Categoria: Opinião

  • Da podridão e da queixa-crime do senhor juiz Sebastião Póvoas, presidente da ERC

    Da podridão e da queixa-crime do senhor juiz Sebastião Póvoas, presidente da ERC


    A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) anunciou esta semana a realização de sessões formativas sobre “Desinformação e fake news” e sobre “estereótipos, discurso de ódio e discriminação”, no próximo mês de Março.

    Os temas não poderiam ser mais actuais, até porque incluem tópicos que se encontram interligados, embora haja aqui algo de irónico. A desinformação, as fake news, os estereótipos, o discurso de ódio e a discriminação grassam hoje por aí, mas a ERC é uma das principais culpadas pelo regabofe, porque se demitiu do seu papel de regulação isenta, tanto mais que os estereótipos, os discursos de ódio (subliminares, é certo) e a discriminação são agora apanágio da imprensa mainstream.

    Estrada do Forte do Alto do Duque, em Lisboa, à saída das instalações da PSP onde iria, em princípio, ser constituído arguido…

    Basta olhar para o deplorável comportamento da imprensa mainstream durante a pandemia, as suas atitudes face à vacinação (sobretudo dos mais jovens) e dos efeitos adversos (anda por aí um elefante na sala que os jornalistas não querem ver nem saber), as abordagens enviesadas sobre a lamentável guerra da Ucrânia (promovendo, além disso, a russofobia como algo justificável contra qualquer cidadão daquele país e enaltecendo aos píncaros da democracia um regime ucraniano igualmente corrupto), os ataques a quem cria rupturas (veja-se o caso de Elon Musk, e a inexistência de cobertura dos #TwitterFiles), etc., etc., etc..  

    O PÁGINA UM também já levou a sua dose de efeitos adversos da desinformação, fake news, estereótipos, discurso de ódio e discriminação, tanto na imprensa como nas redes sociais (não é só a Cristina Ferreira que se queixa). Acrescem os ataques de redes sociais como o Facebook ou o Youtube, que já nos retiraram conteúdos noticiosos ou as constantes acções de shadow banning para diminuir a exposição e visibilidade do PÁGINA UM. Já sem falar nos inimigos de estimação nas redes sociais que se desunham para me enxovalhar, nem sequer se apercebendo que os seus infantis ataques são um excelente tónico para ainda fazer mais e melhor, para mais os irritar.

    Forte do Alto do Duque, sede do Divisão de Investigação Criminal da PSP de Lisboa.

    Sobre a desinformação – que deve incluir também a ausência de informação, porque, em muitos casos, o silêncio ou o silenciamento são uma forma enviesada de desinformação –, o PÁGINA UM tem procurado ser um paladino nessa luta, sobretudo da mais perniciosa de todas, a criada e fomentada pelo Estado.

    Não é por acaso que demos entrada, desde Abril do ano passado, no Tribunal Administrativo de Lisboa com 14 processos de intimação contra diversas entidades públicas exactamente pela recusa na disponibilização de dados que, hélas, serviriam para dar informação verídica aos leitores.

    Aliás, muitas destas intimações têm o exacto propósito de saber que desinformação nos têm estado a vender nos últimos anos. Mas sobre isto, a ERC – e sobretudo o seu (ainda) presidente, o juiz Sebastião Póvoas, “aos costumes tem dito nada”.

    Sobre fake news, o PÁGINA UM foi e tem sido um dos alvos desde que nasceu este projecto assente em quatro pilares: acesso livre à informação; inexistência de patrocínios, anúncios e parcerias comerciais; apoio exclusivo por donativos pessoais; e ausência de temas tabu como garante de independência. O ataque começou logo nos primeiros dias, em Dezembro de 2021, com uma ignóbil “notícia” da CNN Portugal, seguida por outra imprensa mainstream (Público, Observador, Lusa, Expresso, etc.), que pretendeu associar o PÁGINA UM a movimentos ditos negacionistas e de ter práticas supostamente criminosas por se ter revelado dados clínicos de crianças, dados esses anonimizados.

    Ao longo dos meses de 2022, o PÁGINA UM foi sendo sujeito ao mais absurdo bullying de que há memória na comunicação social por parte de duas entidades que deveriam proteger a imprensa livre e os jornalistas independentes: a ERC e a Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas (CCPJ). A primeira entidade (ERC) chegou mesmo a fazer dois comunicados de imprensa contra mim apenas por ela própria estar a incumprir a lei de acesso a documentos, como aliás concluíram pareceres da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos. Mas a fake news de que eu andava a “insultar os membros do Conselho Regulador [da ERC] e a exercer coação sobre os funcionários” ficou, para quem ainda quiser vasculhar, pela Internet.

    Padrão dos Descobrimentos

    De igual modo, tanto a ERC como a CCPJ tudo tentaram para que as notícias caluniosas sobre o PÁGINA UM em Dezembro de 2021 não tivessem “rectificação”, através de direito de resposta. A ERC ainda conseguiu libertar o Expresso e a Lusa (através de uma manhosa deliberação), não conseguiu nos casos mais evidentes da CNN Portugal, Observador e Público, mesmo se, neste último caso, o jornal do Grupo Sonae tenha ido até ao limite do absurdo com uma providência cautelar chumbada.

    Não satisfeitas, tanto uma como outra destas entidades reguladores (ERC e CCPJ), ao invés de intentarem processos por desinformação e falhas deontológicas graves da imprensa mainstream – incluindo parcerias pouco ortodoxas com empresas que prostituem o jornalismo (há uma lista de 56 contratos suspeitos na ERC a aguardar comentário e acção do regulador desde Maio do ano passado) –, lançaram-se numa campanha de apoio a quem o PÁGINA UM denunciava.

    Exemplos disso são os dois vergonhosos pareceres que as duas entidades ofereceram ao presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia a censurar o trabalho de investigação do PÁGINA UM. No caso da CCPJ, o parecer aparentemente nunca antes fora feito a visar outro qualquer jornalista.

    Sede do Público

    E também recentemente surgiu novo processo na ERC, por via de uma queixa de alguém cuja identidade o regulador esconde, por causa de notícias em redor da campanha de vacinação de médicos não-prioritários em Fevereiro do ano passado, e que envolve o então líder da task force, o actual chefe de Estado-Maior da Armada, Gouveia e Melo. Note-se que ambos os casos denunciados pelo PÁGINA UM originaram processos na Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS).

    Sei estar em curso, contra o PÁGINA UM, aquilo que se denomina SLAPP, acrónimo de Strategic Lawsuit Against Public Participation, uma estratégia que consiste na apresentação de queixas judiciais por dá cá esta palha apenas com o intuito de obrigar a uma dispersão de tempo e recursos, ou mesmo da constituição de provisões para supostas indemnizações que asfixiam contabilisticamente uma empresa jornalística independente.

    Ainda na passada sexta-feira, lá tive eu de subir ao Forte do Alto do Duque, para os lados de Monsanto, porque o senhor presidente da ERC não apreciou um escrito de 10 de Março do ano passado – que, entre outras verdades, dizia que o Conselho Regulador tinha deliberadamente analisado um caso “por um prisma tão redutor, tipo antolhos de equídeos” – e meteu-me um processo por difamação.

    Estas fotografias foram tiradas no regresso ao PÁGINA UM, na passada sexta-feira, após a ida à PSP. A tarde estava bonita e decidi pegar numa bicicleta eléctrica e seguir zona ribeirinha desde Belém até ao Cais do Sodré.

    Usando, claro, dinheiros públicos, porque quem paga aos advogados que fazem a queixa e aos funcionários judiciais e de investigação que a processam não é o senhor Sebastião Póvoas. Somos todos nós. Ainda mais debalde, lá fui e saí: o senhor presidente da ERC afinal desistira da queixa apenas dois dias antes, talvez acossado por mais uma sua diatribe na sua já penosa travessia deste mandato do regulador dos media.

    Há notícias que mais casos virão. São os ossos do ofício. Por isso, se por vezes não conseguimos fazer mais, não é por preguiça; é porque estamos na podridão de um pantanal, promovido em grande parte por aqueles que até andam sempre a falar contra a desinformação, contra as “fake news”, contra os estereótipos, contra os discurso de ódio e contra a discriminação, e sempre com o Credo na boca, mas que, por detrás do pano, afiam facas contra a imprensa livre e incómoda.

  • Escuta, que barulhos fazem ali?

    Escuta, que barulhos fazem ali?


    No silêncio do crepúsculo ou no remanso do lusco-fusco, ouves o som que a tua terra faz?

    Um silvo abafado de comboio na distância. Ventos contínuos de carros na auto-estrada. O sacudir de ferro do camião do lixo e os travões agudos de um autocarro.

    Ou um avião, imenso, pesado, a contrariar a gravidade, devagarinho e tão depressa. Um estertor suave da vidraça na marquise que sente com o corpo da casa o movimento de um mundo de gente a sobrevoar.

    Uma mota apressada a rasgar o frio em fúria?

    trees on top of hill

    Ou o sereno breu, uma toada de cão que ladra lá longe, a pressentir cheiros que o alarmaram. A fazer a quietude mais gorda, mais parada, em terra de um mundo que só gira porque vemos o sol nascer.

    Na cidade descobri as máquinas que não dormem, milhares e milhares de máquinas que pulsam em cada cantinho de cada família. Máquinas de lavar, automóveis, portões de garagem, uma buzina, uma sirene. Um ronronar permanente. Será vida?

    Na aldeia descobri chilreados, insectos que não descortino, zumbidos e o roçagar do próprio planeta a atravessar o vazio. Como movimentos do estômago dentro de mim.

    ClicClic!

    O mundo é feito de ruídos, e se fechamos os olhos eles crescem, tanto quando pedimos que falem mais baixo, para vermos melhor, enquanto procuramos um lugar de estacionamento.

    man and woman standing beside trailway

    ClicClic!

    E então se a televisão estiver ligada, ai o barulho… Mas enquanto aquele barulho bolsa, sempre ouvimos menos as vozes dentro de nós. Ecos do que nos disseram, ou se calhar só ouvimos, ou talvez até só lemos. Ecos que nos caíram como pedras, e nós esmagados debaixo delas, um pé a tremer, um suspiro final.

    ClicClic!

    Ao meu lado, na borda da cama, com uma perna chegada a si num abraço, ela corta as unhas do pé direito alheada da minha irritação.

    De frente para a televisão, de comando na mão, e com uma nuvem cinzenta e arreliada a sombrear o meu semblante, olho-a com alfinetadas de desdém ao ver uma unha rebelde saltar no ar para parte incerta:

    — Precisas de estar a fazer isso agora?!

    ClicClic!

    a pair of pliers cutting a piece of yellow paper

    — Nem consigo ouvir as notícias, e há um balão chinês por cima da América!

    Levanta-se e sai, em silêncio descontraído e trocista do meu sistema nervoso, em aromas de sabonete e com o cabelo enrolado na toalha que já escorregava.

    Afinal, que importa? São só barulhos.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Um passeio dos banqueiros pelo Colombo: dava jeito!

    Um passeio dos banqueiros pelo Colombo: dava jeito!


    Corria o ano 2000, se a memória não me falha, quando vi uma senhora a entrar num autocarro, ali para os lados de Union Square, em Nova Iorque. Tinha o aspecto de quem fazia da rua o telhado de casa. Numa mão carregava uma garrafa embrulhada num saco de papel, e na outra um gorduroso Big Mac. Lembro-me de ter pensado que aquela coisa, cuja utilidade nunca percebera nos filmes, o saco de papel à volta da garrafa, existia mesmo.

    Falando enquanto alguns pedaços de pão lhe iam caindo da boca, a senhora vociferava sobre as condições de vida e o custo da alimentação. Gritava, para que todos ouvissem, que era mais barato comer no McDonalds do que ir ao supermercado e cozinhar. Isto, claro, partindo do princípio que conseguiria encontrar uma cozinha onde pudesse confeccionar qualquer coisa.

    Time Square, New York during daytime

    O que me pareceu caricato na altura, na inocência dos 20 anos, era a disparidade entre os rios de dinheiro distribuídos ali ao lado em Wall Street e a quantidade de pessoas nos quarteirões adjacentes que, tal como aquela senhora, resumiam as suas posses ao que o McDonalds conseguisse embalar. Comia-se por quatro dólares. Era, de facto, mais barato do que ir ao supermercado comprar qualquer coisa com menos óleo e plástico.

    Duas décadas depois, estamos lá outra vez. Não apenas na meca do liberalismo, mas também na Europa que, outrora, já foi mais justa e solidária na distribuição de riqueza.

    Lembrei-me desta senhora quando saí do supermercado, ontem, com 300 gramas de mirtilos e 500 gramas de uvas, a troco de 10 euros. Por norma o meu filho come os mirtilos como se fossem água e, desta vez, quando o vi abrir a mão naquela caixa de fósforos, como se estivesse a tirar pipocas, disse-lhe: “vai como calma que estás a comer pepitas de ouro”.

    Pelo preço das uvas e dos mirtilos, poderíamos ter almoçado os dois um Big Mac, e assim tudo o que consegui foi um complemento para adicionar ao iogurte e tentar disfarçar o aborrecimento que é a oferta de derivados num supermercado sueco.

    Quero eu comer Big Macs? Nem por isso. Preferia bifes da Jonet ou framboesas daquelas que nos chegam de Odemira, de preferência sem pele de nepaleses explorados. Mas constato que o Mundo está a entrar numa espiral de pobreza, para a qual, até ao momento, só ouvi a “solução” de que em 2025, por artes mágicas da Economia (são todas), a inflação voltaria aos 2% – e, quem sabe, por essa altura, até poderemos comer um melão ou uma manga em terras frias.

    Depois de dois anos sem nos podermos mexer, sobram agora mais dois suportados por papas, bolachas, arroz e pêra-rocha. Quem saiu da covid-19 sem camada adiposa extra ainda vai a tempo de se candidatar durante o período em que a Lagarde mandar no Mundo.

    Todos os dias me faço a mesma pergunta: o que acontecerá quando um número razoável de pessoas não tiver habitação, comida e ajuda social? Começam a roubar? Começam os protestos em massa? Começa a revolução?

    No meio destes pensamentos corriqueiros de um anónimo pai de família, leio as declarações do CEO do Santander que, resumidamente, não notava grandes mudanças nos créditos da classe média e que os padrões de consumo se mantinham, como, por exemplo, jantar fora à sexta-feira. Deduzo que por aqui se depreenda que, como ainda há consumo, a inflação não está a baixar tão depressa como se desejaria.

    person standing beside stroller

    Bom, bom, era que nos fechássemos todos em casa, e de lá saíssemos apenas para produzir e gerar lucros para outrem. Nada de viver – isso deixemos antes só para os ricos. Pedro Castro e Almeida (estes gajos precisam sempre de três nomes) ainda disse que as poupanças durante a pandemia da covid-19 estavam a ajudar a que os padrões de consumo não se alterassem.

    Intriga-me esta frase, e já a ouvi a vários economistas. Como é que se poupa com 900 euros líquidos por mês? É que é esse o salário máximo de três quartos dos portugueses. Expliquem-me como é que se poupa a esmola a que chamam salário? Temos quatro milhões de Houdini?

    Tenho uma certa curiosidade – mórbida confesso – para ouvir uma conversa entre banqueiros. Um dos requisitos de tal estirpe parece ser a total falta de contacto com a realidade em simultâneo com a sensibilidade de um elefante numa loja de porcelanas. É difícil, mesmo com alguma imaginação, pensar numa frase mais estúpida de ser dita por um milionário num período como aquele em que se vive em Portugal.

    É importante que percebamos o que se vive em Portugal. Mais de 40% das pessoas estão no limiar da pobreza antes das transferências sociais. Ou seja, num regime político como aquele que o Chega ou a Iniciativa Liberal defendem, praticamente metade da população estaria no limiar da pobreza.

    Neste cenário, com gente a sofrer diariamente e com salários que não chegam ao fim do mês, eu espero, a bem da sanidade mental, que se por acaso vos der gosto ir jantar fora, que o façam. À sexta, ao sábado, à quarta. Quando vos apetecer.

    Esta coisa de se achar que a classe trabalhadora deve viver para produzir riqueza para os outros e, sempre que faz algo fora desse percurso (casa-trabalho), está a viver acima das suas possibilidades ou a pisar terrenos que não são seus, nem chega a ser um pensamento burguês, de tão rudimentar que é. Aliás, é mesmo pensamento de um filho da puta, que acha que quem trabalha só está no planeta para servir os interesses do capital e de banqueiros como ele.

    Aqui há uns anos, enquanto Pedro Proença passeava no Colombo, ali em Lisboa, um adepto do Benfica cruzou-se com ele. Para quem não sabe quem foi Pedro Proença, era uma espécie de Artur Soares Dias na primeira década do século XXI. Mesmo método, mesmo patrão, mesma recompensa… O adepto que o reconheceu, depois de lhe perguntar o caminho para a FNAC, ofereceu-lhe um voucher de desconto para usar no dentista – e, assim, conseguiu refazer-lhe o corta-palha.

    person walking inside building near glass

    Pergunto-me se o Salgado, o Ulrich – o do “ai-aguenta-aguenta” –, o Gonçalves, o Loureiro e este Castro e Almeida não se cansam de jogar golfe na Comporta e não sentem vontade, aqui e ali, de ir dar uma volta ao Colombo. Ou ao Corte Inglés, que é mais requintado.

    São momentos mágicos, e surpresas ao virar de uma esquina, que podem estar a perder. Sem necessidade – até porque são gratuitos e dados de boa vontade.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Correio da Manhã, bem-vindo ao (nosso) Clube contra o Obscurantismo do Estado

    Correio da Manhã, bem-vindo ao (nosso) Clube contra o Obscurantismo do Estado


    Hoje, o Correio da Manhã faz manchete com o título “Governo esconde pensões dos políticos”. Em causa está a recusa da ministra da Segurança Social e da Caixa Geral de Aposentações (CGA) de permitir o acesso aos documentos administrativos que contenham os valores reais das pensões mensais vitalícias pagas a 298 beneficiários.

    O Correio da Manhã, após a recusa governamental, recorreu à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) que, em parecer de 14 de Dezembro passado, concluiu que no que “diz respeito ao acesso ao valor atual das subvenções mensais vitalícias, trata-se de informação que não é de acesso reservado, na esteira do que foi afirmado no Parecer n.º 217/2016 [na verdade, é o Parecer nº 472/2016] , em que a CADA subsumiu o acesso à subvenção mensal vitalícia à doutrina aplicada a vencimentos, ajudas de custo, despesas de representação e outros suplementos remuneratórios e de apoio social auferidos pelo exercício de funções públicas, que “[p]or serem pagos com dinheiros públicos e em obediência a critérios legais objetivos, não têm qualquer caráter reservado”.

    grayscale photo of woman doing silent hand sign

    Mas, mesmo assim, o Governo continuou a recusar.

    O mais surpreendente disto não é a recusa governamental.

    Na verdade, o mais surpreendente é o Correio da Manhã – e os outros jornais que fizeram eco desta recusa – só agora terem acordado para um Estado obscurantista, que engloba não apenas o Governo como a Administração Pública e mesmo instâncias judiciais.

    Os leitores e apoiantes do PÁGINA UM sabem, desde o nosso início, a quantidade enorme – mais de uma dezena em poucos meses – de pareceres favoráveis que obtivemos da CADA face a recusas de acesso a documentos administrativos.

    O primeiro caso, por sinal, foi para aceder ao inquérito da distribuição da Operação Marquês por parte do Conselho Superior da Magistratura, que continuou a ser recusada, e mesmo tendo perdido na primeira instância no Tribunal Administrativo de Lisboa recorreu, aguardando-se ainda o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul.

    Sobre recusas da Direcção-Geral da Saúde e de outras entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde, como o Infarmed, foram também incontáveis os pedidos de parecer que fizemos à CADA por recusa de acesso a documentos.

    Contudo, não me recordo de nenhum parecer favorável da CADA que tenha desbloqueado a recusa de acesso. Todos foram ignorados. A CADA é uma entidade presidida por um juiz conselheiro e tem membros indicados pela Assembleia da República, Ordem dos Advogados e Governos regionais da Madeira e dos Açores. Mas isso pouco incomoda.

    A título de exemplo, recordemos a recusa do Infarmed em fornecer o acesso ao Portal RAM das reacções adversas das vacinas contra a covid-19 e o remdesivir. Em Março de 2022 – há quase um ano –, o PÁGINA UM obteve um parecer da CADA que chegava a considerar que “o interesse público no conhecimento de elementos que possam informar quanto à segurança da vacina é, por conseguinte, manifesto”. E instava assim o regulador dos medicamentos a fornecer os elementos convenientemente anonimizados. Foi isso que aconteceu? Não. E o caso está ainda numa renhida luta no Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Foram tantos os pareceres da CADA, obtidos pelo PÁGINA UM mas ignorados pelas entidades públicas, que mudámos de estratégia: perante um Estado e um Governo claramente obscurantistas – e que já incluem mesmo instituições universitárias, como se viu recentemente com o Instituto Superior Técnico –, a solução passou por, face à recusa inicial, seguir imediata intimação para o Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Se o parecer da CADA – uma instituição que está associada à Assembleia da República – continua a ser não-vinculativo e ignorado pelas entidades públicas, acaba assim por ser uma inutilidade. Daí essa mudança de estratégia.

    Nos últimos seis processos de intimação do PÁGINA UM – contra a Administração Central do Sistema de Saúde, Entidade Reguladora para a Comunicação Social, Banco de Portugal, Instituto Superior Técnico, Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e Ministério da Saúde (para obtenção dos contratos das vacinas contra a covid-19) – já nem sequer pedimos parecer à CADA. Prescindimos de vitórias de Pirro e de ver entidades públicas a gozarem o pagode na chafurdice do obscurantismo em que botaram a nossa democracia.

    man in white t-shirt sitting beside woman in white t-shirt

    Assim, com a recusa da ministra da Segurança Social em fornecer ao Correio da Manhã os documentos sobre os políticos beneficiários da subvenção mensal vitalícia, esperamos que este jornal – que tem muitas mais posses do que o PÁGINA UM – se junte na luta contra este obscurantismo.

    Estamos numa fase em que já não basta só denunciar na imprensa. A boa imprensa tem de ir mais longe, e recorrer aos tribunais para salvar a democracia de pessoas que nos querem sonegar o direito de saber o que se passa na res publica.

    Mas se for intenção do Correio da Manhã, e da sua proprietária (Cofina), ficar só pela denúncia, avisem-nos: o PÁGINA UM terá todo o prazer, e coragem, com a ajuda dos nossos leitores, através do FUNDO JURÍDICO, apresentar mais uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Seria a nossa 15ª desde Abril do ano passado – é que já andamos a fazer o tipo de denúncias, que hoje foi manchete do Correio da Manhã, há muitos meses, e mesmo se a imprensa mainstream tenha mantido um incessante silêncio a este respeito. E temos já um bom punhado de vitórias alcançadas em prol da democracia.

  • Alterações climáticas: as novas indulgências?

    Alterações climáticas: as novas indulgências?


    Na doutrina católica, as Indulgências são graças especiais que a Igreja, enquanto administradora dos dons de Cristo, pode oferecer aos fiéis, em certas ocasiões, não só para ultrapassar os efeitos negativos dos pecados, mas também para motivar o crescimento da Fé, da Esperança e do Amor, através de santas práticas religiosas propostas à devoção pessoal e/ ou comunitária.

    Desde sempre, o poder utilizou o medo, a criação de problemas artificiais e a imposição de monopólios para condicionar os mais débeis e menos informados da sociedade. Qual o propósito? Extorquir e transferir riqueza dos pobres para os privilegiados e próximos do poder sem qualquer resistência dos primeiros.

    grayscale photography of woman praying while holding prayer beads

    Quem não paga, o seu destino é o Inferno; quem paga, o Céu a seus pés. Como qualquer pessoa racional pode constatar, “produzir” uma indulgência não tem qualquer custo, para além de um papel, uma caneta e uma assinatura de uma qualquer autoridade eclesiástica. Com o tal documento na mão, o passaporte para o Paraíso está assegurado, claro está, depois do pagamento.

    Foi assim que na segunda década do século XVI, o Papa Leão X ofereceu indulgências para aqueles que dessem esmolas para reconstruir a Basílica de São Pedro em Roma: as portas do Paraíso escancaradas para os oferentes.

    A técnica é sempre a mesma e funciona quase sempre. Explorando o medo e a ignorância, cria-se um produto ou um serviço que não implique qualquer custo de produção, mas altamente valorizado e apetecível. No fundo, logra-se que grandes massas da população não sejam mais que ratos enclausurados numa roda, a correr incessantemente, explorados sem cessar e felizes com a sua escravidão.

    Esse é o papel das moedas fiat: andamos toda a vida a correr atrás delas (Euros e Dólares norte-americanos), sem nunca nos darmos conta que a sua produção não tem qualquer custo. Basta o pressionar de um botão num computador do Banco Central ou um mero registo informático numa partida dobrada de um banco para a magia da criação de dinheiro ter lugar.

    focus photography of person counting dollar banknotes

    Para criar uma elevada procura por uma determinada moeda fiat, recorre-se às leis de curso legal – nenhum comerciante pode negar pagamentos na divisa fiat emitida pelo Estado – e obriga-se a população a liquidar os tributos exclusivamente nessa moeda.

    No caso do emissor da moeda reserva do mundo, como é o caso dos Estados Unidos e a sua moeda fiat, o Dólar norte-americano (USD), obriga-se um dos maiores produtores de petróleo do mundo a cotar os barris unicamente em USDs. Para além disso, sempre que um país tenta opor-se a este monopólio, é fatal como o destino ter o exército norte-americano “à perna”.

    Sempre que se exagera na “dose”, como foi o caso em 2020, em que os balanços dos Bancos Centrais duplicaram de dimensão, no caso do Banco Central Europeu (BCE) subiu mais de 4 biliões de Euros (12 zeros) entre Março de 2020 e Junho de 2022, esta massa monetária pode “espirrar” para os bens essenciais da população, a “má inflação”, gerando desconforto popular, com o risco de um “despertar”.

    Quando as casas sobem de preço, temos a “boa inflação” – sem riscos. Quando o bife sobe de preço, temos a “má inflação” – corre-se o risco de que a plebe desperte!

    Para despistar, entra-se necessariamente no jogo “onde está a bolinha”: não existe, é um fenómeno temporário; afinal veio para ficar, é da guerra, estamos no “pico”, agora é sempre a descer. A exploração da ignorância da população não tem fim, mesmo quando se “servem” os factos de forma nua e crua.

    Se visualizarmos a figura seguinte (contratos futuros), podemos observar que as matérias-primas registaram uma valorização sem precedentes entre Março de 2020 e Fevereiro de 2022, precisamente no início da guerra com as “costas largas”.

    Variação de preços (%) das principais matérias-primas entre o final de Março de 2020 e o final de Fevereiro de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    Desde então, apesar da “guerra com as costas largas”, bastaram umas subidas das taxas de juro a partir do segundo semestre de 2022, para que a “má-inflação” começasse a desaparecer.

    Quando o método de “saque” está em crise, recorre-se quase sempre ao medo e à propaganda. Agora temos a “emergência climática”, devido ao mais que diabolizado CO2, o gás da vida. Mais uma vez, vamos “todos morrer”, caso não paguemos impostos ambientais. Apenas abandonando a prosperidade proporcionada pela energia barata dos combustíveis fósseis é possível “salvar o planeta”.

    Reparem nalgumas previsões realizadas por estes “profetas da desgraça”. Em 1975, Peter Gwynne, na insuspeita revista Newsweek, afirmava que vinha aí a idade do gelo.

    Entretanto, passámos do frio ao calor. Em 1989, um alto funcionário das Nações Unidas afirmava que nações inteiras poderiam ser varridas da face da terra pelo aumento do nível do mar se a tendência de aquecimento global não fosse revertida até o ano 2000!

    Variação de preços (%) das principais matérias-primas entre o final de Fevereiro de 2022 e o final de Dezembro de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    Como a profecia não se concretizou, regressou ainda com mais força: em 2006, Al Gore, no seu livro Uma verdade inconveniente, dizia que a neve deixaria de existir no monte Kilimanjaro. Continua lá. Igualmente, no mesmo livro, afirmou que o gelo dos polos iria desaparecer em 6/ 7 anos! Também continua lá.

    Para nos preparar, até já temos os voos da Google Flights medidos em emissões de carbono, devidamente quantificado para ser fácil calcular o imposto a cobrar; mais uma vez, só pagando podemos salvar-nos do fim do mundo ou do inferno se, entretanto, o mundo não acabar.

    No século XX, com o advento da “democracia”, o poder mudou de mãos: do espiritual para o mundano; agora, temos a transição do Estado-nação para o Governo Mundial.

    O ardil já não é o caminho para o além: o poder ser uma crise económica, onde todos vamos perder o emprego, um vírus invisível, com uma taxa de sobrevivência de 99%, ou o Inferno na Terra.

    Como nos salvamos? Deixando de comer carne, abandonando o automóvel, abandonando a higiene diária para poupar água; acima de tudo, continuar a lutar por dinheiro sem qualquer custo ou privacidade, por forma a que entreguemos todas as gotas do nosso suor à casta parasitária no topo da pirâmide. Se não é suficiente, apresentar-nos-á as indulgências do século XXI em pagamento: as Alterações Climáticas.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A Bíblia, esse manual de Economia

    A Bíblia, esse manual de Economia

    A discussão sobre os custos do altar para o Papa Francisco, para as Jornadas Mundiais da Juventude, levou-me a fazer uma consulta no livro sagrado dos católicos, a Bíblia. Fui à procura de respostas e, sobretudo, do que nos diz sobre a relação entre a Religião e a Economia. Foi um trabalho edificante.


    Não sou nenhum especialista em Teologia, mas também não me sinto diminuído na minha relação com a religião. Chamem-me espiritualista ou agnóstico, se precisarem de rótulos ou de minimizar a discussão.

    Factualmente, saiba-se que publiquei, em 2013, o livro de ficção “O Terceiro Bispo”, cujas bases se alicerçam no momento em que o Papa Bento XVI anunciou a sua resignação, em Fevereiro de 2013. Percebi depois o caminho que uma história sobre o tema poderia levar quando, a 13 de Março, o Papa Francisco apareceu à varanda do Vaticano a dizer que o foram buscar “quase ao fim do mundo”.

    person wearing white cap looking down under cloudy sky during daytime

    Era uma frase perfeita para registar numa obra que iria versar sobre o Terceiro Segredo de Fátima e as profecias de São Malaquias, onde é dito que este Papa Francisco é o último das profecias, o responsável pela destruição da Igreja.

    Durante os seis meses seguintes – entre Abril e Setembro –, dediquei-me à investigação e escrita do livro, tendo sido depois revisto e paginado durante o mês de Outubro para, finalmente, chegar às livrarias no início de Novembro.

    Terá sido, quase de certeza, a primeira obra de ficção a nível mundial a abordar a eleição do Papa Francisco – aliás, é por saber quanto demora a escrever diariamente, um livro de 300 páginas com investigação, método e disciplina, que me espanta haver quem, com uma profissão principal que o obriga a cumprir horários de trabalho, ainda assim consiga, apenas nos tempos livres, “produzir” anualmente uma obra que, em média, tem 600 páginas.

    Recordo-me bem de alguns dos passos do novo Papa. Sobretudo a visita à casa “Dom de Maria”, das Missionárias da Caridade, a 21 de Maio de 2013. Esta casa, no Vaticano, perto do edifício da Congregação para a Doutrina da Fé, costuma acolher pobres e sem-abrigo. Foi aí que Francisco disse estas palavras que, pela sua importância, incluí no livro: “Um capitalismo selvagem tem ensinado a lógica do lucro a qualquer custo, do dar para obter, da exploração sem considerar as pessoas… e podemos ver os resultados na crise que estamos a viver!”.

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    Era um Papa que atacava o “capitalismo selvagem” e pregava contra os maus exemplos do luxo. Ficou famoso o seu gesto de mandar fazer uma cadeira de madeira em vez de usar o tradicional “trono de ouro”. Isso caiu muito bem em certas pessoas. Também achei bem, confesso.

    Até que o meu amigo Luís Miguel Rocha – autor de várias obras sobre o Vaticano e precocemente desaparecido do nosso convívio terrestre em 2015 –, na apresentação do meu livro, no Porto, apontou para um detalhe: o “trono de ouro” há muito que estava pago. Nem era um luxo, pois é uma obra de arte do escultor do século XVII, Gian Lorenzo Bernini, feito em madeira e banhado com bronze dourado.

    Mas a nova cadeira de Francisco, essa, custou dinheiro – foi pouco, mas ainda assim um gasto desnecessário. Um gasto supérfluo para que o Papa pudesse mostrar uma nova imagem e parecer “pobre”.

    A recente polémica do altar de quatro milhões para as Jornadas Mundiais da Juventude, que vão ter lugar em Lisboa durante a primeira semana de Agosto, levou-me a ir procurar na Bíblia algumas respostas sobre como a Igreja encara a relação com o dinheiro.

    Não fiz um levantamento exaustivo, mas deambulei pelo livro sagrado dos católicos com a curiosidade de alguém que quer perceber a visão milenar dos católicos em relação à Economia e como isso se adapta aos tempos modernos.

    open book

    (Nota: para esta busca usei a versão de “a Bíblia para todos: Edição Interconfessional”, edição LBE-Loja da Bíblia Editorial e tradução Sociedade Bíblica de Portugal).

    Há palavras interessantes, sobretudo nos Provérbios. Em 22:1 avisa-se que “mais vale ter bom nome do que grandes riquezas; ter a estima dos outros é melhor que ouro e prata”. Claro que isto não ajuda a pagar contas na mercearia, por muito boa fama que se tenha no bairro.

    Logo a seguir, em 22:2, regista-se: “O rico e o pobre têm algo em comum: ambos foram criados pelo Senhor”. Estas últimas palavras, em vez de me tranquilizarem, preocuparam-me. Mostram que o “Senhor” não criou homens iguais, e há no provérbio bíblico uma clara distinção entre “o rico” e “o pobre”. Como se isso fosse uma inevitabilidade.

    Em Provérbios 22:7, a Bíblia explica mesmo que “o rico domina sobre os pobres; o que pede emprestado fica escravo do credor”, o que confirma muito do que digo aos meus amigos pobres: pedes emprestado ao banco, ficas escravo do banco.

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    Será então em 22:9 que leio uma frase esclarecedora sobre a distinção entre ricos e pobres: “Aquele que é generoso será abençoado, porque reparte o seu alimento com os pobres”. Agora percebo a tal inevitabilidade de haver ricos e pobres: é para permitir aos ricos serem abençoados caso decidam serem generosos.

    Será ainda em 22:16 que se avisa: “Oprimir o pobre para se engrandecer, ou dar ao rico, conduz à pobreza”. Isso é uma verdade tão óbvia que deveria fazer pensar católicos e não católicos: para quê dar dinheiro a ricos que se engrandecem à custa da opressão dos pobres? Gastar em supermercados que, a pretexto de guerras, aumentam preços ao mesmo tempo que anunciam aumentos de lucros? Pagar mais do que se pode de prestação da casa, via Euribor, enquanto o governo se regozija com o aumento do PIB? Afinal, são essas as coisas que conduzem à pobreza.

    Não sei se a leitura da Bíblia faz parte dos cursos do ISEG – Instituto Superior de Economia e Gestão de Lisboa – ou da Nova SBE – Nova School of Business and Economics –; mas devia.

    Nem deveria citar a mais famosa parábola de todas – precisamente porque é a mais famosa – que alude ao facto de ser mais fácil um camelo (que, neste caso, é uma corda grossa para prender barcos, e não o animal) passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus. Mas gostaria de citar um outro provérbio, o 28:22, que anuncia: “O homem ganancioso tem pressa de ser rico, mas não sabe que vai cair sobre ele a pobreza”. Isso poderia estar gravado em moto – em letras de madeira banhadas a bronze dourado – nas entradas principais daquelas instituições. Estilo “Inferno”, de Dante: “Vós que entrais, abandonai toda a Esperança”.

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    Há ainda duas parábolas que retenho.

    A primeira, conta Mateus, em 20:1-16, é a de um proprietário que, de manhã cedo, saiu para contratar trabalhadores para a sua vinha. E combinou com eles que pagava uma moeda de prata por dia. Mas às nove da manhã foi de novo à praça e chamou mais trabalhadores e disse-lhes apenas que pagaria o que achasse “justo”. Fez o mesmo ao meio-dia, às três da tarde e ainda, mais uma vez, pelas cinco da tarde. Ao cair da noite, deu ordens ao feitor para pagar aos trabalhadores, começando pelos que começaram pelas cinco da tarde e acabando nos que começaram de manhã cedo.

    Quando se fez o pagamento, aqueles que trabalharam menos, os que entraram apenas às cinco da tarde, receberam uma moeda de prata. Os que começaram de manhã e trabalharam todo o dia, ao verem aquilo, esperavam receber bem mais. Mas só receberam a mesma moeda de prata, apesar de terem trabalhado mais tempo. Claro que começaram a estrebuchar: “Então estes últimos só trabalharam uma hora e estás a pagar-lhes tanto como a nós que aguentámos o dia inteiro a trabalhar debaixo de sol!”.

    É nesse momento que o proprietário diz algo que deveria estar nos manuais de Economia grafado em letras grossas: “Olha amigo, não estou a ser injusto contigo. O salário que combinámos não foi uma moeda de prata? Toma lá o que é teu e vai-te embora, pois eu quero dar a este último tanto como a ti. Não tenho eu o direito de fazer o que quero com o que é meu? Ou tu vês com inveja o facto de eu estar a ser generoso?”.

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    Claro que Karl Marx depois elevou esta questão a outro nível, mas Jesus concluiria isto com a célebre frase: “Deste modo, os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos”.

    A segunda história é a parábola dos talentos. Um homem foi fazer uma viagem e deixou dinheiro com três criados. Deu 500 moedas a um, 200 a outro e 100 ao terceiro. Quando regressou, o que tinha recebido 500, devolveu-lhe as 500 e ainda acrescentou mais 500 que, entretanto, conseguira ganhar em negócios feitos com o dinheiro. O que recebeu 200, também devolveu 200 e ainda a acrescentou mais 200. O terceiro, disse que teve medo de perder o dinheiro e guardou-o num buraco, para o devolver na totalidade.

    O homem recompensou os dois primeiros e mandou o terceiro dar as 100 moedas ao que recebera 500 e disse esta máxima da Economia moderna: “Pois, a todo aquele que tem, mais se lhe há-de dar e terá de sobra, mas àquele que não tem, até o pouco lhe será tirado” (Mateus 25:29). Em Lucas, 19:26, a resposta é ainda mais cruel na sua verdade lapidar: “Pois eu digo-vos que ao que tem dá-se-lhe mais, mas ao que não tem tira-se-lhe até o que possui”.   

    Feita esta abordagem por entre provérbios e parábolas – e muitos mais haveria para citar aqui! – fui procurar respostas específicas a duas perguntas concretas que se colocaram com a polémica do altar do Papa.

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    Quando se questiona se o Papa Francisco, depois desta confusão, deveria vir ou não a Lisboa, recorro a Marcos 2:15, onde se fala de um momento em que Jesus estava sentado à mesa com pecadores e… cobradores de impostos! Perguntaram então a Jesus como podia ele comer na companhia de semelhante gente, ao que ele respondeu: “Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Ora eu não vim chamar os justos, mas os pecadores”. Portanto, Francisco que venha a Lisboa, onde há muitos pecadores à sua espera para o convívio.

    Finalmente, a questão mais propagandeada prende-se com o valor do palco, os quatro milhões de euros. Pergunta-se: “Mas que desperdício! Esse dinheiro não deveria ser dado aos pobres? Ora, a Bíblia tem uma resposta para esta pergunta em específico. Não é uma pergunta nova. Podemos encontrar tanto em Mateus 26:6, Marcos 14:3 e João 12:1-8.

    Coligindo as três versões, a história conta-se assim: está Jesus em Betânia, antes do momento da traição de Judas. Ele já sabe que vai morrer. João diz-nos que estavam em casa de Lázaro, o ressuscitado, embora os outros dois, Mateus e Marcos, falem de Simão, “o leproso”. Não importa. O importante é que, nesse momento, surge uma mulher com um vaso de alabastro contendo um “perfume muito caro”. Feito das melhores plantas de nardo. Aquilo era coisa para custar 300 moedas. À cotação da época, daria bem para comprar um escravo.

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    A mulher deitou o perfume caro pelos pés de Jesus e “depois secou-os com os seus cabelos” – Mateus e Marcos dizem apenas que o deitou pela cabeça de Jesus abaixo, mas isso também não importa. O importante foi a reação dos discípulos que, note-se, até eram amigos de Jesus.

    Eles foram os primeiros a condenar a cena e, indignados, disseram exactamente aquilo que, dois mil anos depois, ainda anda por aí muita boa gente a perguntar e, sobretudo, agora com a questão do altar: “Para que foi este desperdício? Este perfume podia vender-se por uma grande quantia e dava-se o dinheiro aos pobres!” (Mateus). “Para quê desperdiçar todo este perfume? Pois podia vender-se por mais de 300 moedas que se davam aos pobres” (Marcos).

    No Evangelho de São João é até explicitado que quem fez a pergunta foi Judas Iscariotes, esse mesmo, o discípulo que haveria de trair Jesus. Ele perguntou: “Por que não se vendeu este perfume por 300 moedas para distribuir pelos pobres?”. João acrescenta que, quando Judas fez aquela pergunta, “não disse aquilo por ter amor aos pobres, mas porque era ladrão, pois era ele que tinha a bolsa do dinheiro e roubava do que lá se metia”. Tão actual. Em dois mil anos, não se avançou muito, realmente.

    Então, e qual foi a resposta de Jesus a esta questão moral?

    Escolho a versão de Marcos, por achar ser esta a mais completa e límpida de todas: “Deixem a mulher em paz e não a incomodem. Ela praticou uma bela acção para comigo. Pobres irão ter sempre convosco e poderão fazer-lhes o bem que quiserem. Mas a mim é que não me poderão ter sempre. Ela fez o que pôde, perfumou o meu corpo para a sepultura. E garanto-vos que em qualquer parte do mundo, onde for pregada a boa nova, será contado o que esta mulher acaba de fazer e assim ela será recordada”.

    Sim, Senhor: recordaremos o perfume de nardo quando estiverdes em Lisboa…

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • Fim de citação

    Fim de citação

    Hoje em dia as pessoas sabem cada vez mais, e entendem cada vez menos.”

    Oscar Wilde (1890)


    Concluo hoje a minha série sobre a forma como as grandes ditaduras mantêm os seus povos reprimidos pelo isolamento e pela ignorância recorrendo ao golpe baixo de não lhes permitirem a aprendizagem do inglês – e de, assim fazendo, os impedirem de comunicar com o mundo. Faço-o no dia em que o grande Valete vai subir de novo ao palco do Coliseu de Lisboa para voltar a oferecer aos portugueses a qualidade incomparável da sua noção de métrica, a perfeição inventiva da sua criação de rima, e sim, no caso do Valete podemos mesmo afirmar isto sem ter medo de ninguém[1] – Valete vai, uma vez mais, oferecer-nos a urgência da sua mensagem. Mas, se não for por mais nada então que seja por uma questão de homenagem ao povo da Ucrânia, peço-vos que não se esqueçam de um pormenor nada despiciendo: Valete faz isto tudo porque é um grande artista, sem dúvida, mas também faz isto tudo porque pode. E é por isso que vos conto aqui a história de um outro artista, um amigo de há uns bons trinta anos, que uma noite subiu ao palco do mundo e quis cantar mas não pôde. Chamava-se André. A gente tratava-o por Andrushka.


    Estive em Petrozavodsk no final de 1991, quando as estátuas derrubadas de Estaline ainda jaziam aos pés dos seus pedestais, e, por cima das fábricas de aço agora fechadas onde os grandes letreiros em cirílico ainda anunciavam “ESTAMOS A CONSTRUIR O SOCIALISMO”, os artistas de rua do fim do mundo tinham pintado a vermelho, num inglês sempre com alguns erros como se tentassem acertar na ortografia certa sem conseguirem superar ao certo as suas próprias dúvidas, a palavra única “CUIDADO!”. Petrozavodsk não tinha muito mais de trezentos mil habitantes, e hoje ainda tem menos.

    É uma cidadezinha industrial encostada à fronteira com a Finlândia, onde na altura toda a indústria estava parada. Quando lá cheguei era indisfarçável estarem todos a viver o momento mais difícial das suas vidas de eternos servos de um regime cruel ou de outro. Nos dois primeiros dias, arroz muito empastado que se comia em três rações diárias ainda tinha misturados uns bocadinhos de carne; mas depois já era só mesmo arroz, seguido de arroz, seguido de cada vez menos arroz.

    Se alguém precisasse lá em casa dos serviços de um canalizador ou de um electricista, eles exigiam logo serem pagos à chegada em divisas líquidas ou nada feito – e por “divisas líquidas”, bem entendido, subentendia-se[2] o infame vodka de beterraba da Ucrânia, mais barato e mais rasca do que todos os outros mas mesmo assim vodka à mesma, que até eu já me tinha habituado a beber para não morrer de frio. E, quando eu lhes perguntava “e agora?”, os meus novos amigos respondiam-me, num tom absolutamente neutro de fazer gelar ainda mais o sangue nas veias, “agora em breve será sempre noite… e depois, em Março, se ainda cá estivermos, há de ficar tudo bem.

    CPC, mascarada de John Lennon na medida do possível, de partida para a fronteira com a Finlândia, com o seu parceiro S já disfarçado de Cão Vermelho.
    Se apanharem o comboio para Norte em Moscovo e durante os dois seguintes não virem mais nada que não seja florestas de bétulas, sempre todas iguais, estejam descansados que vão ter ao destino dos nossos intrépidos repórteres. Não se esqueçam é das vossas preciosas garrafas de litro de Vodka de Beterraba da Ucrânia, porque se pensam que está frio em Portugal, imaginem como está na Rússia, e nem sonhem que existe outra forma de aquecimento, pelo menos durante a viagem.

    A União Soviética acabou exactamente uma semana depois de me ter vindo embora, e nunca mais soube deles.

    Tinham todos, como eu, cerca de trinta anos. Embora naqueles dias inflamatórios do reinado de Boris Yeltsin já não corressem os riscos que corriam dantes, as caves afogadas em tabaco, com Músicas Ocidentais e bebidas escaldantes, onde queimavam as noites num tronco nu muito Freddie Mercury[3], entre miúdas de cara de anjo e pernas de dois metros, continuavam a ser todas clandestinas.

    Fui levada até esse submundo estranho[4] pelos dois únicos guias do burgo que falavam um certo inglês, aprendido em escolas da Finlândia com autorizações seladas do Politburo, destinado a ser arranhado o necessário e suficiente para mostrar a maquinaria saída de Petrozavods às delegações estrangeiras amigas da URSS, o  Miska e o Andrushka.

    O Miska abandonara há cerca de um ano o seu posto de dirigente da Juventude Comunista, logo a seguir deixara mesmo de ser militante, e era um homem triste, mais dado a confirmar as palavras dos outros com os seus silêncios do que a fazer ele próprio qualquer tipo de discurso a favor ou contra tudo o que se passava naquela mudança vertiginosa de tempos russos. Limitava-se a ouvi-los e a, por vezes, segredar-me em conclusão “e eu, enquanto fui capaz, fiz o que pude para não ver nada disto.”

    O Andrushka, pelo contrário, era um rebelde de longa data, com um romance acabado de escrever que já versava a corrupção na corte moderna onde Putin jogava às cartas com Yeltsin, e um historial bastante respeitável de guitarra-baixo em várias bandas “decadentes[5]” que nunca duravam muito tempo depois de uma série de eventos sinistros. Contou-me, obviamente, muitos filmes de terror. Mas, para mim, nenhuma história poderia ter sido pior do que a da noite em que, quando ele ainda vivia em Moscovo e ainda não tinha feito o seu curso finlandês destinado à propaganda, correu na cidade inteira a total consternação da notícia do assassinato de John Lennon.

    Primeiro pensámos que era mais um daqueles boatos comunistas que eram postos a correr de propósito para nos assustarem”, contou-me ele, com o rosto subitamente muito endurecido. “Depois acabámos por perceber que era mesmo  verdade. Ficámos desfeitos. Morrer um de nós, em Moscovo, era uma coisa. Estava sempre a acontecer. Mas morrer o John Lennon, aos quarenta anos, em Nova York, isso era intorelável. Fomos todos para a Praça Vermelha, tu viste o tamanho daquilo mas eu garanto-te que não cabia lá nem mais uma pessoa, e estávamos todos lá para lhe fazermos uma vigília à luz das velas. E, depois de acendermos as velas todas, queríamos cantar o IMAGINE. Queríamos mesmo, mas não podíamos. Nenhum de nós sabia a letra. Tu sabes o que é, quereres cantar e não poderes, e tu sabes cantar, mas nunca pudeste aprender a língua daquela canção, que, no entanto, é a língua de todas as canções? Cantámos em lalala, pronto, e estávamos a cantar e estávamos a chorar porque não podíamos cantar. E depois veio a polícia, e veio o Exército Vermelho, e em meia hora a Praça Vermelha estava deserta, e foi presa muita gente. E eu jurei que havia de mentir tudo o que tivesse que mentir – mas havia de aprender inglês.”

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Lá estou eu outra vez, não é? E ainda agora comecei.

    [2] Hã? Hã? “bem entendido”, vírgula, “subentendia-se”? Meu Deus, sou fixe e não  tenho qualquer vergonha!

    [3] Eram lixados, aqueles russos. Não conseguiam aceder a nada, pois não, mas conseguiam conhecer muitíssimo bem o número de tronco nu à Freddie Mercury. E também tinham a escola toda na arte do bem disfarçar. Freddie Mercury? Quem é esse, o Freddie Mercury? Sonsinhos.

    [4] Mais uma redundância do mais fino estilo, não acharam? Claro que um submundo, por decorrência, é estranho. Eu-sou-boa-nisto, amigos. Enfim, para quem gosta do género.

    [5] Leia-se “de hard-rock”, o que não era nada de fácil de montar, e muito menos de manter, num regime onde as guitarras eléctricas e as baterias eram sistematicamente apreendidas – e dizia-se oficialmente que destruídas, embora também se murmurasse que o Aparelho as levava para as suas datchas a título de entretenimento para os mais jovens, que ao menos assim tendiam a recusar-se menos a acompanhar os pais.

  • O dia em que a Mariana sonhou com a Bielorrússia

    O dia em que a Mariana sonhou com a Bielorrússia


    Gosto de Mariana Mortágua. É para mim a melhor e mais bem preparada dirigente do Bloco de Esquerda. Raramente diz coisas com que discordo largamente, mas, quando assim sucede, é com estrondo e a várias milhas náuticas ao lado.

    Com a falta de casas e o problema das rendas elevadas, Mortágua veio então achar que uma boa solução seria obrigar os senhorios a arrendarem e, não satisfeita, propôs a colocação de um tecto máximo no valor mensal. Segundo ela, o direito à habitação tem de ser mais importante do que o direito à propriedade.

    Mariana Mortágua

    Vejo vários problemas nesta proposta, embora, de facto, concorde que o direito à habitação deva ser prioritário relativamente à propriedade. O primeiro obstáculo que me ocorre é este: um senhorio vê a prestação do banco subir por causa das taxas de juro e, com algum jeito, fica com uma renda alta, faraónica e quase incomportável. Se o tecto for inferior a esse valor tem, ainda assim, de alugar a casa e pagar para alguém lá viver?

    Depois, como é que se permite o direito à propriedade privada, mas se diz às pessoas o que fazer com ela? Não faz muito sentido. Eu sei que a Mariana Mortágua não tem responsabilidades de governação, mas isto parece uma forma de colocar o contribuinte a resolver os problemas do Estado. E a forma de os obrigar é com um agravamento fiscal qualquer?

    Depois de impostos de selo, IMT, IMI e todas as taxas e taxinhas que cobram a quem compra uma casa, ainda se sacava mais qualquer coisa? É, de facto, de bradar aos céus imaginar que a classe média-baixa, a tal que compra uma casa, ainda tem alguma coisa no bolso para ser sugado.

    Se esta sugestão passasse a lei, emigrantes como eu, que vivem entre dois países, teriam de passar a acampar ou comprar anuidades em hotéis.

    O Governo que andou a distribuir vistos gold e a contribuir para os preços absurdos da habitação ou até a autorizar alojamentos locais em cada esquina, contribuindo para a voracidade do lucro fácil e mais famílias na rua, podia e devia ter antecipado esta situação. Não acordámos em 2023 com rendas elevadas e uma bolha imobiliária formada pela especulação. Há pelo menos uma década que andamos a ver isto.

    Aquilo que poderia então a camarada Mariana sugerir em vez de querer decidir sobre a propriedade alheia? Podia, por exemplo, elaborar uma lei que impedisse que uma só pessoa tivesse várias casas e vivesse de rendas. Não é nada original, já existe há décadas na Suécia e foi uma das formas de combater a falta de habitação. Por estes lados, uma pessoa não pode manter mais do que uma casa numa cooperativa de habitação. Em caso de mudança de morada tem até dois anos para se libertar da casa anterior. Se fosse o PCP a sugerir algo do género seria uma medida estalinista; sendo uma prática de “louros”, deduzo que já não choque ninguém. A mim pelo menos não incomoda e, de facto, liberta mais casas para o mercado. E com mais casas disponíveis, lá está, os preços baixam. Ou não sobem tanto, vá.

    Esta parece-me ser uma forma perfeitamente legítima de limitar o direito à propriedade com a qual concordo. Precisamos de uma casa para viver; não precisamos de várias para lucrar.  

    Outra ideia para a Mariana seria, de facto, copiar a solução das cooperativas de habitação. Uma vez mais recorrendo ao exemplo escandinavo (não gosto de o fazer mas é tão óbvio que tenho mesmo de o usar), conto uma história do século passado: quando os suecos perceberam que não havia casa para todos (o que neste fim de mundo gelado é um problema), criaram cooperativas de habitação. Dali resultaram casas simples, de linhas direitas, em quantidade suficiente para a população. Foi uma opção política. Casas em vez de estradas.

    Como tudo na vida, o dinheiro não estica. Volto ao mesmo. Em Portugal multiplicámos PPPs, Salgados e Ferreiras do Amaral. Na Suécia construíram-se casas, escolas e hospitais. Opções. Sempre opções. A intenção foi boa, as pessoas passaram a ter um tecto decente (a especulação depois rebentou com os preços mas é uma história para outro dia).

    Ora… Portugal podia fazer o mesmo. Menos web summits, menos jornadas do Papa, menos resgates ao BES e menos apoios ao Mário Ferreira. Mais casas simples, de linhas rectas, com janelas grandes e chão revestido a madeira para evitar o frio.

    Opções políticas; daquelas que já deviam ter sido tomadas quando o Cavaco começou a sonhar com auto-estradas; daquelas que a Mariana, hoje, com 40 anos de atraso, devia pensar e levar à Assembleia da República, em vez de vir apertar quem já está cheio de nódoas negras.

    Nota final: Entretanto, por “necessidade de orientação”, quis testar a ferramenta da moda, o ChatGPT, perguntando-lhe directamente: “A deputada Mariana Mortágua tem razão quando defende que os senhorios deveriam ser obrigados a arrendar as suas casas?

    A resposta veio pronta:

    Como modelo linguístico IA da OpenAI, não tenho opiniões pessoais. Cabe aos legisladores e à sociedade decidir sobre questões legais e éticas, como essa. No entanto, pode-se argumentar que, em um mercado de aluguel [o ChatGPT aparentemente escreve em português do Brasil], a obrigação de arrendar casas por parte dos senhorios pode resultar em uma distribuição mais equitativa do acesso à habitação e ajudar a reduzir a crise habitacional em algumas regiões. No entanto, também pode ser argumentado que tal medida restringe a liberdade do proprietário e pode desincentivar a construção de novas casas. É importante levar em conta as perspectivas econômicas, sociais e legais ao debater essa questão“.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Nascer numa ambulância? É muito melhor em Portugal do que na Suécia

    Nascer numa ambulância? É muito melhor em Portugal do que na Suécia


    Na Suécia, faço o que posso para evitar hospitais enquanto o meu filho se esforça, todos os anos, para irmos acompanhando as obras do hospital pediátrico. A cidade de Gotemburgo tem apenas três hospitais, sendo que um deles, o mais virado para a pequenada, está em obras ao estilo da Sagrada Família. Já me esqueci quando começaram e não faço ideia se lhes verei o fim.

    Sempre que lá entro vou a reclamar da vida. Ora traz um pé amassado, um braço inchado ou qualquer outra marca de guerra resultante de futeboladas disputadas com temperaturas negativas. Certo como o destino, vou ter de passar pelo raio-x, e isso num hospital que parece um estaleiro significa que vou andar a fazer os 800 metros obstáculos.

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    Começo num edifício para dar entrada da ocorrência. Uma espécie de recepção e primeira triagem. Já conheço a cantiga de cor e segue-se, por norma, a caminhada para o bloco “lá de baixo”, onde está a radiologia. Por fim, atravesso outras duas ruas para que o puto seja visto por um médico, num terceiro edifício, aí a uns 600 metros de distância.

    Estivéssemos nós em Nassau e nada disto seria problemático, mas na Escandinávia, no pico do Inverno, andar ao pé-coxinho a fazer voltas olímpicas entre rajadas de vento, neve e temperaturas negativas, é todo um filme de terror.

    Rezo-lhe pela pele, em silêncio, quando me lembro que sou eu que o incentivo a não ficar em casa a olhar para um ecrã.

    Raramente vejo muitas pessoas nas salas de espera; começo a constatar isso. Macas espalhadas por corredores nunca vi mesmo, nestes 17 anos que por cá ando. E vou decorando um cheiro característico, nas salas, nos corredores, nos consultórios, que não é mau. Tudo está limpo. Há muito espaço disponível. Não vejo funcionários a receberem gritos nem situações de desespero. Para hospital, disfarça bem. Ou pelo menos daquilo que me lembro das urgências da minha juventude passada no Santa Maria, em Lisboa.

    Fico, ainda assim, aborrecido com o tempo que ali passo. Uma, duas e às vezes três horas. Depois lembro-me que em Portugal demoraria cinco horas até fazer um raio-x e outras cinco para ver um médico – e respiro fundo. Também não sou grande fã de médicos escandinavos.

    Estava habituado a entrar num consultório e acatar ordens. Aqui perguntam-me o que acho. Ora, por muito amigo que seja de opinar, não tenho grande talento para identificar maleitas no corpo humano pelo que, quando vejo um amigo de bata branca, quero que ele me explique tudo, não me pergunte nada e, de preferência, que o faça sem ir ao Google.

    Noto que arriscam diagnósticos sem fazerem muito exames para pouparem no orçamento e aí, também, sinto-me mais confiante com a escola portuguesa que manda vir 200 exames e depois vai excluindo hipóteses. Mas compreendo que do ponto de vista da sustentabilidade crie mais complicações.

    A falta de confusão nos hospitais suecos e o acesso à saúde por parte da população, com menos médicos por habitantes do que em Portugal, é conseguido à custa de um sistema de triagem mais ou menos oleado. Primeiro telefonamos e recebemos indicações do que fazer em casa. Se for mais espinhoso, vamos para o centro de saúde. Se for mesmo agreste ou fora de horas, vamos para o hospital.

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    Lembro-me, por exemplo, de quando o meu filho ainda era bebé, ligar desesperado para a linha de apoio para perguntar o que fazer ao fim de dois dias de febre alta. Do outro lado da linha, uma enfermeira toda calma disse: “Espere mais 24 horas. Se a febre não passar ao fim de três dias, já pode ir ao hospital”.

    Em Portugal teria ido ao fim de três horas, aqui fui ao fim de três dias. Não faço ideia qual estará correcto, mas percebo que o facto de evitarem que pessoas constipadas vão para as urgências, deixa espaço para o hospital estar disponível para quem de facto precisa de lá ir. Deve ser, por isso, que nunca vi gente espalhada pelos corredores ou a morrer enquanto esperava numa maca, como vi no Garcia da Orta.

    Imagino que seja uma questão racional e de alguma lógica, ainda que emocionalmente nem sempre se apresente como óbvia. No fundo, trata-se de gerir os recursos existentes da melhor forma possível. Não é perfeito o SNS sueco, traz de quando em vez umas irritações, mas claramente funciona. Uma visita ao hospital não é um martírio de 10 horas, a alternativa nunca é um privado que nos leva couro e cabelo. E o custo para uma criança é zero. Mesmo zero. Nem uma taxinha que se veja.

    black and gray stethoscope

    Sempre que volto para casa, venho a pensar nas opções que cada país faz. No fim das contas é sempre uma opção política, uma visão de futuro, uma estratégia de desenvolvimento. Estas coisas não acontecem aos trambolhões. São opções. A sustentabilidade do SNS sueco faz-me perceber que não destruir o nosso teria sido apenas uma questão de opção política durante décadas. E porquê? Porque a Suécia, face a Portugal, consegue garantir cuidados de saúde a uma população mais ou menos igual à nossa, com menos hospitais, menos médicos e equipamento de primeira linha.

    Serão mais espertos do que nós? Não. Têm apenas outras prioridades e fizeram escolhas diferentes.

    Como é que o fazem? Bom, para começar, investindo quase o dobro do que Portugal investe em saúde pública por habitante. Pura opção política, à qual se junta um nível de corrupção bem menor, que nestas coisas da distribuição do dinheiro dos impostos é sempre uma mais-valia.

    empty road during daytime

    Outra forma de perceber como chegamos aqui é ver onde Portugal escolheu gastar mais do que a Suécia. Por exemplo, durante a década de 90 e a primeira deste século, Portugal gastou entre 1% e 1,5% do PIB em estradas. Já a Suécia, no mesmo período, gastou entre 0,5% e 0,7% do PIB. Confirmo que, em 2023, as estradas portuguesas dão 15 a 0 às suecas.

    Temos um pavimento rodoviário que parece a pele da Salma Hayek depois do banho de leite de orca. Isso ninguém nos tira e, com propriedade, se dirá que, a nascer numa ambulância, seja então em Portugal onde o alcatrão é mais direito e o recém-nascido não corre o risco de cair da marquesa num solavanco inesperado.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Nada nos dói mais que sentir os nossos filhos de mãos geladas

    Nada nos dói mais que sentir os nossos filhos de mãos geladas


    Coisa é fascinante constatar – e entenda-se o fascínio com o devido riso de escárnio – como é que no Portugal de 2023 se tem a casa gelada ao ponto de se ver o próprio bafo; como é que se tem a roupa tão fria que vestir se mostra penoso; como é que se tem coisas guardadas que subitamente ficam cobertas por uma camada de bolor.

    Pobreza energética.

    Num país de sol que tantas vezes brilha

    boy in black and white plaid coat

    Como se pode, e não se pode (e só para quem pode), procuram-se bálsamos e pensos rápidos, janelas simples emparelhadas com velhas para poder pagar cada janela, mantendo as existentes, mas tendo assim duas fiadas, e as condensações a escorregarem nos vidros…

    O famoso capoto [acessível, rápida execução, desempenho mais pobre, sistema antigo tratado como a coisa mais nova que já se viu por estas partes, pobreza de informação, ao ponto de pensarem que o dito capoto é nome quando, na verdade, é uma marca, à semelhança do pladur], o que não é o mais perfeito a resolver pontes térmicas [uma ponte que o calor cruza para fugir de nós pelos cantos, mesmo que queimemos toda a lenha que encontrarmos] em reabilitação, mas todas as gentes o fazem e põem e vai aparecendo. Não sobra dinheiro para arranjar o telhado ou colocar isolamento por lá, e assim continuam surgindo as telhas partidas e a água a minar, a minar.

    (O minério agora somos nós.)

    Também não há dinheiro para o valor actual dos pellets, e tantos que investiram nisso, de salamandra catita, com mais fé na relação custo benefício. (Viram o preço da saca agora?) Pelo meio ainda surge mais uma bandeirinha a queixar-se das partículas do fumo emitido pelas chaminés. Ou ligar o ar condicionado e aquecer o ar que vem de lá de fora e foge rapidamente, encostando-se aos vidros e junto ao caixilho (libertem-me, libertem-me! Ar vira água e água dentro de casa, as cheias de todos os dias).

    houses covered with snow during daytime

    “Apanhem lenha” dizem os bem calçados, assim uma coisa como a decapitada que disse “comam brioche”.

    Andar com mini-aquecedores que se ligam junto às pernas para os miúdos aquecerem e que mal se desligam, com o pânico da conta da luz, todo o calor se esvai em meia hora.

    As casas em que sempre vivemos definem-nos?

    Se somos o que comemos, somos como vivemos?

    Pelo meio, os tiranetes lusitanos piam, piam, piam.

    Entretêm, entretêm, entretêm.

    Um palco invadido, outro palco projectado.

    fire burning on fireplace

    E pelo meio esfregamos as mãos, encostadas à boca, ansiando a Primavera. E a larga maioria quer lá saber de respeitar as centenas de mortes em crianças causadas pela inoculação experimental contra o vírus da moda.

    Mate-se o mensageiro? Que podres terá ele, não é? Está frio, ninguém tem tempo para pensar nisso.

    Segue em frente! Falar? Eu? Para quê?

    Cada um sabe de si, não é verdade? E aquecer as carnes já gasta tanta energia.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.