Em Maio de 2022, por responsabilidades parentais, dei comigo meio perdido numa pequena igreja plantada no meio do Atlântico, a ouvir um grupo de escuteiros que cantava várias melodias com a palavra “senhor”. Não sou grande ás da religião, mas julgo que se referiam a Ele. Perguntei aos crentes que cruz enorme era aquela de que todos falavam, ali exposta, e simpaticamente explicaram ao ateu que era a cruz que andava pelo Mundo todo, durante anos, até chegar ao local de uma das jornadas da juventude, que em 2023 aconteriam em Lisboa.
A minha relação com a religião, qualquer uma, é de profunda e interessada distância. O que penso sobre o tema daria outro texto, daqueles bons para levar pancada de criar bicho, e como tal fica para outro dia. Percebi nesse concerto, olhando para a dita cruz, que algures em 2023, Lisboa seria invadida por miúdos com mochilas, fiéis ferverosos e o simpático Francisco com a sua entourage.
A primeira coisa que me lembro de ter pensado foi como alojar este pessoal todo. Lisboa já rebenta pelas costuras no Verão pelo que, mais 100.000 visitantes, concentrados em três dias, era coisa para fazer mossa. Não voltei a pensar no tema até porque, como se perceberá, não está no meu radar de interesses.
Até que comecou esta discussão sobre o palco dos 5 milhões.
Devo dizer que não percebo bem a gritaria da última semana. Quer dizer, percebo no conceito de coisas feitas em cima do joelho à portuguesa, mas quem debate o tema parece estar a viver uma supresa quando já sabemos, desde 2019, que nos tocaria organizar a coisa. Enquanto ouvia os 380 debates sobre o tema, pensava por que nos tínhamos metido nisto. Não temos dinheiro para mandar cantar um cego e vamos organizar paradas para o Papa, pela alma de quem? Alguém imaginou que a coisa se faria por uma sandes de courato?
Para um ateu é mesmo dinheiro atirado à rua e por isso procurei encontrar conforto na narrativa da recuperação da área. De facto, aquele descampado no Trancão é algo inóspito e eu sou daqueles que gosta da nova cara de Lisboa. Não quero saber se foi o Costa, o Moedas, o Medina ou o Soares. Se Lisboa fica mais bonita, não serei eu a falar mal. Agora… quando vi o desenho do palco, já fiquei com mais dúvidas quanto à recuperacão do espaco e, principalmente, da reutilizacão da estrutura para outros eventos. O que é que se faz num palco cheio de rampas e com aquela cúpula com uma cruz? Um skate park para seminaristas?
Fiquei realmente preocupado quando ouvi Manuela Ferreira Leite dizer que aquela estrutura traria retorno para a cidade. É que eu sou de uma geracão que ouve há 25 anos como o cimento traz retorno ao país.
Foi a Expo98, que, para lá da óbvia requalificacão de uma antiga lixeira, trouxe dinheiro a construtores e patos bravos do imobiliário.
Depois foi o Euro 2004 que dotaria o país de estradas e infra-estruturas vitais (tínhamos pouquíssimas estradas nessa altura, e ainda nos deslocávamos de charrete pelos pastos), e o resultado foram quatro monos espalhados por Faro, Aveiro, Coimbra e Leiria, sem jogos ou público e com custos de manutenção incomportáveis.
Perdi a conta às auto-estradas, SCUTs e IPs que seriam essenciais para o desenvolvimento do interior, litoral, centro, sul, norte, este e oeste. Algumas estão às moscas, com o Governo a compensar as concessionárias, naquelas PPPs que nos levam há décadas à ruína.
Veio entretanto o Paddy e a sua Websummit, com um patrocínio de milhões do erário público português. Aqui a promessa era da criacão de empregos e atração de investimento. O Paddy ficou rico, os putos nerds trabalham como voluntários num evento onde uma entrada custa uma pequena fortuna e empregos, bom, talvez uns recibos verdes nos hotéis das redondezas.
Portanto, quando me dizem que vão dar uma lavadela na cara do Trancão para receber o Papa, ainda consigo engolir. Quando voltam com a conversa do retorno, tenho a certeza que é mais um daqueles fados malandros.
Qual luz divina, também à boa maneira portuguesa, a presa de última hora resulta em mais não sei quantas trapalhadas. Três empresas apresentaram projectos para a construcão do Papódromo e venceu a mais cara, com menos material reutilizável (uma das solucões era com contentores como o estádio do Qatar), por acaso da Mota-Engil, presença habitual na órbita do Estado.
Outra coincidência engraçada é Paulo Portas, esse engenheiro civil de águas profundas, estar agora na administração da Mota-Engil. Tudo legal, tudo como manda o livro do Antigo Testamento, tudo abençoado. Mas é aquela volta na maionese, sempre com os mesmos actores, empresas e baldes de cimento.
Há 30 anos que vejo as mesmas pessoas, quais satélites na órbita dos contribuintes, aos saltos entre cargos, mas sempre, sempre, com acesso a fatias enormes do Orçamento do Estado.
Já se vende uma semana em Fátima a 8.000 euros, num hotel local, para as datas das jornadas. Quartos privados a 2.000 euros por dia e outras loucuras do género. Os católicos já levantam as forquilhas dizendo que quando se fez a nova mesquita de Lisboa, ninguém se queixou (o que não é verdade, por acaso).
A minha questão é esta: tirando a hotelaria e os patos bravos do cimento, o que é que se ganha com este evento pago por nós? Este e, já agora, os outros feitos num país onde 40% da população está na pobreza. Não quero ser demagógico, mas com tanta gente a precisar de habitação social, não se arranjava melhor destino para os 40 milhões que o evento nos vai custar?
É legal, bem sei. É uma opção política num país laico, certamente. Não podia o Banco do Vaticano fazer uma vaquinha e raspar uma ou outra parede para entregar o ouro à Mota-Engil? Isso é que seria uma multiplicação dos pães bonita de se ver.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Palavras que significam má relação, que provocam instabilidade e desarrumam o colectivo social estão definidas nos pecados mortais.
São uma lista de modos de estar que provocam picardias e irritações. As formas de agir que dificultam a conversa, o estar em partilha, foram desenhadas por Evágrio do Ponto (345-399) que teria escrito uma lista de oito crimes (culpas) e “paixões” humanas, em ordem crescente de importância (ou gravidade). Da sua vivência com os monges, interpretou os seus defeitos no quotidiano da partilha, definindo os oito males do corpo, mas também doenças espirituais que os afligiam e conduziam à disputa e à discussão.
Com ele nasceram os “pecados mortais”. Mas há muito mais defeitos, ou negatividades, correspondendo a todos um antónimo sorridente.
É difícil codificar numa palavra algumas das características más, apesar de perceber exactamente o que queremos representar. Há comportamentos que são a representação da necessidade do bando, da vara, da manada.
A “matilha”, ou a predilecção de alguns pela existência protegida, pela pertença ao grupo ou ao gang, não tem uma linguística perfeita, mas apouca a cidadania. Inclua-se aqui a subjugação à moda. A pertença ao clube de futebol, a exuberância de agradar ao líder do partido, tudo isso chamaremos de “enquistamento”. Os enquistados usam linguagem semelhante, roupas idênticas, discursos em frases feitas.
A interiorização da “fronteira”, a incapacidade de não invadir o espaço alheio que encontramos no toque, na abusiva presença, na falta de linhas que digam “a partir daqui não” (inibição de contacto), é também de difícil nomeação. Chamar-lhe-emos de “o desbragamento”. Era mais fácil se o outro tivesse um semáforo na testa.
Mas são adjectivos bem qualificativos do género e fáceis de definir: a preguiça, a melancolia (a tristeza), o ciúme, o dogmatismo (fanatismo), o medo, a apatia (ou desinteresse), a vergonha, a timidez, a ira, a luxúria, a vingança, a sujidade (a falta de higiene), o mutismo, o vício (qualquer um deles por si só, ou todos), a vozearia, o desprezo, a mentira, a vaidade, a idolatria, a gula.
Mantendo o menu do que devíamos evitar, perto de nós, estão a avareza, a inconsciência (ou irresponsabilidade), a infantilidade, o egoísmo, a incoerência, o ser esquivo. Por tudo isto, a relação de pessoas em espaços confinados vira fervura.
E agora temos 28 “pecados mortais”, verdadeiras asperezas à relação entre pessoas e não há relação de pessoas com animais, porventura mais simples, pois eles não são assim.
A vida contemporânea introduziu mais três motes, agora tecnológicos. O utilizador incessante de telemóveis e o jogador de computador. Estamos em 31 maneiras de tornar a vida em família, ou de um grupo numa casa, insuportável.
Acrescentem-lhe o fanatismo de ver filmes e séries de televisão: binge-watching, traduzido de modo livre por “visionamento bulímico”, a doença de ver televisão (séries, filmes, etc.) ininterruptamente. Sabemos que os canais tendem a adequar os seus conteúdos aos alvos que somos nós e que vão construindo armas de percepção dos interesses de cada um.
Se quiserem um exercício interessante perceberão que conhecem a Alexandra que é desassombrada, o Sá que é preguiçoso, o José que é aldrabão. Mas facilmente descobrirão amigos incríveis que são abnegados, empenhados, trabalhadores, solidários, e sobretudo pagadores de impostos.
Diogo Cabrita é médico
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
“A educação é uma coisa maravilhosa, mas infelizmente ninguém
pode ensinar-nos as lições mais importantes da vida”
Oscar Wilde
Isto só visto. Então agora o grandecíssimo filho da polícia[1] do mais cruel e mais sádico czar de todos os tempos[2] ameaça-nos com “catástrofes globais” se ousarmos continuar a apoiar a Ucrânia? Olha filho, caso ainda não saibas, o Trump também jurou desfazer em pó a Coreia do Norte com “fire and fury the likes of which the world has never seen[3]”; e o Saddam Hussein, depois de invadir o Kuwait, avisou os americanos que, se abrissem contra o país dele qualquer espécie de hostilidades, lançaria contra as suas tropas “the mother of all batles[4]”, e deixaria entregues aos abutres todos aqueles corpos de imperialistas derrotados. Quando tudo isto falhou, tu estavas onde e entretido com quê, para não estares sequer a olhar, mesmo que sejas incapaz de ler legendas? Just checking[5]. Mas OK, OK, OK, whatever[6], ninguém aqui é parvo. Desde que começaram os seus discursos bombásticos a propósito desta tragédia, a malta já percebeu que para aquele tinhoso vale tudo para conseguir restaurar a grandeza da antiga União Soviética – mas “catástrofes globais”, ó Vladimir? E nessas catástrofes globais, achas que acontecia o quê, morríamos nós e ao mesmo tempo também morrias tu, se é que estamos todos entendidos quanto às catástrofes que tens em mente? E o teu povo, o que é que o teu povo pensa destas tuas ameaças bombásticas? Ora, tu vives descansado porque sabes muito bem que o teu povo não pensa nada, pura e simplesmente porque o teu povo não sabe nada. O teu povo não acede à internet, não vê televisão por cabo, chega à escola e só aprende o alfabeto cirílico para ficar logo ali impedido de alguma vez vir a ler as notícias do mundo. E, ainda por cima, demonstrando tu uma curiosa devoção aos métodos implementados pela mão-de-ferro estalinista, proibes os teus servos de aprenderem inglês[7] para poderem entender o planeta em primeira mão.
E ainda há mais uma coisa, maldito carroceiro. A mim, pelo menos, escusas de vir com conversas tipo nada disto é bem assim. Tudo o que eu já disse, e também tudo o que ainda vou dizer, são pormenores que eu sei que são verdadeiros com toda a certeza – porque são pormenores que me aconteceram a mim, que estive na URSS há mais de trinta anos, quando as pessoas já sabiam que tu existias, e a maioria dessas pessoas já tinha medo de ti. Ouviste? Toma e embrulha. Ainda Boris Yeltsin fazia aqueles discursos de que os russos tanto gostavam, encharcado em vodka e na terminologia mais profana que pode arrancar-se à língua de Tolstoi[8], e já os amigos que fiz nessa altura tinham medo de um gajo que muitas vezes não conheciam de rosto nem de nome. Era o Director do Serviço Federal de Segurança, e sabia-se que Boris Nikolayevich, cansado da guerra, já o convidara para assumir o cargo de Secretário do Conselho de Segurança, a estrutura que coordena as agências de segurança a nível político em nome do presidente. E então, se tudo isto fosse verdade…
Aqui era costume os meus interlocutores fazerem uma pausa, enrolarem na mortalha um tabaco muito escuro, voltarem a medir-me dos pés à cabeça obviamente a pensar se poderiam mesmo confiar em mim, acabarem por encolher os ombros naquele gesto inconfundível que significa sempre, no mundo inteiro, “ah, epá, olhem lá, que se foda, por favor, quer dizer, que se lixe mas aqui vai disto que vendo bem as coisas lixado já eu estou de qualquer maneira”, e, depois de assim pensarem, continuarem a contar-me o que constava nas ruelas escuras do medo e nos becos clandestinos do boato.
Se aquele mesmo gajo que entrava a altas horas no Kremlin sem se dar sequer ao trabalho de parar no checkpoint da segurança, para a seguir passar horas perdidas a jogar com o chefe um poker onde circulavam pilhas obscenas de muitíssimo dinheiro…
Clara e Sebastião preparados para enfrentar o Grande Norte da Mãe Rússia, onde os espera mais uma delicada missão de espionagem. “Quem aqui entrar pela espada, pela espada sairá,” declara Alexandre Nevski no filme que o apresenta como um grande herói, libertador amável dos seus súbditos oprimidos, perseguidor incansável dos pérfidos cavaleiros teutões que em nome de Deus queimam os bebés russos em grandes fogueiras, e consolidador inquebrantável das enormes fronteiras da Pátria. E ah, sim, isto também é de uma importância crucial no que diz respeito a transformar um homem num herói: o filme de Eisenstein põe no papel de Nevski um borracho de perder a cabeça. Ai se eu e o Sebastião o encontrássemos no meio de tanta neve. Que grande espionagem eu não faria.
… se esse gajo viesse a tornar-se ele próprio o chefe seguinte, as pessoas da Rússia iam sofrer na pele o castigo que lhes seria inflingido pelo seu infame pecado de serem russas. E, pior ainda, por nunca terem tomado a iniciativa de…
Mais uma pausa, mais um segundo pensamento a meu respeito, mais um suspiro de “que se lixe.”
… por nunca terem tomado a iniciativa de recorrerem a qualquer um dos seus subordinados, que depois lhe passaria para as mãos metade do lucro, para fugirem a salto para a Finlândia. Ou mesmo para Portugal, porque não, o que é que custa, é um país barato e cheio de sol e com praias, claro que a fuga a salto é mais cara e a percentagem sobre os lucros da operação mais elevada, mas compensa, acreditem que compensa. O povo russo é apático. Não consegue tomar iniciativas.
Esse amiguinho discreto que o Yeltsin pescara do KGB, certamente com os bolsos cheios de garrafas de vodka de beterraba da Ucrânia[9] já vazias às oito da manhã, gostava de “métodos de espionagem”[10], tais como ir buscar criancinhas à escola, levá-las para sítios bonitos, deslumbrá-las com prazeres exclusivamente destinados a ricos, tais como carreiras de tiro para ganhar ursos de peluche enormes, rodas gigantes todas cheias de luzes a acenderem e a apagarem, passeios de gaivota em lagos magníficos seguidos de pic-nics na relva a ver os patos de todas as cores correrem entre os juncos da margem, e toda a sorte de guloseimas deliciosas em oferta inesgotável, para que finalmente os putos acusassem os pais de crimes que eles nunca na puta da vida tinham cometido.
Dentro de uma semana, dias 3 em Lisboa e dia 4 no Porto, canta nos Coliseus o meu Incomparável Herói da Música Portuguesa Actual, o grande Valete. Em sua homenagem, vou então contar-vos a história de um rebelde russo que queria cantar e não podia. Mas, mesmo sob proibição governamental extremamente rigorosa de se meter nestas práticas dúbias, este rebelde cheio de garra não teve medo de me contar muitas das coisas que eu aprendi no extremo Norte do seu país durante aquele Dezembro gélido, uma semana precisa antes de a URSS chegar ao fim.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Belíssimo jogo de palavras, não é? Além do insulto mais difamatório subentendido na primeira sílaba da palavra “polícia”, o Putin, na sua qualidade de Grande Confessor do KGB, também já foi mesmo um polícia do pior género. Ha! E esta do “Grande Confessor”, acabadinha de meter extremamente a propósito, por acaso também está muito bem esgalhada, porque este gajo podia perfeitamente ser o Torquemada e andar pelo mundo a infernizar toda a gente com os seus autos-da-fé. “Infernizar”, topam? A propósito de queimar o pessoal na fogueira. Vá lá, confessem. Sou boa nisto ou quê?
[2] Antes de mais nada, recorde-se que a História da Grande Mãe Rússia está literalmente pejada de czares, sendo que está bem que alguns eram sádicos e cruéis por se terem tornado completamente mongos depois de tantos casamentos entre primos, mas na sua esmagadora maioria estes detentores de enormes poderes absolutos eram figuras tais como Ivan o Terrível, Alexandre Nevski, e outros grandes heróis dos filmes magníficos do Eisenstein, daqueles que passavam o tempo a mandar os seus pobres súbditos esfomeados, gelados, e mal treinados, morrer e matar desse lá por onde desse, apenas porque “quem aqui entrar pela espada, pela espada sairá: assim foi e sempre será em Terra Russa”. Esta tirada podia ser do Putin, mas por acaso foi do seu ilustre predecessor Alexandre Nevski. E reparem que constitui, só por si, aquilo a que se chama tout un programe. Um programa catastrófico, bem entendido. Para os russos e para nós.
[3] “Fogo e fúria de uma dimensão que o mundo nunca antes viu”, numa versão portuguesa que melhora indecentemente as capacidades oratórias de Trump.
[4] “A mãe de todas as batalhas.” Sempre gostei especialmente desta, e da sua doce toada romântica, tão evocativa do nascer do sol num oásis. E tem, ainda, o valor acrescentado de ser o pré-aviso de guerra mais feminista de todos os tempos.
[5] “Era só para saber”. A pessoa começa com gracinhas em inglês e às tantas já está ela própria a fazer figura de parva.
[6] Qualquer coisa como “quero lá saber”. Dá imenso jeito para acabar conversas sem ofender ninguém.
[7] Trotsky dominava tão bem o inglês que até foi actor secundário em alguns filmes americanos, representando geralmente aquele tipo de papel em que um niilista russo era dotado de tal bondade que resolvia tudo a cinco minutos do fim. Durante o seu período mexicano, lia e sublinhava diariamente o NEW YORK TIMES logo pela manhã, para pôr o dedo na pulsação do mundo. Só para vos dizer: viu-se o que o Estaline fez ao único dirigente marxista-leninista que falava inglês..
[8] Quando o tom da conversa pertence à categoria taxonómica pessoal da estiva, poucas outras línguas terão a pujança e a criatividade da língua russa. E a ordinarice, então, é de comprimir o estômago até a pessoas como eu, que qualquer leitor destas crónicas já percebeu certamente que não faço o género toca piano e fala francês (falo francês, mas qual é? – há azar?), mas o que é que querem, padeço de sindroma vertiginoso – e aquele nojo do russo ordinário, quando bate em cheio no verdadeiro ordinário, é mau de digerir, mas é que mesmo muito mau.
[9] Este vodka não foi criado pela minha imaginação doentia, nem é mais um subentendido para descrever Yeltsin como um tal alcoólico que em breve estaria a beber o álcool dos frascos dos perfumes. É um vodka que existe mesmo, com uma cor preocupante entre o castanho e o cor-de-laranja; e, obviamente, é o mais barato de todo o infinito mercado soviético dos vodkas. Sem dinheiro para os aquecimentos nem lenha para as lareiras, os russos mantiveram-se quentes durante todo aquele Inverno a bebê-lo. E eu também, portanto suspendam o vosso julgamento se fazem favor. Viviam-se dias difíceis. Pelo menos naquela altura, o caos resultante da rapidez compulsiva da mudança, e a balda total instaurada no país exactamente pela velocidade dessa mudança, eram de tal ordem que tinham criado uma miséria extrema. Tão extrema que os meus amigos lá trataram das coisas um bocado a contragosto, e uma bela manhã bateram-me à porta do quarto do hotel, dito de luxo, mas com rachas nos vidros das janelas, uns jovens soldados e um jovem polícia. Vinham vender-me um uniforme do Exército Vermelho por quinze dólares, e um casaco de gala da Polícia Soviética por sete dólares e meio. Além desta transa, traziam-me ainda uma grande profusão de barretes de pele de urso ou de bonés de matéria dura, com uma estrela vermelha a encimar a foice e martelo dourados que cintilavam nas palas que desciam até aos olhos. Tudo isto enrolado dentro de folhas soltas de PRAVDAS, por seu turno enrolados dentro de sacos de plástico opaco. Quando o soldado saiu, o agente da autoridade ainda se lembrou de me vender um outro bem de consumo que só custaria vinte dólares, e que podia ficar disponível imediatamente caso eu tivesse interesse pela mercadoria. Tratava-se de um produto natural muito bem cuidado, e que fazia bem a tudo. Grande parte de tudo isto foi-me explicado por gestos e desenhos. O rapazinho estava podre de bêbado, e queria desesperadamente vender-me o seu próprio corpo.
O músico Dino Santiago usou um evento do semanário Expresso para colocar em causa a letra do hino nacional. Fomos ler o que disse o semanário Expresso quando, em 1997, Alçada Baptista fez a mesma proposta no seu discurso de 10 de Junho.
“Não tem nenhum eco no coração da juventude evocar a vitalidade da pátria gritando ‘às armas’ e propondo-nos ‘marchar contra os canhões’”. Quem disse isto? Se pensou no nome de Dino Santiago, o músico que, no passado dia 6 de janeiro, durante a conferência comemorativa dos 50 anos do semanário Expresso, propôs a alteração do hino nacional, então está errado.
Dino disse algo parecido. Mais precisamente: “A nossa geração, este nosso tempo, já é um tempo de termos um hino menos bélico, que incentive menos às guerras. Não gritemos mais ‘às armas, às armas’ e não marchemos mais ‘contra os canhões’. Os nossos filhos não precisam disso e a nova emancipação não pode ser territorial. Que seja mental, espiritual, com amor”.
Então, quem disse a frase inicial e quando? Aquelas foram palavras de António Alçada Baptista (1927-2008), advogado, romancista e editor que, entre 1988 e 1997, foi o presidente da Comissão Organizadora do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Seria no 10 de Junho de 1997, na cidade de Chaves, que Alçada Baptista, como orador oficial, questionou o hino nacional perante o Presidente Jorge Sampaio e o primeiro-ministro António Guterres.
É preciso, primeiro, contextualizar a altura em que Alçada Baptista disse aquelas palavras. Em 1997, Portugal vivia o segundo ano do governo socialista de António Guterres. Era uma nova política, após os dez anos de Cavaco Silva à frente do governo. Guterres não tinha uma maioria parlamentar, mas vencera as eleições e geria o cargo em maioria relativa, sem qualquer acordo parlamentar assinado à esquerda. O actual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, era então o líder do PSD desde que vencera o congresso de Santa Maria da Feira no ano anterior.
O país ainda não tinha entrado na crise económica do “pântano” ou da “tanga”, mas discutia-se uma das mais importantes decisões que afectariam a soberania de Portugal: a adesão ao euro e o fim da nossa moeda, o escudo. É nesse ambiente que Alçada Baptista lança o repto em relação à discussão do hino.
Três dias depois, no semanário Expresso – o mesmo que no dia 6 deste mês deu palco ao músico Dino Santiago para ir avante com a sua proposta – o subdirector Fernando Madrinha, no espaço de crónica com a designação “Página Dois”, por ocupar a segunda página do semanário, assinou um texto intitulado “E a seguir ao Hino?”. Alertava que “a falta de assunto” levou a que Alçada Baptista fizesse uma proposta reveladora “de uma certa atitude que contribui para nos desarmarmos ainda mais enquanto Nação”.
Madrinha contou que o primeiro-ministro da altura – e actual secretário-geral da ONU, António Guterres –, comentou que todos os hinos estão “desfasados” e não seria suposto serem tomados à letra. Sendo um canto de exaltação, “não se espera dele que faça apelo à razão dos comportamentos ou que seja fiável quanto ao rigor dos factos históricos; espera-se bem pelo contrário, que faça apelo às emoções e mobilize a vontade daqueles a quem se dirige”, escreveu o subdirector do Expresso.
António Guterres, antigo primeiro-ministro e actual secretário-geral da Organização das Nações Unidas.
Frisou Madrinha que a questão aparecia “justamente num tempo histórico em que bem precisados estamos de reforçar essa noção de Pátria, que a alguns – poucos, felizmente – parece repugnar. Se a proposta de mudar o hino tivesse seguimento, que sentido faria manter a bandeira, visto que alguns dos seus símbolos também perderam actualidade?”.
Pois é. A seguir ao hino, será a bandeira a ser colocada em causa?
“E já que as fronteiras se diluíram e a moeda está em vias de desaparecer, por que não eliminar todos os sinais que contribuem para a nossa identificação nacional?”, perguntava ainda, em tom de provocação, o subdirector do jornal fundado em 1973 por Francisco Pinto Balsemão, que foi primeiro-ministro de Portugal entre 1981 e 1983.
António Alçada Baptista
Mas as frases mais provocadoras do subdirector do Expresso estavam reservadas para o fim da crónica que, lida com os olhos higiénicos do novo pensamento de contra-cultura dos dias de hoje, seria facilmente conotada com posições “extremistas”, pois Fernando Madrinha registou que a proposta de Alçada Baptista caiu em “saco roto e não comprometeu mais ninguém senão o próprio autor da inusitada proposta. Se outros lhe tivessem dado ouvidos, ao nível da representação política, isso seria um grave sinal de que estávamos muito perto de nos transformarmos de vez num povo sem memória, num Estado sem raízes, numa Nação sem uma ponta de respeito pelo seu passado”.
Pimba!
Madrinha ainda dedicou umas palavras ao Presidente da República, Jorge Sampaio, dizendo que esperava que deixasse de haver a figura do orador oficial “ou que, pelo menos, evitem o absurdo de algum futuro orador oficial se achar no direito de usar a tribuna do Dia de Portugal para apoucar os símbolos nacionais”. E não acabou por aqui. Ainda teve mais: “E espera-se também que Jorge Sampaio arranje iniciativa e criatividade bastantes para interessar o país inteiro por essas celebrações. A fim de que 10 de Junho continue a ser identificado como o dia de Portugal e não seja cada vez mais o dia em que se joga a final da taça no Estádio Nacional”.
Pumba!
Vinte cinco anos se passaram desde aquela altura. A moeda única, aprovada em 1998, surgiu fisicamente em 2002. O Hino de Portugal foi bastante cantado durante a carreira da selecção de futebol no Euro2004. Os primeiros sinais da crise financeira internacional começaram em 2008 e atingiu-nos em força em 2011. Hoje, nem mesmo o hino e a bandeira parecem ter força suficiente para nos exaltar como povo. A não ser, talvez, nos jogos da selecção.
Nota histórica:
A Portuguesa é o nome do hino de Portugal e, originalmente, a parte que fala de marchar contra os canhões era contra os “bretões”, os britânicos. Começou por ser uma canção de protesto contra a imposição da chamada questão do ultimato britânico do “Mapa Cor-de-Rosa” de 1890, em que se exigia que as tropas portuguesas abandonassem o território compreendido entre Moçambique e Angola.
A letra é de Henrique Lopes de Mendonça e a música de Alfredo Keil. O sucesso popular e o facto de ser uma bandeira contra uma monarquia refém dos ingleses, elevou a canção a hino nacional no ano seguinte à revolução republicana do 5 de Outubro, em 1911, tendo substituído o “Hino da Carta” que vigorava desde Maio de 1834.
Desde então, houve novas oportunidades revolucionárias para mudar o hino. Poderia ter sido feito, por exemplo, aquando do golpe do 28 de Maio de 1926. Também o ditador Salazar poderia ter mudado o hino na altura em que teve uma nova constituição, em 1933. Criou o Estado Novo, mas não aproveitou para fazer o “Hino Novo”.
Aliás, a 16 de Julho de 1957, o Conselho de Ministros, presidido por Salazar, fixou a letra e arranjo musical, tendo sido publicada a versão oficial da partitura no Diário do Governo de 4 de Setembro de 1957.
Com o 25 de Abril de 1974, marcando o fim da ditadura e início da actual democracia, também não se mudou o hino – pelo que o “Grândola, Vila Morena” a canção de Zeca Afonso que serviu de senha para a revolução, perdeu assim uma bela oportunidade de substituir “A Portuguesa”. Sobra-nos, ao menos, o consolo de ter um hino com nome feminino que, pelos vistos, sempre poderá contar como algo a seu favor nos tempos que correm.
Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.
A primeira coisa que me passou pela cabeça na notícia de uma mãe e o seu filho que, desde Setembro, vivem numa tenda na praia de Matosinhos foi perguntar como ali foram parar. Já quando leio os comentários sobre esta situação, a palavra que se atravessa à minha frente é “culpa”.
Mais do que perceber e até contribuir para a solução, a turba gosta de apontar culpados.
Estamos numa fase da evolução em que passámos a sobreviver em Portugal, em vez de viver. Todos os dias são de luta, todos os dias são de um salve-se quem puder sem simpatia alguma pelo próximo, seja lá qual for o seu nível de sofrimento.
Há quem de imediato puxe pela carta do chauvinismo dizendo que, fossem mãe e filho originários da Ucrânia, já teriam uma casa entregue pelo Estado. Como se refugiado de guerra fosse uma espécie de estatuto dourado que todos um dia sonhamos ter.
É um argumento de índole racista, ligeiramente mais elaborado do que o habitual: “se fossem daquela etnia, já tinham casa”. Não vou roubar palco a quem por norma entra neste tipo de raciocínio e que todos percebemos quem são e de onde chegam. São pessoas que odeiam o Estado socialista e solidário, mas que exigem que este ajude toda a gente.
Boa parte dos “apontadores de culpados” – é isso essencialmente que se faz nos comentários das notícias –, julgam o filho de 40 anos, beneficiário do RSI [rendimento social de inserção] e questionam o facto de não trabalhar. “Tem bom corpo, que vá alombar”, é um dos mais lidos.
Fico especialmente estupefacto pela velocidade com que se critica um perfeito desconhecido sem saber que vida teve e como chegou ali. Lendo, fico com a sensação que era o plano à nascença – este, de aos 40 anos viver com a mãe numa tenda na praia de Matosinhos.
Temos pouca, pouquíssima simpatia pelo próximo. Rastejamos tanto por migalhas que já nem suportamos a dor alheia.
Sobra aquela parte mais rebuscada que coloca o ónus da sua situação no facto de as rendas estarem muito caras e de os senhorios serem uma cambada de gananciosos. É um facto que as rendas em Portugal são exorbitantes, ou melhor, são fora de contexto para aquilo que é a realidade salarial do país.
E, claro, isso cria um problema a quem não tem casa própria, embora num país com cerca de seis milhões de apartamentos (dados do Pordata de 2021) dificilmente se compreende que a falta de alojamento seja de toda a gente e nunca do próprio. Por cada 1.000 habitantes existem 577 fogos, segundo um estudo da OCDE, o que faz a média portuguesa disparar em relação à dos países que integram esta organização.
Por exemplo, Reino Unido e Estados Unidos apresentam uma média de 433 e 421 casas por cada mil habitantes, respectivamente. Portanto, o problema está longe de ser a falta de oferta. Quando muito, a discussão colocar-se-á no facto de, numa idade sénior, uma pessoa não ter habitação própria e precisar de alugar.
Este é um tema para o qual sou sensível – por motivos que não importam para este texto. Por isso, de uma forma geral, no caso desta mãe e filho – como faria se fosse a minha mãe –, eu tendo a compreender primeiro o que é que podemos fazer por nós, e só depois pensar, em última análise, o que deve o Estado Social fazer.
Não gosto, nunca gostei, que se apontasse para o Estado como primeira opção na resolução de problemas – como se o direito à habitação, inscrito na Constituição, incluísse uma cláusula de desresponsabilização individual, familiar e colectiva na gestão das nossas vidas.
Sou muito crítico comigo próprio nos passos dados e nos erros acumulados. Por isso, tenho imensa dificuldade em culpar o que me rodeia por opções de vida ou riscos tomados por mim. Guardo as consequências e culpo-me, sempre, pelos resultados. Considero que está em mim, quase sempre, a solução para tudo.
Por isso, é essa forma de ver a nossa responsabilidade, naquilo que é a nossa vida, que me leva a perguntar como é que aquela mãe e aquele filho chegaram à tenda.
Segundo percebi, a senhora trabalhou vários anos em empresas de Matosinhos, uma delas a antiga Nestlé. Como é que uma vida de trabalho e descontos dá uma pensão mínima de 200 e poucos euros?
Essa é a pensão que recebe alguém que trabalhava nos campos e nunca fez descontos. Todos temos avós, todos conhecemos histórias destas. Como é que um rapaz de 40 anos recebe RSI? Por que razão não tem subsídio de desemprego? Terá alguma incapacidade que não o permita trabalhar?
Não ouvi qualquer referência a uma procura activa de trabalho. E por fim, se lhe foi oferecida estadia numa camarata, num abrigo da autarquia, porque recusaram eles essa hipótese, dizendo que não se sentem confortáveis partilhando espaço? Não seria melhor que uma tenda?
A minha primeira reacção, num caso destes, seria enviar dinheiro para aquela família, para que pudessem estar um mês numa pensão qualquer. Não seria a primeira vez que o faria. Mas isso não me impede de colocar questões ou de imaginar que história de vida os levou ali. E repito: podem ali ter chegado por todos os infortúnios de uma vida sem sorte, mas… quem é que recusa um tecto?
O Estado Social em Portugal falha, falha muito. Há cada vez mais pobres e a habitação social não chega para todos. Há especulação, há ganância, há corrupção, há desvio de dinheiro para as elites, para os bancos e para as PPPs das estradas. Tudo isso é verdade. Mas nós fizemos a nossa parte? Nós, ao longo da vida, fizemos a nossa parte para preparar o dia de amanhã? Esta mãe e este filho, eu, tu? Fizemos o que podíamos para não estarmos nesta situação?
Provavelmente não.
Todos temos a nossa história e a de quem nos rodeia. Todos vimos, ouvimos e fizemos coisas que nos cortaram garantias de um futuro melhor. Gostava de ver a realidade com outros olhos, mas, infelizmente, só consigo avaliar à luz do que vou vivendo. E o que vejo, perto de mim, são várias histórias de erros repetidos ao longo dos anos, que levam a uma velhice sem segurança, sem sequer um tecto garantido.
A história desta mãe e deste filho lembram-me algo mais próximo, e honestamente não consegui ver a reportagem até ao fim. Seja lá que passado os levou ali, espero que a senhora vá rapidamente para uma casa com um mínimo de conforto.
Mas não podemos, nem devemos, numa altura em que os problemas aumentam, esperar por ajuda divina, culpar o mundo e enfiar a cabeça na areia. Dificilmente sairemos da pobreza ou resolveremos seja o que for dessa maneira. Os primeiros culpados somos nós. Há sempre qualquer coisa que podíamos ter feito diferente.
Penso nisto quase todos os dias quando recuo no tempo, até ao dia em que comprei a minha casa, aqui na Suécia. Cinco anos passados, com uma taxa de juro absolutamente incomportável, o risco de a perder é real. Eu que nunca confiei em mercados, e que assinei um contrato com taxa fixa por cinco anos, enfrento agora a hipótese de ter de a entregar a outra pessoa qualquer, pelo simples facto de a altura de renegociar o juro acontecer a meio de uma guerra que suga os recursos financeiros da Europa.
É então a guerra da Ucrânia responsável pela minha perda? Não. O responsável sou eu por ter comprado uma casa que dificilmente conseguiria pagar se o juro triplicasse. Eu sou o culpado de não ter assumido essa hipótese.
Da mesma forma que, se um destes dias ficar sem emprego, depois dos 45 anos de idade, e com integração no mercado mais difícil, a culpa também será minha. E porquê? Porque recusei todas as oportunidades de contratos permanentes, durante quase duas décadas, a troco de contratos temporários mais bem pagos.
Foi a minha opção, o meu risco. No dia em que correr mal, a culpa será minha. Não do meu empregador, do meu chefe ou do mercado.
É assim que eu vejo as coisas. Nós, indivíduos, somos os primeiros responsáveis pelos buracos em que nos metemos e a primeira força de salvamento para sair deles. Não nascemos numa tenda na praia, chegamos lá de alguma maneira. Não chegamos a meio da vida com 20 anos de trabalho, a viver em casa alugada, se não optarmos por isso, ou se as escolhas de vida não nos levarem aí.
Não temos de viver todos a vida a pensar no amanhã, e muito menos descartar o Estado Social como bombeiro que deve ser. Mas achar que tudo nos é devido, por vezes depois de uma vida inteira sem pagar impostos, colocando sempre a culpa de tudo o que nos acontece no ambiente que nos rodeia, também não será grande ajuda à própria causa.
Portugal está a empobrecer a um ritmo alucinante. A Europa está a empobrecer também. Os apoios sociais vão disparar, os pedidos de ajuda por casa e comida são reais, dramáticos e em maior número do que os Estados conseguem responder.
Eu sou um defensor da solidariedade social através de um sistema de impostos progressivo, e acho que boa parte do dinheiro ganho pelo Estado, neste jackpot que a inflação trouxe, deveria ser aplicado no auxílio às famílias. Isto não implica que deixemos de lutar e tentar fazer a nossa parte.
Estamos mais pobres. Todos. Ou quase todos. É bom que percebamos isso e que tomemos consciência que temos de fazer a nossa parte para não engrossarmos as estatísticas.
A solução começa sempre em nós.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Olhou para a câmara porque sabia que alguém o via. Um bebé quando acorda já sabe onde está a vigilância. Olha de frente para a câmara, porque acredita que estou ali miniaturizada, a vigiar o sono e a vigília. Uns choram e chamam, outros ficam a olhar, outros desatam a gatinhar para tentar fugir, enquanto a mãe não se manifesta por artes mágicas.
Um dia olhei o céu e senti que já ninguém me via. Estaria alguém ainda a ver? Disseram-me para acreditar que sim, e eu fiquei a olhar, cheguei a gatinhar para desatar a fugir, experimentei chorar e chamar e depois fiquei a olhar outra vez.
Assim nos fizemos, ou fizeram-nos, entre a casa dos nossos pais, a Igreja e a escola. E todos os recreios e caminhos entre eles.
Quem é que nos paga a escola?
– … é o Estado.
Errado, é o Governo, que afectou verbas ou não para investir num molde de cidadão eleitor futuro. Esse Governo foi agora eleito por interferência externa de grandes poderes do capital corporativo, a diferença entre ter cartazes e não ter. A diferença entre ter uma equipa de gestão de imagem e conteúdos ou ser um cão pequenino a ladrar em oposição controlada.
Se for um Governo mais fascizante, prima por investir em baixar-nos o pensamento crítico com o medo e o respeitinho; normalmente é útil para isso usar entidades sobrenaturais.
Se for um Governo mais liberalzinho, vai fazer o mesmo, mas em vez de entidades sobrenaturais dão-nos um computador pessoal (que já ninguém tem pachorra para fazer marcação na biblioteca) e acesso à internet. Que dádiva!
Ambos gostam de exaltar grandes substantivos abstractos; um usa a Pátria, o outro usa o Mundo, dá tudo no mesmo. Ninguém vai ensinar Jaspers, Kierkegaard, Kant, Nietzsche, Heidegger, Sartre ou centenas de outros mais. Nem há tempo. Ninguém sequer explica as diferentes correntes desde a escolástica, ao simbolismo, às inquietações modernas ou ao pós-modernismo que serve de semente ao actual “mundo”.
Quando muito proíbem filósofos perigosos, não enquadrados no pensamento vigente. Sem segundas hipóteses na igreja woke. Ninguém vai explicar ou mostrar Adam Smith e Marx. Ninguém vai dizer o que é “interpretação”. Ninguém vai explicar as estruturas de funcionamento da sociedade, do Estado, dos impostos, do mercado livre. Ninguém vai explicar, porque ninguém vai ver, é não ouvir, é não querer ver, é não querer entender nada…
A única coisa que vão fazer é ensinar-nos que houve uns egípcios com umas pirâmides e uns gregos com umas togas, depois que houve uns portugueses heróicos que foram por aí fora participar no mercado livre das mercadorias em voga (e, dependendo do púlpito, podemos ter a versão “somos-os-maiores” ou “somos-umas-bestas-esclavagistas”). Por minha culpa, minha tão grande culpa!
O menino é malcriado, o menino é pequeno burguês, o menino pertence a uma classe sem futuro histórico!
Pelo meio aparece o Pitágoras, alguns axiomas, Pessoa, Bocage e talvez Cesário, e ainda talvez Saramago. Tudo embrulhado e enfrascado em conserva, para saber tudo ao mesmo. Camões e Eça servem-se enlatados lavados com champô.
Tudo ao molho e fé em Deus, ou no tik tok partilhado no intervalo. Tudo num torvelinho hormonal de crianças em desenvolvimento com o mundo num telemóvel e uns senhores no fundo da sala a explicar que o mundo vai acabar; antes, bastava todos reciclarmos e deixarmos de usar laca e fazer grafittis; agora, melhor deixar de comer carne e, de preferência, deixar de respirar. É o molde, é o que é, é a lei, come, cala.
Vá! Mandem-me lavar as mãos antes de ir pra mesa!
O Estado não existe.
É uma entidade sobrenatural criada para nos fazer crer que o poder é nosso. Que houve consenso, moral, ética, terreno comum, que houve necessidade, que a grande obra pública era urgente e emergente. E caros amigos monárquicos, isto vai até vocês. Não pensem que a ruína da Fazenda Pública nasceu com a República. São todos os mesmos. Têm todos as mesmas ambições megalómanas.
Um gajo sonha de noite, dá uma bofetada na própria mãe e vamos para a guerra, combater vizinhos mouros que estavam aqui como estava toda a gente. É o califado! Lutem! Um gajo sonha de dia, dá um encontrão ao irmão e vamos para o mar, trapacear e raptar indígenas distantes em nome de Cristo e do progresso e que espertos que nós somos.
As palavras é só bolinhas de sabão, parole parole parole e o Zé é que se lixa!
Depois umas salas ao xadrez com outros gajos de avental, sonham de madrugada e maquinam planos, engendram progresso, ou sem avental a obra, a obra! A obra de Deus fazem eles! Abaixo o rei, viva a República! Continuemos…
Estado que se preze, autoridade que seja digna, reduz os seus papéis ao mínimo de garante da ordem e de estrutura assistencial de que se orgulhe. Estado que se preze desaparece do nosso dia-a-dia. A cada escola cabe seu caminho, sua gestão, sua planificação programática entre corpo docente e pais e famílias. E aí quem não concorda; é livre de se expressar e, em caso de não estar feliz com o consenso maioritário descentralizado e local, procurará, bem mais próximo possivelmente, uma solução, ou até criará uma.
O estado da escola mostra precisamente o Estado que temos. Os professores não querem ver isso porque continuam a ser pagos pelo Estado, escravizados pelo Estado, manietados pelo Estado. Mas esses professores já foram educados numa escola que lhes dizia que a entidade sobrenatural do Estado era uma inevitabilidade, por isso “lutam” e reivindicam. Sem abrirem os olhos para verem que a razão de ser da luta deles continua a existir e a manter a necessidade de luta.
O Estado…
Essa entidade sobrenatural.
O Estado, que investiu décadas a vender que é sinónimo de liberdade. Que em 1974 apareceram e nos soltaram as grilhetas da opressão. Que quem está lá agora são os descendentes naturais desses heróis, muito embora os heróis de então estejam a fazer tijolo, abandonados que foram na própria hora ou arrumados numa prateleira desde 1975 a mandar vir baixinho, porque a pátria lhes comeu a carne e deixou os ossos.
O Estado…
Essa entidade sobrenatural que, se for brasileira, até injecta manifestantes detidos na capital com a inoculação experimental da moda.
Curioso. Diria até que parece prova de que afinal é um castigo e uma penalização. [calma, calma, certamente é um mal-entendido…]
Curioso… Diria até que parece que o Estado quer tratar as pessoas como animais no matadouro [ah! mas são meliantes… não são bons cidadãos!]
Curioso. Como ferro em brasa na carne.
O Estado…
… não existe.
Mas alguns de nós continuam à procura do cérebro, outros à procura do coração, outros à procura de coragem, outros só querem bater os calcanhares e voltar para casa, seja lá onde isso for.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Tentar acompanhar a realidade portuguesa quando se vive a 3500 quilómetros e se divide o tempo por quatro empregos é um desafio, admito. Não só o tempo me foge pelos dedos, como a actualidade nacional anda a uma velocidade que, por vezes, se torna impossível de seguir.
Dou por mim a usar os tempos “mortos”, seja lá isso o que for, para correr as fontes todas e perceber como param as modas. A parte complicada deste processo é mesmo separar as notícias do refugo: a informação, em vez da propaganda; as notícias “plantadas”, em vez da realidade.
Quando finalmente chego ao que interessa, é porque já tive que mastigar horas de publicidade e de discursos ou comentários absolutamente irrelevantes.
Não sou, nunca fui, fã de teorias da conspiração, mas questiono, com alguma firmeza, a presença de alguns comentadores na praça pública com narrativas que se repetem, independentemente das situações.
Pergunto-me de que servirá ao grande público ouvir, uma e outra vez, as mesmas pessoas que nos tentam apresentar uma realidade alternativa como se todos, ou todEs (isto está mesmo a acontecer ou é só piada?), fôssemos uma cambada de idiotas.
Comecei a ronda pelo Froes. Ouvi-o recomendar a quarta ou quinta dose da vacina da covid-19 e garantir que esta tinha uma robustez espectacular. Ele usou a palavra “espectacular” como se fosse o desempenho de um aspirador num chão repleto de migalhas.
Faz-me alguma impressão que pessoas como o Froes continuem a ter palco. Honestamente. Não tenho nada contra vacinas em geral, nem sequer contra as da covid-19 em particular, mas, sabendo o que todos sabemos hoje, vendo as estatísticas ao fim de três anos, não entendo mesmo como é que um assalariado das farmacêuticas vai fazer publicidade do seu produto para a SIC Notícias, em horário nobre.
Filipe Froes numa das suas muitas entrevistas em noticiários da SIC Notícias.
Acho imoral que uma pessoa que é paga por uma farmacêutica vá convencer os portugueses, num tema de saúde pública, que a solução para todos os males é comprarem o que os seus empregadores tentam vender.
Era bom que nos lembrássemos, pelo menos, que enquanto nos convenciam que estava em curso uma pandemia mundial e era preciso unir esforços, os Estados gastaram milhões com as farmacêuticas, sem que estas abrissem a patente das vacinas.
Portanto, fortunas foram feitas à custa do erário público e nem por isso se erradicou um vírus, que há muito sabemos ser endémico, e tão pouco conseguiram os Estados, que pagaram tudo à custa de mais endividamento, passar a produzir a vacina.
Portanto, tenham pelo menos a decência de não continuarem a impingir mais vacinas no Jornal da Noite, em nome do lucro. A Pfizer do Froes não está preocupada com mortes; está interessada no lucro. O Froes faz a parte dele, que é vender. Os directores da SIC deveriam fazer a sua parte, que seria fechar-lhe a porta.
Mudei de canal e lá estava um comentador a falar da pressão que agora exerciam sobre a Alemanha para que, na conferência de Ramstein, concordasse em ceder os famosos tanques Leopard 2.
Os Estados Unidos estão a fazer a figura do primo bêbedo nas férias de Verão na Praia da Rocha, nas confusões noturnas na Kadoc. Não sei se ainda existe, sou do século passado. “Vai que eu estou aqui atrás”, dizia ele quando os locais queriam armar confusão com os forasteiros. Ahhh… as noites de Verão.
Os Estados Unidos tentam convencer um país responsável pela morte de milhões de europeus há cerca de sete décadas, russos incluídos, que devem enviar tanques para matar mais uns quantos a leste. Faz sentido, para os americanos, entenda-se. Para a administração Biden isto é aquela pastilha que todos encontrávamos no fim do Epá (outra referência à velhice, que deprimente). Um mimo que faz toda a diferença.
Quanto mais gente envolverem neste banho de sangue, quanto mais tempo a guerra durar, mais eles lucram com a venda de gás, armas e enfraquecimento do concorrente russo. Não há absolutamente morte alguma que possa parar o interesse económico americano nesta chacina. Apenas a política interna, o risco de perder eleições e o limite de endividamento (pode ser que o Senado coloque um travão à loucura) podem alterar a política externa do Governo de Biden.
Joe Biden, Presidente dos Estados Unidos.
Portanto, dito isto, se os europeus fizerem o papel de fantoches e os ucranianos continuarem confortáveis com as próprias mortes, tudo bem.
Felizmente, os alemães são menos capachos do que os outros e ficaram por uma solução intermédia. Enviam poucos tanques, cerca de 10% da quantidade que os russos colocam no terreno, e dessa forma continuam no limbo. Não ficam com a factura de mais sangue, não queimam pontes com os russos nem podem ser acusados por ucranianos. Fazem os serviços mínimos e obrigam o resto da Europa a ir a jogo, se quiser.
No fundo, não fazem nada, parecendo que fizeram algo. Foram inteligentes. A Ucrânia está cada vez mais dependente dos ventos internos americanos. Para bem de Zelensky, é bom que Joe Biden não se lembre de mais outro caixote de documentos classificados na garagem lá de casa. Apesar da realidade, do fracasso da conferência de Ramstein e da cada vez maior desvantagem ucraniana no terreno, o comentador de serviço tentava convencer toda a gente que isto seria um “game changer” (que muda o jogo). Não é. É apenas a garantia que os mesmos vão continuar a morrer, pelo menos, por mais uns meses.
Já só com um olho aberto resolvi ir dormir e, naqueles minutos finais antes de começar a sonhar com alces, ainda tentei ouvir o debate na RTP onde aparecem Raquel Varela, Inês Pedrosa, Joaquim Vieira e o Rodrigo Moita de Deus. Discutiam a greve dos professores e, à excepção de Raquel Varela, a posição dos restantes era a de “a greve é um direito mas…”.
Todos sabemos que numa frase dividida por um “mas” nada, mesmo nada, do que foi dito antes do “mas” verdadeiramente interessa. Inês Pedrosa foi particularmente cáustica com os professores dizendo que, depois de dois anos de um ensino instável, passagens facilitadas, confinamentos e escolas fechadas, os alunos agora enfrentavam novo ano em que estavam a ser prejudicados pela ausência de professores. De igual forma, entendia que fazer greve durante a negociação, não era moralmente correcto.
Devo dizer que espero, um destes dias, ouvir Inês Pedrosa a criticar qualquer coisa que o Governo PS faça ou, em alternativa, a manter a coerência. Desde logo, porque a mesmíssima Inês passou os tais dois anos, semana a semana, a defender toda e qualquer medida governamental no combate à pandemia.
Inês Pedrosa no programa “O Último Apaga a Luz”, da RTP.
Quando António Costa, por dica dos Froes da vida, encerrava espaços de lazer (alguns ao ar livre) mas dizia que os comboios da linha de Sintra e as fábricas eram espaços seguros, a Inês abanou a cabeça em concordância. Quando as escolas fecharam sem mortes nas crianças, a Inês achou muito bem porque isso defendia os mais velhos. Quando os mais velhos tinham vacinas e, em teoria, estavam protegidos, as escolas fechadas continuavam a ser uma boa aposta.
Quando quatro milhões de portugueses andavam na rua a cumprir tarefas que não podiam parar – as tais essenciais – a boa da Inês dizia-nos que o país parou, confinou e que isso tinha salvo a humanidade. Quando o Governo se endividou para pagar layoffs, a Inês ficou contente, quando as empresas despediram as pessoas e ficaram com o dinheiro, a Inês deve ter achado que, de facto, ia ficar tudo bem.
Quando, por fim, saímos dessa merda toda, dois anos mais velhos, consideravelmente mais pobres, em risco de perder a habitação e com a função pública com salários absolutamente miseráveis e congelados, a amiga Inês acha que o grito de revolta está a prejudicar os alunos. Os mesmos que, durante dois anos, foram impedidos de ter uma escola normal por causa de pessoas como a Inês que olhavam para a Suécia e para as suas escolas cheias de crianças, como o resultado de um Estado de negacionistas.
O que dizer sobre a coerência? Se o Miguel Relvas, depois de “concluir” um curso universitário passando apenas a quatro cadeiras, pode discutir a moralidade dos membros do Governo, no papel de senador no comentário político, por que razão não haveria a Inês Pedrosa, depois de defender o encerramento das escolas durante dois anos, achar que as lutas laborais é que prejudicam os alunos? Tudo normal.
Abri os dois olhos e perdi o sono. Não entendo mesmo o que fazem estas caixas de ressonância no debate público. Não volto a dormir com a Inês. Dá-me cabo da bílis.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Consciencializar que o dinheiro dos patrões não cresce nas árvores.
Solidificar que por cada preguiçoso há trabalho que sobra para quem é diligente.
Interiorizar que todos terem dinheiro é bom para a sociedade.
Há um mundo ideal em que todos se dedicam ao que fazem bem.
Há vantagens em que o salário torne inútil os apoios sociais.
É verdade que todos fazemos falta, mas uns mais que outros.
É indesculpável retirar lucros do boicote.
Aos horários cumprem funções.
Mas se pagarmos as funções podemos eliminar os horários.
Desejem-se focos diferentes, como semanas de menos dias.
Exijam-se condições de bem-estar, para lá das remuneratórias.
Inclua-se SNS ; Justiça, Educação nas listas com exigências.
Acabar com dirigentes sindicais que se perpetuam como mármores.
Perceber que aos salários correspondem tarefas.
Perceber que às tarefas são inerentes riscos.
Colocar nas vantagens dos trabalhadores os seguros de trabalho.
O despedimento é essencial à avaliação, é uma arma dirigente.
Perpetuar um sinuoso, aldrabão, incompetente, promove revolta.
A ética das reivindicações obriga a reclamações diferentes.
A subtileza e a sofisticação das exigências é uma reviravolta.
O trabalhador deve receber por funções que cumpre num tempo.
Podemos negociar trabalhos com orçamentos.
Num orçamento tem de estar um tempo previsto.
Aos que servem deve ser dada a possibilidade de mandar.
Os mecanismos de crédito são matéria para os cadernos laborais.
As rendas de casa podem ser uma alínea mais nas exigências.
Todos devem pagar impostos para usufruir dos bens de todos.
Todos devem observar o princípio de pagar e exigir pagamentos.
O Estado é um bem colectivo que pode ser vigiado e melhorado.
Um bem colectivo é nosso. Mais rápido, mais eficiente, mais barato.
Nas exigências deve estar sempre a da cobrança dos impostos.
Patrões e trabalhadores devem ter contas transparentes.
Todos devem pagar o que é devido e todos devem ser fiscalizados.
Os impostos nunca devem passar os vinte e oito por cento.
Cobrar os lucros é devido. Cumprir com o tributo é exigido.
Nos salários deve haver coerência.
Nos ordenados têm de existir progressões.
O salário mínimo tem de ser maior que a mais alta prestação social.
Tem de ser desejável trabalhar. Tem de ser importante o desempenho e a dedicação.
Diogo Cabrita é médico
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Não nos conhecemos pessoalmente, nunca falámos sequer profissionalmente, pelo que, na realidade, deveria tratar-te por Cristiano ou Ronaldo ou, de uma maneira mais formal, Senhor Aveiro. Mas como sei ser assim que te tratam na Selecção, uso o mesmo tratamento por “tu”. Espero que não faça diferença para aquilo que sinto ter para te dizer.
Poderás perguntar: mas quem é este “Carvalho” que vem procurar protagonismo à minha custa? É verdade, podes pensar isso e, acredita, haverá por aí muita boa gente que vai fazer o mesmo tipo de pergunta.
Explico então: sou jornalista da área da política nacional e internacional. Entre obras de ficção e de investigação jornalística tenho já quase vinte livros publicados. Escrevi sobre temas complicados e polémicos, como a morte do primeiro-ministro Sá Carneiro e os encontros internacionais dos ditos “Donos do Mundo” – Grupo Bilderberg. Não há nada que me ligue ao desporto, excepto… bem, Cris, talvez até poucos o saibam, mas o meu primeiro livro de todos, publicado no Verão de 1999, foi sobre um jogador de futebol.
Um jogador de futebol chamado Vítor Baptista, dito “O Maior” – era esse, aliás, o título do livro. No início deste mês, no dia 1 de Janeiro de 2023, cumpriram-se exactamente 24 anos desde o seu falecimento. Tinha 50 anos e morreu na cama da casa da sua mãe. Estava doente, pobre e abandonado pelos amigos. Tinha ele então a mesma idade que tenho eu hoje. Talvez, por isso, com estas emoções todas, me tenha lembrado de escrever-te esta carta.
Nasci no mesmo ano – 1972 – em que, por exemplo, também nasceu um jogador que conheces bem: Luís Figo. Somos, eu e ele, da mesma geração. Crescemos sem termos visto jogar o Pelé e Eusébio, mas conhecíamos os seus feitos graças a gravações de jogos às memórias dos mais velhos.
Sou assim da geração que tinha 6 anos quando apareceu a “Tango”, a bola do Mundial de 1978 na Argentina, a mais linda que alguma vez se fez e que apareceu pela primeira vez no Mundial de 1978. Aos 10 anos chorei quando uma das melhores equipas do Brasil – com Sócrates, Zico e Falcão – foi eliminada pelos três golos do Paolo Rossi, em Barcelona. Nunca ninguém tinha feito um hat-trick ao Brasil e nunca mais ninguém fez depois. Foi o único até hoje. Nem quando perderam 7-1, em 2014, frente à Alemanha.
Cris, sim, também eu quis ser jogador de futebol e driblar como Futre ou Maradona, fazer a “chilena” do Hugo Sanchéz ou marcar com o calcanhar como o Madjer na final de Viena de 1987. Joguei nos iniciados do Francos, o clube do meu bairro no Porto, ao lado do Estádio do Bessa – sou boavisteiro, se quiseres saber – até que descobri que o futebol não é para todos.
Era preciso estudar e lembro-me de, a caminho de um jogo no Bessa, chamarem-me a atenção para um jogador do Benfica, que fora um dos melhores e, por não ter instrução, caíra na droga e vivia então dentro de um carro. Ainda não o sabia, mas esse era o Vítor Baptista que eu viria a conhecer mais tarde. As esperanças de uma carreira no futebol terminaram quando acompanhei o Sá Pinto a um treino do Salgueiros para os lados de Campanhã – frequentávamos a mesma escola secundária. Ele ficou e eu vim embora porque o plantel já estava cheio. Não tinha talento suficiente para os convencer a deixarem-me ficar. Dediquei-me ao jornalismo, que requer bem menos talento e, como deves calcular, também paga menos.
No Verão de 1997, após os estudos no Porto e o início da profissão no diário portuense “O Primeiro de Janeiro” cheguei a Lisboa para trabalhar no “Tal&Qual”. Foi a “contratação milionária” de um jornalista do Porto para a equipa da capital. Acabei por ir inaugurar as instalações do jornal no edifício na Praça Marquês de Pombal, onde passaria ainda a funcionar a revista “Visão” e um novo jornal diário, o “24 Horas”.
É engraçado, mas ao ver o teu percurso de vida, verifico que foi nessa mesma altura – época 1997/ 1998 –, que deixaste a tua ilha da Madeira e, com apenas 12 anos, também vieste para Lisboa. Não sei se foste logo viver para a pensão residencial D. José, no número 79 da Avenida Duque de Loulé, próxima do edifício onde estavam os jornais, no número 13 da Praça Marquês de Pombal.
Foi aí, nesse edifício, num fim-de-semana em que estava tudo vazio que, na Páscoa de 1998, fiz a última entrevista ao Vítor Baptista. Conhecera-o uns meses antes, quando me mandaram ir entrevistá-lo a Setúbal. Sabes o que é que ele fazia nessa altura? Estava a trabalhar como coveiro. Um emprego que a Câmara Municipal lhe arranjara para tentar resgatá-lo do mundo da droga. E foi ao vê-lo, ainda com pose de atleta, com sachola na mão para abrir as covas, a arrancar ervas daninhas saindo entre as pedras da calçada com pequenos toques de pé encurvado – os mesmos pés que, anos antes, em outros relvados, faziam levantar multidões –, percebi que tinha de escrever um livro sobre ele.
Ele, que fora o maior da sua geração, que tivera tudo, perdera tudo…
Não sei, Cris, se conheces o percurso desportivo do Vítor, mas ele, tal como tu, era de uma família pobre – os pais trabalhavam na indústria da conserva em Setúbal. O Vítor perdeu o pai aos 12 anos e começou a trabalhar como electricista e canalizador ao mesmo tempo que jogava nas escolas do Vitória de Setúbal. Aos 18 anos, o treinador Fernando Vaz chamou-o para a equipa principal e teve a estreia no jogo contra o Leixões, na segunda mão da eliminatória da Taça de Portugal, a 18 de Junho de 1967, no Estádio do Mar, em Matosinhos. Vítor fez a assistência para o primeiro golo na vitória de 3-0.
Esteve depois na eliminatória contra o FC Porto e foi jogar a final da Taça de Portugal de 1967, no Estádio Nacional, contra a Académica de Coimbra, onde ganhou o seu primeiro título: “Acho que não há nenhum jogador de futebol no mundo que tenha ganho a taça do seu país aos 18 anos. Eu devo ser o único”, disse-me ele na entrevista. Na altura não verifiquei, mas registei que era essa uma das memórias de vida que nunca lhe tinham tirado. Há outros, mas ele está lá também.
As duas épocas seguintes não tiveram grande história e Vítor jogou apenas como jogador de meio-campo. Nunca marcou golos. Mas o destino mudou quando o treinador do FC Porto, José Maria Pedroto, incompatibilizou-se com a direcção portista e, em Abril de 1969, assinou contrato com o Vitória de Setúbal. Fernando Vaz foi para o Sporting. O “teu” Sporting, Cris. Quando chegou ao Bonfim, Pedroto percebeu como deveria lidar com Vítor Batista e fez dele o goleador que precisava. E sabes contra quem foi o primeiro golo do Vítor: foi no Bonfim contra o antigo clube do seu novo treinador, o FC Porto!
Fiquei emocionado durante aqueles primeiros meses de 1998, o ano da Expo, quando ocupava os meus tempos livres a ler os arquivos dos jornais desportivos na Hemeroteca de Lisboa, ao Bairro Alto, a consultar a carreira do Vítor, que começara anos antes de eu ter nascido. A 9 de Novembro de 1969, Vítor entrou em campo aos 78 minutos, quando o jogo estava já com 4-0, mas ainda fez o quinto tento da partida – se fores verificar, o golo aos 88 minutos está atribuído a um jogador do FC Porto, Valdemar, como tendo sido na própria baliza. Mas foi porque estava a tentar parar o remate do sadino. O golo foi mesmo dele.
Na segunda volta, a 1 de Março de 1970, nas Antas, sabes quantos golos o Vítor marcou ao FC Porto? Dois. E sabes porquê? Porque à entrada do túnel, viu o Pedroto a acender um cigarro com um isqueiro de ouro “Dupont” e gabou-lhe o gosto. O treinador virou-se para ele e disse, à frente dos companheiros, que o isqueiro era dele se marcasse dois golos. Quando marcou o segundo, foi a correr para o banco a bater no peito e a gritar “O isqueiro é meu! O isqueiro é meu!”. Perdeu-o mais tarde numa camioneta para Setúbal.
Não foi só o isqueiro que ele perdeu durante a vida. Mais famosa é a história do brinco que perdeu após ter marcado um golo ao Sporting e parando por momentos o jogo para o procurar. Nunca o encontrou. Dessa história, quase de certeza, já ouviste falar.
Vítor Baptista e Frederico Duarte Carvalho nos anos 90.
Na segunda época de Pedroto à frente do Vitória de Setúbal, a de 1970/ 71, o Vítor só não foi o melhor marcador do campeonato porque, na última jornada, tinha 22 golos, o mesmo número de tentos de Artur Jorge, que jogava no Benfica. E o Artur Jorge conseguiu marcar dois golos contra a sua anterior equipa, a Académica de Coimbra.
Em 1998, o Vítor ainda não tinha digerido isso. Queixou-se a mim que os dois golos da última jornada, a 2 de Maio de 1971, tinham sido “gamados” e explicou: “Uma coisa que o Artur Jorge nunca soube fazer na sua vida foi fintar todos em campo. O homem atrapalha-se, pois só sabe jogar bem dentro da área. Então como é que ele dribla todos os jogadores da académica que caem de cu?” – já agora, para que vejas como são as coisas do futebol (e eu sei que sabes melhor do que ninguém), os golos que deram o título de melhor marcador ao jogador do Benfica foram marcados ao cair do pano, aos 79 e 88 minutos, quando os encarnados já venciam a Académica por uns confortáveis 3-1. Vítor, a jogar no campo pelado em Faro, e fortemente controlado, não conseguiu fazer a sua parte. Mas nunca esqueceu.
É claro que, com aquelas exibições, surgiu o interesse de outros clubes. E sabes, Cris, o Vítor até queria ir jogar para o “teu” Sporting. Pagavam-lhe mais. O Sporting oferecia-lhe 1800 contos por três anos, fora as luvas. O Benfica dava 1200 pelos mesmos três anos. Mas a decisão estava nas mãos do Setúbal e no seu direito de opção. E como o Benfica ofereceu – com salários pagos pelo clube da Luz – o “bom gigante” Torres, um dos heróis da selecção de 1966, mais uma promessa chamada Matine e ainda 3 mil contos (que serviu para construir uma bancada no Bonfim), Vítor lá teve de se contentar com a ida para o Benfica. E com o dinheiro da assinatura do contrato, comprou uma vivenda em Setúbal.
Vítor Baptista trabalhou como coveiro em Setúbal nos últimos anos de vida.
O resto, como se costuma dizer, é história. Foi campeão nacional pelo Benfica cinco vezes (mais uma Taça de Portugal), onde criou a fama de indisciplinado e arrogante – hoje diriam “dotado de personalidade própria” e “excêntrico”. Seriam muitas mais as histórias sobre a sua vida dentro e fora dos relvados numa carreira desportiva que, depois de ter saído do Benfica, em 1978, levou-o a saltitar entre vários clubes – Vitória de Setúbal, Boavista, San Jose Earthquakes (nos EUA, onde esteve 15 dias), Amora, Montijo, União de Tomar, Monte da Caparica e Estrelas do Faralhão. Deixou de jogar em 1986, tinhas tu um ano de vida.
Cris, quero que saibas que o Vítor nunca deixou de ser aquele menino pobre que tinha a alegria de jogar à bola e era mesmo o melhor de todos. Estava à frente do seu tempo. Um tempo que ele abriu para ti, para que os melhores possam ser hoje quem são sem se preocuparem com o que digam sobre si.
O problema do Vítor foi que tinha 25 anos quando a liberdade do 25 de Abril chegou e começou a experimentar drogas. Também não tinha responsabilidades com filhos – confidenciou-me uma história trágica de como, numa discussão com uma mulher que dizia estar grávida de uma menina, sua filha, bateu-lhe (ela estava com uma caçadeira, não perguntes) e, alegadamente, acabou por provocar a morte da criança.
As más decisões da vida, o facto de ter crescido a jogar à bola como um menino que nunca deixou de ser, não o preparou para um mundo cruel depois do futebol.
É isto que quero dizer-te, Cris: és o melhor do mundo, “O Maior” da tua geração e acho que vais jogar até aos 40 anos ou mais – tens corpo para isso e só precisas de organizar o espírito. Mas até lá, lembra-te daquilo que aprendi com o Vítor: a tua vida a sério só vai começar quando o menino que eras aos 12 anos, o menino pobre da ilha da Madeira, que foi viver para a pensão da Duque de Loulé e comprou depois um apartamento de 8 milhões ali perto, no alto do Parque Eduardo VII para mostrar a todos que venceu na vida, esse menino, Cris, vai ter de saber sobreviver num mundo diferente quando tiver de deixar de jogar à bola.
Não vais ter amigos se perderes o dinheiro – é muito, eu sei, e deve demorar séculos a ser gasto, mas acredita há muita gente disposta a ajudar-te a gastá-lo rapidamente. Sabes qual é a frase que guardo do Vítor? É uma que ele me disse quase no fim da entrevista, com a voz gasta da droga: “Eu nasci nu e agora olha para mim, já tenho uma roupinha, estou a ganhar! Portanto, saio desta vida com mais do que trouxe, sempre é alguma coisinha e agora está a dizer que sou um teso? Eu sou rico, tenho mais roupa do que quando nasci!”.
Sei que sabes estas coisas todas e estás mais do que avisado. Estás avisado porque, se calhar, já conhecias esta ou outras histórias parecidas. Se calhar, naquela Páscoa de 1998, mesmo sem o saberes, pode ser que te tenhas cruzado com o Vítor por Lisboa. Ele, quase a fazer 50 anos, doente, sabendo que iria morrer dali a uns meses – disse-me e não se enganou – e tu, criança, a sonhar com vitórias e glórias.
A tua verdadeira vitória virá com aquilo que vais fazer depois de deixares de jogar à bola.
Lembra-te disso, Cris.
Abraço.
Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.
Depois de várias semanas de protestos e manifestações, André Ventura convoca um debate parlamentar sobre a Educação em Portugal para dar ao CHEGA um destaque da mais absoluta infâmia[1]. E a seguir aproveita os holofotes e os microfones para espicaçar o povo contra a investigação da PJ às contas da Câmara Municipal de Lisboa, que, segundo ele, põem em causa o presente cargo do Ministro das Finanças. O que, mais tarde, leva a uma explicação em directo do dito ministro e ex-autarca este respeito[2]. Que nojo. Não tenho qualquer simpatia pela maioria socialista cheia de ligações perigosas, mas claro que ainda tenho menos pela minoria fundamentalista cheia de demagogias vergonhosas. Mas, mesmo assim, estou consciente de que, perante todos os sintomas de podridão política que possam incomodá-los, os cidadãos portugueses retêm o seu direito sagrado ao protesto. Todos temos livre acesso às notícias e aos debates políticos transmitidos ao vivo, por isso podemos estar fartos, podemos estar desiludidos, podemos estar que já não podemos, mas a verdade é que nunca somos nem silenciados nem enganados. Podemos saber tudo o que quisermos saber, porque vivemos em democracia, e portanto fazemos parte de um vasto banco de doação universal. Se vivêssemos sob qualquer espécie de pata ditatorial, a nossa capacidade de pertencermos a este grande banco estava seriamente restrita. E atenção, que talvez nunca déssemos por isso, mas essa restrição teria sido mais que deliberada pelo regime no poder desde os nossos dias na escola primária: nunca teríamos podido aprender inglês. Seria terminantemente proibido.
Estive em Praga em 2002, num encontro de estudantes de Letras e Literaturas da Europa com escritores portugueses. Nessa altura, já Vaclav Havel tinha presidido, com toda a sua atenção de grande intelectual, sobre a Revolução de Veludo, que libertou de vez o seu país da presença armada da URSS e depois separou sem uma única lágrima a República Checa da Eslováquia. Notava-se o regresso de Praga à abertura do mundo nos menus em inglês dos bares e restaurantes, nos anúncios das colecções expostas nos museus, nos dizeres impressos nas T-shirts com Golems, na comunicação fluente dos guias que nos passeavam pelas alas fantásticas do Hradcany[3]. Na sala onde fiz a minha conferência principal estavam agentes literários dos dois novos países, que se falavam cordialmente sabe-se lá em que língua. Pedia-se que falasse em Português, suficientemente devagar para o préstimos do senhor da tradução simultânea. O Português não é uma língua lenta[4], o meu ainda o é menos, comecei rapidamente a ter a sensação incómoda de que ficavam para trás lacunas cada vez maiores do que eu dizia, os alunos eram vivaços e interessados, de maneira que as perguntas deles derivaram muito depressa para o debate, enfim – o que interessa é que acabou por haver ali um momento em que me passou pela cabeça um grande,
– Ora, que se lixe!
CPC, incógnito Já imaginaram o que seria termos que viver na clandestinidade a vida inteira para podermos dar-nos ao luxo de continuarmos a falar alto sobre as nossas opiniões?
O Muro já caiu há onze anos. Desde pelo menos o Século XV que Praga é a capital europeia da arte, da cultura, e da ciência; e, passeando descontraidamente pelas ruas, vê-se logo que manteve até hoje o seu power de séculos.
E mais!
Eu era criança, mas ainda me lembro do entusiasmo dos meus Pais quando voltaram de uma semana passada nesta mesma cidade em 1968, gozando a liberdade da “Primavera de Praga” dois meses antes de duzentas mil tropas do Pacto de Varsóvia e cinco mil tanques soviéticos invadirem a Checoslováquia e a fecharem ao mundo.
Ou seja, se Praga sofreu o castigo de todas as cidades do Leste, onde as pessoas se viram brutalmente impedidas de aprender mecanismos universais de comunicação, há de ter sido, com toda a certeza, a cidade onde foi mais difícil implantar esse bloqueio, e onde esse bloqueio esteve implantado durante menos tempo. Vamos lá ver, concluí eu em pensamento, doida para conseguir comunicar em directo com os estudantes interessantíssimos da minha audiência – de certeza que, num contexto destes, muitos deles falam inglês, certo? A Revolução de Veludo ficou lá para trás, em 1989. Estes meninos, que nasceram e cresceram depois dela, e que ainda por cima gostam de letras e de literatura – Santo Deus, será mesmo possível que estes meninos não falem inglês?
E falei-lhes então em inglês, devagar, com calma, com entusiasmo, malta, como é, não podemos nós prescindir da tradução simultânea e comunicar directamente uns com os outros?
Foi horrível.
Fez-se na sala um silêncio gelado. Os alunos, até ali tão cooperantes, olharam para mim com um ar pasmado e não disseram uma palavra. O senhor da tradução simultânea ainda fez um ar mais pasmado. Finalmente, uma das agentes literárias da Eslováquia presentes na sala veio até à mesa e segredou-me baixinho, em inglês, muito depressa, numa espécie de aflição mal contida, “fale português. fale português, que eles não entendem inglês!”
Era a grande mão da besta que continuava a reinar muito depois da sua morte. Tinham passado 21 anos entre a entrada dos tanques soviéticos na Checoslováquia e a Revolução de Veludo; e 24 anos entre a Revolução de Veludo e aquela conferência. A segunda distância era maior do que a primeira, mas o estrago não estava consertado. Seria um bom tema para uma daquelas belíssimas canções das PUSSY RIOT, traduzidas por algum apoiante bilingue do russo em cirílico para o inglês no nosso alfabeto. Elas, sozinhas, também não podem ser dadoras universais. Estamos em 2023, mas a Rússia continua subjugada por um ditador sem escrúpulos. A luta continua.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Sim, claro, parece fazer algum sentido porque eram protestos e manifestações de professores. Mas Ventura, o mais acabado dos nossos demagogos com assento parlamentar, teria sacado este coelho da cartola a propósito de quaisquer protestos e manifestações que dessem nas vistas e agradassem ao povo. Não é propriamente a primeira vez.
[2] Dizendo ao País que, basicamente, que agora é o Ministro das Finanças, e que, enquanto tal, não tem absolutamente nada a dizer a esse respeito – mas leva uns bons vinte minutos a oferecer esta explicação, o que parece dar por cumprido o seu dever perante o eleitorado.
[3] Palácio fantástico onde Rodolfo II da Baviera instalou no século XV a corte do Sacro Império Romano, onde todos os conhecimentos, artes, e colecções, foram apadrinhados com faustosa generosidade.
[4] Numa breve confabulação com o senhor enquanto estava a beber água, percebi que ele estava à espera que eu falasse brasileiro, conforme explicou. Desconhecia por completo “a minha língua”. Pois é, que desgraça, mas eu não ia pôr-me para ali a falar brasileiro, nem que fosse capaz de uma impostura dessas. Estava a representar as letras de Portugal, e a pessoa tem o seu orgulho, por muito que a maltratem.