Categoria: Opinião

  • Os ucranianos que morram, mas sem atrapalhar a análise do senhor major-general

    Os ucranianos que morram, mas sem atrapalhar a análise do senhor major-general


    Não sou grande parceiro das teorias da conspiração, mas fico sempre a fazer contas de cabeça de cada vez que o major-general Isidro de Morais Pereira abre a boca para falar sobre o “teatro de operações” na Ucrânia.

    Aqui há um par de dias, ainda podem ver o vídeo na CNN Portugal, em debate com outro major-general, Agostinho Costa, disse o nosso Isidro que “não tenho dúvidas que a resolução do problema passa pela derrota militar da Rússia no campo de batalha”.

    A afirmação surgiu ao fim de mais de 10 minutos de debate sobre a pressão que a Comissão Europeia (a Ursula) estaria a fazer sobre o Governo alemão para que entregassem os mais modernos carros de combate (tanques Leopard 2) à Ucrânia.

    Debate de anteontem na CNN Portugal na CNN entre os generais Isidro de Morais Pereira e Agostinho Costa.

    A primeira coisa que eu quero referir é que ando há 10 meses a ver se, de alguma forma, os Isidros entusiastas da guerra conseguem ter razão – por uma vez que seja. A certeza das análises dos amigos do “as long as it takes“, se de facto fossem precisas, far-me-iam um favor dos grandes.

    Desde logo porque não gosto de gente que invade território alheio. Da Rússia aos Balcãs, do Médio Oriente ao norte de África, um invasor é um invasor. Mantenho a minha opinião desde o início deste conflito. A outra razão, mais egoísta, admito, é que deixaria de ouvir que o “custo de vida aumentou por causa da guerra na Ucrânia”. Não me levem a mal os mais sensíveis, mas o Donbass interessa-me pouco. Na luta pela vida, estou mais interessado em garantir que a da minha família não é afectada por guerras de milionários e impérios.

    O problema é que, por mais que queira acreditar, o Isidro e amigos não acertam uma. Todas, mas todas as análises, esbarram, duas ou três semanas depois, com a realidade. Não sei se o estimado leitor se lembra, mas algures em Abril do ano passado, garantiram-nos que o exército russo já não tinha munições. Todos os dias recebíamos um relatório com o número de blindados que tinham sido abatidos. Eu julgo que ouvi alguém dizer que apenas sobrava 10% do efectivo russo no terreno.

    Depois veio a desmotivação. A desorganização. A moral em baixo. Os russos eram retratados, pelos nossos especialistas, como gente que andava ali perdida, sem liderança, a serem dizimados pelos bravos ucranianos.

    Seguiram-se as sanções, a economia de guerra, o boicote ao gás e ao petróleo. A certeza de que os russos ficariam isolados e sem capacidade de produzir qualquer armamento. Lembram-se da história do chip? Já ninguém vendia integrados à Rússia e, por isso, andavam apenas com equipamento velho retirado dos gulags. Vieram os reservistas que seriam mal treinados e dizimados pelos ucranianos. Depois eram os ataques em todo o território como resposta à explosão da ponte na Crimeia.

    Segundo o Isidro – ou um dos seus camaradas, já nem me lembro bem –, a Rússia só teria mísseis de longo alcance para mais dois ou três ataques. Depois era a emboscada em Kherson… os soldados russos andavam disfarçados de civis pela cidade, quando todos percebíamos que era uma retirada encenada.

    Fico sempre espantado com a precisão destas informações. Imagino um espião ucraniano nos armazéns do Daguestão a contar ogivas e a mandar um sms ao Rogeiro, que, por sua vez, publica no grupo de WhatsApp que tem com o Isidro e a Helena Ferro Gouveia.

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    Deve ser este o processo.

    Enquanto nos vendem esta narrativa – de que a Rússia está quase a colapsar –, os russos, com todos os defeitos que lhes são apontados, lá vão fazendo o caminho deles. Parecem aqueles cães que mordem um osso e, por mais pancadas que levem na cabeça, não o largam.

    Um amigo, no meio de uma destas discussões sobre a persistência russa, perguntava-me se eu sabia quantas guerras tinham eles perdido nos últimos 100 anos.

    Bem, assim de cabeça, lembro-me da retirada do Afeganistão – não conseguiram mudar nada do que pretendiam – e que também foram derrotados na primeira guerra da Chechénia. Depois voltaram lá mais duas vezes até arrasarem aquilo tudo, e hoje, como se percebe, os chechenos formam batalhões para combater os ucranianos.

    Portanto, o que a História nos diz é que os russos, quando entram num conflito, raramente voltam de mãos a abanar. Mesmo que morram mais do que os adversários, no fim, são eles que ditam as leis.

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    A realidade na Ucrânia parece não andar longe do que a História nos explica no último século. Apesar dos esforços do Isidro e demais guionistas, para nos convencerem de que a Rússia é um gigante com pés de barro, a verdade é que, com toda a Europa e os Estados Unidos a apoiarem o exército ucraniano – com dinheiro, armas e mercenários –, afinal ainda não conseguiram derrubar quem dizem estar preso por arames desde Abril de 2022.

    As munições parecem não acabar, e de cada vez que o Zelensky vai a correr fazer um discurso a pedir mais armamento, os russos arrasam outra cidade. Foi assim quando precisavam das armas de longo alcance, dos caças, do sistema de defesa Patriot e agora dos Leopard 2.

    Enquanto os nossos especialistas nos garantem que 100 carros de combate serão o ponto de viragem (já não sei quantas vezes ouvi isto), a Rússia está a recuperar 800.

    Quando dizem que eles estão sem mísseis, atacam 10 cidades ao mesmo tempo.

    Quando estimam que o dinheiro esteja no fim, usam drones iranianos, baratinhos e letais.

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    Quando nos juram que já não fazem negócios, aparecem os indianos a bater à porta com os jerricans.

    Quando afirmam que a Alemanha se livrou da dependência do gás, ouvimos sindicatos a ameaçar parar tudo porque não há combustível para produzir.

    Nada, absolutamente nada do que nos dizem casa com a realidade. Se fosse numa televisão ucraniana, num jornal da resistência, compreendia-se. Há que dar ânimo a quem combate. Mas no outro lado da Europa, por que razão andará gente com visibilidade para os portugueses, mas absolutamente irrelevante para a guerra, a vender-nos uma realidade alternativa? Acharão que a CNN Portugal passa nos abrigos de Kiev?

    É mais ou menos pacífico desejar que o invasor seja expulso. Do Donbass e de qualquer sítio invadido, gosto sempre desta nota para as pessoas que acham que a expansão de impérios começou ontem. Porém, não é por gritarmos muito que um desejo passa a realidade.

    blue and yellow striped country flag

    No terreno, pelo que se percebe, os russos estão a agarrar a Crimeia e o Leste da Ucrânia com mão-de-ferro. Este discurso irresponsável da Comissão Europeia de “apoiar o tempo que for necessário” – ou até as opiniões de especialistas, como Isidro de Morais Pereira, que nos garantem que a resolução do conflito passa pela derrota da Rússia no terreno – é de uma loucura total.

    Parecem vendedores de farturas a não querer que chegue o fim da feira. Enquanto forem os ucranianos a morrer, e nós por cá a dizer, no quentinho do estúdio, que é para continuar, tudo bem para o Isidro e demais moralistas de pacotilha.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Contratos ou a morte da Democracia, oferecida em holocausto (no sentido bíblico) às Farmacêuticas

    Contratos ou a morte da Democracia, oferecida em holocausto (no sentido bíblico) às Farmacêuticas


    Nas primeiras fases da pandemia criou-se o mito que todos íamos (ou podíamos) morrer.

    Depois, fizeram-nos crer que, por artes da Ciência, as maravilhosas farmacêuticas – que já o eram antes, e não estou a ser irónico, porque efectivamente foram concedendo anos de vida às últimas gerações – tinham criado um Santa Maná (vacinas) que, não ressuscitando mortos, salvavam os vivos da perdição.

    E foi tudo a eito, independentemente da leges artis, do princípio da prudência, dos princípios éticos. A urgência de supostamente nos salvarem a todos (mesmo àqueles grupos que não precisavam de ser salvos porque nunca estiveram em perigo) colocou a Democracia em suspenso. Pior: foi amordaçada.

    person holding white plastic bottle

    E, em seguida, colocadas as Farmacêuticas em andores, para serem veneradas, se impôs um dogmático silêncio. Ah! herege de uma figa, como ousas questionar o preço de uma vida que pode ser salva por uma vacina? E se houver negócios e negociatas? E trampolinices e intrujices entre os queridos políticos e as farmacêuticas?

    Cala-te, evitaram o fim da Humanidade…

    [… à enésima pandemia]

    Portanto, foi isto que sucedeu…

    Que nos sucedeu.

    Que sucedeu à Democracia por conta da pandemia.

    Foi vendida. Foi oferecida em holocausto, no sentido bíblico do termo, como oferenda de sacrifício e devoção, ao Deus da Farmácia – às Farmacêuticas.

    Última página das alegações do Ministério da Saúde considerando que basta a consulta do site da Comissão Europeia para conhecer informações sobre as condições de compra de vacinas contra a covid-19 pelo Estado português.

    Que Democracia é esta quando se pede acesso a contratos com dinheiros públicos, e o Ministério da Saúde – e um Governo de um país com quase nove séculos de existência e quase meio século depois da saída de uma ditadura – responde que não os dá?

    E não apenas por alegadamente estar em curso uma conveniente auditoria (que parece desculpa), mas sobretudo porque tudo foi feito pela Comissão Europeia, burocrática instituição, nunca eleita pelos cidadãos dos diversos países.

    Que contratos são esses das vacinas contra a covid-19 assinados pela Comissão Europeia? O Ministério da Saúde português remete para um site específico de transparência da Comissão Europeia, e assume mesmo nas suas alegações perante o Tribunal Administrativo de Lisboa que é o suficiente, que está lá tudo aquilo que um cidadão e um jornalista merecem saber.

    Será?

    Vejamos.

    O primeiro contrato assinado em Janeiro de 2021 (SANTE/2020/C3/043) com a BioNTech-Pfizer tem 104 páginas. Destas, 44 páginas estão truncadas em partes variáveis (por vezes em mais de 90% do texto). Há 46 páginas completamente sombreadas a cinzento, tapando todas as palavras. Somente em 14 páginas (13,5% do total) se conhece o conteúdo integral. Entende-se o contrato? Não.

    Ainda vivemos em democracia?

    O segundo contrato com estas duas farmacêuticas foi assinado em Fevereiro de 2021 (SANTE/2021/C3/005) tem 90 páginas. Destas, 44 páginas estão truncadas em partes variáveis (por vezes em mais de 90% do texto). Há 32 páginas completamente sombreadas a cinzento, tapando todas as palavras. Somente em 14 páginas (15,6% do total) se conhece o conteúdo integral. Entende-se o contrato? Não.

    Ainda vivemos em democracia?

    Existe ainda um anexo aos contratos (SANTE/2021/03/020) com 77 páginas. Destas, 45 páginas estão truncadas em partes variáveis (por vezes em mais de 90% do texto). Há 17 páginas completamente sombreadas a cinzento, tapando todas as palavras. Somente em 10 páginas (13,0% do total) se conhece o conteúdo integral. Entende-se o contrato? Não.

    Ainda vivemos em democracia?

    Página 15 do primeiro contrato assinado em Janeiro de 2021 (SANTE/2020/C3/043) entre a Comissão Europeia e a BioNTech-Pfizer

    O primeiro contrato com a Moderna (SANTE/2020/C3/054), assinado em Dezembro de 2020, tem 70 páginas. Destas, 49 páginas estão truncadas em partes variáveis (por vezes em mais de 90% do texto). Há 8 páginas completamente sombreadas a cinzento, tapando todas as palavras. Somente em 13 páginas (18,6% do total) se conhece o conteúdo integral. Entende-se o contrato? Não.

    Ainda vivemos em democracia?

    O segundo contrato com a Moderna (SANTE/2021/C3/010), assinado em Fevereiro de 2021, tem 66 páginas. Destas, 48 páginas estão truncadas em partes variáveis (por vezes em mais de 90% do texto). Há 7 páginas completamente sombreadas a cinzento, tapando todas as palavras. Somente em 11 páginas (22,9% do total) se conhece o conteúdo integral. Entende-se o contrato? Não.

    Ainda vivemos em democracia?

    O contrato com a Johnson & Johnson (SANTE/2020/C3/047), assinado em Outubro de 2020, tem 72 páginas. Destas, 38 páginas estão truncadas em partes variáveis (por vezes em mais de 90% do texto). Há ainda 1 página completamente sombreada a cinzento, tapando todas as palavras. Somente em 33 páginas (45,8% do total) se conhece o conteúdo integral. Entende-se o contrato? Não.

    Ainda vivemos em democracia?

    O contrato com a AstraZeneca, assinado em data incerta, tem 41 páginas. Destas, 24 páginas estão truncadas em partes variáveis (por vezes em mais de 90% do texto). Somente em 17 páginas (41,5% do total) se conhece o conteúdo integral. Entende-se o contrato? Não.

    Ainda vivemos em democracia?

    O contrato com a CureVac (SANTE/2020/C3/049), assinado em data incerta, tem 67 páginas. Destas, 30 páginas estão truncadas em partes variáveis (por vezes em mais de 90% do texto). Há 18 páginas completamente sombreada a cinzento, tapando todas as palavras. Somente em 19 páginas (28,4% do total) se conhece o conteúdo integral. Entende-se o contrato? Não.

    Página 4 do contrato entre a Comissão Europeia e a AstraZeneca,

    Ainda vivemos em democracia?

    O contrato com a Sanofi e GlaxoSmithKline (SANTE/2020/C3/042), assinado em Setembro de 2020, tem 63 páginas. Destas, 27 páginas estão truncadas em partes variáveis (por vezes em mais de 90% do texto). Há 12 páginas completamente sombreadas a cinzento, tapando todas as palavras. Somente em 24 páginas (38,1% do total) se conhece o conteúdo integral. Entende-se o contrato? Não.

    Ainda vivemos em democracia?

    Cansada de tapar vergonhosamente as páginas com sombreados a cinzento ou a negro, recentemente a Comissão Europeia alterou o método, retirando simplesmente os trechos e substituindo-os por três asteriscos (***), tendo no início do contrato disponível ao público a seguinte referência:

    CERTAIN INFORMATION IDENTIFIED WITH [***] HAS BEEN EXCLUDED FROM THIS EXHIBIT BECAUSE IT IS BOTH (I) NOT MATERIAL AND (II) IS THE TYPE THAT THE REGISTRANT TREATS AS PRIVATE OR CONFIDENTIAL.

    [certas informações identificadas com (***) foram excluídas deste anexo porque são (i) não materiais e (ii) são do tipo que se trata de informação particular ou confidencial.]

    Deste modo, o obscurantismo faz-se de uma forma mais pulha: a censura não é tão chocantemente visível, e por isso mesmo mais perniciosa.

    Assim, o contrato com a Novavax, em data incerta, tem 78 páginas, das quais 57 páginas com asteriscos, significando assim que somente 21 páginas (26,9% do total) não terão sido alvo de cortes.

    Ainda vivemos em democracia?

    Como chegámos aqui?

    Como recuperamos a Democracia? Ou já desistimos de viver em Liberdade?

  • Quem gritou lobo?

    Quem gritou lobo?


    Uma vez mais continua o carrossel, por entre o verdadeiro, o falso, o dúbio, a fofoca e o informativo, o cavalinho sobe e desce com música infernal de realejo, e nós, a tratar da nossa vida, só queremos evitar ficar nauseados.

    Um dos papas finou-se, um dos futebolistas gera nova polémica, um dos políticos de carreira gera novo desfalque, atrás da cortina fica um sem-fim de cenários ainda mais grotescos.

    Mais que tráfico de influência, estamos numa guerra de influências. Cada um no seu recreio, num infinito e imensurável parque infantil de quem grita mais alto, quem domina a brincadeira, quem dita as regras do jogo.

    brown wolf standing boulder during daytime

    Amigos imaginários que proclamam fábulas, rufias que perdem o domínio da caixa de areia para outros rufias aparentemente maiores e com piadas mais originais. Nas turbas vemos ecos de vozes a entrincheirarem-se pela sua suposta equipa. Que circo.

    Humildes, vaidosos, vaidosos humildes. Omnívoros, carnívoros, vegans, trans, lobbies, colaboradores e trabalhadores, ladrões ou presumíveis inocentes, figuras públicas com gripe e teste de gravidez de virose VIV (very important virus)!

    Façam like, façam subscribe, não se esqueçam de partilhar, mensagens que circulam de mão em mão a prometer o apocalipse climático, viral, pandémico, de reacções adversas, de genocídio, de eugenia. Usem máscara, o novo acessório do século XXI, tão indispensável como um chapéu nos idos anos 20 de outra era, um, dois, esquerda, direita!

    Alguém pare isto por favor.

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    As figuras de louça continuam nos seus poleiros. Um na China, outro na Rússia, outro nos Estados-assim-um-pouco-unidos. E nós a correr na roda do hamster. Corre, corre, corre. Grita, grita, grita. Squeak!

    Pelo caminho ficam migalhas que órfãos por imposição, aflitos, seguem, confusos em florestas de metal escuro, terra queimada, terra de ninguém, viva a liberdade. Sais à rua de cravo na mão, sem saberes que sais à rua de cravo na mão a horas certas, né filho?

    Não!

    Tiranos são eles todos. Não é mais um que outro. Não há demónios a leste mais diabólicos que os demónios a oeste. Não há heróis libertadores da praça pública dos passarinhos azuis mais confiáveis que qualquer estátua de bronze no país da bandeira bicolor. Carne é o que somos para eles todos, dispensável, supérflua, para canhão ou para a barriga do lobo.

    Quem nos grita que isto é uma guerra, seja ela qual for, seja qual for a trincheira, é sempre quem nos merece desconfiança!

    O que nos sobra? Impotência e revolta? Conformismo e cansaço?

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    Haverá trincheira que mereça o vivermos em lodo, lama e vermes?

    Lembro sempre de 1914. Que podia ter sido 1917, 1918, 1945 quando as forças aliadas lançaram últimas vagas de destruição total.

    Valeu a pena?

    Em 1914, no Natal, “surgiu um sentimento pacífico espontâneo nas zonas de guerra, quando as tropas de todos os exércitos europeus celebravam o nascimento do Salvador.

    (…) Na manhã seguinte, soldados alemães deslocaram-se até à linha de arame farpado britânico e soldados ingleses foram ao encontro deles. ‘Pareceram ser muito amigáveis e trocámos lembranças, estrelas para os bonés, insígnias, etc.’, anotou Hulse. Os ingleses ofereceram aos alemães pudins de ameixa, ‘de que eles gostaram muito’.

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    (…) A Legião Estrangeira Francesa estava numa parte da linha onde a luta se interrompeu, os que tinham sepultado os corpos voltaram ao trabalho e foram trocados tabaco e chocolates. Entre os legionários estava Victor Chapman, um americano que se tinha graduado em Harvard em 1913. ‘Durante todo o dia não houve troca de tiros, e na noite passada a tranquilidade foi absoluta’, escreveu aos seus pais a 26 de Dezembro, ‘mas no entanto fomos instados a estar alerta. Esta manhã, Nedim, um turco pitoresco e acriançado, começou de novo a erguer-se na trincheira e a gritar para o outro lado. Vesconsoledoss, um cauteloso português, disse-lhe que não se expusesse daquele modo, e então, e porque falava alemão, fez alguns comentários mostrando a cabeça. Voltou-se para descer e – caiu! Uma bala tinha-lhe entrado pela parte de trás do crânio: gemidos, uma poça de sangue.’

    Sir John French recordou mais tarde que quando lhe foi dado conhecimento daquela confraternização, ‘Dei de imediato ordens para evitar qualquer nova ocorrência de tal conduta, e disse aos comandantes locais que deveriam ser estritamente cumpridas, o que teve como resultado um boa quantidade de problemas.’”

    Cuidado com quem nos incita a lutar. Cuidado com quem nos diz que é mais humano ou existencial fazê-lo quando, na verdade, o mais humano é sempre trocar cromos e jogar ao berlinde.

    Riam. Riam de quem vos manda odiar. Talvez a rir se deixe de ouvir os uivos.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM. O trecho citado consta nas páginas 76 a 78 do segundo volume de A Primeira Guerra Mundial, da obra de Martin Gilbert, editada em Portugal pela A Esfera dos Livros em 2007.

  • Disparem que é governante!

    Disparem que é governante!


    Abriu a caça ao Governante no Poder.

    As Oposições, é sabido, tentam mostrar as fragilidades de quem governa no intuito de fazer com que os eleitores, num próximo acto eleitoral, mudem o seu voto e lhes dêem o poder.

    Tarefa sempre complicada e quase impossível quando se enfrenta uma maioria absoluta.

    Então, há que aproveitar todos os falhanços, ampliá-los e discuti-los à saciedade.

    Em Portugal vive-se um desses momentos.

    city landscape photography during daytime

    A Oposição não dá tréguas e raro é o dia em que não apareça com um novo escândalo.

    Há que reconhecer que o Governo se tem posto a jeito, com erros que roçam o ridículo, mas a verdade é que é preciso algum atrevimento para se apontarem falhas a adversários políticos, quando rodeados de companheiros conhecidos pelos mesmíssimos erros e falcatruas.

    Ouvir, por exemplo, Luís Montenegro criticar o Primeiro-Ministro António Costa por não escolher os membros das suas equipas com critério, minutos depois de tentar explicar a demissão do Vice-Presidente da bancada parlamentar do PSD, uma das suas poucas escolhas, num caso que, inclusivamente levou à prisão preventiva de dois implicados, é bem demonstrativo da desfaçatez de alguns políticos.

    Mas esse desplante é generalizado e não há Partido que lhe escape.

    No Bloco de Esquerda houve a perseguição a Ricardo Robles, por causa de especulação imobiliária.

    No PCP, acusações ao genro de Jerónimo Sousa que seria beneficiado pela Câmara de Loures presidida pelo comunista Bernardino Soares.

    No CDS ninguém esquece nem os submarinos de Paulo Portas nem os sobreiros de Nobre Guedes e Telmo Correia.

    person holding black binoculars

    No PSD há uma infinidade de nomes de ministros e deputados, com as acusações mais diversas, e de gravidade diferenciada, que vão desde uma cunha bem paga a homicídio, passando por desvio de milhares de milhões de euros da Banca e fuga a impostos.

    No PS, de autarcas a actuais e ex-membros do Governo, há uma quantidade de gente implicada em processos judiciais.

    Percebe-se que a Oposição tente fazer cair um Governo em descrédito.

    O objectivo é substituí-los no Poder, repete-se, mas estranha-se que não entendam que também os substituirão no papel de alvos de quem tem, como hobby, ou mesmo como profissão, destruir quem tem autoridade para mandar, mesmo que apoiado em eleições livres e democráticas.

    O mais grave em tudo isto é que, quando alguém é denunciado publicamente, com o apoio da comunicação social, passa imediatamente à situação de culpado “sem margem para dúvidas”.

    São conhecidas as “certezas” do nosso Povo de que “não há fumo sem fogo” e de que “se é acusado alguma coisa terá feito”.

    black and silver dslr camera on brown dried leaves

    Há que acreditar, cegamente, na Justiça e só criticar quando se considerar que as penas são “brandas” (desde que não toque nos seus, obviamente).

    Mas será assim?

    Os números da Direcção-Geral da Política da Justiça dizem o contrário e de modo aterrador:

    “As percentagens de absolvição por “carência de prova”, em processos-crime findos em julgamento de primeira instância em Portugal, oscilam entre 40,4 e 48% do total de arguidos não condenados – estes, na sua maioria, por desistência de queixas em crimes semipúblicos ou particulares, segundo os últimos números oficiais disponíveis.”   

    Como exemplo indicava-se que, em sete anos, foram absolvidos 154.569 cidadãos, o que dá uma média de 65 por dia, incluindo sábados, domingos e feriados. De salientar que o máximo admitido por peritos europeus para o total de arguidos não condenados é de 12%.

    O mais certo é que muitos dos que hoje são arrastados pela lama virão a ser, amanhã, absolvidos.

    Lembram-se de perseguição ignóbil ao ex-Ministro da Defesa (que se viu obrigado a pedir a demissão) Azeredo Lopes? Resultado do seu processo: absolvição.

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    Recordam Fátima Felgueiras que se viu forçada a fugir para o Brasil para não ficar presa preventivamente? Resultado do seu processo: absolvição.

    Claro que haverá quem culpe a ineficácia da Justiça que, no entender de muitos, falha sempre que absolve ou condena com pena “pequenas”.

    O grande problema do nosso País é que, para além de se adjectivarem os políticos como corruptos, lhes paga como funcionários de segunda.

    Resultado: os Governos, e o Parlamento, têm muitos dos seus lugares preenchidos por gente incapaz, imatura, populista, vaidosa e incompetente.

    Com os resultados que se conhecem.

    Se pelo menos “disparássemos” (*) sobre esses…

    (*) Sentido figurado, claro. Fica o alerta para quem é alérgico à ironia.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A pobreza que aí vem

    A pobreza que aí vem


    Dei por mim no supermercado a encher sacos de papel com a maior rapidez possível: fico sempre com a sensação de que atrapalho a vida de quem vem atrás. Enquanto fazia isso, olhava com algum desprezo para os produtos.

    Um emigrante num país nórdico quase quer fazer uma excursão a Portugal só pelo prazer de olhar para a variedade de propostas em cima do gelo de uma peixaria, de desfrutar a cor vermelha das carnes no talho ou de fruir o colorido da banca de frutas e legumes. Senhores!, eu até passo 15 minutos na fila dos iogurtes só para apreciar a variedade e sair de lá com o mesmo natural magro de sempre.

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    Na Suécia, entre fruta – que chega do outro lado do Mundo – e peixes – que voltam do mar em formato de filete congelado –, os olhos não comem nos supermercados.

    Arrumo aquela pobreza franciscana em três sacos com metade do volume ocupado. e volto à senhora que gritara o preço lá do fundo. Aproximo-me, e vejo a módica quantia de 140 euros no visor. Por uns congelados, umas frutas, alguns lacticínios. Nada de carne ou peixe. Nem um tinto daqueles bons, para esquecer as amarguras do Inverno.

    Fiquei com vontade de deixar ali tudo e vir embora. Mas estou na Suécia… e se uma pessoa levanta a voz tem de ir logo sete meses para terapia patrocinada pelos serviços sociais, incluindo cinco horas diárias a discutir os traumas de infância.

    De modo que há que empurrar a angústia para o fundo, bem lá para o fundo, sorrir e dizer um revigorador foda-se [N.D. este passa… por solidariedade], que ali ninguém compreende.

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    Já em casa, a olhar para aqueles saquitos de papel, comecei a puxar pelo racional. A minha fase emocional dura uma hora, a racional ocupa as restantes 23 do dia. A Suécia está com 9% de inflação, as taxas de juro andam a rondar os 5%. Os salários não aumentam muito – os que aumentam sequer –, e o custo de vida, que já era alto, caminha para se tornar incomportável.

    Olho em redor, e vejo toda a gente a apertar o cinto. Casas que se vendem, viagens que não se fazem, jantares que desaparecem, actividades que ficam por casa. Nunca tinha passado por isto nestes 17 anos, já com duas ou três crises no CV.

    Não se fala muito no tema, mas a vida mudou. Num país sem pedintes na rua ou com um risco de pobreza a rondar apenas os 8% (em Portugal era 43% em 2020), sem grandes espaços entre classes sociais e um salário médio superior a 4.000 euros, o custo de vida começa a sufocar. Esta é a palavra: sufocar.

    O Banco Central sueco [N.D., a Suécia não integra a Zona Euro] prevê que lá para os idos de 2025 a inflação volte aos 2%. Entretanto, há que subir os juros para inibir o consumo. As prestações aos bancos passam, assim, de uns suaves 1.000 euros para uns 2.500 ou 3.000 euros, assim, do nada. Para incentivar a redução do consumo. Famílias, umas atrás das outras, vendem as casas e procuram soluções mais baratas.

    close-up photo of assorted coins

    É aqui que entra o raciocínio e a lógica – até porque a minha família, dentro de uns meses, estará nessa lista. O que é que acontece, do ponto de vista económico, se todos forem a correr ao mercado vender as casas? Bom, pelo que vou observando, os preços baixam, a oferta aumenta em barda e algumas casas não se vendem ou vendem-se muito abaixo do preço esperado.

    Então, e para quem não consegue vender a casa ou pagá-la? Vai preso? Vai morrer debaixo de uma ponte gelada neste Inverno que dura oito meses? E mesmo para quem consegue vender… o que acontece depois? Vai ao banco, pedir novo empréstimo para uma casa menor que, com a taxa de juro actual, custa essencialmente o mesmo que a anterior?

    Não estou a perceber mesmo onde é que termina esta equação. Ou melhor, não vejo qualquer medida por parte dos governos para travar esta loucura. A Lagarde faz o que quer. Os bancos da Zona Euro fazem o que querem. Os governos limitam-se a olhar e a esperar pela descida milagrosa da inflação, enquanto vão mandando mais uns lingotes para o Donbass.

    O endividamento das famílias na Suécia ronda 92% do produto interno bruto (PIB), segundo dados Comissão Europeia de Setembro de 2022. Portanto, é relativamente fácil compreender que a especulação do mercado imobiliário foi acompanhada pelo crédito bancário. Hoje, subidas de 2% ou 3% nas taxas de juro representam aumentos de milhares de euros nas prestações, já que os empréstimos são muito elevados.

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    Ao contrário do que aconteceu durante os dois anos da pandemia da covid-19, onde se construíram hospitais de campanha e se deixaram de cobrar juros, agora as famílias estão completamente entregues à sua sorte. Deste lado, onde a Economia é mais robusta, há de facto a esperança de conseguir atravessar estes cinco anos (2020-2024), sem perder o emprego e ir aguentando as contas, com maior ou menor dificuldade. Vidas que se alteram em nome do Donbass, mas onde, apesar de tudo, ainda vejo alguns raios de luz.

    Em Portugal, a situação é radicalmente diferente. Embora o endividamento das famílias seja menor (cerca de 77% do PIB), os salários também são incomparavelmente inferiores e o mercado de trabalho disponível é uma pequena gota nas necessidades. Recebo relatos de pessoas absolutamente desesperadas, sem emprego e sem possibilidade de pagarem as rendas, começando a ver no suicídio uma alternativa em vez de acabarem os seus dias debaixo de uma arcada de Lisboa.

    E não vejo nada, absolutamente nada, por parte de quem nos governa, para dar a mão a quem vai perdendo um dos direitos básicos da Constituição: o direito à habitação. É outro dos mistérios que me vai escapando.

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    Se o custo de vida sobe, se o Governo arrecada um jackpot mensal em impostos… para onde vai esse dinheiro? É todo gasto nas indemnizações das Alexandras, nas esmolas dos 125 euros ou na merda do Donbass? Agora que são, de facto, necessários “hospitais de campanha”, não há quem pense em construir habitação temporária para abrigar esta gente?

    Com a avalanche de pedidos que chegam aos serviços sociais, com pedidos de casa e comida todos os dias, não há um gajo, uma cabeça, um ser pensante, nesta merda deste Governo de maioria, que entenda ser preciso ir para a rua, criar abrigos e dar refeições quentes a quem vê no fim da vida uma solução?

    Afinal, quantos dos nossos é que estamos dispostos a matar para alimentar uma guerra dos outros?

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Dedos aos tiros

    Dedos aos tiros


    A política está numa fase madura de divórcio com os cidadãos de bem e com posses. A forma construída de fazer oposição passou a ser a judicialização dos actos decisórios. Num país de diarreia legislativa, facilmente se encontram imperfeições, discutíveis fundamentos, responsabilizações ao absurdo por consequências de deliberações.

    É fácil colocar um carimbo e é fácil esquartejar um cidadão na comunicação social. Os dedos saem dos bolsos em riste, apontados à alma das pessoas.

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    Talvez porque a construção da sociedade esteja errada, a pobreza galgue as mesas, os salários miseráveis proclamem a inveja, todos estão na mira dos dedos acusadores e todos estão potencialmente a caminho de um processo legal.

    Uma razão mais para esta quantidade de processos pode ser também o custo da justiça. Se fosse mais caro, havia menos utilização, mas isso é como na saúde – reduzir a utilização por custo aumenta o risco de doenças fatais tardiamente diagnosticadas.

    A percepção da qualidade dos actores políticos é posta em causa ao menor sopro, e deste modo os cidadãos em boa condição, os que perdem dinheiro ao entrar na política, os que herdaram bens mais que suficientes, os que casaram com um baú, os que têm contratos milionários, dificilmente se querem expor neste escrutínio de chinelo e mão na anca.

    Muitos políticos usam demagógicos argumentos para pintar de ilegalidades as vidas alheias. Bruto não vem de faca na mão, atira com o Ministério Público, utiliza a Judiciária, apresenta suspeição na comunicação social, solta os chacais da rede social.

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    Muitos casos que se apontam como inenarráveis actos de corrupção, nunca o foram. Muitos processos de acusação redundam em nada, injustas acusações comprovam-se como vilipêndio e injúria. Esta abusiva utilização da lei leva à disfunção da própria Justiça, onde a construção de megaprocessos é uma imagem pública de ineficácia.  

    Usar a Justiça como intermediário da política é um pouco a história do árbitro ser sempre o culpado do jogo da equipa. Se marcar muitos golos, uma equipa ganha independentemente da qualidade do apito.

    Na matéria da política o sistema internacional mergulhou num teatro bufo, de livre-arbítrio, de acusações vis. Pelo meio disto, suja-se toda a gente. Queremos ganhar as eleições, ou provocar a sua repetição, em constantes litígios judiciários.

    Portugal não é excepção, e deve haver muito abuso, muita falta de senso nas decisões, muita incompetência entre os correligionários escolhidos, mas não será toda a que se vê e sobretudo não do modo que os pintam. O povo rejubila do escândalo, os jornais ejaculam com vendas de faca e alguidar.

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    Neste cenário, não há atração para pessoas discretas, cultas, interessantes, ricas, com salários óptimos antes da política. Este é um problema do recrutamento dos partidos. A política é um lugar onde é fácil pisar o risco, mas nem todos puseram a mão na massa e nem todos precisam disso.

    O exemplo maior deste sistema de dedo em riste é a bajulação ao Bruno Nogueira e ao Ricardo Araújo Pereira, verdadeiros supositórios da má língua, vendedores do vitupério, milionários da ignomínia.   

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Cirílico

    Cirílico

    Podes sempre esconder as coisas nas palavras””

    Aforisma de Jesse James antes do seu último assalto ao comboio

    1879


    Hoje vou prestar uma homenagem contente aos leitores despertos que conseguem ler as minhas notas de rodapé até ao fim[1]. E, de caminho, espero estar também a prestar algum serviço público, revelando sinais de vida aos que ainda são vítimas da tirania das palavras. Vamos lá ver, Pussy Riot[2]? Mas o que é que me deu, certo – Pussy Riot? Nem o tradutor do Office se atreve a oferecer uma proposta estúpida que seja[3]. Como aconteceu em tantas outras obras que produzem desde 2011 na sua impenitente luta artística contra Putin, estas feministas russas tiveram quem inventasse com elas o nome da banda, e têm sempre quem lhes traduza para inglês os títulos das canções que postam no YouTube, tais como PUTIN WILL TEACH YOU HOW TO LOVE. Às vezes, como acontece em POLICE STATE, conseguem cantar uma tradução do refrão – um polícia de choque começa por bater nas meninas da banda e depois bate-lhes no ursinho de peluche porque ainda não está satisfeito, acendem-se imensos vídeos e finalmente o zoom mostra Trump a apertar a mão a Putin, e entretanto elas cantam, num coro infantil perverso, “everybody’s happy, makes me happy”. Podem variar entre dez e vinte membros, e convidam todas as performers de protesto russas a entrar no barco. Conseguem nunca desistir, escapar, escorregar, entrar e sair da prisão sem desanimar, mudar de pele, reaparecer, sobreviver. Têm muitíssimo para nos dizer. Mas não conseguem falar connosco, porque nunca conseguiram aprender inglês.


    Quem não gostar de termos de usar o inglês, enquanto veículo de comunicação universal, que não goste[4], mas a realidade é o que é.  Plenamente conscientes dessa mesma realidade, todos os ditadores que vieram à superfície para lá da Cortina de Ferro fizeram toda a gente que escravizaram viver meio século sem nunca aprender inglês. E bastou as pessoas desconhecerem as palavras do Oeste para todas as coisas que floresciam para lá do Muro ficarem profundamente enevoadas. Agora que a União Soviética já não existe, no seu lugar existe a Grande Mãe Rússia, e no papel de Estaline está instalado o impensável ditador Vladimir Putin. Putin é uma daquelas pessoas que nos foram enviadas pelo Demónio para não podermos acreditar na bondade humana[5], e nesse sentido pérfido é obviamente muito sério no que toca a assegurar-se de que ninguém na sua terra fala inglês – o mesmo inglês que ele próprio, ostensivamente, não fala. O inglês, que o mundo inteiro fala mas por acaso também não se fala na China nem na Coreia do Norte, embora se fale fluentemente na Coreia do Sul, é uma arma de acesso à cultura que todos os maiores ditadores mantêm sabiamente afastada dos seus povos.

    Eu estava a trabalhar na UMass of Amherst em 2014, quando quatro das Pussy Riot conseguiram escapulir-se de Moscovo para uma série de gigs em salas de espectáculos americanas, acompanhadas pela sua Grande Mestra de tradução simultânea. Era uma miúda de Nova York ainda mais novinha do que as cantoras, ela própria de origem russa e apaixonada pela sua missão. A banda, notava-se logo, absorvera com avidez toda a grande qualidade que se aprende nas academias russas quando se tem uma autêntica veia artística. A sua presença em palco revelava uma imaginação cheia de arrojo e bom-gosto, com grandes jogos de cores, um sentido plástico magnífico e uma óptima música servida por grandes vozes bem trabalhadas, com arranjos que podem não ser os mais criativos mas não cometem nenhum erro[6]. Sozinhas à nossa frente, com a adolescente nova-iorquina aos pulos num canto agarrada ao microfone, as cinco felizes da vida e boas em tudo, transmitiam uma segurança que transbordava para a plateia e punha toda a gente ao rubro[7].

    No dia seguinte, no entanto, deram uma entrevista em directo na NPR[8] e aquela segurança contagiosa desapareceu, porque a adolescente entusiástica que as traduzia no gig também tinha desaparecido. Só estava em estúdio um funcionário público[9] que por junto arranhava umas coisas de russo. Elas conseguem cantar o refrão ou outro em inglês, mas isso não quer dizer que falem inglês. Não falam mesmo. Tentar entrevistá-las nestas condições precárias é apenas um jogo de enervar toda a gente e aquilo foi para lá de penoso. Repetiram várias vezes que não tinham medo. Eram quatro crianças assustadas. E a apresentadora, toda completamente cosmopolita de cima da sua uma longa carreira laureada, era uma burguesa paternalista e ignorante que não fora capaz de contratar a outra menina que falava russo para dar voz a quatro grandes artistas que têm imensa coragem e rios de talento mas só sabem ler e escrever em cirílico. Não percebes que estás perante todo o power de um outro alfabeto, you bitch?

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Hey, “poucos serão os eleitos”, certo? Não fui eu que disse isto.

    [2] Termo cuidadosamente enterrado dentro de uma notinha de rodapé na crónica sobre a boçalidade de Putin e a visita do nosso PR à Ucrânia, anunciada para este ano.

    [3] Pois, temos pena. Neste caso específico, nem eu vou traduzir. As jovens performers russas não podiam ter irritado mais o regime policial do seu país ao evocar em inglês uma grande revolta de partes privadas femininas, mas em 2011 eram mesmo jovens, não pretendiam ser mais que hard punk de protesto, e quanto mais cru fosse o nome da banda melhor. Entretanto o seu som sofisticou-se, os seus vídeos também, e até a sua linguagem se tornou muito mais metafórica. E, aliás, eu já nem sequer tinha idade para traduzir directamente o nome da banda na altura em que ela apareceu.

    [4] Dantes usava-se o latim para estes mesmíssimos efeitos, e o inglês tem a grande vantagem de ser muito mais simples. Foi exactamente esta simplicidade, e não a extensão do seu Império, que o levou a ganhar a taça da Comunicação Universal ao Francês e ao Alemão durante as batalhas coloniais e românticas do século XIX. E pronto. Já passaram dois séculos, e o esperanto foi um falhanço crasso. Querem espadeirar contra os moinhos? Eu tenho mais que fazer.

    [5] O último post das Pussy Riot no YOUTUBE chama-se PUTIN’S ASHES, e é um tributo ao povo da Ucrânia. O arranque, extremamente conseguido tanto do ponto de vista plástico como do ponto de vista musical, mostra-nos só um sudário com um botão vermelho onde poderemos neutralizar Putin se lá conseguirmos carregar. Está cortado a seguir, mas promete-se a versão integral para Janeiro. Estamos em Janeiro. Estas coisas metem nervos, a sério que metem.

    [6] Veja-se no YOUTUBE a canção PLASTIC, com um vídeo todo elaborado em torno do tema do conceito da boneca Barbie e plasticamente soberbo.

    [7] E há que ver: as audiências americanas são extremamente segregadas, e não é nada fácil pôr os brancos “ao rubro”: tendem a ficar sentados e sem movimentos nem ruídos, as faces imóveis, apenas uns gestos de dedos, uns sussurros para o lado, ou umas batidas de pés para mostrarem a sua alegria. Conseguem ser a companhia mais deprimente deste mundo. Naquela noite, no entanto, passaram-se todos dos carretos. Bom, OK, nem todos. Mas bastantes. Suficientes. Houve ali um calorzinho. É raro a pessoa sentir calorzinho no meio dos americanos brancos. Estou a falar a sério, e de experiência própria. Vivi com brancos, e vivi com pretos, porque na América sirvo para ambas as categorias, sobretudo quando acabo de chegar da praia e desde que comecei a cantar no coro de Gospel da Igreja Africana. Estou em condições de jurar que os dois grupos não se misturam, e que a vida de uns não tem nada a ver com a vida de outros. Os pretos são sempre mais solidários, têm sempre menos dinheiro, vivem sempre em bairros mais pobres, acolhem sempre muito mais pessoas em cada uma das suas casas, recebem salários inferiores para trabalhos idênticos exercidos com as mesmas qualificações, e sim, claro – é muito mais divertido ir aos concertos com eles.

    [8] Sigla da National Public Radio, de longe a melhor, mais intelectual, e mais ambiciosa de todas as rádios americanas.

    [9] Sem ofensa para os nossos funcionários públicos, nomeadamente médicos, professores, e bombeiros. A palavra esconde uma atitude assaz insultuosa por parte da maioria dos americanos.

  • Caso Gouveia e Melo: carta aberta à Entidade Reguladora para a Comunicação Social a pretexto de mais um procedimento oficioso contra o PÁGINA UM por um queixoso escondido

    Caso Gouveia e Melo: carta aberta à Entidade Reguladora para a Comunicação Social a pretexto de mais um procedimento oficioso contra o PÁGINA UM por um queixoso escondido


    Exmo. Senhor Presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC),

    Juiz Conselheiro Sebastião Póvoas:

    Recebi esta tarde uma comunicação da Directora do Departamento de Análise de Media da ERC, comunicando-me ter V. Exa., como Presidente do Conselho Regulador, decidido a abertura de um procedimento oficioso por causa da notícia do PÁGINA UM intitulada “Gouveia e Melo ‘mercadejou’ administração de vacinas a médicos não prioritários uma semana após tomar posse na task force”, alvo de uma participação de alguém que os documentos que me foram enviados não identifica. Deduz-se, porém, quem seja.

    No ofício da ERC refere-se que os “factos alegados” pela tal pessoa não identificada “podem, eventualmente, colocar em acusa o dever de rigor informativo (..) do Estatuto do Jornalista”.

    Gouveia e Melo, actual Chefe do Estado-Maior da Armada, foi coordenador da task force. Uma semana após a tomada de posse, começou logo a fazer aquilo que prometera não permitir: vacinações à margem das prioridades definidas pela DGS, conforme investigação do PÁGINA UM publicada em 12 de Dezembro passado, após acesso a documentos administrativos na posse da Ordem dos Médicos, por determinação de sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Não diz a ERC, porém, quais os aspectos em concreto em que posso não ter sido rigoroso. A ERC parte para um procedimento oficioso sem que o seu “alvo” saiba sequer em concreto quais as eventuais falhas em termos de rigor informativo que tenha cometido.

    Por esse motivo, deveria ter sido remetido o conteúdo integral da participação, incluindo o seu autor, porque isso pode determinar os argumentos da minha, enfim, defesa.

    Por exemplo, o queixoso pode até ignorar que o artigo possui uma hiperligação para os e-mails consultados pelo PÁGINA UM na Ordem dos Médicos, no decurso de uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, e que consubstanciam tudo o que se encontra relatado na notícia em causa.

    Ou pode também o ignoto queixoso desconhecer (ou não) que o PÁGINA UM remeteu, por duas vezes, perguntas ao senhor Ministro da Saúde sobre as matérias referidas: primeira vez, no dia 5 de Dezembro passado; segunda vez, uma semana depois, em 12 de Dezembro, no próprio dia da publicação do artigo em causa.

    Primeira página do ofício da ERC comunicando a abertura de um procedimento oficioso.

    Pode também o escondido queixoso ignorar que houve uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa que possibilitou o acesso à totalidade dos documentos de uma campanha supostamente organizada pela Ordem dos Médicos e Ordem dos Farmacêuticos, e que portanto se teve acesso a toda a documentação envolvendo o processo de vacinação de médicos à margem das normas à data existente (Norma 002/2021).

    Na altura do acordo, em Fevereiro de 2021, e que efectivamente envolveu um pagamento ao Hospital das Forças Armadas, os médicos vacinados durante este expediente não estavam integrados nos grupos prioritários da Fase 1, que apenas incluíam “profissionais de saúde diretamente envolvidos na prestação de cuidados da doentes”, bem como aqueles que estivessem a prestar serviços em Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas (vulgo, lares de idosos) e Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados.

    E pode até também o obscuro queixoso ignorar todos os contactos que o PÁGINA UM estabeleceu ou tentou estabelecer.

    Como saberá, a task force é uma estrutura criada por um simples despacho, sem qualquer autonomia própria, dependente do Ministério da Saúde, uma vez que as atribuições concedidas ao “núcleo de coordenação” estavam sempre sob a liderança da Direcção-Geral da Saúde (DGS), Infarmed, Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) e Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS). Basta saber ler o artigo 4º do Despacho nº 11737/2020, de 26 de Novembro.

    E portanto, ainda mais havendo documentos que comprovam o que se escreveu, como jornalista tinha e tenho a liberdade de definir como conduzir uma investigação jornalística, se deve esta ser acompanhada por declarações e, nesse caso, quem são os responsáveis dentro de uma estrutura administrativa do Estado que devo auscultar.

    Entre um responsável de uma “estrutura de missão” (sem autonomia, mesmo se circunstancialmente ocupada por alguém mediaticamente conhecido) e o ministro da Saúde – que tutela todas as cinco entidades públicas com papel de liderança elencada no despacho (DGS, Infarmed, INSA, ACSS e SPMS), optei por colocar as questões ao ministro.

    Manuel Pizarro, ministro da Saúde, foi questionado por duas vezes durante a investigação do PÁGINA UM. Nunca respondeu.

    E optei, hélas, sem ouvir ninguém nem pedir autorização a ninguém. Nem sequer ao director do PÁGINA UM, porque se dá a circunstância de ser eu próprio o director. Nem sequer a um accionista ou sócio, porque se dá a circunstância de o PÁGINA UM ser gerido por uma sociedade por quotas da qual sou detentor maioritário. Nem sequer um anunciante, porque se dá a circunstância se não termos publicidade nem nenhuma parceria comercial.

    Enfim, opções…

    Ora, mas sempre direi agora a V. Exa. que não ponderei efectivamente solicitar uma consulta prévia à ERC, e em particular a V. Exa., para saber quem deveria ouvir para a elaboração do citado artigo de investigação jornalística.

    Em todo o caso, deduzi que, colocadas as questões ao senhor ministro da Saúde, se o senhor ministro da Saúde achasse que as questões deveriam ser colocadas antes ao senhor almirante Gouveia e Melo (que já nem sequer estava na task force), então deveria ter-me sugerido essa “solução”.

    Investigação do PÁGINA UM prova que houve contrapartidas financeiras para o Hospital das Forças Armadas para serem liberadas vacinas para médicos não integrados no grupo prioritário pela Norma 002/2021 então em vigor.

    E eu teria então, mesmo assim, a liberdade de decidir se haveria de contactar ou não o senhor almirante. Porém, o senhor ministro da Saúde não só não fez nenhuma sugestão como nem sequer se dignou responder a um conjunto de questões do PÁGINA UM. Aliás, a identificação do queixoso que fez a participação à ERC mostra-se pertinente também por aqui: não vá dar-se o caso de ter saído do Ministério da Saúde. Ou da Ordem dos Médicos. Ou da própria ERC… Who knows?!

    Mas, obviamente, esta é a minha opinião de jornalista; ou diria mesmo, a convicção de jornalista, de que, no quadro de uma imprensa rigorosa, existe liberdade para se recolher prova documental – mesmo que se tenha de recorrer ao Tribunal para alcançar esse desiderato, por não ser possível outra forma mais “pacífica” e cordial num Estado democrático que se esperava transparente –, considerá-la mais relevante do que uma opinião, interpretar os factos e os documentos em causa, obter reacções de quem acha relevantes… E depois de tudo isto, e muito mais – que não convém revelar, para manter o sigilo das regras de um bom jornalismo investigativo –, expor tudo de uma forma clara e incisiva perante os leitores. Não esquecendo as provas documentais.

    Contudo, com mais esta participação acolhida por V. Exa. de braços abertos, concedo a possibilidade da existência de uma cartilha da ERC dispondo de critérios e algoritmos a seguir por escribas bem-comportados para a feitura de notícias fofinhas.

    Dir-lhe-ia que, existindo a cartilha, prescindo da dita. Mesmo se, com isso, seja por demais evidente que venha a ter mais uma censura por parte do Conselho Regulador da ERC sobre o rigor do PÁGINA UM. Estou pronto, desta vez, para emoldurar a deliberação censória como sinal de eu estar no bom caminho.

    Cumprimentos.

    Pedro Almeida Vieira

    Director do PÁGINA UM

  • Eis o top 5 dos “inegáveis” pecados capitais dos professores…visto por quem não é, claro!

    Eis o top 5 dos “inegáveis” pecados capitais dos professores…visto por quem não é, claro!


    Aprecio bastante o reportório de queixas repetido a cada greve da Função Pública. Vejo, com um sorriso, a indignação de quem afirma que uma greve, seja qual for, não pode prejudicar a vida das pessoas.

    Dos utentes do metro aos passageiros da CP e da Carris, e passando pelos pais dos alunos, há uma enorme fatia de gente que ainda parece achar que uma greve é uma espécie de feriado móvel. Ou como dizia um antigo chefe meu, no início do século: “se querem fazer greves, que as façam ao sábado!”.

    É um conceito peculiar, este, o das greves que não incomodam. Quer dizer, seriam greves sem qualquer utilidade ou sequer poder reivindicativo, mas certamente trariam uma lufada de ar fresco ao debate. Deixariam era de serem greves autênticas, se bem que não nos devemos perder em detalhes.

    Sigamos.

    Os professores são, dentro da Função Pública, aqueles que mais têm endurecido e prolongado a sua luta. Nos noticiários, caixas de comentários ou até no Fórum TSF – esse longevo barómetro do pensamento popular magistralmente coordenado pelo Manuel Acácio – é possível recolher um resumo das queixas mais frequentes contra os professores, e compreender assim como é que nós, portugueses, ainda estamos pouco talhados para a defesa dos direitos dos trabalhadores.

    Deixo aqui o top 5 das queixas, e acrescento o que penso sobre as ditas:

    1 – “As greves prejudicam os alunos

    Se pensarmos que queremos alguém para passar o tempo dentro de uma sala com os alunos, então sim, a greve não só prejudica os alunos como os pais que têm de ficar com eles ou arranjar alternativas.

    Contudo, se pensarmos um bocadinho, o que realmente devemos pedir ao sistema público de Ensino são professores motivados, e que possam, na sala de aula, realizar-se também profissionalmente, e, dessa forma, passar conhecimento aos nossos filhos.

    Como não é isso que existe hoje, aquilo que prejudica os alunos são sim as sucessivas políticas de Educação que andam a destruir a Escola Pública. Ou ainda dois anos de confinamentos em nome ainda não se sabe bem de quê, e que, irremediavelmente, atiraram as necessidades educativas para segundo plano, como se o Apocalipse estivesse ali ao virar da esquina.

    Aquilo que os professores estão a fazer, ao lutar pela dignificação da carreira, é exactamente a melhorar a Escola Pública e a beneficiar os alunos no longo prazo.

    2 – “Os professores estão a ceder aos interesses dos sindicatos

    Fico sempre pensativo com quem condena sindicatos como coordenadores das lutas laborais. Gostava de saber se, para essas pessoas, existe outra forma, desconhecida do grande público, para as pessoas se organizem e falarem como um colectivo.

    Tem um trabalhador sozinho alguma influência nas decisões da sua carreira? Em princípio, não. Então, e se forem todos os trabalhadores do sector? Em princípio, sim. E podem falar todos ao mesmo tempo com o empregador? Por exemplo, com o ministro da Educação? Fica mais confuso, não é? Tipo Mercado da Ribeira e ninguém se entende. É por isso que se juntam em colectividades onde um fala por vários. É essa a “conversa dos sindicatos”; e sem ela não existe negociação.

    3 – “Concordo com a luta dos professores, mas não há outra forma de protesto sem ser a greve?

    Há. Por exemplo, para monges tibetanos há o silêncio. Mas aqueles vivem em mosteiros, sem rendas ou taxas de juro, comem pouca coisa, não abastecem as sandálias com diesel e, portanto, o custo de vida não sobe assim tanto relativamente ao salário.

    Já para quem está há 10 anos numa conversa de surdos com os sucessivos ministros, essencialmente com o mesmo salário e sem progressão na carreira, a ver o custo de vida a disparar, de facto não há grandes alternativas a não ser a greve. É, de longe, a forma de luta mais civilizada e uma prova da paciência desta classe profissional.

    4 – “Os meus filhos andam num colégio privado e nem sabem o que é uma greve

    Sorte desses professores que ali dão aulas, por receberem um salário digno; e azar dos alunos do colégio privado, que, apesar da elevada propina, não aprendem um dos direitos fundamentais previsto na Constituição. Preciso de dizer mais alguma coisa a este respeito?

    5 – “Os professores continuam a ser uma classe com bons salários e com muitos privilégios; por exemplo, horário reduzido

    Julgo que já não vale a pena bater na tecla das horas de trabalho fora da sala de aula, que não são contabilizadas. Ou sequer dos salários vergonhosos. Escrevi há dois meses, em 4 de Novembro, aqui no PÁGINA UM, sobre isso, com testemunhos reais: em média, profissionais com 10, 15 e 20 anos de trabalho não traziam para casa 1.500 euros líquidos. Isto é uma vergonha, Uma miséria e uma merda. Seja lá qual for o ângulo escolhido.

    Mas há um pormenor na vida dos professores que gostava AINDA de referir, e que, tal como a história dos salários, me foi explicado na primeira pessoa. São relatos de pessoas que passam a vida a saltar de escola em escola, contratados durante mais de 10 anos, a mudar constantemente de zona do país, e que, por causa das vicissitudes da profissão acabam por ter muita dificuldade em formar uma família ou manter algum relacionamento estável.

    Muitos, confidenciaram-me, optam, ou são obrigados a optar, por uma vida sozinhos, sem um núcleo familiar, por não ser possível conciliar nos primeiros anos da carreira… e mais tarde, “tinha passado o tempo”.

    Compreendem a violência deste tipo de declarações? Ver-se empurrado para uma vida de solidão para se ser professor? É deste tipo de privilégios que os tais pais incomodados pelas greves se queixam?

    A Escola Pública em Portugal – um dos países menos desenvolvidos da Europa, é bom que não se esqueçam – não eleva o seu patamar de excelência com pensos rápidos e esmolas. É necessário um investimento sério, continuado e uma política que não mude ao sabor de quem governa ou dos lobbies que por lá passam.

    Enquanto existir um contribuinte, o dinheiro deve ir para a Escola Pública e o Serviço Nacional de Saúde. São esses os pilares do Primeiro Mundo. O resto é secundário. Os professores, repito-o pela enésima vez, são a base do sistema; a luta deles é a luta de todos. A começar pelos nossos filhos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM. As fotografias foram retiradas do mural do Facebook da Fenprof, retratando o acampamento defronte do Ministério da Educação durante esta semana.

  • As doenças raras: um dia chega?

    As doenças raras: um dia chega?


    As Doenças Raras são uma questão preocupante na nossa sociedade e é-lhes concedido apenas um dia de atenção no ano, mas esquecida nos outros 364 dias. O dia 28 de Fevereiro é assinalado como o Dia das Doenças Raras na Europa e no Mundo.

    Neste dia, os meios de comunicação social e algumas figuras públicas participam e colaboram energicamente com acções de divulgação sobre as Doenças Raras, mas falta vontade política, e pressão por parte de sociedade, para criar projectos que levem ao desenvolvimento de um plano, que permita mitigar o handicap e melhorar as condições de vida, no quotidiano, das pessoas afectadas.

    No dia 1 de Janeiro de 2003 foi adoptado um programa de acção comunitária em matéria de Doenças Raras, incluindo doenças genéticas. Este programa definiu como Rara uma prevalência baixa de uma doença que afecte menos de 5 em cada 10.000 pessoas na União Europeia.

     Os Estados-membros comprometeram-se a cumprir as normas, mas em Portugal, por falta de verba, estas não foram implementadas. Esta mensagem pode ler-se no site da Fedra, depois do escândalo das verbas atribuídas pela Segurança Social à Associação Raríssimas, ainda por apurar. Este assunto de interesse do Estado ficou entregue a luz cansada dos dias.

    Há que fazer alguma coisa pelas Doenças Raras mais do que falar delas e exibir os bichinhos raros, os coitadinhos na televisão ou criar um dia no Parlamento Europeu, para divulgação destes doentes, com problemas complexos em todos os 365 ou 366 dias do ano. 

    Foi, então, que eu decidi colocar mãos à obra, porque embora o meu corpo me traia, o meu espírito é enérgico e viril.

    Eu, Maria João Carvalho, portadora da síndroma Ehlers-Danlos – considerada uma doença rara, aglutinada nas doenças do tecido conjuntivo por deficiência do “cimento do corpo”, o “colagénio”. Esta falta de colagénio, no meu caso, transformou-me numa espécie de mulher de elástico, digna de acrobacias de circo, mas com alguns senãos.

    person looking out through window

    Há imensos pacientes colegas da patologia que faleceram por dissecações dos órgãos internos, outros fazem imensas luxações diárias e sofrem de um cansaço mórbido, cujas actividades mínimas causam exaustão. Porém, eu tenho coragem de gozar e rir, quando coloco o pulso dentro da cavidade após uma deslocação momentânea. Embora às vezes fique revoltada, de mau humor, e escrevo cartas à doença para a insultar.

    Sim, porque ela, a Ehlers-Danlos, é disléxica, cobarde e oportunista; disléxica, porque troca as letras e numa leitura de gene invadiu a minha bagagem genética; cobarde, porque não tem coragem de me enfrentar e dizer-me nos olhos que gosta de me torturar no silêncio.

    No meu caso, ela nem sempre está presente, mas no breu, quanto menos espero, ela aparece com os seus dentes pontiagudos e destrói os meus vasos sanguíneos, os meus músculos, tendões, articulações e pele. Ela é cruel e imprevisível. A maldita (Ehlers-Danlos) aproveitou-se da minha fragilidade emocional, nestes tempos negros que temos vivido e, sibilinamente, atacou os meus órgãos internos, as minhas válvulas cardíacas.

    Contudo, embora o nosso combate seja desleal, eu tenho a voz e as palavras para a denunciar – posso gritar contra ela e contra todas as outras doenças (Raras) que agem da mesma forma.

    person in red sweater holding babys hand

    E por isso espero que o eco da minha voz escrita seja tão incómodo que se ouça na galáxia mais próxima. Eu não me renderei à maldita Ehlers-Danlos – ela sabe disso! Sou osso duro de roer. Embora tenha consciência que, no final, ela acabará por vencer.  Mas o meu espírito na multidimensionalidade de expressões sempre foi livre, belo e saudável.

    Nas minhas estadias de luxo no Hôpital Européen Georges-Pompidou, em Paris, tive a oportunidade de partilhar experiências de vida com os doentes raros e compreender a batalha travada por estes nas dificuldades quotidianas que a vida nos apresenta. As patologias raras apresentam uma multidimensionalidade de aspectos desafiantes à vida dos próprios, mas também à própria Medicina, até porque resistem aos fármacos convencionais e aos tratamentos, o que produz a necessidade da arte na Medicina, tal como, o médico no papel de malabarista na elaboração criativa de um protocolo arrojado nos denominados medicamentos (órfãos) para mitigação da dor e tratamento destes raros pacientes.

    Os Raros sabem bem ao que me estou a referir. Na diversidade das patologias raras, umas mais que outras, há algo extraordinariamente comum a todos estes Raros Humanos: partilham o sentimento de coragem de enfrentar a morte e transformar a vida numa experiência digna de uma Obra d’Arte.

    white flower on brown wooden planks

    Nos encontros com os Raros, há sempre um espaço borderline, onde rapidamente se passa dos sorrisos às lágrimas. Ainda bem que existem os Raros, para que os sentimentos não morram no mundo dos humanos. O que eu vi nos Raros – e é algo que dificilmente vejo nas pessoas ditas normais – foi um rasgo, por onde atravessa um raio de sol, nos olhos de quem sofre.

    Mas todas estas coisas, se, calhar, só eu é que vejo, e me preocupo. Poucos entendem as Doenças Raras; principalmente quando a aparência não é disforme nem visível, não raro são considerados loucos ou hipocondríacos. Eu habituei-me a ser o palhaço triste. Sim, é verdade que eu sou elástica e, às vezes, torpe – mas ninguém sabe!

    Nesta minha experiência de Rara no mundo da vida, eu tive imensas dificuldades e barreiras, porque o meu corpo teimava em não obedecer ao meu espírito e senti que no Mundo da Evolução das Espécies, segundo Charles Darwin, quem vence é o mais inteligente e o mais apto, logo se eu mostrasse as minhas fragilidades seria engolida perante um mundo altamente competitivo, onde, grande parte das vezes, sobrevivem os espertos e as cunhas…

    No ano de 2018 tomei a decisão de fazer um Mestrado em Economia Social, com o objectivo de criar Projectos Sociais para ajudar os Doentes Raros, e outros, a ter uma vida. Como fazia para a Eurordis França, porque era portadora do Síndrome Ehlers-Danlos, escrevi para o Parlamento Europeu, tendo participado na Jornada das Doenças Raras, em Bruxelas, no dia 18 de Fevereiro de 2020.

    two roads between trees

    Posteriormente à minha participação neste evento, escrevi a diversos deputados políticos (Marisa Matias, Ana Gomes, primeiro-ministro António Costa, Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa), a única reacção foi um silêncio sepulcral.

    Por tudo isto, esperemos que o dia 28 de Fevereiro de 2023 venha cheio de holofotes e tambores, uma vez que nós só existimos um dia por ano, numa espécie de compaixão hipócrita na exibição dos coitadinhos! Mas não, não somos coitadinhos!

    Somos Super-Humanos que vivemos na solidão e na incompreensão dos outros, e carregamos um corpo que não nos obedece, mas temos a coragem e a determinação de metamorfosear o sofrimento e a dor na expressão mais bela da vida: o Amor ao próximo. O desejo intrínseco dos Raros é, afinal e tão-só, que o Amor renasça numa nova Humanidade.

    Maria João Carvalho é filósofa com pós-graduações em Biologia, Ciências Cognitivas e Economia Social


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