Jantar fora à sexta-feira é um sinal de que, afinal, nem tudo está mal na economia dos dias de hoje? Como é que se baixou a fasquia daquilo que deveria ser o normal indicador económico? E ainda se lembram quando se apelava a não fazermos férias no estrangeiro porque isso seriam “importações”?
Causou comoção nacional, com laivos de escândalo, uma declaração do presidente executivo do Santander Totta, Pedro Castro e Almeida. Disse ele que, apesar da crise, os portugueses continuam com “padrões de consumo relativamente elevados”. Este é o índice económico apresentado por este alto responsável da banca, que vê quando se circula pelas ruas de Lisboa, com pessoas a jantar fora à sexta-feira. Ou ao sábado de manhã.
Imediatamente se rasgaram vestes, produziram-se textos e discursos contra os predadores da grande banca, que se acham donos disto tudo. Com que direito vem este banqueiro julgar quem opta por ir jantar fora à sexta-feira? Quer ele insinuar que jantar fora à sexta-feira, no meio da crise financeira, é condenável e devíamos estar em casa a poupar?
Houve depois quem viesse avisar que as palavras tinham sido mal observadas no seu sentido profundo. O presidente do Santander, afinal, não quisera condenar quem anda a gastar de forma irresponsável o pouco que tem. Nada disso. Ele até estava a dizer que, pelo contrário, é bom, muito positivo até, poder ver gente que poupou durante a pandemia e que agora anda a jantar fora à sexta-feira. Isso significa que as pessoas têm dinheiro no bolso. Andam felizes e com confiança no futuro. Têm poder de compra. É, portanto, um indicador financeiro positivo, sinal de que as coisas não estão assim tão mal como andam para aí a pintar.
É este último pensamento – o do jantar fora à sexta-feira ser uma coisa boa –, que importa abordar, pois há um detalhe que parece ter passado ao lado de muitos jornalistas de Economia – sempre bons cumpridores de ordens e excelentes escribas de relatórios citados com aspas –, mas, por deformação profissional, fracos observadores.
No meio das discussões e até de algumas reacções de pessoas que foram jantar fora na sexta-feira imediatamente a seguir – as declarações foram feitas numa quinta-feira –, ninguém disse o óbvio: a fasquia do indicador económico está visivelmente em baixo. E essa é a discussão que devíamos estar a ter.
Pedro Castro Almeida, CEO do Santander Totta
O que é feito daqueles termos tão caros aos economistas como o célebre “índice de produção na indústria transformadora”, o saudoso “índice de volume de vendas do comércio a retalho”, o tradicional “consumo de combustíveis (gasolina e gasóleo)”, o sempre revelador “consumo de energia eléctrica”, as enigmáticas “vendas de cimento para o mercado interno”, culminando nas análises dos números de “ofertas de emprego” e o sempre presente “procura de emprego por parte dos desempregados”, sem descurar, obviamente, o maior indicador de todos: “vendas de automóveis ligeiros de passageiros” e ainda de “vendas de veículos comerciais (ligeiros e pesados)” e, por fim, as “dormidas na hotelaria”?
O jantar de sexta-feira à noite nunca foi propriamente uma questão recorrente, sequer concorrente, nos indicadores quantitativos de consumo privado, onde eram contabilizados os bens para o lar, como computadores, equipamentos de telecomunicações e livros.
Nem sequer se questionava o ir jantar fora ao mesmo nível do consumo dos bens alimentares adquiridos nos supermercados, dos bens não alimentares, como têxteis, vestuário, calçado e artigos de couro, passando ainda pelos produtos farmacêuticos, médicos, cosméticos e de higiene.
Quando queremos analisar a saúde financeira de um país, não andamos propriamente por aí, a espreitar pela janela dos restaurantes, para ver quem anda ou não a jantar fora – um dono da banca também não faz isso, pois basta-lhe ver os movimentos dos cartões de débito e crédito dos clientes para conhecer em detalhe toda a nossa vidinha e fazer os julgamentos para as decisões que bem entender.
O verdadeiro economista vai analisar, por exemplo, o indicador de investimento, onde se vê o que gastamos, como país, em máquinas e equipamentos. Há coisas como o “volume de vendas”, “actividade corrente”, “perspectivas de atividade” e “perpectivas de encomendas a fornecedores”. Há factores como vendas de veículos ligeiros de passageiros para empresas de rent-a-car e táxis, os serviços e a construção e obras públicas. Jantar fora à sexta-feira nunca foi uma questão premente e reveladora. Até agora.
Devemos então perguntar-nos como chegamos aqui? Como é que o jantar fora numa sexta-feira à noite chegou a ser um indicador da boa ou má saúde económica em detrimento de todos os outros? Como é que todos aqueles indicadores parecem estar em segundo lugar?
Talvez seja bom recordar então – e isto é um mero exemplo – de uma frase dita em Junho de 2010 por uma pessoa que percebe muito de Economia. Um senhor que, além de muitas outras coisas, até foi ministro das Finanças, e que, há mais de 12 anos, em Junho de 2010, disse isto: “férias passadas no estrangeiro são importações e aumentam a dívida externa portuguesa”.
Extraordinário, não? Alguém ainda se lembrava desta análise tão profunda sobre os hábitos dos portugueses? Alguém ainda se recorda de quando poder-se ir de férias no estrangeiro valia mais do que os jantares fora à sexta-feira?
E sabem quem foi o antigo ministro das Finanças, além de outras coisas mais tarde, que disse aquela verdade de tão elevado valor analítico? Pois. Foi o então Presidente da República, o Dr. Aníbal Cavaco Silva, doutorado em Economia Pública pela Universidade inglesa de York, e que serviu como ministro das Finanças do Governo de Francisco Sá Carneiro, entre 2 de Janeiro de 1980 e 10 de Janeiro de 1981.
Quando Cavaco disse aquilo, o socialista José Sócrates era o primeiro-ministro e havia um programa de incentivo económico para que os portugueses, no sentido de ajudarem ao estímulo da Economia nacional, fizessem férias “cá dentro”.
Que saudades do “vá para fora cá dentro”, quando ainda se podia, de todo, fazer férias, mesmo cá dentro. Quando ir jantar fora, “cá dentro”, era tão banal que nem chegava a tema de discussão. Bons tempos…
O mesmo Cavaco Silva, agora já ex-Presidente da República, escreveu em Abril do ano passado, no diário Público, que sem umas quantas reformas (que ele lá sabe) “continuaremos a ser um país de salários mínimos, de emigração dos jovens mais qualificados com ambição de subir na vida, uma classe média empobrecida, pensões de reforma que não permitem uma vida digna, elevado risco de pobreza e exclusão social e serviços públicos de baixa qualidade. Será assim, independentemente das promessas e ilusões criadas pelos governos e partidos políticos. A retórica e a mentira não produzem riqueza”.
Grande frase esta: “a retórica e a mentira não produzem riqueza”.
Para muitos portugueses, colocar jantar na mesa todos os dias – não apenas à sexta-feira – é cada vez mais difícil. E se há uns que ainda vão jantar fora, esses que aproveitem bem, pois se não pensarem nos pobres, os pobres irão pensar neles.
Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Esta semana escrevo em condições um pouco mais difíceis, com pouco acesso à Internet, entre aeroportos e noites mal dormidas. Acompanho ainda de mais longe o que se vai passando em Portugal, mas, sempre que consigo uns minutos ligado “à rede”, oiço mais um disparate. Ou é coincidência e azar meu, ou, então, é o disparate que tem mais destaque sem que eu perceba porquê.
Carlos Moedas, reagindo ao incêndio na Mouraria, que vitimou duas pessoas e revelou as deploráveis condições de vida de outros tantos, dizia que só deveríamos aceitar novos imigrantes com contratos de trabalho. Não sei se perceberam, mas a dado momento desta história deixaram de ser duas vítimas mortais do acidente e passaram a ser dois imigrantes, dois indianos.
Vi inclusivamente quem tivesse escrito que, afinal, o fim dos alojamentos locais tinha aberto lugar para ocupações de indianos, paquistaneses, nepaleses. Como se entrassem em casa das pessoas sem pedir. Como se não pagassem uma renda. Como se não fossem eles a viver em condições degradantes.
O discurso de Moedas confundiu-se com o de Ventura, que por sua vez se alinhou com o de Montenegro. Há cada vez menos linhas vermelhas entre PSD e Chega, e vai ficando óbvio o que aí vem nas próximas legislativas. Uma coisa é certa: os indianos ao monte na Mouraria são responsáveis pelo estado de degradação das casas naquela zona. Não só vêm para cá roubar empregos de sonho no UberEats como ainda ficam com as casas decrépitas dos bairros lisboetas… Um flagelo, não é?, que urge acabar…
Apanho uns minutos no aeroporto seguinte, e eis uma portuguesa, a viver na Síria, a queixar-se aos microfones da RTP da falta de solidariedade depois do terramoto. Todas as ajudas chegam à Turquia e para a Síria, segundo ela; e nem uma equipa com um caniche se vê aparecer. A solidariedade é sempre aquele pau de dois bicos fácil de explicar, mas difícil de compreender.
Três aeroportos depois, chego ao Bahrain, uma pequena ilha no meio do Golfo Pérsico, sensivelmente do tamanho de Berlim. Um país riquíssimo, com apenas 1,5 milhões de habitantes, dos quais quase metade são imigrantes dos vizinhos asiáticos mais pobres: indianos, filipinos, paquistaneses, nepaleses e todos os que aceitam viver na escravatura moderna que representam as cidades emergentes nos desertos da Península Arábica.
De Riade a Manama, de Doha ao Dubai, o conceito é o mesmo: cidades futuristas feitas para atrair americanos e europeus, promessas de oásis verdejantes no meio do deserto com todos os luxos em países onde a água é um bem escasso; e ali ao lado, bairros degradados que abrigam a metade da população que é explorada e que aceita esta vida, porque, apesar de tudo, ainda conseguem enviar dinheiro para as famílias.
Não há conversa sobre a dignidade ou sequer sobre as condições de trabalho. Foi tema durante o Mundial devido à visibilidade do evento, mas há mais de 10 anos que já vejo esta realidade. Em Doha, no Dubai, em Abu Dhabi e agora no Bahrain. É a escravatura do século XXI para deleite dos turistas, dos investidores, da minoria da classe média alta que por aqui passeia em carros enormes e com gastos de combustível que, na Europa, nos dias de hoje, seriam apenas absurdos.
Acresce que a ponte que liga esta ilha ao território saudita, transforma-a numa espécie de Algarve onde os vizinhos, com mais restrições do outro lado, vêm passar fins-de-semana, beber sem controlo e fazer barulho com potentes carros. Imagino que seja por isso que num espaço tão pequeno existam centenas de alojamentos e, pelo que observo, tentam aumentar o país criando várias ilhas artificiais. Para quem já passou no Dubai, o Bahrain caminha para lá com cerca de 10 anos de atraso. Mas a receita é a mesma.
Visito a principal mesquita da cidade (Al Fateh Grand Mosque) e constato o habitual de cada vez que entro num templo religioso. Seja de que fé for, nada do que oiço faz sentido ou encaixa na forma como vejo o mundo. Lá fora, pelas portas gigantes de madeira indiana trabalhada à mão, consigo ver trabalhadores em condições miseráveis, debaixo de um sol abrasador, a construir um novo arranha-céus, provavelmente com salários pouco decentes.
Lá dentro, no local de devoção, explica-me o guia que todas as carpetes, feitas com lã de ovelha, vieram da Irlanda do Norte, os candeeiros chegaram de Viena e Paris, o mármore é italiano. A mesquita, com espaço para sete mil pessoas, custou vários, variadíssimos, altares das Jornadas Mundiais da Juventude, quando foi construída na década de 80.
Diz-me o senhor que a responsabilidade mais importante de um muçulmano é a devoção. Diz o profeta, nas Escrituras, que “criei cada um de vocês para que me pudessem adorar”. E é isso que é aceite. Devoção e adoração nas preces diárias. A responsabilidade de cada crente, segundo a explicação. Ajuda do profeta, em caso de necessidade, um direito de cada muçulmano.
Eu oiço, oiço e oiço, mas não questiono. Sinto-me num mundo paralelo quando o senhor me explica que o profeta é responsável por tudo o que vemos. Aquelas paredes, aquelas construções, tudo. Lembro-me também daquele senhor que disse, a propósito de terramotos, que os engenheiros civis portugueses mentiam muito nas construções que validavam. O que dirão os do Bahrain então? Fazem cálculos de estruturas, levantam aquelas paredes e cúpulas e, no fim, o Profeta é que assina.
Faz-me lembrar aquela vez em que, ao lado de um casal coreano em Belém, na Palestina, um guia local apontou para o céu e disse: “aqui passou a estrela que anunciou o nascimento de Jesus Cristo”. O coreano ao meu lado levantou a máquina e tirou uma fotografia a uma estrela que, dizem, ali passara dois mil anos antes.
Tudo isto me faz impressão. Nada disto faz sentido para mim. Mas vou. Oiço, tento perceber como pensam, no que acreditam ou de que forma se relacionam com o mundo. Muçulmanos, cristãos, hindus, budistas… No que a religiões diz respeito, sou de igual forma ateu para todas.
Leio algures que os portugueses passaram nesta ilha, no século XVI, na altura em que queriam garantir as rotas no Golfo Pérsico com fortificações no Omã e, aparentemente, nesta ilha. Lá está um forte português, muitíssimo bem conservado, como uma das principais atracções do país. Curiosamente, conseguem manter e rentabilizar uma relíquia feita por nós, algo que, a avaliar pelas muralhas que vão caindo no Alentejo, não parecemos ter grande interesse em fazer dentro de portas.
Ao quinto aeroporto, vários Xanax e copos de vinho depois, tal Clara Ferreira Alves nas suas histórias de viagem, chego finalmente à Índia. A tempo de assistir à conclusão de uma história de amor, um casamento proibido entre castas diferentes e não aceite pelas famílias.
Outra realidade com uns séculos de atraso e que, à luz de um europeu, não faz sentido. Mas faz para mim, que acompanhei durante anos os dramas de quem lutou para que este dia chegasse, e que aceitou ir contra tudo por amor.
Um dia disse-me o meu amigo: “Não sei se o meu pai lá estará no dia do casamento… Podes ficar ao meu lado?”. De modo que fui comprar mais uma caixa de Xanax. Não perderia isto por nada.
A história, as cores, as lágrimas e os cheiros, no próximo texto.
Até lá.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
“O arguido pode ser definido como a pessoa que é formalmente constituída como sujeito processual e relativamente a quem corre processo penal como eventual responsável pelo(s) crime(s) que constitui(em) objeto desse mesmo processo.”
O arguido é, pois, uma condição para a qual se pode ser constituído ou se pedir. Se um processo de acusação – sobre o qual não significa que esteja consubstanciado num crime ou suspeita de crime – é deduzido sobre um cidadão, ele fica protegido ao tornar-se arguido.
Protegido? Sim.
“Entre os [seus] direitos, destacam-se os direitos de presença (nos atos processuais que diretamente lhe disserem respeito), de audiência, ao silêncio (que não pode ser interpretado como presunção de culpa, atendo o princípio da presunção de inocência), a assistência por defensor, de intervenção e de recurso.”
Não me lembro dos dias da minha vida em que não fui arguido. Quase toda a carreira profissional decorreu nesse estatuto, por ter sido acusado mais de 28 vezes de crimes que não cometi. Na maioria das vezes fui acusado de difamação quando tinha dito a verdade. Duas vezes fui condenado por me exceder nos termos utilizados para definir uma pessoa que detestava.
O excesso de termos é punido, mas não retira a sua adequação sobre a vítima. Há pessoas mesmo estúpidas! Não lhes podemos chamar isso em público ou escrever no jornal. Nunca utilizei a justiça nos meus conflitos. Insulto-os nos lugares próprios, e eles zangam-se e respondem com a lei.
De facto, ser acusado num país de narcisos é fácil. Ser acusado por crimes que não se cometeram também é prática de muitos conflitos familiares. Conheci pais afectados por acusações falsas, mães torpedeadas por exageros da acusação. Conheço jornalistas assediados pelos advogados das instituições.
Ultimamente, um tipo que foi levado ao colo pelo seu sindicato, chamado Pedro Abreu, que se constituiu defensor das ideias do Governo para a pandemia, perseguiu-me no Facebook, insultou-me, moveu-me processos na Ordem dos Médicos e, por fim explodi, num post violento, excessivo sobre ele.
Fui constituído arguido e o Ministério Público julgou o meu excesso e sugeriu uma injunção para suspensão provisória do processo. O “castigo”, que não significa qualquer condenação, pareceu-me adequado e justo: pagar uma verba ao Instituto Português de Oncologia (IPO). Assim farei.
Ao Abreu jamais daria, sem batalha, um tostão que fosse. Não deixa de ser verdade que me excedi, e não deixa de ser verdade que não lhe movi processo difamatório (como talvez devesse), tal como o não fiz à infame revista Sábado. Não gosto da utilização de tribunais para minudências e os insultos fazem parte da vida pública.
Estamos num tempo de exaltações. Há quem acuse a sogra de 90 anos de lhe ter chamado cabra. Há quem gaste tribunais porque odeia o pai dos filhos e não quer permitir-lhe o conforto da paternidade. Gente estúpida e egoísta.
Ser arguido é sinal de actividade. Não se incomoda quase ninguém se não se fizer nada. Claro que a inépcia tem consequência para as instituições. O silêncio cúmplice também. Na minha opinião estas pessoas incomodam empreendedores como eu. Revolto-me, destrato-os, excedo-me, aqui e ali. Assim, sou arguido e frequentemente lá vou ao DIAP; à Judiciária, à PSP.
Não me tira o sono, não me irrita, não me dá palpitações. Faz parte da minha vida ser arguido por uma acusação de um incauto que se sentiu lesado pela minha actividade. Nunca pensei ser arguido por ter opinião, por ter convicções e isso só foi possível com a pandemia. Mandela foi preso pelas ideias. Senti-me um Mandelazinho. Álvaro Cunhal esteve preso por convicções. Senti-me um Cunhalzinho.
Participo, deste modo, em todas as vezes que sou arguido. Não minto, não fujo das responsabilidades, não douro a pílula, não misturo assuntos.
Por vezes, o Ministério Público usa a palavra arrependimento para a subtileza de se reconhecer um excesso. Arrependido é quem não está convicto da sua verdade. Outra coisa é a percepção de que a lei é uma, una, fria, imperturbável, e que ao ultrapassar a sua fronteira nos excedemos, e portanto devemos ser punidos. A aceitação sem rebuço da punição também não é arrependimento.
O Abreu é uma pessoa desinteressante, viperina, deselegante, de má índole, mas também dele não devo expor dados pessoais, que foi o crime que cometi. Na altura soube-me pela alma. Infiro ser esse o sabor do crime na sua concretização – um alívio, uma descompressão plena.
Estou convicto de que o tempo demonstrará as inverdades da gestão da pandemia. Estou convicto que haverá uma demonstração cabal dos excessos e dos ganhos secundários obtidos com as medidas de contenção e a vacinação de crianças. Estou com os pensadores críticos desta imensa loucura: Agamben, Biung Chul-Han, Raquel Varela, e não estou com outros que também cuidei de ler e são intensos engajados do status WHO/OMS como Juan Luis Arsuaga que escreve divinalmente, ou Manuel Carrilho.
Diogo Cabrita é médico
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM. Porém, neste caso, o director do PÁGINA UM decide subscrever, integralmente, esta opinião. E, provavelmente, se considerasse ser a persona em causa suficientemente relevante para lhe dedicar algumas palavras, então seria ainda mais acutilante e incisivo.
Nas últimas duas semanas, dois episódios marcantes foram revelados pelo PÁGINA UM, envolvendo o Instituto Superior Técnico e o Ministério da Saúde.
Vejamos o primeiro.
Por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, uma instituição universitária portuguesa – mais concretamente o Instituto Superior Técnico (IST) – foi obrigada a revelar um relatório que escondia. Note-se: uma instituição universitária, sede do saber e da transparência do conhecimento foi usurpada por pessoas sem carácter que, munidos de canudos e vestes talares, manipularam dados e contribuíram para alimentar o medo e o pânico para benefícios inconfessáveis de terceiros.
Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico, e Manuel Pizarro, ministro da Saúde, irmãos na arte de sonegação de informação pública, “apadrinhados” pela imprensa mainstream.
Não satisfeitos, e aproveitando uma (alegada) falha da juíza – que na sentença não explicitou que deveriam ter fornecido ainda os ficheiros de dados e os anteriores 51 relatórios –, o IST foi lesto a requerer a destruição das provas, ou seja, o original de um relatório que, para evitar o acesso legal do PÁGINA UM, eles classificaram de “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”.
Se a vergonha significasse alguma coisa para a Academia, aqueles senhores, começando pelo presidente do IST, ter-se-ia demitido, ou sido corrido a pontapé pelo respectivo Conselho Científico.
Vejamos agora o segundo.
O Ministério da Saúde ordenou que se surripiasse do Portal Base os ficheiros com quatro contratos assinados entre a Direcção-Geral da Saúde e duas farmacêuticas (Pfizer e Moderna), relativos às vacinas contra a covid-19, trocando-os por folhas completamente apagadas de conteúdo. O objectivo foi manipular o processo que contra si corre no Tribunal Administrativo de Lisboa para ceder os outros contratos feitos a partir de Janeiro de 2021, que nunca foram colocados no Portal Base. Estamos a falar de contratos em falta que deverão representar muito mais de 500 milhões de euros, bem como outra correspondência com as farmacêuticas, cujo acesso permitirá conhecer não apenas os montantes efectivamente gastos mas também os compromissos comerciais para o futuro.
Notícia do artigo 37, um site de académicos ligados a universidades com cursos de comunicação social, sobre a sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa obrigando o Instituto Superior Técnico a revelar um relatório alarmista. O caso ainda não está encerrado, por se ter requerido a clarificação da sentença quanto aos ficheiros de dados e aos 51 primeiros relatórios.
Não conheço nenhum outro caso em que tenha havido uma ordem para a retirada de documentos do Portal Base, ainda mais com este propósito de encobrimento na gestão de dinheiros públicos. Sei apenas que isto seria matéria para o Ministério Público, se o Ministério Público servisse para zelar o bem público, e não o bem do Governo.
Tanto num caso como no outro, o silêncio dos media mainstream foi ruidoso.
Uma das coisas que não me podem acusar é de ignorar aquilo que é uma boa notícia,uma cacha, uma matéria exclusiva que tem todas as condições para dar brado mediático, público e político.
Aliás, veja-se o caso das subvenções vitalícias dos políticos que foram negadas ao Correio da Manhã pelo Governo, apesar do parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos. Deu primeira página no jornal do Grupo Cofina, o mais lido do país.
Ora, o PÁGINA UM tem mais de uma dezena de casos semelhantes, levou alguns a Tribunal. E ganhou alguns em primeira instância, um deles ao Conselho Superior da Magistratura, e sobre a Operação Marquês (encontra-se em recurso).
Porém, em todos os processos do PÁGINA UM, a imprensa mainstream tudo tem ignorado, assobia para o ar, age com comprometedora passividade, como se nada de relevante se passasse.
Por isso, enquanto se observa o silêncio da imprensa mainstream, ver na última semana entidades ligadas à imprensa, como o Clube dos Jornalistas e o artigo 37 – integrando académicos (grande parte dos quais com relevante passado jornalístico) de diversas universidades na área da comunicação –, por duas vezes (aqui, sobre o IST, e aqui, sobre o Ministério da Saúde), escreverem sobre os recentes temas revelados pelo PÁGINA UM (IST e Ministério da Saúde), é bem revelador da podridão reinante.
Na verdade, já não me surpreendem as atitudes prepotentes e obscurantistas das entidades públicas – e das pessoas que agem sobre elas, como se fossem suas –, que recusam e lutam tenazmente para esconder informação. Quando faço um pedido já aguardo uma não-resposta. Em muitos casos, quando faço um pedido já uso terminologia jurídica, invocando a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, preparando-me já para (mais) um processo de intimação no Tribunal Administração de Lisboa. São as novas regras do jogo, e eu já as interiorizei: só na “barra do tribunal” consigo informação.
Notícia do artigo 37, um site de académicos ligados a universidades com cursos de comunicação social., sobre o “apagão”dos contratos das vacinas contra a covid-19 no Portal Base.
De facto, a minha única surpresa tem sido a atitude da imprensa mainstream, e sobretudo a falta de coragem de muitos jornalistas que secretamente gostaria de fazer aquilo que o PÁGINA UM faz, mas perderam a coragem de enfrentar poderes, a começar pelos internos, ao nível das cândidas direcções e das engravatadas administrações.
Neste caso, o problema está mesmo no mensageiro (leia-se, imprensa mainstream), que alegre e alarvemente, nega os princípios do jornalismo. O problema está nos seus silêncios, nas suas omissões, que dão carta branca aos maiores atropelos democráticos. O silêncio da imprensa é, neste aspecto, o silêncio dos culpados. A imprensa está a cometer o seu harakiri.
No passado dia 23 de Janeiro, o Bloco de Esquerda apresentou um projeto de lei para tentar ajudar a combater a crise na habitação, proibindo a venda de imóveis a empresas ou cidadãos não residentes no território nacional. Não deixa de ser verdade que a subida de preços dos imóveis se deveu, sobretudo, à elevada procura de estrangeiros no mercado nacional, apesar de nos últimos quatro anos apenas 6% das casas terem sido vendidas a cidadãos estrangeiros, segundo o Instituto Nacional de Estatística.
Proibir estrangeiros de adquirir imóveis não constitui solução para a falta de acessibilidade da habitação. A medida apresentada é, assim, tão ineficaz como pôr fim aos Golden Visa, o que se comprovou pelo desempenho do mercado imobiliário no último ano. Após as restrições impostas a alguns concelhos e capitais de distrito, de acordo com dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) verificou-se um crescimento de 41,9%, para 654,2 milhões de euros de investimento.
Por outro lado, os dados dos Censos 2021 permitiram-nos verificar que, apesar do aumento da construção na última década, o número de casas disponíveis não aumentou, antes pelo contrário. Existem menos 12 mil casas vagas do que em 2011. Tal não se deve ao alojamento local, mas sim ao aumento em 40% da população estrangeira residente em Portugal na última década, que correspondem a mais de 240 mil estrangeiros desde 2017, totalizando agora 555.299 e 5,4% da população total residente. É certo que os compradores nacionais constituem a maior fatia do mercado, mas sem o investimento estrangeiro a valorização não teria sido tão acentuada.
Portugal conquistou o coração de novos residentes, permanentes ou não, cujos rendimentos têm pressionado os preços a subir, e o investimento que tem sido feito na reabilitação de edifícios nos maiores centros urbanos tem também produzido frutos na atracção de cada vez mais cidadãos e turistas estrangeiros. O clima, a segurança, a gastronomia, a proximidade com as praias e o facto de ser uma porta para a Europa, continuará a atrair capital estrangeiro, o que beneficiará a Economia e manterá estáveis os preços dos imóveis com as localizações e características preferenciais destes compradores ou arrendatários.
A tipologia ou área não parece que façam diferença, no sentido em que, dentro deste segmento, existem jovens, executivos, empreendedores, pequenas famílias, grandes famílias, com projetos de vida mais ou menos determinados ou duradouros, mas que procuram sempre o mesmo: a melhor localização, varanda, jardim, vista para o rio, excelente luminosidade, conforto e arquitectura.
Com o aumento dos preços dos imóveis que cumprem os requisitos de procura de compradores estrangeiros existe um efeito de contágio no preço dos imóveis, alargando-se mesmo às periferias. As famílias de classe média que, antes adquiriam os imóveis atualmente mais desejados nos bairros históricos – como Alfama, Príncipe Real e Baixa-Chiado –, deixaram de poder competir com grandes capitais, mas nem por isso deixaram de comprar, por necessidade imediata, ou por medo de que os preços subissem mais.
Todavia, creio que a falta de habitação não se resolve afastando o investimento estrangeiro; resolve-se atraindo este investimento. Quais são então os prós do investimento estrangeiro? Eu evidenciaria as seguintes vantagens:
Reabilitação urbana
Há dez anos, o parque habitacional de Lisboa e Porto era decrépito. Pouco ou nenhum investimento era direcionado para um mercado de compra e venda ou de arrendamento estagnado, castigado por uma crise, com salários baixos e sem crescimento. Nenhum plano de negócios convenceria um investidor qualificado a adquirir e reabilitar edifícios com toda a burocracia, elevados custos e tempo de projeto necessário, para cobrar rendas que mal cobriam despesas de manutenção corrente, quanto mais de profunda reabilitação.
Ainda que os imóveis se destinassem à venda, a construção nova sempre compensou e atraiu promotores para os subúrbios, ou para áreas de turismo ou de residência de reformados estrangeiros, como o Algarve. Reabilitar edifícios históricos em Lisboa e no Porto, na sua maioria habitados por idosos com rendas antigas, não era sustentável, nem para o setor privado, nem para o setor público.
Desde 2014, por via dos programas de incentivo ao investimento direto estrangeiro, o mercado imobiliário renasceu. Temos assistido a uma profunda transformação dos maiores centros urbanos do nosso país, diria eu que para muito melhor. Edifícios e ruas inteiras com reabilitações profundas, aumento da oferta de casas, aumento e renovação da restauração e do comércio, atração de turismo e rentabilização de imóveis por pequenos proprietários.
Dinamização das empresas, do comércio local e nacional
Portugal está atualmente entre os 20 países do Mundo com maior capacidade de oferta de coworking, com mais de uma centena de espaços em Lisboa e Porto. Longe de ser algo passageiro, este conceito representa uma mudança estratégica para empresas de todo o Mundo, o que atraiu nómadas digitais que tanto têm procurado o nosso país, para aqui habitarem enquanto trabalham remotamente.
Este público é muito valioso para a nossa economia, pois vem contribuir para o crescimento do nosso comércio, restauração e serviços. O problema que o Governo tem de resolver é permitir à população portuguesa aumentar a sua produtividade e os seus rendimentos, o que pode agradecer sobretudo aos investidores e às pequenas e médias empresas que criam valor e empregos.
Afastar investidores e habitantes estrangeiros seria afastar clientes das nossas empresas e de todos aqueles que estão a colocar as suas poupanças na construção e reabilitação de casas, de lojas e de serviços. Não é tornando toda a gente mais pobre que a qualidade de vida da população melhora, pelo contrário. Estes incentivos atraem o capital necessário ao crescimento do nosso país, que irá refletir-se, não apenas em recursos e infraestruturas que o Governo não tem, mas também em receita de impostos através do aumento do rendimento das empresas e dos salários que estas poderão oferecer, em consequência do valor criado.
Desenvolvimento cultural e retenção de talentos
Os recursos tecnológicos e a nossa facilidade com idiomas tornam Portugal apetecível para que, cada vez mais, seja possível criar oportunidades, que vão dinamizando a Economia e trazem novos hábitos culturais para a sociedade. Durante anos, assistimos ao êxodo dos nossos melhores talentos, que viram noutros países a oportunidade de se realizarem profissionalmente e serem justamente remunerados, sacrificando a proximidade aos seus familiares e perdendo as qualidades naturais e geográficas que Portugal oferece. A atracção de estrangeiros possibilita ainda às nossas crianças e adolescentes uma interacção muito saudável com outras culturas e idiomas.
É evidente que todas as mudanças trazem reajustes e desconforto e que estes reajustes tenham passado por uma “super valorização” e rápido renascimento de pontos da cidade que estavam degradados, onde vivia uma parte da população com rendimentos baixos. Quais são então os principais problemas resultantes do rápido crescimento, e quais as possíveis soluções?
Lisboa e Porto não deixaram de ter casas para as pessoas, como dizem as manchetes dos jornais; deixaram sim de ter casas decrépitas e passaram a ter casas com condições dignas para todas as pessoas. O que foi possível através dos investidores, dos promotores e dos compradores, portugueses e estrangeiros, que canalizaram o seu capital de investimento para o imobiliário residencial, o que tem de ser estimulado através das seguintes estratégias:
Desenvolvimento das zonas urbanas limítrofes e do interior do país
Se a procura valorizou os imóveis situados no centro das grandes cidades, é natural que a oferta aí localizada seja absorvida pelos que têm maior capacidade financeira, e que aqueles que têm menor rendimento tenham de migrar para outras zonas da cidade, ou para zonas limítrofes. Há décadas que tal acontece e que a classe média-baixa havia optado por residir ao redor de Lisboa, não pelo preço elevado dos imóveis no centro histórico (como se alega) mas pela falta de condições de habitabilidade que caracterizava o centro histórico.
Só quem tinha muito amor à baixa lisboeta é que arriscava investir num apartamento num prédio antigo cheio de problemas e sujeito às decisões e capacidade de investimento de idosos com rendimentos de 300 euros por mês e despesas de condomínio de 15 euros, montante claramente insuficiente para reabilitar telhados, fachadas, substituir janelas, renovar zonas comuns, canalizações e tudo o mais que implica o conforto de um apartamento, ainda que os seus proprietários estivessem dispostos a investir na sua renovação interior.
A deslocação da classe média para as zonas limítrofes teve, assim, origem na preferência por edifícios recentes, com facilidade de estacionamento e na qualidade de construção que dispensava obras difíceis de financiar e de executar, pelo facto de também não ser viável para os construtores investir na reabilitação de edifícios através dos quais não poderiam ter retorno. É neste ponto essencial assegurar que existem meios de transporte público.
Há assim um patamar do qual penso que não vamos descer, no segmento de “luxo”. Coloco luxo entre aspas no sentido de caracterizar os imóveis mais diferenciados e procurados para um público que não necessita de financiamento nem de fazer contas no momento de escolher a sua nova casa em Portugal. Apesar da conjuntura política e económica, os centros urbanos e os melhores bairros residenciais não têm muito por onde crescer, o que justifica a resiliência do seu valor de mercado.
Desenvolvimento do mercado de arrendamento
Ao contrário de outros países, em Portugal o mercado de arrendamento nunca alcançou a dimensão necessária para dar resposta às necessidades da população e é natural que, apesar do seu recente crescimento, este seja ainda insuficiente para os nossos jovens, pois a oferta está a ser absorvida, em primeiro lugar, pelos estrangeiros e pela população com maior capacidade financeira.
O aumento da oferta de imóveis para arrendamento de longo prazo representa uma habitação acessível, flexível e de qualidade às famílias que possam vir a ter maior dificuldade no acesso ao financiamento bancário, sobretudo jovens profissionais, cujos rendimentos são ainda mais instáveis e cujo agregado familiar não está estabilizado.
Estabilização da legislação
Este ponto é essencial, no sentido em que oferece uma garantia aos investidores (nacionais e estrangeiros) de que o capital investido na aquisição, na construção ou reabilitação de imóveis, é bem aplicado, pois terá retorno a médio longo prazo.
O investimento na reabilitação teve resultados de tal forma positivos, que a procura cresceu mais depressa do que a oferta. É relevante a revisão ao Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU) e assegurar a necessária flexibilidade do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), de modo a responder às necessidades do mercado de arrendamento. O risco tem um preço e os proprietários estão mais disponíveis para reduzir as rendas, se o seu risco for minimizado.
Desburocratização nos projetos de licenciamento
A agilidade dos processos de licenciamento permite acelerar o aumento da oferta ao nível dos diversos segmentos de habitantes, o que permitirá, também, equilibrar e estabilizar os preços. Os investidores e promotores imobiliários interessados na construção e reabilitação de edifícios e frações habitacionais, dentro e fora dos centros urbanos, deparam-se com obstáculos de licenciamento que dificultam a execução dos seus projetos, pelo que há uma urgente necessidade de reduzir a burocracia e o tempo despendido, que se prolongam até aos cinco anos, dificultando a existência de soluções de alojamento para colmatar necessidades de mercado.
Tempo é dinheiro e, num contexto em que a população está a ser obrigada a ajustar-se à nova oferta, tempo significa não haver oferta disponível para todos os diversos segmentos e, por outro lado, pode significar que os investidores os canalizem para outros mercados mais rentáveis. Quanto maior o investimento de tempo e de recursos em cada projeto, maior terá de ser o preço dos imóveis para o consumidor, não há milagres numa folha de cálculo.
Benefícios fiscais
Esta é uma medida direccionada à oferta de imóveis adequados aos segmentos mais necessitados, com menor rendimento. Tendo em conta que os estrangeiros adquirem imóveis de preço por metro quadrado mais elevado e de preço por unidade em média acima dos 510.000 euros, de acordo com o Confidencial Imobiliário, podem os benefícios fiscais incentivar o investimento na construção, na reabilitação e no arrendamento de habitação adequada aos segmentos de rendimento médio e baixo.
Qualidade de construção e eficiência energética
Não é novidade que a qualidade térmica dos edifícios deixa muito a desejar. Tanto a nova construção como a reabilitação deverão ser mais eficientes e ambientalmente sustentáveis, no sentido de a população não depender tanto de recursos energéticos, o que pode ser incentivado ao nível fiscal e/ ou através de programas como o Fundo Ambiental. Esta necessidade já está espelhada nos actuais requisitos de construção, que vieram naturalmente aumentar os custos e, por conseguinte, os preços dos imóveis.
Libertar activos detidos pelo Estado e pelas autarquias
Grande parte destes activos estão em ruínas e sem qualquer utilidade pública, pelo que podem ser transformados pelo setor privado em unidades de alojamento no mercado de arrendamento acessível, o que pode ser conseguido através de incentivos fiscais e garantias ao arrendamento da classe mais jovem.
É uma questão de tempo para que o problema da habitação se resolva e alcance o seu ponto de equilíbrio. É certo que as pessoas que ficaram sem casa não têm esse tempo, e esse deverá ser um dos principais e mais urgentes focos do Governo. Isto não significa que o investimento e a valorização da habitação nos centros urbanos sejam o problema; significa sim que são a solução de longo prazo e que é necessário encontrar soluções de curto prazo paralelas, de modo a que a renovada oferta de habitação possa abranger todos os níveis de rendimento da população.
Esta oferta precisa, imediatamente, de todos os incentivos possíveis do Governo e das autarquias locais, para que o investimento privado continue a existir e a expandir-se de forma mais rápida de modo a dar resposta ao ajustamento demográfico, em especial no mercado de arrendamento.
É provável que o aumento da oferta venha também a permitir uma desaceleração nos preços, mas esta não será homogénea, sobretudo se compararmos os centros urbanos ou costeiros com as zonas mais periféricas. Poderá haver efectivamente um abrandamento, e não uma queda abrupta de preços, até porque os factores que têm contribuído para o valor mais avultado das casas vão continuar a ser uma realidade: escassez de oferta, elevados custos de matérias-primas de construção e falta de mão de obra.
Continuará a aumentar a procura por imóveis de segmento mais elevado, cujo principal fator de distinção está na localização central e na qualidade de construção. O factor localização poderá ser atenuado através do desenvolvimento das regiões não urbanas e do interior.
Em 2021, cerca de 31% dos imóveis residenciais vendidos foram moradias, correspondendo a 64.500 unidades transaccionadas. Este facto explica a liderança dos distritos de Faro e Setúbal na subida de preços, que chegou aos 26,4% e 18,7% face a 2020, respetivamente. Não obstante, o maior crescimento das vendas residenciais foi observado em Bragança, Beja e Portalegre, com aumentos de 30% a 60% no volume de casas vendidas, face a 2020.
Os novos hábitos de teletrabalho vieram despertar o interesse dos compradores nacionais por moradias e quintas, um pouco por todo o país. Com o investimento em infraestruturas públicas, podem estas regiões tornar-se uma solução para a população portuguesa, com a deslocação de empresas e jovens que encontrarão nas aldeias e cidades do interior as condições adequadas a uma boa qualidade de vida.
Sandra Viana, consultora imobiliária e fundadora da LOBA House Hunting
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM. A publicação deste texto de opinião foi decidida, após análise pelo director do PÁGINA UM, por critérios de interesse informativo e de debate de ideias, não envolvendo qualquer tipo de relação comercial ou contrapartida financeira passada, presente ou futura.
Ainda não surge no Portal Base o custo das duas esculturas de Rogério Abreu, hoje inauguradas, defronte ao Tejo, a caminho de Belém, mas por mim espero que lhe venham a pagar pelo menos os 1,6 milhões de euros da redução de custos do altar das Jornadas Mundiais da Juventude. Merece: glorifica a estupidez, a acefalia e a vaidade, que são sempre predicados necessários para um efectivo reconhecimento da arte no futuro de coisas irracionais do passado.
Onde uns hoje se podem chocar com o estranho sentido estético e simbólico de um monumento oco aos Heróis da Pandemia, eu vejo veneração no futuro.
Onde uns hoje podem ficar boquiabertos com as duas figuras – masculina e feminina, sendo que esta tem de ter o seu rabo de cavalo para assim ser, porque ambas estão mascaradas –, eu vejo uma lição de História para o futuro.
Onde uns hoje podem ficar assombrados com a vanitas vanitatum et omnia vanitas (cf. Eclesiastes 1:2) do (ainda) bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, e do presidente da autarquia de Lisboa, Carlos Moedas – que pespegaram tanto os seus nomes na base de uma das estátuas, ao lado do nome do escultor, como na placa de inauguração, neste caso fazendo companhia ao nome do ministro da Saúde, Manuel Pizarro –, eu vejo um ensinamento sobre perenidade das acções para os empreendedores no futuro.
Esqueçam as críticas. Não olhem para detalhes nem analisem obras ou acções feitas, não para nós, mas para serem admiradas e veneradas no futuro.
Hoje, a arcaria do Vale de Alcântara é um ex-libris da capital; ontem, no século XVIII, foi tão zurzido por alguns arquitectos, por razões estéticas (arcos góticos em período barroco) que Ludovice, o criador do convento de Mafra, chamou Herodes do Aqueduto ao engenheiro Custódio Vieira, que a concebeu.
Também estou a imaginar os mais cépticos moradores de Rapa Nui a criticarem a inutilidade dos moais – cuja edificação, aliás, aparentemente esteve na base de um ecocídio involuntário –, pois hoje as grandes estátuas da chilena ilha da Páscoa são a cobiça de qualquer turista.
Olhem, olhem bem. Não percam assim uma passagem pelo agora denominado Passeio Carlos do Carmo, entre o Terreiro das Missas e o Jardim das Docas da Ponte, porque, sendo certo que “tudo isto existe, tudo é triste, [e] tudo isto é fado” (como cantava Amália Rodrigues), também é verdade que os protagonistas desta escultura – o seu autor e os seus promotores – conseguiram, talvez involuntariamente, transmitir várias lições para as gerações vindouras. Desfrutem, por isso. Deliciem-se, agora.
De facto, hoje, somente por relatos sabemos que, em tempos de antanho, os arcaicos médicos para combater epidemias aplicavam, geralmente, sangrias aos enfermos – que mais os debilitavam – ou davam-lhes purgas, xaropes e mistelas diversas, que tantas vezes causavam piores males e nenhum bem. Para contrariar as supostas emanações pestilentas no ar ambiente – que se considerava estar na origem dos contágios e que, em certa medida, podemos associar à decomposição do lixo –, usavam-se meios de duvidosa eficácia, como soluções de vinagre, perfumes, ervas odoríferas queimadas e até tiros de pólvora. Mas não há símbolos disso. Só papéis.
No futuro, haverá este memorial. Toda uma lição em perpétuo e inamovível aço.
Ali estão as máscaras – elevadas a estúpido símbolo de suposta protecção (agora a ruir cientificamente, como um óbvio baralho de cartas), num período histórico em que conheciam as dimensões de um vírus e as dimensões dos poros das ditas máscaras. E sendo as ditas máscaras o centro nevrálgico das duas figuras escultóricas de Rogério Abreu – e tendo ele, sabiamente, introduzido profusas e profundas “porosidades” –, transmite-nos assim fielmente um sentido realista à coisa: a aragem que venha Tejo acima ou Tejo abaixo, invade e trespassa livremente as cabeças, tal como um vírus abre alas entre as fibras de uma máscara cirúrgica. Serviram tanto como uma peneira para estancar o vento.
Imagens de vídeo das esculturas de Rogério Abreu, hoje inauguradas por Miguel Guilherme, bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Moedas, presidente da autarquia de Lisboa, e Manuel Pizarro, ministro da Saúde.
Também de enorme felicidade, pelo realismo, embora aqui um pouco mais alegórico, se mostra a opção do escultor por duas figuras de cabeça oca, onde, efectivamente, nada existe no interior. Será esta a melhor imagem para nossos vindouros: saberão eles, quando certo dia estudarem o que sucedeu entre 2020 e 2022 – com consequências para os anos seguintes –, como foi a gestão da pandemia: acéfala.
Por tudo isto, glória ao escultor Rogério Abreu! Glória à vaidade de Miguel Guimarães e Carlos Moedas!, porque sem eles não teríamos um Memorial tão bem conseguido, tão perene, um tão arejado Monumento destinado ao futuro, um legado sobre tempos de Estupidez e Acefalia – que não se podem repetir quando surgir um novo vírus.
P.S. Apelo, não irónico: espero que as pessoas mais exaltadas se contenham e não façam nenhum acto de vandalismo às esculturas. Não transformem um Monumento à Estupidez e Acefalia em Memorial da Vitimização.
N.D. Afinal, apurou-se entretanto que a obra custou 57.000 euros, tendo sido integralmente paga pela Ordem dos Médicos.
Devemos amar aqueles que tentam alcançar o impossível J. Wolfgang Goethe AS AFINIDADES ELETIVAS, 1809
Se calhar sou um bocado irritante na insistência com que repito isto às pessoas de quem gosto, e claro que, sendo humana, “penso quenada do que é humano me é estranho[1]”, e portanto às vezes também me irrito; mas, de facto, irrito-me pouco. Escrevo estas linhas ao completar 63 anos e não tenho a menor dúvida de que, quanto mais passam os anos, mais a vida me diverte, mais as pessoas me comovem, e mais tudo o que seja minimamente bom é infinitamente precioso. Por isso, hoje, a minha prenda de anos para o mundo é a história verdadeira do que eu e o ZL nos rimos numa madrugada ainda escura, num Inverno distante em que os meus dois filhos se portavam todos os dias como os mais acabados bandidos, e eu acabava de perder não só o emprego como tudo o que ainda pudesse considerar-se um bem material: a casa, o carro, a conta bancária, o cartão de crédito, enfim. Nada disto[2] me parecia uma desgraça assim tão grande como isso, porque ao menos sempre era uma desgraça que, por esses dias, andava a acontecer a metade do País. E, ainda por cima, nessa noite acabava de jantar pela primeira vez com o ZL, que me tinha feito rir o tempo todo, e ainda por cima me deitava uns olhares algo torpes que não deveria estar a deitar, porque, a levarem a algum lado, levariam a um declarado conflito de interesses. Como quando nos puseram na rua ainda ficámos imenso tempo à conversa diante das escadinhas que levariam à minha rua, e depois ainda viemos à beira do rio ver nascer o dia por entre o nevoeiro[3], acabámos por fazer feliz também uma jovem que apareceu ali muito triste. No outro dia esbarrei com ela aqui, em pleno mercado[4]; ela explicou às amigas que eu era aquela pessoa que a tinha ensinado a ser feliz[5]; e foi assim que voltei a lembrar-me de todo este episódio memorável.
O ZL começou a aconchegar-me muito nele por causa do frio da madrugada[6] e eu recordei-lhe que mais um milímetro de proximidade e aquilo já seria conflito de interesses.
Antes conflito de interesses que pecado, patroa, sussurrou-me ele ao ouvido, carregadíssimo de intencionalidade.
Eu resmunguei que, pela maneira como ele olhava para as mulheres, não parecia nada que desgostasse de pecados, o que lhe permitiu esclarecer que nessa noite por acaso tinha reservado esse género de olhares para mim, e acrescentar que a propósito, se eu queria mesmo saber, os tais olhares que me tinham sido destinados, e de que eu estava a queixar-me com a maior ingratidão deste mundo, não eram nem um pecado nem um conflito de interesses, porque esses olhares eram um verdadeiro projecto. E, com esta, abraçou-me pela cintura e puxou-me para si, com toda a leveza e simplicidade que só costumamos sentir nos nossos velhos amantes. Passou um gajo de boina por nós, que devia estar de mal com a vida porque nos mandou ir para a pensão.
Rimo-nos tanto, ficámos tão agarrados, e aquilo era tudo tão bom que, mais conflito de interesse menos conflito de interesse, no fim fui eu quem lhe saltou ao pescoço e lhe aplicou um beijo de ventosa a todo o vapor[7].
Ele reciprocou, e começou a dar um uso de assumido conflito de interesse às mãos, ao mesmo tempo com muita doçura e com imensa avidez.
Clara e Sebastião demonstram uma forma muito simples de ser feliz ZL já não é nem seis nem meia dúzia, mas transformou-se numa espécie de irmão gémeo e assumiu prontamente o papel de padrinho de Sebastião, pelo que continua a integrar activamente o conjunto dessa felicidade.
Passou uma professora do segundo ano com uma expedição de meninos pequeninos que iam em visita de estudo atravessar o Tejo num cacilheiro e percorrer o Cais do Ginjal. Não nos mandou ir para a pensão, mas tossicou, e logo a seguir entoou um delicadíssimo,
por favor, meus senhores,
que nos fez interromper a transgressão, olhar para trás, e ver vinte e oito carinhas lindas e rosadas fixadas em nós, de olhos redondos de espanto, porque quando os filmes dos pais estavam quase a mostrar cenas como a nossa, o raio da cota agarrava no comando e passava a televisão para a porcaria dos bonecos didáticos, e de queixos caídos de emoção porque tinham finalmente conseguido entrar num dos filmes onde os cotas nunca deixam entrar meninos. O nosso conflito de interesses devia ter-se tornado mesmo indecente, porque, além disso, os meninos tinham ar de quem não só apanhou finalmente um dos tais incríveis filmaços proibidos, mas ainda por cima teve a sorte de apanhá-lo em directo e ao vivo, e já em plena luz do dia.
O amor é a coisa mais bonita do planeta e a única que poderá ainda salvar-nos, e ver pessoas assim tão apaixonadas como vocês, e ademais na vossa idade[8], fez-me sentir muito feliz,
continuou a professora, sempre muito delicada.
Mas por favor compreendam-me, é pedagogicamente tóxico fazerem tudo isso que estavam a fazer com tanta volúpia à frente destas crianças, que vão estar aqui paradas no cais ainda mais dez minutos, ficarão absolutamente confusas, acabarão a fazer-me perguntas que eu própria terei dúvidas sobre qual a melhor estratégia de resposta, chegarão a casa a falar aos Pais do que viram e a fazer ainda mais perguntas, e se eu não vou saber como responder, bem, imaginem os pobres encarregados de educação.
Já se tinha percebido que o ZL era um grande engatatão, mas a rapidez com que ele me largou a cintura e passou o braço pelos ombros da jovem triste foi impressionante.
Ó minha querida, mas por que é que se lembra de continuações tão tristes para inícios tão felizes, numa manhã tão bonita, rodeada de tantos meninos lindos? Então conte-me lá, como é que se chama?
Eu posso ter contribuído para ensinar esta jovem a ser feliz. Mas o primeiro passo, honra lhe seja – este truque do braço e do nome, eu aprendi com o ZL,
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Citando o dramaturgo romano do século II AC Publius Terentius Afer, mais conhecido como Terêncio, sendo a forma original da frase “Homo sum, humani nihil a me alienum puto“, utilizada na sua peça HEAUTON TIMORUMENOS. Estando Portugal pejado de parolos, já ouvi esta citação ser atribuída a tout le monde et son père (Ha! Kulturens Skonhed!), incluindo Fernando Pessoa. Nem se percebe para que é que os parolos pensam que serve a Wikipedia.
[2] À excepção da bandidagem dos meus filhos, bem entendido. Mas mesmo essa não era minimamente tão triste como as histórias que eu ouvia muitos outros pais contarem, porque os meus filhos, mesmo nos seus piores momentos, sempre foram muito meus amigos – e eu deles.
[3] É verdade que foi numa madrugada de mais um Inverno, quando são sete da manhã e ainda está escuro, pelo que podemos assistir ao espectáculo do dia a nascer por entre o nevoeiro do rio. Mas claro que não era um Inverno gélido como este. Se fosse, talvez nunca tivéssemos chegado a passar tantos anos divertidos a desobedecer às questões de princípios mais básicas de uma sociedade decente. Enfim, nesses anos ISTO também não era uma sociedade assim tão decente como isso.
[4] Nem sei como é que ainda não esbarrei com a minha vida inteira no mercado de Estremoz. É impressionante.
[6] Não era este frio, mas era suficientemente frio para fazer sentido que as pessoas se aconchegassem. Eu não ia meter aquele gajo, assim sem mais nem menos, numa casa onde só existia a minha cama; e ele não podia ir com o carro para lado nenhum, porque tínhamos bebido como se o branco fosse água gelada e a BT estava estacionada mesmo ali diante da Alfândega.
[8] O ZL não achou grande graça àquela do “na vossa idade”, mas enfim. A professora era mesmo uma jovenzinha, e ele próprio era uns aninhos de nada mais jovenzinho do que eu, que agora, quando me lembro do nosso conflito de interesses, acho que era uma jovenzinha nessa altura.
[9] Camões, OK? Sai no exame do 12º ano. É uma questão de serviço público, em benefício dos supracitados pobres encarregados de educação.
Ainda não surge no Portal Base o custo das duas esculturas de Rogério Abreu, hoje inauguradas, defronte ao Tejo, a caminho de Belém, mas por mim espero que lhe venham a pagar pelo menos os 1,6 milhões de euros da redução de custos do altar das Jornadas Mundiais da Juventude. Merece: glorifica a estupidez, a acefalia e a vaidade, que são sempre predicados necessários para um efectivo reconhecimento da arte no futuro de coisas irracionais do passado.
Onde uns hoje se podem chocar com o estranho sentido estético e simbólico de um monumento oco aos Heróis da Pandemia, eu vejo veneração no futuro.
Onde uns hoje podem ficar boquiabertos com as duas figuras – masculina e feminina, sendo que esta tem de ter o seu rabo de cavalo para assim ser, porque ambas estão mascaradas –, eu vejo uma lição de História para o futuro.
Onde uns hoje podem ficar assombrados com a vanitas vanitatum et omnia vanitas (cf. Eclesiastes 1:2) do (ainda) bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, e do presidente da autarquia de Lisboa, Carlos Moedas – que pespegaram tanto os seus nomes na base de uma das estátuas, ao lado do nome do escultor, como na placa de inauguração, neste caso fazendo companhia ao nome do ministro da Saúde, Manuel Pizarro –, eu vejo um ensinamento sobre perenidade das acções para os empreendedores no futuro.
Esqueçam as críticas. Não olhem para detalhes nem analisem obras ou acções feitas, não para nós, mas para serem admiradas e veneradas no futuro.
Hoje, a arcaria do Vale de Alcântara é um ex-libris da capital; ontem, no século XVIII, foi tão zurzido por alguns arquitectos, por razões estéticas (arcos góticos em período barroco) que Ludovice, o criador do convento de Mafra, chamou Herodes do Aqueduto ao engenheiro Custódio Vieira, que a concebeu.
Também estou a imaginar os mais cépticos moradores de Rapa Nui a criticarem a inutilidade dos moais – cuja edificação, aliás, aparentemente esteve na base de um ecocídio involuntário –, pois hoje as grandes estátuas da chilena ilha da Páscoa são a cobiça de qualquer turista.
Olhem, olhem bem. Não percam assim uma passagem pelo agora denominado Passeio Carlos do Carmo, entre o Terreiro das Missas e o Jardim das Docas da Ponte, porque, sendo certo que “tudo isto existe, tudo é triste, [e] tudo isto é fado” (como cantava Amália Rodrigues), também é verdade que os protagonistas desta escultura – o seu autor e os seus promotores – conseguiram, talvez involuntariamente, transmitir várias lições para as gerações vindouras. Desfrutem, por isso. Deliciem-se, agora.
De facto, hoje, somente por relatos sabemos que, em tempos de antanho, os arcaicos médicos para combater epidemias aplicavam, geralmente, sangrias aos enfermos – que mais os debilitavam – ou davam-lhes purgas, xaropes e mistelas diversas, que tantas vezes causavam piores males e nenhum bem. Para contrariar as supostas emanações pestilentas no ar ambiente – que se considerava estar na origem dos contágios e que, em certa medida, podemos associar à decomposição do lixo –, usavam-se meios de duvidosa eficácia, como soluções de vinagre, perfumes, ervas odoríferas queimadas e até tiros de pólvora. Mas não há símbolos disso. Só papéis.
No futuro, haverá este memorial. Toda uma lição em perpétuo e inamovível aço.
Ali estão as máscaras – elevadas a estúpido símbolo de suposta protecção (agora a ruir cientificamente, como um óbvio baralho de cartas), num período histórico em que conheciam as dimensões de um vírus e as dimensões dos poros das ditas máscaras. E sendo as ditas máscaras o centro nevrálgico das duas figuras escultóricas de Rogério Abreu – e tendo ele, sabiamente, introduzido profusas e profundas “porosidades” –, transmite-nos assim fielmente um sentido realista à coisa: a aragem que venha Tejo acima ou Tejo abaixo, invade e trespassa livremente as cabeças, tal como um vírus abre alas entre as fibras de uma máscara cirúrgica. Serviram tanto como uma peneira para estancar o vento.
Imagens de vídeo das esculturas de Rogério Abreu, hoje inauguradas por Miguel Guilherme, bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Moedas, presidente da autarquia de Lisboa, e Manuel Pizarro, ministro da Saúde.
Também de enorme felicidade, pelo realismo, embora aqui um pouco mais alegórico, se mostra a opção do escultor por duas figuras de cabeça oca, onde, efectivamente, nada existe no interior. Será esta a melhor imagem para nossos vindouros: saberão eles, quando certo dia estudarem o que sucedeu entre 2020 e 2022 – com consequências para os anos seguintes –, como foi a gestão da pandemia: acéfala.
Por tudo isto, glória ao escultor Rogério Abreu! Glória à vaidade de Miguel Guimarães e Carlos Moedas!, porque sem eles não teríamos um Memorial tão bem conseguido, tão perene, um tão arejado Monumento destinado ao futuro, um legado sobre tempos de Estupidez e Acefalia – que não se podem repetir quando surgir um novo vírus.
P.S. Apelo, não irónico: espero que as pessoas mais exaltadas se contenham e não façam nenhum acto de vandalismo às esculturas. Não transformem um Monumento à Estupidez e Acefalia em Memorial da Vitimização.
N.D. Afinal, apurou-se entretanto que a obra custou 57.000 euros, tendo sido integralmente paga pela Ordem dos Médicos.
Em Dezembro do ano passado – foi há menos de dois meses, minhas senhoras e meus senhores! –, a imprensa mainstream rejubilava. As acções da Tesla – a empresa de automóveis eléctricos dominada por Elon Musk desde 2004– estava, supostamente, a colapsar: desde Novembro de 2021, quando atingiram um máximo de 407,36 dólares, a cotação não parava de descer, com queda abrupta sobretudo a partir de Setembro de 2022.
Em Dezembro, em cada dia que se passava, vinham os arautos da desgraça, da punição divina, do castigo do merecido karma – leiam-se os jornalistas especializados em mercados de trazer por casa –, apontar as causas. Por exemplo, o jornal Expresso, na véspera de Natal, titulava muito apropriadamente: “Voaram 85 mil milhões de dólares numa semana das ações da Tesla. Foi a rede do pássaro que os levou?”, esclarecendo-nos depois o jornalista Pedro Carreira Garcia logo no início do seu texto: “Os investidores da Tesla estão nervosos com o negócio paralelo do seu fundador [sic], Elon Musk, dono e presidente executivo do Twitter desde Outubro. E desconfiam de tal forma das capacidades de Musk para gerir o negócio de construção de automóveis elétricos que em cinco dias provocaram uma forte perda de valor das ações da Tesla em bolsa.”
Elon Musk, novo dono do Twitter e CEO da Tesla.
Podia-se apresentar mais exemplos da imprensa mainstream, incluindo estrangeiros, mas todos seguiram o diapasão, todos eram consensuais: Elon Musk – que nunca foi um investidor consensual – estava a pagar a ousadia de ter comprado o Twitter e aberto uma caixa de Pandora com a “libertação do pássaro” de uma gaiola de censura criada pelas redes sociais em conluio com os governos mundiais.
Com a reabertura de contas suspensas pela anterior administração desta rede social, sobretudo daquelas que contestavam a gestão da pandemia, e sobretudo com a divulgação dos #Twitter Files, a imprensa tratou de ignorar o impacte das denúncias de ingerência do Governo Federal dos Estados Unidos nas redes sociais em simultâneo com uma estratégia conjunta para denegrir a imagem de Elon Musk. O multimilionário parecia apreciar estes ataques, alimentando-os com sondagens online sobre como deveria gerir a sua vida empresarial.
E a imprensa caindo no jogo, e anunciando que o seu fim estava à vista. “Despedimentos, receitas em queda e muitas sondagens. Menos de dois meses depois, Twitter diz a Musk que é tempo de sair”, titulava o Eco em 20 de Dezembro do ano passado. A Exame Informática, por exemplo, dava o foco na queda da Tesla nos últimos dias de 2022: “Ações da Tesla em mínimos de dois anos”, indicando que “os investidores receiam que a liderança de Elon Musk no Twitter e as constantes decisões polémicas estejam a retirar o foco do executivo na gestão da fabricante automóvel.”
Em suma, invariavelmente, a Tesla estava em colapso por culpa (basta meter a palavra colapso e Tesla no Google para confirmar) e era tudo só por culpa de Musk e da forma irresponsável como geria o Twitter. Não havia dúvidas. E ele estava a pagar a ousadia. Para a imprensa mainstream de pouco valiam os fenómenos de especulação que tinham catapultado a Tesla para uma capitalização bolsista quase inaudita (e a qual Musk até criticava).
Veja-se: no início de 2020, as acções da Tesla cotavam ainda abaixo dos 30 dólares. E qualquer fenómeno de variação bolsista tem subjacente uma carga psicológica misturada com fundamentais que, embora possam ser previsíveis, nunca podem ser explicados por visões tão simplistas.
Nas últimas semanas – ou melhor dizendo, desde o início do ano –, a Tesla deixou praticamente de ser notícia na imprensa mainstream. Ou, pelo menos, o seu “garantido” desastre bolsista.
O que aconteceu entretanto, perguntará o leitor? Aqui está.
No dia 3 de Janeiro deste ano fechou nos 108,30 dólares, uma queda de 70% face ao máximo de 2022 (361,53 dólares, em 1 de Abril). E depois, upa, que se faz tarde: hoje fechou nos 207,32 dólares, uma subida de mais de 91,79% desde o início do ano.
Explicações para isto não as tenho, ou não as deve ter ou nem quero ter, ou nem as devo transmitir publicamente. Mas devo dizer o seguinte: isto é o mercado a funcionar; e os jornalistas da imprensa mainstream a falharem. Ou melhor, a trabalharem com uma função específica: contar histórias da carochinha para manipulação das massas e com objectivos ínvios. Aquilo que andaram a fazer em Dezembro não era informação: com os #Twitter Files no seu auge, estiveram esforçadamente a tentar mostrar que Elon Musk era o mau da fita.
“Parem tudo o que estão a fazer: temos jackpot!” Esta é a frase que imagino sair da boca de um editor-chefe numa redacção portuguesa poucos minutos depois de uma catástrofe. Depois, consoante o tamanho da desgraça, a máquina começa a funcionar sem pudor durante dias, semanas ou meses. Vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas, sem parança, sem limites, muitas vezes sem interesse.
O massacre é tal na exploração da dor e do sofrimento alheios que, a partir de certo momento, tudo nos parece igual, banalizamos a perda, já nem ligamos à morte. Contabilizamos números, especulamos sobre o que podemos e fazemos o sofrimento render de forma pornográfica.
O recente terramoto no sul da Turquia, junto à fronteira com a Síria, é uma calamidade de uma dimensão que me custa sequer a imaginar. Mais de seis mil edifícios colapsaram e, até ver, o número de vítimas mortais já ultrapassou a barreira dos nove mil. Ao fim de três dias ainda se procuram sobreviventes por debaixo de toneladas de betão.
Como espectador do fenómeno, há sem dúvida um par de informações que gostaria de perceber: a rapidez das forças de resgate para chegarem ao local; as condições geológicas daquela zona e o seu risco sísmico; em caso de ser uma área onde os sismos são comuns, o que tinha sido feito para preparar um cenário destes ao nível da construção e do resgate; que países estão a ajudar no terreno e como.
Sabendo de antemão que o sismo afectou cidades já de si massacradas por pobreza e guerra (uma delas, por exemplo, é Alepo, na Síria), também seria interessante saber de que forma a comunidade internacional se está a juntar para enviar ajuda financeira.
Bem sei que ninguém pediu tanques Leopard por aqueles lados, mas em princípio também vão precisar de uns trocos. Li algures que o regime talibã enviou 160 mil dólares. Se gente sem grande consideração pela vida, e mais pobres do que os afectados, conseguem fazer qualquer coisa, espero que a Ursula, o farol da liberdade e da solidariedade, possa fazer uma vaquinha em Bruxelas e enviar qualquer coisa mais substancial.
Apesar do interesse da notícia e dos seus desenvolvimentos, o que observo na comunicação social portuguesa, em especial nos canais de informação 24 horas, é uma repetição da estratégia do monotema, levando qualquer espectador à exaustão e ao desinteresse. São horas e horas de transmissão com comentários de gente que parece que está a ler nos búzios, histórias paralelas sem interesse nenhum, e a cada 10 horas lá aparece um facto que realmente conta ou um desenvolvimento da situação real. É preciso uma paciência de Jó para levar com intermináveis directos na esperança de perceber alguma coisa sobre o que está aquela gente a passar.
É um “remake” da covid-19, da Ucrânia, do Ronaldo, das cheias, dos emigrantes em Odemira, da TAP, da invasão dos apoiantes do Bolsonaro ou do Trump, dos incêndios, do Brexit, do funeral da rainha, dos bilhetes dos Coldplay… eu sei lá.
Quando é que começou esta moda do monotema?
Quando eu era miúdo só havia um canal (sim, meninos, a vida já foi bem melhor) e lembro-me que, enquanto gramava a pastilha dos desenhos checos do Vasco Granja só para ver a Pantera Cor-de-Rosa ou o Dartacão, ouvia notícias variadas e não tinha tempo para decorar nada. Hoje, com centenas de canais, todos parecem dizer o mesmo horas e horas a fio. Com melhores ou piores especialistas, técnicas menos ou mais apuradas na arte de encher chouriços, ou mesmo sem qualquer vergonha no que toca a rentabilizar o sofrimento humano, fico sempre com a sensação que, visto por quem alinha as notícias, quanto mais sangue, melhor.
Dei por mim a ouvir uma discussão sobre o “e se fosse cá?”, a propósito do terramoto turco. É algo muito português e que nos leva a ver o mundo pelo nosso umbigo. Precisamos muito de ter um pé em cada drama alheio, até para podermos estabelecer um novo caminho de medo, especular mais umas horas num estúdio de televisão e, se possível, criar uma realidade alternativa de ses, que vendam mais uns litros de sangue.
Nós somos o país que faz notícia de um cão de água português no jardim do Obama, e que fala de como seria se Putin chegasse a Lisboa, umas horas depois dos russos meterem os pés no Donbass. No terramoto do Japão ou no tsunami da Tailândia, imaginamos cenários semelhantes no Chiado ou no Tejo. Adoramos divagar. Somos um povo de poetas.
Um engenheiro civil português explicava a desgraça que acontecerá em Lisboa no próximo sismo de 1755, porque, nas palavras dele, os seus colegas são ligeiramente aldrabões, mal pagos e assinam obras sem grandes vistorias de segurança. Portanto, estamos no trilho para a catástrofe. Imagino que o homem saiba do que fala – quem sou eu para duvidar –, mas pergunto-me: de que forma é que isso nos ajuda a perceber o que está a acontecer na Turquia?
Noutra emissão, perguntava o pivot a uma das comentadoras que costuma falar da Ucrânia (deduzo que estejam com falta de pessoal), se a Turquia não iria apoiar menos algumas áreas afectadas onde a maioria era curda. Ou seja, deixar que o betão fizesse o trabalho por eles e chegar lá com os bombeiros daqui a duas semanas só para recolher os corpos.
Ora… este nível de pergunta já é ao nível da lama, mas o que se espera, verdadeiramente, que a comentadora de serviço faça para além de especular um bocado ou tentar inventar um lugar-comum qualquer que não soe tremendamente estúpido? Assim de repente, lembrei-me dos comentadores que juravam que o governo sueco, enquanto “matava” velhinhos com covid-19, estava a tentar poupar nas pensões de reforma…
Ouvi ainda discussões sobre a demora do Governo português a enviar ajuda, ou até entrevistas a bombeiros super-felizes e excitados com a hipótese de entrarem em acção porque, cito, “treinámos a vida toda para isto”. Dito a sorrir! Tudo serve para vender, a morte é um dano colateral.
Com uma montanha de cimento e ferro, restos de um prédio que desabara, e um homem lá em cima com uma rebarbadora a tentar libertar alguém, a jornalista pergunta a um especialista da GNR: “diga-nos, o que estamos a ver aqui?”. O homem, com esforço, passou os cinco minutos seguintes a explicar como são importantes as máquinas pesadas para levantar blocos de cimento. Não fosse alguém pensar que era trabalho para os Avengers ou até para o Godzilla.
Decididamente, não consigo perceber o interesse de encher horas de emissão com 0% de informação. Seja em que tema for. Não compreendo bem em que altura do desenvolvimento humano entrámos nesta estrada. Ao fim de dois dias desisti de acompanhar, porque simplesmente se tornou insuportável. Não consigo aturar mais 5 minutos de venda de sofrimento alheio em horário nobre, e acabo por procurar outras fontes, nomeadamente imprensa escrita, para compreender o que por ali vai acontecendo. Interessa-me perceber quantas pessoas vão encontrando com vida, já que é essa a informação essencial, sem ter de ouvir horas de emissão e discussões repetidas sobre o sexo dos anjos.
Era isso que imaginaria que um canal noticioso me daria: notícias. Curiosamente só ouvi o número de sobreviventes da boca do Erdogan – e este não é rapaz que eu costume confiar muito, mas, à falta de melhor, tenho de acreditar que já salvaram mais de oito mil pessoas. Fico contente por elas, e não consigo sequer sonhar aquilo pelo que passaram e o que lhes deve ir na cabeça neste momento.
Por fim, espero que a solidariedade apareça, em força, para turcos, curdos e sírios. Gente que, por aquelas paragens, já está habituada a sofrer, mesmo quando não é notícia.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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