era no meio da resolução de problemas que conhecíamos melhor os vizinhos. E também a nós próprios.
Penso que, no final, o principal ensinamento que trouxe daquele prédio onde vivi é que fazer amigos acabou por ser o principal. Os momentos humanos que vivemos, os jantares, o conhecer a vizinhança, o andar de andar em andar, às vezes de robe e pantufas… foi mesmo bom. Viver em verdadeira comunidade. Com tudo incluído.
(Incluindo aquele vizinho voyeur que, a dada altura, fazia disparar o alarme de incêndio de propósito para nos ver a todos de pijama.)
As imagens dos tumultos em Brasília – com hordas de apoiantes de Bolsonaro a invadirem o Supremo Tribunal Federal, o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional – deixaram a comunidade internacional em choque. Ou pelo menos assim me dizem os noticiários.
Confesso que não foi o meu caso. Quer dizer… claro que lamento o sucedido, e obviamente que me junto a quem repudia o ataque à democracia, mas, aqui entre nós, era assim tão difícil imaginar um cenário destes?
A presidência de Bolsonaro fez-me sempre lembrar uma cópia barata daquela que Donald Trump produziu – com mais cobertura mediática, claro – nos Estados Unidos. Ambos se destacaram pela falta de preparação; pela ausência de estudo em cada tema que tinham que discutir, apresentar ou debater; por decisões erradas; e por uma extraordinária ignorância.
Aliás, sempre foi esta, para mim, a parte mais difícil de entender: como é que milhões de pessoas votam em dois seres de uma ignorância épica para gerirem os destinos dos respectivos países?
A análise mais simplista é a de que o Mundo está cheio de ignorantes e, como tal, elegem um semelhante. A outra é a que, de facto, as pessoas se identificam com uma ou mais características que estes homens exibem sem pudor. Seja o racismo, a pouca simpatia pela democracia, o favorecimento do lobby das armas, o machismo exacerbado, os repetidos ataques à emergência climática e às políticas contra os combustíveis fósseis.
Bolsonaro – tal como Trump, Ventura, Le Pen, Orban e outros – integra um certo ressurgimento de uma extrema-direita que esteve enterrada (ou pelo menos mais discreta) durante décadas no Ocidente.
Pouco tempo depois de Bolsonaro ser eleito, tentava perceber, enquanto passeava pelo Rio de Janeiro, as razões que levaram um amigo a ter votado nele. De entre as várias que referiu – quase todas relacionadas com o desprezo às classes mais desfavorecidas e, em teoria, beneficiadas pelas políticas sociais de Lula e depois Dilma –, houve uma que me ficou na retina: o preço do tomate.
Dizia ele, de forma simples que, com Lula ou Dilma, um quilo de tomate custava mais de 5 reais. Agora, custava pouco mais de 2 – portanto, a vida dele estava melhor. E pouco lhe importava se o Bolsonaro era um ignorante que envergonhava o país em cada declaração pública. O tomate estava mais barato. Ponto final.
Foi o mesmo tipo de argumento que uma amiga usou, numa conversa, para me explicar porque votaria em Donald Trump. Segundo ela, os benefícios fiscais nas pensões seriam maiores com Trump, logo, seria ele o dono do voto. Independentemente de todas as asneiras feitas e assumidas, da perseguição às minorias, do racismo desmedido e da absoluta falta de preparação. Com Trump e Bolsonaro, naquele dia, havia um pouco mais de dinheiro no bolso. E chegava como argumento para escolher o sentido de voto.
O problema destes representantes de movimentos políticos com pouco respeito pelas regras democráticas vem, normalmente, depois. No caso de Bolsonaro, percebe-se agora que a sua queda veio trazer incómodo a alguns poderes instalados. É difícil acreditar que um ataque desta dimensão tenha sido organizado apenas nas redes sociais e sem o patrocínio de quem ficou a perder com a vitória de Lula. Fala-se na extrema-direita organizada e apoiada pelo sector do agronegócio que, previsivelmente, não terá com Lula a mesma cobertura que teve com Bolsonaro, para quem as questões ambientais eram histórias da carochinha. Mas ainda é cedo para grandes conclusões.
O próprio Bolsonaro não contribui para a pacificação e claramente não aceitou as regras do jogo. Prova disso foi a fuga para Miami, de forma a não fazer parte da passagem de poder para Lula da Silva. É engraçado perceber como todos estes políticos de extrema-direita têm algo em comum: apresentam-se como alternativas que chegam para lutar contra o sistema e os poderes instalados, mas, assim que o sistema diz que já não os quer, fazem o que podem para alterar os princípios básicos da democracia.
Se pensarmos um bocadinho, é mais ou menos aquilo que vemos, com alguma regularidade, nas eleições um pouco por todo o continente africano: mal o candidato derrotado não aceita os resultados, começam os tumultos e, de vez em quando, uma guerra.
A prática estende-se ao continente americano e, quiçá, um destes dias à Europa, com a subida mais do que confirmada da extrema-direita em todo o continente.
O que é que se pode esperar de alguém que faz do debate político um ringue para espalhar ódio e criar muros entre pessoas? No mínimo, que os seus apoiantes vejam nessa forma de comunicação a maneira de reclamar e legitimar decisões.
Jair Bolsonaro, ex-presidente do Brasil.
Esta ideia de legitimar algo errado, porque no momento nos traz algo de bom (por exemplo menos impostos), fez-me lembrar a situação da Suécia que, nas últimas eleições, fez com que um partido de extrema-direita, com discurso assumidamente racista contra emigrantes, se tornasse a segunda força política mais votada.
Sendo eu emigrante, e pai de outro emigrante, escuso-me a comentar a razão de achar este resultado preocupante, mas noto as reacções dos locais. A primeira é a de ver alguma alegria com a redução do preço dos combustíveis. O fim do apoio aos carros eléctricos e gasolina mais barata (barata…quer dizer, cara, mas não tão cara, é melhor assim), em princípio vai alegrar a maior parte das pessoas; afinal, comprar um carro eléctrico ainda é um luxo que não está ao alcance de todos.
Da mesma forma, endurecer as políticas de emigração e não deixar entrar mais gente, vai animar quem gosta de ver o Mundo a uma só cor. Ou seja, para já, haverá certamente quem fique contente com as políticas introduzidas pelos “bolsonaros” suecos.
O diabo está nos detalhes.
Por exemplo, com a dificuldade de preencher as vagas de trabalho ou a dificuldade crescente de obter um visto de residência (vários meses por vezes), já há falta de gente hoje com óbvias consequências para a Economia. Fechar as portas não ajuda. O mesmo com a ligeira redução de impostos. Ficamos todos com um pouco mais de dinheiro no bolso, mas a componente do Estado Social é afectada. Por exemplo, uma das propostas é a redução da comparticipação estatal no subsídio de desemprego. Ou seja, pensamos que tudo funciona bem hoje – e algures, lá para a frente, na doença, na velhice, no desemprego, pagaremos o preço.
Lula da Silva, presidente do Brasil, ontem em Brasília.
Contudo, tal como Trump, Bolsonaro, Ventura, Orban ou Le Pen, que vendem sonhos para hoje e países cheios de muros onde apenas uma cor é permitida, estas ideias vingam e trazem votos. Da Escandinávia até ao Palácio do Planalto, o ódio vende.
Resta agora saber, no caso brasileiro, como vai Lula governar um país completamente polarizado, onde o lado derrotado insiste em não aceitar os resultados nas urnas. Quanto tempo demorarão a encontrar os responsáveis pela destruição das últimas 24 horas? Isto é, se alguma vez a culpa for entregue a alguém.
Certo, mesmo certo, é que a subida dos extremismos, um pouco por todo o mundo civilizado, da violência e do ódio como forma de fazer política, é hoje inegável. Abriu-se a caixa de Pandora há menos de uma década, e agora dificilmente a fecharão.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
O Expresso fez 50 anos. Deveria ter felicitado o jornal, onde até colaborei durante cerca de sete anos, quatro dos quais de uma forma muito intensa (devo ter escrito cerca de meio milhar de artigos).
Não o fiz, porque não sou hipócrita.
O Expresso foi um dos jornais que, no final de Dezembro de 2021, participou activamente numa campanha para decepar à nascença a credibilidade do PÁGINA UM e a minha credibilidade, apenas por seguir uma linha de pensamento e de intervenção jornalística contrária ao regime sobre a pandemia.
Enquanto o PÁGINA UM exigia informação; jornais instalados, como o vetusto Expresso, seguiram a narrativa. Acriticamente. Não fez jus ao papel do jornalismo em tempos difíceis. Isento e crítico.
O galardão da Ordem da Liberdade que recebeu na sexta-feira passada é, na verdade, um prémio pelo servilismo dos últimos anos.
Em todo o caso, concordo com uma frase do actual director do Expresso: ”É preciso pagar pela informação de qualidade”.
Mas como a frase foi dita num evento patrocinado pela Altice, BPI, Hyundai e Navigator (nem num aniversário o marketing dos media mainstream descansa), não sei se, para João Vieira Pereira (director do Expresso), a qualidade da informação é conceito a ser avaliado pelos anunciantes e patrocinadores ou pelos leitores.
O cofre terá sido inventado por Alejandro Fichet e era um lugar de guardar bens queridos por valor ou emoção. Em todas as casas, os cofres fizeram furor e deram origem a cenas de faca e alguidar até que os bancos se tornaram lugares credíveis onde estavam garantidos os depósitos dos cidadãos poupadores. Os cofres tornaram-se instituições.
Os mealheiros são outra coisa diferente; serviam para guardar pequenas poupanças disponíveis a qualquer momento. No século XVIII guardava-se muito dinheiro em potes de uma cerâmica tipo pygg e, por corruptela linguística, se confundiu com pig e assim desataram a surgir os mealheiros com formas de porco.
Um mealheiro não é um cofre! Uma carteira não é um alforge. Um cofre não pode ser uma churrasqueira, porque os bens lá guardados não se trituram, não servem para desbaratar. No entanto, à Rua dos Bacalhoeiros em Lisboa lá está a churrasqueira O Cofre que podia ser a sede nacional do Partido Socialista. Ali se faz bom churrasco.
Portugal é o Fort Knox dos avençados de um partido de poder. Lá na América é no Kentucky; aqui, fica situado ao Largo do Rato, em Lisboa, e ali se distribui emprego, se criam desnecessidades para catapultar existências e ali se produz o nepotismo mais medíocre.
Deve haver um curso em Forte Knox de como delapidar o dinheiro alheio, como destruir as poupanças dos portugueses, como subtrair em impostos o que os esforçados produzem e como entregar em migalhas aos mais necessitados, apenas o suficiente para que se perpetue a miséria.
Este Forte Knox onde a conversa mais usual é: “O que podes dar ao Luís? Ou: ”Tens por aí uma direcção de Hospital, ou uma instituição que dominamos”? Um lugar na Misericórdia? Na CP ou noutra instituição pública também serve. Na TAP? Na Banca? OK. Ele só fez a licenciatura, mas está pronto!
Terminada a conversa em Forte Knox, vai-se à churrasqueira O Cofre queimar mealheiros. Este é o país da mãozinha onde os portugueses confiaram as suas poupanças. Neste momento, pagam a maior quantia jamais vista de impostos directos, indirectos e taxas.
Também estamos perante a maior produção de obra pública de necessidade duvidosa jamais pensada, mesmo comparando com os tempos do cavaquismo betonado. Não estamos a fazer auto-estradas, nem a dizer que se está a construir a Torre Eiffel, nem uma nova Expo, mas estamos a sonhar com milhões de euros que vão ser entregues pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) sem a capacidade de vigilância pela oposição.
Um governo de esquerda, corajoso e sem mácula, colocava homens do André Ventura a percorrer os contratos e as obras do PRR – quem não deve não teme. Na churrasqueira O Cofre é importante tostar o Chega e as suas potenciais vantagens para o sistema.
O problema português está na oposição, que tem de pensar seriamente neste problema: o que leva o povo a iludir-se com o homo larapiens (feliz expressão do Dr. Cândido Ferreira em artigo recente)? O que impede a confiança na oposição? O que prejudica a imagem dos partidos na hora do voto?
Uma das razões é a não clara distanciação dos partidos aos seus militantes suspeitos de abuso do poder. Outra é a dificuldade em definir linhas que marcam lideranças sem demagogia e sem medo. Até lá o homo larapiens está em Forte Knox a cuidar dos mealheiros alheios e aforrar os cofres que tem em casa. Entretanto, brinda na churrasqueira O Cofre.
Diogo Cabrita é médico
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Desde a sua fundação, o PÁGINA UM quis mostrar que não era apenas mais um jornal. Mesmo com parcos meios, tomámos a decisão de pressionar as entidades públicas a disponibilizarem informação e procurámos quebrar o manto de obscurantismo que a Administração da república foi criando, perante a passividade da imprensa mainstream.
Não há memória de um jornal, antes do PÁGINA UM, que tivesse solicitado tantos pareceres à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) como fizemos desde finais de 2021.
No entanto, apercebemo-nos que os pareceres não-vinculativos não bastavam. As entidades públicas (ou melhor, as pessoas que as lideram, incluindo políticos) estão a marimbar-se para a CADA e para a transparência.
Por isso, tomámos a resolução de criar o FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM, em Abril do ano passado, logo que reunimos as condições para ter o patrocínio do Dr. Rui Amores, como advogado do PÁGINA UM – e em condições excepcionalmente especiais.
Nos últimos nove meses, graças aos leitores do PÁGINA UM, conseguimos “revolucionar” a luta contra o obscurantismo reinante, e mesmo com parcos meios dirigimo-nos ao último reduto de um sistema democrático que não funciona: entrámos com processos de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa.
Em oito meses, entrámos com 14 processos de intimação para acesso a documentos administrativos, sempre também invocando, além da legislação neste sector, o papel fundamental da imprensa e o direito de acesso à informação. Não receámos consequências nem tivemos contemplações, fosse qual fosse a entidade envolvida que nos recusasse acesso a documentos.
Como saldo, por agora, das nossas acções, tivemos:
Duas vitórias definitivas, já transitadas em julgado (Inspecção-Geral das Actividades em Saúde; e Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos).
Cinco vitórias em primeira instância (Conselho Superior da Magistratura; Ordem dos Médicos; Ministério da Saúde; Administração Central do Sistema de Saúde; Entidade Reguladora para a Comunicação Social), que se encontram em recurso no Tribunal Central Administrativo Sul. No caso do processo do Ministério da Saúde, relativo ao acesso à base de dados e outros documentos, foi o PÁGINA UM que recorreu por lhe ter sido concedida apenas razão parcialmente.
Quatro processos em curso no Tribunal Administrativo de Lisboa (Infarmed; Instituto Superior Técnico; Comissão da Carteira Profissional de Jornalista; e Ministério da Saúde).
Duas derrotas em primeira instância (Banco de Portugal e Ministério da Saúde), com recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul.
Uma derrota definitiva, com acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, relativo ao processo contra o Infarmed para acesso à correspondência com a Agência Europeia do Medicamento.
O PÁGINA UM esteve ainda envolvido em providências cautelares, tendo vencido um dos casos (Público), encontrando-se o outro (envolvendo a Entidade Reguladora para a Comunicação Social) em recurso no Tribunal Central Administrativo Sul.
Além do trabalho extraordinário do Dr. Rui Amores – que envolve não apenas as petições iniciais, mas sobretudo uma quantidade imensa de requerimentos, alegações e contra-alegações –, quase sempre contra sociedade de advogados pagos principescamente, esta ciclópica luta do PÁGINA UM em prol da transparência da Administração Pública só foi possível com o extraordinário apoio dos nossos leitores.
Desde Abril do ano passado – portanto, em cerca de nove meses – recolhemos, em termos líquidos (descontadas as comissões da plataforma MightyCause), um total de 12.642,90 euros que serviram assim para suportar as custas dos 14 processos de intimação e das duas providências cautelares, bem como diversos e modestos gastos de representação. Em termos de receitas, acresce os recebimentos de partes das despesas processuais em processos ganhos (1.300,50 euros).
Os encargos inerentes a estes processos são enormes. Apenas em taxas de justiça são 306 euros pela entrada do processo, a que acresce similar valor em caso de recurso, mesmo que tenhamos ganhado na primeira instância.
Em processos que saíamos vencedores, além da documentação, podemos ser ressarcidos em parte das despesas. Mas se perdermos – como já sucedeu num processo contra o Infarmed, que acabou por mostrar que o “segredo comercial” das farmacêuticas vale mais do que a Saúde Pública –, acrescem mais despesas para o PÁGINA UM. Por exemplo, se somarmos as taxas de justiça e as custas processuais desse processo perdido, as despesas do PÁGINA UM aproximaram-se dos 1.500 euros.
Neste momento, o balanço contabilístico do FUNDO JURÍDICO é de 1.067,87 euros no final de 2022. Podem consultar AQUI a discriminação das receitas e despesas, e também AQUI a discriminação das transferências líquidas da plataforma MightyCause.
Sobre o balanço daquilo que já fizemos com estes processos – grande parte ainda em curso – em prol da transparência da Administração Pública e em defesa de uma plena democracia, devem ser os leitores a avaliar.
Em todo o caso, o actual balanço contabilístico do FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM – com um saldo pouco superior a 1.000 euros no final do ano de 2022– está a condicionar fortemente as acções futuras junto dos tribunais, sobretudo pela morosidade das decisões que nem sequer permitem que haja ressarcimento das taxas de justiça.
Nessa medida, este Editorial, além de servir para prestar contas, constitui um apelo de cidadania. O jornalismo do PÁGINA UM, e a sua função cívica, ainda mais conflituando com poderes instalados, só tem uma possibilidade de vingar: com o apoio efectivo dos leitores.
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Esta semana, a nossa imprensa mainstream brindou-nos com um sem-fim de pérolas. Para começar, deu enorme destaque à mortalidade geral em 2022, que praticamente esteve igual a 2021 e muito acima de 2020, anos da terrível “pandemia”, em que grande parte do tempo a população se encontrava “desprotegida”.
Apesar de um processo de vacinação sem paralelo – em particular com substâncias experimentais – e de hospitais com taxas de ocupação bem abaixo de anos anteriores, conhecer as razões de tamanha mortalidade foi, para a nossa imprensa e especialistas, similar ao famoso jogo do livro ilustrado dos anos 80 e 90: Onde está o Wally?
Para o jornal Observador, “parte da resposta pode estar noutras infecções respiratórias e nas ondas de calor no Verão”, acompanhando, desta forma, o novo ministro da Saúde, que atribuía tal desastre aos fenómenos climáticos.
Já para o “especialista” Manuel Carmo Gomes, a “morte por outras doenças pode estar associada, de uma forma indirecta, à covid-19, que atinge uma grande variedade de órgãos”. Estudos que suportem tal afirmação?! Ficámos apenas a saber que, aos poucos, os nossos órgãos podem ser devorados por um vírus, podendo, até, quem sabe, provocar-nos a morte!
Mas o especialista não terminou por aqui, prognosticando que a “mortalidade por covid-19 e outras doenças associadas deverá reduzir nos próximos meses, devido à percentagem da população vacinada, mas esta situação pode ser posta em causa com o surgimento de uma nova variante.” Vai descer, mas pode subir, tudo depende da próxima variante, que, como sabemos, por regra, é sempre pior, mais contagiosa e mortal que as anteriores!
Para terminar em beleza, até tivemos a famosa tirada filosófica: só sei que nada sei! Era assim que a SIC Notícias dizia ter encontrado o Wally: “As autoridades de saúde não apresentam uma explicação concreta para este excesso de mortalidade”; no entanto, fazia-nos manter a esperança, uma espécie de tenhamos fé, já que o “Instituto Ricardo Jorge está a conduzir um estudo aprofundado sobre a mortalidade em Portugal, mas as conclusões ainda não são conhecidas”. Aguardemos. Sentados, de preferência.
Outro dos assuntos que marca esta semana é o “surto” de covid-19 que assola a China, iniciado a partir do abandono da política de covid-zero – há semanas era a luta pela liberdade, mas agora, aparentemente, um erro de proporções bíblicas.
A agência Lusa noticiava desta forma pungente o que se passava na cidade de Xangai: “Em dois hospitais da cidade, a Agence France-Presse viu hoje centenas de pacientes, a maioria idosos, deitados em macas, dispostas nos corredores de serviços de emergência saturados”.
Não há nenhuma fonte, base de dados, órgão oficial… Nada, apenas uma equipa de jornalistas que viu, mas não mostrou. Viu que tudo se encontrava num caos, viu idosos desesperados que se dispunham ao longo de corredores. Além de verem sem mostrar, tomem nota: terão visto dois hospitais (0,5%) e tiraram logo a conclusão de que se trata de um grave surto, numa cidade com 26,3 milhões de habitantes, que terá em torno de quatrocentos hospitais.
Continuando com o relato: “Muitos estão a receber infusões de soro fisiológico ou ligados a cilindros de oxigénio ou com monitores cardíacos. A maioria está enrolada em cobertores e vestida com casacos grossos ou gorros. Alguns pacientes parecem não ter vida. Outros são atendidos fora do prédio, na calçada, devido à falta de espaço no interior das instalações.”
Reparem: em tempos, o vírus era mortal; para evitarmos a morte, tínhamos de manter o “distanciamento social”, mas agora, aparentemente, esse risco desapareceu, atendendo que os jornalistas entram nas salas onde estão os pacientes com a “peste negra”, ainda mais num país de passos controlados.
Ou, se calhar, engano-me, pois os jornalistas podiam estar protegidos com as substâncias experimentais salvíficas e aproximar-se, sem medo, para escutar a “tosse, gemidos e respiração ofegante” dos idosos que se espalhavam pelos corredores da morte dos hospitais de Xangai. Não tenhamos dúvidas: na China, um surto covid-19 é um facto que não levanta quaisquer dúvidas. Quem duvidar é seguramente um negacionista.
Para nos proteger desta catástrofe amarela, as autoridades europeias – leia-se, Comissão Europeia – começaram a propor “medidas”, como seja o regresso das fraldas faciais nos voos procedentes da China. No fundo, era apenas alargar o tempo de uso das mesmas pelos chineses, já que, por lá, as carregam a toda a hora e não custaria nada levá-las por mais umas horas num avião – nem parece tão insensato; juro, é sincero!
Note-se que em Dezembro de 2020 a Organização Mundia de Saúde (OMS) tinha-nos garantido que “são limitadas e variáveis as evidências científicas que corroboram a eficácia do uso de máscaras por pessoas saudáveis na comunidade com o intuito de prevenir a infecção por vírus respiratórios, incluindo SARS-CoV-2. Um grande estudo randomizado, de base comunitária, no qual 4.862 participantes saudáveis foram divididos em um grupo que usou máscaras cirúrgicas e um grupo controle, não encontrou diferença na taxa de infecção pelo SARS-CoV-2. “
Não são só de medidas destas que fala a União Europeia, também propôs oferecer “vacinas à China… a fim de ajudar o governo de Pequim a conter um surto da doença”. Estranho! Há meses, uma executiva da Pfizer, o principal fabricante das salvíficas “vacinas” do mundo ocidental, admitia em pleno Parlamento Europeu que a “vacina” contra a covid-19 nunca tinha sido testada para prevenir a transmissão.
Temos duas hipóteses: ou mudaram de opinião ou pretendem perpetuar a sua galinha dos ovos de ouro, em modo delegado propaganda médica. O jornalismo mainstream não nos esclarece.
Para terminar, a pérola final: tivemos o aparecimento da subvariante BQ.1.1, obviamente, e como sempre, “significativamente mais resistente às vacinas bivalentes actualizadas”, conclusão obtida com um estudo – atente-se –, em 29 pessoas! Trata-se, segundo a notícia, da “Neta da Ómicron”, certamente, e sem quaisquer dúvidas, mais perigosa que a sua Avó.
A notícia é rematada da seguinte maneira: “Mantenha a calma e evite deslocar-se aos hospitais”. Para o jornalismo mainstream, não há nada como morrer em casa.
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.
A vida tem uma forma bizarra de brincar com as nossas emoções mais profundas, que se torna perdidamente comovente se aceitarmos que vão forças maiores do que a nossa nos comandos, e que a gente nunca as vê até esbarrar acidentalmente com as suas consequências. Por exemplo, algures durante os nossos vinte anos houve uma companhia fundamental que uma noite, subitamente, driblou os melhores e mais desesperados de todos os nossos esforços humanos, e desapareceu numa transparência incompreensível, deixando atrás de si um vazio tão penoso que, de início, nos paralisa. Mas agora, quase quarenta anos mais tarde, a partir do momento em que voltamos a evocá-la com saudade e doçura, essa figurinha delicada começa outra vez a ganhar formas. E, se calhar, vai dar-se o milagre: vai mesmo regressar às três dimensões da nossa vida e iluminá-la por dentro num sopro suave. Quando o Bruno apareceu à minha porta aí pelas sete da tarde, fazia frio, tinha começado outra vez a chover, já estava escuro, e ia ser Noite de Natal. Vinha trazer a minha prenda com o sorriso que só os verdadeiros amigos sabem fazer. Depois de eu lhe ter dito tantas vezes que queria, especificamente, uma cadela, teria alguma razão para desconfiar daquela Maria Alice acabada de chegar, enroscadinha a dormir dentro de uma caixa de sapatos?
Como os cães vivem muito menos do que nós, entram e saem das nossas vidas em ciclos relativamente previsíveis de uns dez anos de camaradagem perfeita, e depois deixam-nos desfeitos quando partem. É frequente jurarmos que não voltaremos a ter outro cão, para evitarmos voltar a sofrer tanto. Mas, ao mesmo tempo, o sonho de entrar outro cão na nossa vida torna-se irresistível. Passam uns anos, voltam-se a criar-se as condições, e começamos a sonhar com outra grande aventura.
Os nossos cães, sistematicamente, são presenças oníricas que vão entrando e saindo, numa lógica que é só deles e nunca nossa, do curso das nossas vidas.
Agora, os melhores dos nossos cães podem é entrar-nos e sair-nos da vida numa sequência de reencarnações desconcertantes que são eles que inventam. E nós próprios, inadvertidamente, somos parte integrante dessa invenção.
Por exemplo, eu não faço ideia de qual foi o quadrante do Universo que plantou em mim esta semente, nem como, nem quando. Mas eu sabia, e o Bruno também, que a sua terna e minúscula prenda de Natal tinha necessariamente que ser uma rafeira alentejana chamada Maria Alice.
Como é evidente, nunca soube de onde vêm as minhas ideias, nem porquê. Mas sei que esta ideia, em particular, me despontou na cabeça assim já toda completa e retocada em 2011. Foi quando me sentei, por fim, a escrever em oito meses seguidos de imensa paixão o romance que vinha a gatafunhar em apontamentos desde há muito. Todo ele assentava na descrição precisa, e quase insuportável, da vida dos chefes de GEs[1] durante os dois últimos anos da Guerra Colonial moçambicana. Chamava-se esse romance, no seu todo, NÃO PODEMOS VER O VENTO. Este título formou-se porque os Portugueses nunca viram nada, parte porque as operações militares envolvidas eram top secret e parte porque nenhum Português quer admitir que viu outros Portugueses a cometer crimes de guerra da mais inaceitável barbaridade. E tornou-se NÃO PODEMOS VER O VENTO, também, porque o suposto herói da história, que em 1962 liderou operações destas e agora, proprietário de um Turismo de Habitação em Trás-os-Montes, no Solar brasonado da sua família, recomposto e calmo ao contrário de muitos outros ex-camaradas alcoólicos, cocainómanos, anti-sociais, ou de outra forma marcados para toda a vida pelo Stress Pós Traumático[2], parece de início ser suficientemente forte para falar dessas loucuras de juventude e de muitas outras, mas na realidade não – é um acabado mitómano, que atribui a si próprio um sem-fim de situações que foram vividas por outros homens. Explorando com tanta paixão a vida deste aristocrata com passado de assassino, que acaba rapidamente na cama com ele, aparece então, no papel principal feminino, uma psicóloga da actualidade toda despachada, que vive de mãe solteira com as suas duas gémeas iguaizinhas num duplex do Bairro Alto com as janelas voltadas para imagens lindas de colinas cobertas de casarios. Com as três mulheres, no mesmo duplex, vive, ainda, uma quarta mulher. É uma rafeira alentejana chamada Alice, que na minha cabeça se chama sempre Maria Alice em benefício da beleza das frases.
Era certamente pelo insólito. Quem é que lembraria de inventar um cão daqueles, assim tão enorme, que no entanto se enquadra harmoniosamente num duplex da Lisboa antiga, na companhia de mais três ciclos hormonais femininos? Só eu, mesmo – e, nestas pequenas coisas, gosto mesmo de mim. O conceito da Maria Alice tornou-se-me tão grato que o incluí logo no meu romance seguinte, TODOS OS CAMINHOS. Nessa altura, a Alice vive com a mulher num palacete minúsculo em Alfama agraciado por um jardim com um limoeiro e uma nespereira. Nos dois romances que escrevi a seguir, e decorrem um imediatamente a seguir ao outro, ambos ainda à espera de verem a luz do dia, a mulher que vestiu a pele da personagem principal foi refugiar-se com a Alice numa casinha antiga do Penedo onde a vista desce a serra inteira para mergulhar vertiginosamente no mar.
Desde que regressei do meu último período de docência e investigação nos Estados Unidos, em 2018, que respondo a toda a gente que não sinto qualquer falta de namorados, nem de companhias de pessoas. Preciso é de ter um cão.
Agora o Bruno veio cá dar-me uma prenda de Natal incrível, constante da minha ficção antes de constar da minha vida, que tinha dois meses e era a Maria Alice. Uma rafeira alentejana de pêlo escuro e remates brancos nas patas, na cauda, no peito, e no focinho, absolutamente perfeitinha, que um dia há de vir a ser enorme mas por enquanto só tem dois meses, ainda só conhecia o leitinho da mãe, e portanto é uma bolinha de pêlo hilariante, toda independente, absolutamente adorável, e sempre muito Dona Disto Tudo. Aliás, começou logo a rastejar lentamente pela sombra sem me fazer qualquer pergunta, a tentar roubar-me todas as roupas que eu tivesse acabado de vestir para poder andar a arrastá-las pela casa com um ar sonsinho, e finalmente aninhar-se em cima delas, toda feliz da vida com o cheiro da Mãe. Eu tinha acabado de chegar do hospital e não tinha a menor energia para sair à rua e apanhar chuva e frio, de maneira que passámos os primeiros quatro dias na cama a brincar uma com a outra a coisas giras de miúdas, incluindo descobrir bebés no espelho, alimentar vaidades, e aprender a caminhar com elegância. Só mesmo na manhã do quinto dia, quando a levei ao Veterinário, no debute social em que as meninas de boas famílias vão ser desparasitadas e levar a primeira volta das vacinas, é que descobrimos, com grande surpresa, que afinal o meu bebé não se chama Maria Alice.
E foi assim que passou logo ali a chamar-se Sebastião.
É normal, porque já era noite, o monte tinha pouca luz, e os cachorrinhos de dois meses ainda são muito pouco diferenciados.
O que é maravilhoso é estudar a maneira como o Sebastião, que inicialmente era um cãozinho de olhos quase fechados, que o Germano Almeida me trouxe do Porto em 1984, dentro de um cabaz de galináceos daqueles feitos com vime duro e colorido, voltou tranquilamente a entrar-me na vida como um raio de luz perfeito. Foi só eu quebrar um silêncio de décadas e voltar a falar dele quando recordei o meu casamento com o Meguinha na última semana.
Esse Sebastião partiu em 1985. Era um jovem boxer malhado muito bonito, com uma grande devoção tanto por mim como pelo Meguinha. Dormia aos pés da nossa cama e passava a noite a rastejar sem ruído pela colcha acima, sempre apostado na proeza de se deitar entre nós de costas sobre o lençol, com a cabeça nas almofadas e as patas da frente para trás, tal e qual como nos via aos dois a dormir. Quando conseguia instalar-se nesta posição difícil própria das pessoas sem ter sido sequer interceptado a meio e recambiado em pleno voo para a posição de origem, ficava cheio de orgulho em si próprio e não se tirava dali antes de nós o vermos, radioso – e não conseguirmos impedir-nos de nos partirmos a rir.
Houve então um dia em que o cãozinho foi comigo ao ensaio do meu grupo de teatro para crianças, numa sociedade recreativa que tinha por sede, sala de reuniões, e pavilhão de espectáculos, uma vivenda antiga em Marvila, grande e decrépita, que já devia ter sido bonita mas já mal se notava. Na sua ingenuidade de cachorro feliz que ainda não suspeita da maldade que pode estar encoberta à superfície do mundo, lambeu veneno de ratos, e morreu nessa mesma noite. Tinha acabado de entrar o mês de Maio. E, de repente, os dias tinham-se posto de novo extremamente frios e chuvosos.
Em Julho, tão recompostos quanto possível da perda do nosso cachorro, fomos os dois passar quinze dias de férias ao Porto Santo. Enquanto lá estávamos, numa pensão no alto da colina toda virada para o mar, ganhei depressa o hábito de agarrar na máquina de escrever e vir sentar-me todas as tardes, sempre à mesma hora, na luz quente e azul do terraço. Foi assim, perdidamente feliz, a retocar em coros cada vez mais polifónicos sons e sílabas e ideias com uma segurança crescente e voraz, que compus o meu primeiro romance, o AGRIÃO! Que veio a ser publicado pela Relógio d’Água no Outono.
O Agrião era o cão da matriarca de uma família inteira com três gerações de subúrbios muito feios atolados em bairros camarários onde se realojavam nos anos 60 as pessoas das barracas destruídas para construir o pilar da ponte[3]. Uma noite, subitamente, dormiam eles todos para ali ao molho numa grande paz à excepção dos que se recobriam da sombra dos cantos para poderem pinar em pé[4], esse cão acordava-os a ganir e a uivar numa aflição horrível, rebolava-se pela casa toda no que só podia ser uma dor intolerável, e morria ao fim de meia hora de enorme e insuportável pandemónio.
Capas do AGRIÃO! (1984) e do PONTO PÉ DE FLOR (1991) Duas homenagens sentidas ao Sebastiãozinho que o Germano Silva me trouxe do Porto, no comboio lento que era o único que existia antes de existir o luxo asiático do Alfa, dentro de um cabaz de vime duro cor de laranja e roxo, tapado por duas abas, daqueles onde as pessoas costumam levar e trazer os galináceos para o mercado.
Poucos dias depois, a matriarca arranjava maneira de fazer uma fractura exposta do colo do fémur, e, em consequência, morria no hospital. Tinha mais de noventa anos, e é muito raro um velhinho conseguir reendireitar-se duma violência destas. O médico que mais tarde vinha fazer a ronda e a encontrava morta dizia para o assistente que de certeza que aquela digna e veneranda idosa tinha, por fim, encontrado o pretexto para morrer que já andava a procurar antes do acidente ortopédico propriamente dito. Porquê, e era esta a última frase do meu primeiro romance, claro que ele, médico, não saberia dizer. Mas sim, a senhora ficara, ultimamente, sem qualquer razão para continuar a viver.
Morreu-lhe subitamente o cão, que era o último elo de uma cadeia cada vez mais ténue, onde já não entrava uma única pessoa, que ainda a prendia ao seu mundo rural, o único que, para ela, fazia sentido – mas que perdera de vez há menos de um ano. E, aqui chegados, os leitores saberiam de tudo isto, mas o médico não.
Aquele médico, que vinha concluir o romance a título da grande homenagem que eu queria prestar à sabedoria incrível do meu Pai, só percebia logo era que aquela idosa precisava de um pretexto para morrer. Estes instintos suicidas silenciosos são extraordinariamente delicados, e portanto ninguém fala deles. No entanto, são pequenos detalhes que os médicos com muita experiência de pessoas, e com muito carinho por elas, sabem logo à partida que pode acontecer aos seus pacientes se porventura eles vierem a perder, de todo, a vontade de estarem vivos.
O AGRIÃO! foi a minha primeira obra de ficção, mas a história da morte do meu Sebastião a meio da noite tal como descrita no livro em grande detalhe, saída de memórias ainda extremamente frescas, a ganir de dores horríveis às mãos de um veneno cujo efeito ninguém conseguiu evitar, foi uma história verdadeira. Não me tirou a vontade de continuar a viver. Mas, em grande medida, tirou-me logo ali a vontade de, só com 25 anos, continuar a ser a cabra daquela Clara Pinto Correia, com tudo o que as pessoas achavam que já sabiam a respeito da dita gaja.
A Clara Pinto Correia é um personagem de banda desenhada pelo qual eu nutro ainda hoje uma embirração profunda, e já a nutria naquela altura. Assim que pude, deixei Lisboa para trás e fui dedicar-me à Ciência completamente escondida pelas neves pesadas de Buffalo. Ao menos na América ninguém me conhecia. E, ali, as pessoas só me haviam de apreciar se eu fosse excelente a executar o meu trabalho de descoberta e dedução.
De maneira que, ainda por cima impelida pela excitação de estar mesmo a ver coisas que ainda mais ninguém tinha visto antes, me matei para ali a trabalhar. Em ano e meio publiquei dois papers em Journals com referee. E, entretanto, preparei na íntegra, em silêncio, pela noite dentro, a soma completa de uma outra escrita – aquela que, toda burilada em Português, viria a dar origem ao romance de louvor à promiscuidade em que as mulheres se entregam às grandes amizades umas com as outras, o PONTO PÉ DE FLOR.
O PONTO PÉ DE FLOR também tem um cachorrinho.
Capas do NÃO PODEMOS VER O VENTO (2012) e do TODOS OS CAMINHOS (2018) Por estas páginas andava já a infiltrar-se a presença pronta a tornar-se real de uma rafeira alentejana toda sofisticada chamada Alice, o que, na minha cabeça, se dizia Maria Alice para que o som das frases ficasse mais bonito. Ora acontece que este ano, na véspera de Natal, quando o meu grande amigo Bruno daqui de Estremoz (nem mais nem menos, pessoal, trata-se exactamente do Bruno do Zé Russo, que tanto quanto eu sei é um homem maravilhoso, e não tenho medo de ninguém) foi ao monte do amigo dele, ao pé do Vimieiro, trazer-me essa mesma cachorrinha que ainda estava com o resto da ninhada a mamar na mãe – enfim, já era noite, eles aos dois meses mal se distinguem, e foi assim que veio antes de lá um cachorrinho. E que, em consequência, voltei a andar por aí feliz da vida, de Sebastiãozinho ao colo como aos 24 anos. É de uma grande sobranceria completamente estúpida e extremamente perigosa, esta ideia de que podemos, nós próprios que não somos nada nem somos ninguém, modificar à nossa vontade o nosso próprio destino. O nosso próprio destino engole-se, não se modifica. No meu caso, por exemplo, está na cara que o meu destino se chama Sebastião. Não se chama cá nenhuma modernice tipo Maria Alice.
E esse cachorrinho, completamente criado à imagem e semelhança do meu Sebastião e trazido do Porto para Lisboa dentro de um cabaz de galináceos por um amigo protector da mulher que por um breve momento perdeu o Norte, vai ser o único companheiro que essa alma inquieta traz consigo, ao colo, a dormir, muito calminho porque ainda é muito pequenino, durante os seus quatro dias de peregrinação entre as trevas quando está a procurar o caminho para a luz e inicialmente nem sequer consegue ver onde é que essa luz se encontra. Na sua tranquilidade profunda e inocente de pequeno pássaro que dorme numa ilha deserta, tal e qual como acontecia com o Sebastião se por acaso me fosse dado ficar sozinha com ele, o cãozinho confortava e fortificava a mulher durante toda a corrida daquela imensa montanha russa.
Para disfarçar, baptizei esse cachorrinho adormecido de José de Oliveira Cosme. Era um dos senhores de OS PARODIANTES DE LISBOA, que tinha uma rubrica pessoal chamada A VIDA É ASSIM. Alguns leitores ainda se lembravam, outros não. Mas todos os leitores acharam o nome tripartido do cachorrinho minúsculo absolutamente hilariante.
Este romance foi publicado em 1991, ainda voltou a ser falado de novo quando ganhou um grande prémio literário que já não existe, foi vendido para outros países, ainda tive que ajudar alguns tradutores completamente perdidos na poeira daquele calão feminino cerrado – e depois foi flutuando para longe, e levou com ele a memória do boxer que chegou à minha vida adormecido dentro do tal cabaz que o Germano me trouxe do Porto.
Toda a gente sabe dos poderes misteriosos da nossa memória.
Foi só eu chegar ao conto de fadas da semana passada e revelar como foi que o Sebastiãozinho passou pelas nossas vidas. As memórias luminosas dele voltaram logo todas para o meu lobo frontal num tropel tão grande, e tão poderoso, que bastou a menina aqui do veterinário de Estremoz me dizer que afinal a rafeira alentejana chamada Maria Alice tinha que mudar de nome porque era um rapaz. Eu respondi imediatamente, antes de pensar, sem questionar de todo a origem das minhas palavras,
“OK, tudo bem, então ponha antes Sebastião na ficha.”
Bem vindo, Sebastiãozinho. Vais ver, a vida é mesmo tão emocionante como te tem parecido que é nestas primeiras semanas que passaste comigo. Embora darmos juntos um grande passeio por dentro dela, para tu começares a descobri-la? Só nós os dois? O que é que achas?
Vamos?
Enquanto fores um bebé, eu protejo-te. Aos seis meses já hás de ser um cão enorme que foi criado especificamente para as funções de guarda ao dono, portanto nunca me perguntas nada, nunca me exiges explicações – proteges-me tu, sem mais conversa, como só os cães sabem fazer.
Isto vai ser bué bom.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
NOTA SOBRE O TÍTULO: Fui verificar, e conferi sem esforço algum que podia dedicar-me à minha vontade às Urgências Pulseira Laranja onde se carregam as baterias dos leitores. Há vários colegas meus do PÁGINA UM que estão a prestar um óptimo serviço à causa no que toca a zurzir na miserável classe política que nos saiu na sorte. E nesta sorte cabem os políticos venais da maioria absoluta governativa, e os políticos piores que medíocres da sua oposição. Alguém que fique tão desesperado como eu só de pensar no chorrilho de platitudes que ainda vamos ter que ouvir do Luís Montenegro até ele ficar sem voz, por favor levante a mão. É só para eu me sentir assim como que um bocadinho menos sozinha.
[1] Grupos Especiais. Por regra, constavam de um chefe branco, que treinava e liderava vinte comandos pretos. Foram as mais cruéis de todas as Forças de Comando no final da Guerra, responsáveis, por exemplo, pelos tenebrosos massacres de Wiriyamu. A seguir ainda apareceram os GEPs (Grupos Especiais Pára-Quedistas), mas não foram propriamente ainda mais úteis que os GEs. Foram, melhor que ninguém, certamente, ainda mais um passo em frente na escalada de loucura total que estas duas últimas organizações representaram. A Guerra já estava perdida, e Kaulza de Arriaga sabia isso.
[2] Eu sei que estes padrões existem apenas porque convivi com vários homens destes, e estive presente em dois dos seus encontros de confraternização em Fátima. Tirando isso, é impossível sabermos números ou padrões. O próprio Afonso de Albuquerque, que depois da Guerra foi O ÚNICO psiquiatra a acompanhar os soldados que voltaram para Portugal com stress pós-traumática, me disse quando eu escrevi o romance que o Regime tinha interditado todo e qualquer estudo relativo à existência de soldados portugueses com traumas. Um soldado português é sempre um moço valente.
[3] Esses bairros camarários eram meios que eu conhecia muito bem. Tomei como modelo o Lote 1, ao pé da minha casa, onde passava o tempo a organizar para os miúdos os ATLs dos dias de escola e as colónias de férias de Julho. As mães deles eram várias vezes as minhas senhoras da alfabetização. Os pais, era raro vê-los. Iam meter-se compulsivamente nos copos quando voltavam de todas aquelas fábricas ali à volta.
[4] Detalhes destes não constam só do pano de fundo do FEIOS, PORCOS, E MAUS. Naquela altura, naqueles bairros, aquelas mesmas pessoas que se tornaram famosas por plantarem couves nas banheiras como faz o clã desta ficção viviam mesmo assim.
Uso o LinkedIn com alguma frequência porque, trabalhando como freelancer, é ali que tenho o meu “cartão de visita”, para me apresentar a quem me queira contratar. É a minha feira de Carcavelos, onde tento vender as minhas t-shirts originais e cosidas no tear de Arraiolos.
Tento ter algum cuidado nas escolhas profissionais que faço, porque o meu curriculum vitae (CV) é mesmo tudo o que tenho para me garantir o emprego seguinte. Portanto, procuro não meter o pé na lama muitas vezes.
Marina Gonçalves, ministra da Habitação, em foto oficial como secretária de Estado da Habitação.
Em 21 anos de trabalho, tenho – fui ver hoje – 19 entradas no CV. Se passar a papel dará umas sete folhas, presumo. Quase um emprego/ projecto por ano, portanto. Alguns porreiros, outros onde mais valia ter estado quieto, mas, de uma forma geral, não me envergonho do meu percurso no mundo do trabalho. E concluo que, bem ou mal, em todos os sítios por onde passei, aprendi – mais não seja, aprendi aquilo que não queria fazer.
É relativamente normal, na minha área, ver-se CVs deste género, com passagens por várias empresas, posições e responsabilidades. Ao longo dos anos, alguns desviam-se para cargos de gestão, quando “a cabeça já não quer”, como diz a minha avó; outros seguem a especialização técnica num nicho qualquer de mercado. É o banal numa progressão. Pelo menos no mundo da engenharia ou, vá lá, do mercado privado de trabalho.
Por ter passado por ele, e por ainda hoje sentir na pele as dificuldades e as exigências, fico sempre ligeiramente indignado quando observo CVs de ministros do Governo, de secretários de Estado, de assessores e pessoal desse calibre. Não quero nem devo generalizar, mas, a cada escândalo de nova nomeação, lá aparece um percurso profissional com zero relevância fora do aparelho partidário.
As nomeações do PS fazem-me lembrar um antigo professor de Antenas que dizia, criticando os seus pares: “como é que estes gajos vos explicam para que serve um satélite se nunca saíram dos muros da universidade para ver um?”.
Há uns tempos, uma ministra, já não me lembro qual [N.D., mas o director do PÁGINA UM sabe e relembra: Mariana Vieira da Silva], recrutou aquele rapazinho de 21 anos [N.D. Tiago da Cunha, que já fez entretanto 22 “maduros” anos, no passado dia 24 de Novembro] para assessor a troco de 3.732,76 euros e zero anos de experiência. E, agora, António Costa promove Marina Goncalves a ministra da Habitação para o novel ministério.
O LinkedIn de Marina Gonçalves é um achado. Em Novembro de 2011, depois de concluir o curso de Direito, iniciou o estágio e, em simultâneo, tornou-se assessora jurídica do grupo parlamentar do PS. Andam tantos advogados a gritar contra os estágios não remunerados quando, afinal, é possível começar a carreira logo no grupo parlamentar do PS.
Marina Gonçalves, ao lado de João Galamba (novo ministro das Infraestruturas), na tomada de posse como ministra da Habitação, a ser cumprimentada por António Costa.
O maior grupo no Parlamento, que vota e decide leis, teve a assessoria de uma advogada com zero anos de experiência. Acho brilhantemente irónico.
Marina Gonçalves é, certamente, uma profissional de eleição, porque, ao fim de três anos a assessorar em estilo, foi promovida a adjunta de uma secretaria de Estado. Ao fim de pouco mais dois anos já era chefe de gabinete da secretaria de Estado. Um ano depois, passou para outra chefia de gabinete, mas já de ministro (Pedro Nuno Santos). Pelo meio, ao fim de oito meses, fez escala na Assembleia da República como deputada do PS. E depois, menos de um ano passado, acaba nomeada secretária de Estado da Habitação. E daí, em dois anos e meio, chega a ministra pela mão de António Costa, para substituir uma das metades de Pedro Nuno Santos.
Entre o dia em que começou o estágio em advocacia até chegar a ministra, passaram cerca de 10 anos. Sem um dia de trabalho que fosse fora do PS e em contacto com o mundo real. É esta senhora que vai agora decidir sobre as politicas de Habitação, uma das áreas mais problemáticas num país com um custo de vida galopante, onde as pessoas são cada vez mais pobres.
Marina Gonçalves, quero acreditar, será certamente uma jovem cheia de mérito e extraordinariamente competente. Só assim se entende este percurso em constante promoção. Mas o estranho – eu pelo menos acho estranho – é que raramente se encontram percursos deste estilo no chamado mundo real. Já na política portuguesa, nomeadamente nas esferas de PS e PSD – o famoso Centrão, que tudo come –, são o pão-nosso-de-cada-dia, tão banais que já não despertam indignação.
Afinal, se até o Relvas chegou a ministro, e nós aceitámos, então qualquer Marina pode reclamar o posto.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.