Categoria: Opinião

  • Ano II da Propaganda versus Jornalismo

    Ano II da Propaganda versus Jornalismo

    A Guerra na Ucrânia vai entrar no seu segundo ano e é cada vez mais notória a luta da propaganda versus jornalismo. A recente reportagem do jornalista veterano norte-americano Seymour Hersh sobre a sabotagem do gasoduto Nord Stream 1 e 2 pelos militares dos Estados Unidos, que foi classificada de “ficção”, é um exemplo do que está em causa. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.


    Tenho aqui à minha frente um livro que comprei em 2018. É a autobiografia do jornalista norte-americano Seymour Hersh. O título diz tudo sobre quem é esta pessoa: “Repórter”. Apenas isso. E já é muito. Na capa, o repórter está ao telefone (com fios) e tem uma máquina de escrever à sua frente. A foto foi captada em 1972 na redacção do “The New York Times”.

    Seymour Hersh é um nome assaz conhecido – e reconhecido – nos Estados Unidos. A sua primeira grande reportagem data de 1969, quando denunciou o massacre de My Lai, no sul do Vietname, onde soldados norte-americanos mataram mais de 300 civis. Ao serviço do The New York Times, Hersh investigou depois o Watergate e muitas das suas reportagens fazem parte da história que, em Agosto de 1974, levou à demissão do Presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon.

    Com boas fontes juntos dos militares e serviços secretos norte-americanos, denunciou depois, em Março de 1975, um plano da CIA para recuperar um submarino soviético afundado no Oceano Pacífico desde 1968. Conhecido como “Project Azorian”, o plano envolveu a construção de um navio capaz de transportar poderosas gruas que iriam trazer o submarino à tona, permitindo assim aos Estados Unidos terem acesso aos segredos nucleares dos soviéticos. A construção do navio custou, em números dos dias de hoje, o equivalente a 4 mil milhões de dólares. E contou com o apoio do milionário Howard Hughes como fachada para a operação secreta.

    Dois meses depois daquela história, Seymour Hersh assinou uma segunda reportagem onde denunciava operações navais de espionagem com submarinos norte-americanos em águas territoriais da União Soviética. Uma operação que levantava muitas críticas dentro dos meios militares dos EUA por colocar em causa a détente da Guerra Fria.

    Não foram histórias de “ficção”, mas pareciam. Bem mais recente, lembremo-nos de que, em 2004, Seymour Hersh, ao escrever então para a revista The New Yorker, foi ainda o jornalista que revelou ao mundo como eram os processos de tortura norte-americana na prisão iraquiana de Abu Ghraib. 

    Imagens chocantes de maus tratos em prisioneiros em Abu Ghraib

    Por isso, quando, aos 85 anos, este repórter escreve num site da Internet dedicado a artigos que não conseguem ter lugar na Imprensa generalista, que os militares dos Estados Unidos levaram a cabo uma missão secreta para destruírem o gasoduto russo Nord Stream 1 e 2, através de uma explosão que se registou a 26 de Setembro, na zona próxima à Noruega, então temos de ter em consideração que não estamos propriamente face a um qualquer jornalista. 

    Por muito que a Casa Branca venha desmentir e dizer que a história de Hersh é “completamente falsa” e que mais parece saída de uma “ficção”, sabemos que não podemos simplesmente descartar aquela sabotagem que, no fundo, tem uma grande importância estratégica para o conflito na Ucrânia, que entra agora no seu segundo ano.

    No prefácio da sua autobiografia, Seymour Hersh explica que ele é “um sobrevivente da época dourada do jornalismo, quando os repórteres dos jornais diários não precisavam de competir com o ciclo noticioso de 24 horas da televisão por cabo, quando os jornais tinham dinheiro da publicidade e dos anúncios de procura de emprego”. Uma época em que ele tinha a possibilidade de “viajar para qualquer lugar, a qualquer hora, por qualquer motivo, com cartões de crédito da empresa”.

    Imagem da zona da explosão do pipeline do Nord Stream em Setembro de ano passado. Fonte: Autoridade Marítima da Dinamarca.

    Havia tempo para relatar uma notícia de última hora sem ter de depender do que estava constantemente a aparecer na página de Internet do jornal. Mas o que não havia mesmo no tempo de Seymour Hersh, segundo ele, eram os “especialistas” e jornalistas de TV por cabo “que começam as respostas a todas as perguntas com as duas palavras mais mortais do mundo dos média: ‘Eu acho’”.

    O jornalismo actual, acrescenta Hersh, é composto, essencialmente, por coisas como “pouco mais do que dicas ou indícios de algo tóxico ou criminoso”. A falta de tempo, dinheiro ou equipas qualificadas, desembocam em “histórias do tipo ‘disse ele, disse ela’, nas quais o repórter é pouco mais do que um papagaio”.

    Aponta ainda este norte-americano: “Sempre considerei que a missão do jornalista era a procura da verdade e não a mera notícia do conflito. Houve um crime de guerra? Os jornais ficam agora dependentes de um relatório negociado nas Nações Unidas que surge, na melhor das hipóteses, meses depois dos factos. E os média fizeram algum esforço significativo para explicar por que um relatório da ONU não deve ser considerado por muitos, à volta do mundo, como sendo a última palavra? Existem sequer relatórios críticos sobre a ONU?”.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    As perguntas de Hersh deviam ser as perguntas de todos os jornalistas que dizem fazer jornalismo. E, de forma lapidar, afirma este repórter: “Toda a minha carreira tem sido sobre a importância de contar verdades importantes e indesejadas e tornar a América num lugar mais informado. Talvez seja por isso que é muito doloroso pensar que nunca teria conseguido fazer o que fiz se estivesse a trabalhar no mundo caótico e desestruturado do jornalismo de hoje. Claro que ainda estou a tentar”.

    A tentar.

    E essa tentativa viu-se agora com o descrédito votado à sua reportagem sobre a destruição do gasoduto russo que fornecia gás à Alemanha e que, na prática, veio ajudar ao aumento dos gastos da produção de energia na Europa e todas as consequências que vemos com os aumentos dos produtos nos supermercados e nas taxas de juros do crédito à habitação. No fundo, a inflação.

    A guerra é uma coisa terrível. Não há honra, não há regras – apesar das convenções de Genebra que quiserem inventar. O pior do ser humano é revelado, embora também existam histórias de heroísmo de um e outro lado.

    closeup photography of bong mask

    Portugal, como membro da NATO – aliás, membro fundador da NATO ainda no tempo da ditadura de Salazar –, está do lado da Ucrânia. Logo, qualquer notícia que seja suspeita de agradar aos russos, deve ser ponderada com critérios mais apertados do que qualquer outra que seja bem mais simpática ao “nosso lado”.

    A isso não se chama jornalismo, mas sim propaganda.

    Um ano volvido sobre o início da Guerra na Ucrânia, esta já levou muitos jornalistas a irem visitar o terreno em aventuras controladas nos cenários de guerra, de onde saíram vivos para contarem histórias idênticas a muitas outras desde que o homem inventou a barbárie dos conflitos armados modernos.

    Fugas em massa, pais separados de filhos, despedidas comoventes, reencontros emocionantes, mortes de inocentes, exemplos de bravura e resistência, relatos de massacres inimagináveis, crimes de guerra, avanços e recuos de tropas, armas inteligentes e humanos cada vez mais estúpidos. Há de tudo para que se escrevam belos discursos, poemas, textos emotivos, artigos importantes, livros de crónicas que engrandecem currículos de jornalistas ditos “de guerra”.

    gray concrete building with red and white flag on top

    Entretanto, na retaguarda, enquanto uns vão jantar fora à sexta-feira, há ainda jornalistas como Seymour Hersh que arriscam a vida e reputação ao revelarem o que alimenta de verdade esta guerra. São esses quantos, que insistem em tentar fazer jornalismo, mesmo correndo o risco de serem acusados de criar ficções, que ainda mantém a chama do jornalismo acesa.

    Só que, para eles, soldados da pena jornalística, não haverá medalhas nem sequer uma chama eterna como num monumento ao soldado caído.  

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Mais habitação, uma mão (que parece) cheia de nada

    Mais habitação, uma mão (que parece) cheia de nada


    Depois de ouvir a apresentação do programa “Mais Habitacão”, fiquei com a mesmíssima sensação das conferências com medidas novas no tempo da covid-19: não percebo metade e, no fim, tenho mais perguntas do que respostas.

    Tirando aquela parte de ir sacar casas devolutas, tudo o resto é voluntário. Incentivos fiscais para quem quiser passar de alojamento local para arrendamento, ou 0% na taxação de mais-valias para quem quiser vender ao Estado. E se não quiserem? Montam-se tendas nos Jerónimos? Qual é o plano B nesta estratégia que depende da vontade alheia?

    dresser beside sofa

    Depois vem o cálculo do tecto das rendas: o valor da última somada à inflação anual e tal. Ora, em muitos casos, o problema está no início dessa frase: “valor da última renda”. Em princípio, foi essa que se tornou incomportável. Percebo a intenção, mas não sei se se ajuda alguém com essa fórmula de cálculo.

    Aos bancos é dito que serão obrigados a disponibilizar uma taxa fixa de juro… mas não dizem é quanto. Já na última vez que os bancos foram obrigados a renegociar créditos, na verdade não aconteceu nada.

    Esse é aliás um dos registos deste Governo: morosas apresentações públicas com medidas avulso, muitas com dúvidas na sua realização prática e, depois de acabada a teoria, pouquíssima concretização cá fora no mundo real.

    Por exemplo, sobre o mundo real, eu gostava que nesta hora em que o Governo apresentou medidas que ninguém percebe, tivesse começado por nos explicar, talvez, quantas famílias fizeram pedidos de casas, quantas estão sinalizadas nos bancos por rendas em atraso, quantas acções de despejo meteram senhorios em tribunal. Ou seja, números para percebermos do que estamos a falar e do que precisamos. São 100 casas? 1.000? 10.000? Um milhão?

    photo of canal between houses

    António Costa diz que as licenças de construção vão ser simplificadas, e menos burocracia será necessária para se arrancar com a construção. Acho óptimo. Mas quem é que isso ajuda? Os construtores, imagino. Ou, depois de feitas, essas casas vão para o mercado de rendas acessíveis?

    Também não percebi a reabilitação coerciva de casas devolutas. O primeiro-ministro diz que não é uma expropriação. Ai não? Então vão só recuperar a casa, metê-la a alugar e devolver a quem a deixou cair? Ui… já estou a ver os montes devolutos que se vão recuperar no Alentejo.

    E quando o Estado diz que vai comprar casas ao preço do mercado, dentro de uma tabela qualquer (dito pela ministra da Habitação) sem taxar mais-valias, o que é que isso significa em concreto? Eu começo logo a imaginar os amigos dos amigos que andam em redor destas elites que nos governam, a embolsarem pequenas fortunas, com isenção de mais-valias e sacos azuis para a reforma.

    É um defeito português, assumo, este de imaginar um esquema possível a cada nova regra. Mas com a experiência acumulada de assistir a desvios do erário público e enriquecimento ilícito da classe política, alguém me censura se começar a procurar buracos na narrativa?

    Marina Gonçalves, ministra da Habitação, António Costa, primeiro-ministro, e Fernando Medina, ministro das Finanças, na apresentação do pacote legislativo para a habitação na passada quinta-feira.

    Não ouvi nada, na conferência de imprensa, sobre casas desocupadas (habitáveis e não devolutas), mas já li qualquer coisa sobre leituras de luz e água para saber o quão ocupada é a casa anualmente. É capaz de ter sido um sonho e não uma coisa real. Tenho ouvido com cada disparate que, por vezes, já não sei diferenciar a realidade da ficção.

    Para já, e posso estar enganado, fiquei com a sensação de que este conjunto de medidas pode ser uma mão-cheia de nada, caso os bancos e os proprietários não colaborem. O fim dos Vistos Gold parece-me ser, de claras, a medida mais positiva. E a recuperação de casas devolutas também, se for bem aplicada. O resto é um “logo se vê”.

    Honestamente, sem a pura e dura construção de habitação social, não estou a ver como se resolve o problema das famílias que, por esta ou aquela razão, ficaram sem casa. É uma questão de opção, digo-o há anos. Menos BES, menos PPPs e menos auto-estradas e mais habitação, caso o artigo da Constituição seja para ser levado a sério.

    grey concrete ruins near green trees at daytime

    Consegui aguentar uma hora e 15 minutos da conferência de imprensa, até ao momento em que o Costa diz que o PRR – ao qual um jornalista tinha sugerido ir buscar dinheiro – não é uma conta-corrente ou a “mesada dos nossos pais”.

    António… olha bem, o PRR é, sem tirar nem pôr, a mesada dos nossos pais. Os velhotes chamam-se Urbano e Erica, já nos dão mesada há 35 anos e nós, perto dos 40, não há maneira de sairmos de casa e de os convidarmos para um jantar num daqueles sítios onde se come de garfo e faca.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A revolução é sair da cadeira

    A revolução é sair da cadeira


    Os deputados gozam do direito de livre-trânsito, considerado como livre circulação em locais públicos de acesso condicionado, mediante a exibição do cartão próprio, além de possuírem ainda o direito a passaporte diplomático por legislatura, renovado em cada sessão legislativa.

    Esta é a revolução mais extraordinária que os deputados podiam fazer e nunca foi feita. Um deputado pode chegar a um hospital e exigir entrar e verificar in loco o que se está a passar na instituição. O seu mandato é o voto legítimo do povo e a sua representação é a garantia da democracia.

    Os deputados podem entrar quando e à hora que quiserem num presídio e verificar os dados tremendos que a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) publica sem medo e sem cessar, sobre a verdade das cadeias.

    Estive num evento da Organização Mundial de Saúde em 15 e 16 de Fevereiro em representação da Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso (APAR) onde se falou de saúde nas prisões.

    Os deputados portugueses se procedessem à visita sem aviso prévio de muitas instituições eram um garante da democracia. O exercício desta acção surpreenderia os absentistas, os que se acham acima da lei, os que impõem regras antidemocráticas nos lugares onde foram colocados para gerir.

    Os deputados não são vigilantes, não são empresas de avaliação e certificação, mas têm o direito de ir ver, irromper e ser testemunhas da coisa pública.

    man in black long sleeve shirt raising his right hand

    Por esta razão os deputados podiam ser muitos mais, contrariamente ao que afirma alguma demagogia. Um deputado que fosse à porta do estabelecimento prisional de Lisboa, pedisse para entrar, descobria que é mentira que temos 12 mil celas para cumprir as penas de privação de liberdade. Temos é celas para um que estão declaradas para três, o que é uma manifesta aldrabice, e que surge em relatórios exaustivamente repetidos.

    Um eleitor pediria a um deputado que fosse ver como o estão a tratar na CP, ou na Brisa e o gesto de aparecer faria diferença, porque os cobardes temem a autoridade, os velhacos temem as consequências dos seus atropelos. A perpetuação de muitas ilegalidades deve-se ao rabo sentado de muitos dos eleitos pelo povo para os representar.

    Num país onde a certificação é sinónimo de compadrio, e actualmente de negócio, onde a auditoria é sinónimo de simpatia e ganhos secundários, onde a palavra vigiar é feia, avaliar chefias é mal interpretado, só uma acção individual pode alterar as coisas.

    stainless steel spiral bulb wire

    Desafio os deputados do CHEGA a percorrerem as cadeias de Portugal. Desafio-os a levarem colegas do PCP e depois fazerem um documento menos demagógico sobre o que é preciso mudar na justiça portuguesa. O documento de 500 páginas está bem feito e compõem-se dos dados que são feitos chegar aos relatores; o problema é quando os dados não são exactamente aquilo que a observação directa demonstrariam.

    Recordem sempre que Mandela esteve preso 28 anos. Recordem que todos podemos ir parar a um presídio.

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O Ministro Bizarro

    O Ministro Bizarro


    Em 1995 foi estabelecido o Programa para a Saúde nas Prisões (Health in Prisons Programme, HIPP) da Organização Mundial de Saúde (OMS), com o intuito de “promover cuidados de saúde e políticas de promoção da saúde, junto da população reclusa, com base nas recomendações internacionais, nomeadamente nas Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos, conhecidas como Regras Nelson Mandela”.

    O Relatório deste Organismo, há dias tornado público, com base em números facultados pelos Estados e relativos a 2020, é arrasador no que respeita a Portugal.

    Ali se menciona que, no nosso país, apenas existem 33 médicos para um total de 49 estabelecimentos prisionais. Um rácio de 2,9 médicos para cada 1.000 reclusos, enquanto na população em geral esse rácio atinge os 5,3.

    Relativamente aos psiquiatras, os dados da OMS sinalizaram 19 especialistas nas prisões portuguesas, o que se traduz num rácio de 1,7 por cada 1.000 presos, bem superior aos 0,1 registados para a população em geral, número demonstrativo do tipo de cidadãos que estão detidos.

    Quanto ao número de dentistas, este não vai além dos 12 no sistema prisional, sendo o rácio de 1,1 igual entre a população em geral e a prisional, mas não indicam o número de horas de consultas e tratamentos por estes profissionais.

    O que o Relatório não diz, provavelmente por falta de dados, é que os mais de 12.000 reclusos, espalhados pelas 49 prisões, só podem contar com menos de trinta psicólogos.

    Esquece o número de doentes mentais e inimputáveis nas nossas cadeias (algo que nos deveria envergonhar já que, obviamente, o lugar destes cidadãos deveria ser o hospital) que é da ordem das muitas centenas. Garantem que ultrapassa os 10% da população em reclusão.

    Omite os números da tuberculose e doenças infectocontagiosas, que são muitíssimo superiores aos da população em liberdade.

    Também não refere a existência de males praticamente irradicados na sociedade, como a sarna e outros.

    Não refere que muitas das doenças têm base, ou são agravadas, pela falta de higiene nos espaços prisionais e pela péssima alimentação dada aos reclusos (o Estado não distribui produtos de limpeza ou desinfectantes e paga, às empresas fornecedoras, 0,80 € por cada refeição). 

    Muitos destes problemas devem-se ao facto das clínicas nas cadeias não dependerem do Serviço Nacional de Saúde e serem exploradas (e nunca o termo foi tão correcto) por empresas que concorrem a concursos que têm, como único intuito, saber qual faz o preço mais baixo.

    Só assim se compreende que, há não muitos anos, a empresa vencedora pertencesse a um recluso na cadeia de Coimbra que, a partir daí, a geria.

    Também não aborda a constante falta de medicação para muitas doenças graves. Ao contrário do que acontece com os ansiolíticos e a metadona.

    Isto porque, há alguns anos, foi alterada a regra da aquisição dos medicamentos, que deixou de ser feita pelo Hospital Prisional de Caxias, que funcionava como “central de compras” e os distribuía por todos os Estabelecimentos Prisionais, com óbvias vantagens nos preços dos mesmos, para passarem a ser adquiridos por cada uma das prisões.

    Apesar de tudo, ao tomarmos conhecimento do conteúdo do estudo, acreditámos na possibilidade dos nossos governantes se sentirem mal ao constatarem os números ali indicados e que nos colocam, também nesse campo, na cauda da Europa.

    Foi com expectativa que aguardámos a reacção do Ministro da Saúde.

    Questionado pelos jornalistas, este disse que “o Governo está a trabalhar para melhorar o sistema”.

    Mais:

    Que “o sistema de saúde nas prisões portuguesas funciona manifestamente bem. É verdade que não tem todos os médicos que deveria ter, mas tem uma dotação profissional muito adequada”.

    Revelou, ainda, que foi “esta quarta-feira assinado um despacho pelo Ministério da Saúde, o Ministério da Justiça e o Ministério do Ensino Superior para que crie um grupo de trabalho para muito rapidamente produzir um relatório sobre medidas operacionais para melhorar a saúde nas prisões”.

    O habitual.

    Um Grupo de Trabalho que vai escrever um relatório com conclusões que todos conhecem há anos.

    Desnecessário, até para o Ministro que o encomenda, já que este considera que “o sistema de saúde nas prisões portuguesas funciona manifestamente bem”.

    Enfim, medidas tomadas, com a única intenção de empurrar os problemas com a barriga, por um Ministro bizarro. Tão Bizarro que até escreve, repetidamente, o seu apelido com uma gralha.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Quando se cai na poção mágica

    Quando se cai na poção mágica

    E também tudo aquilo que consideramos impossível precisa apenas de ser feito.

    Plínio[1]

    HISTÓRIA NATURAL


    Protegida pelo braço caloroso do ZL, a professorinha preocupada com as perguntas dos seus meninos depois de terem assistido ao nosso filme disse que se chamava Lídia Augusta, e ele disse oh mas que nome grandioso, olhe querida, eu sou o ZL, e ela é a C e de certa forma também somos os dois professores, e não vai acreditar mas conhecemo-nos ontem à tarde e apaixonámo-nos durante a noite, enquanto estávamos a jantar, e depois viemos para aqui a conversar e ver nascer a manhã e foi quando demos o nosso primeiro beijo e depois apareceu a menina com todos os seus meninos, não acha bonito? Isto fez a Lídia Augusta, que olhando melhor era assaz boazona, fazer um grande oooooh, abraçar imenso o ZL à laia de parabéns, e a seguir juntar ao abraço a conversa de como sacrificava tudo à oferta do imenso amor que tinha para dar dentro de si mas, pronto, era tudo por causa do marido.


    É um bocado chata, esta versão da vida das pessoas em que é sempre tudo muito triste por causa do outro membro do casal.

    E então o marido da Lídia Augusta era contabilista, bastaram-lhe sete anos de casamento para ficar tão barrigudo quanto calvo, nunca fora grande espingarda na cama mas agora era mesmo o fim da picada porque eram só cinco minutos semanais na posição do missionário e ela até bebia mais do que a conta ao jantar para que o triste dever marital lhe roesse menos a alma, lia o Wall Street Journal à mesa, nunca queria ir à praia nem a Paris nem a Nova York nem a lado absolutamente nenhum porque em Portugal tudo está enxameado de turistas e para sair de Portugal toda a gente sabe que andam a cair cada vez mais aviões de manutenção mal feita devido à crise, de qualquer maneira a verdade é que só estava bem se pudesse estar a falar de fugas ao fisco e de offshores em águas internacionais o que o levava a literalmente fugir de casa todos os fins-de-semana para andar na farra com outros contabilistas, alguns autarcas, alguns bandidos da PJ, alguns bancários com conhecimentos, o ZL está a ver, não é, tudo péssima gente, e eu sozinha em casa porque ele não quer ter filhos, não quer ter um cão, nem sequer quer ter um gato persa que é uma raça hipo-alergénica, quando lhe falei de um peixe encarnado dentro de um aquário ele desatou a berrar-me se eu queria desequilibrar o Feng-Shui da casa mas quinze dias depois pedi a uma amiga que lhe perguntasse duas ou três coisas desse género e percebeu-se logo que ele me tinha berrado só por berrar, por causa do Feng-Shui é que não foi de certeza porque na realidade ele não faz a menor ideia do que é o Feng-Shui, assim como não faz a menor ideia do que é o karma mas isso não o impede de dizer que se eu for àqueles jantares dele lhe vou dar mau karma, ó ZL, olhe só para as minhas unhas, eu dantes não as roía mas é que estou a um passo do burnout, e o pior é que não quero, bem, é mais que não posso, não sei se o ZL me entende mas eu não posso pedir-lhe o divórcio porque ele percebe bem demais de contas enganosas e de dinheiro sujo e ia deixar-me na miséria, tenho a certeza absoluta. Ah, mas se me entrasse de repente na sala de aulas uma alma gémea, como lhe aconteceu ontem com a C,

    Pois foi, ó Lídia Augusta,

    Nova demonstração de Clara e Sebastião
    Vê-se claramente nesta foto que não é a seriedade que afecta a felicidade.

    rosnei-lhe eu, que entretanto me tinha sentado na relva com a turma inteira para esclarecer as dúvidas dos meninos, que não paravam de levantar as mãozinhas e eram positivamente hilariantes,

    mas olhe, essa de se abrir a porta e entrar por ali dentro a alma gémea, ontem à tarde, assim como lhe aconteceu a ele, também me aconteceu a mim, boa? E vai daí, para todos os efeitos, a partir de agora mesmo esse homem está aí mas é meu. Mande esse atraso de vida da posição do missionário dar uma curva, vá a um banco de esperma e engravide já enquanto pode, diga-lhe que foi o padeiro, vá viver para casa de uma amiga que o gordo desconheça e mande-lhe os papéis do divórcio por correio registado com aviso de recepção, faça qualquer coisa por si, mulher, mas tire as patas de cima do gajo que eu vi primeiro, e muito legitimamente me saiu na rifa.

    Disse aquilo num tom brincalhão para a pobre esposa repelida não se sentir ainda mais repelida, mas a verdade é que acabei por vociferar tantos detalhes sobre o nosso namoro que me parti a rir. E o ZL, que estava a ouvir-me com cada vez mais gozo, ainda me piscou o olho mas no fim ainda riu mais do que eu. Podíamos estar os dois a brincar, mas estávamos a brincar com o fogo. Estávamos era os dois a gostar muito de ouvir as nossas declarações crescentes de amor e compromisso.

    Aaaaai,

    suspirou a pobre Lídia Augusta, lá mesmo do fundo de toda a dor que assolava o seu coração,

    vocês têm uma forma tão interessante e tão criativa de utilizar a língua portuguesa, e tudo o que eu digo, e tudo o que eu oiço, é tudo tão baço, tão banal, tão,

    e estava na cara que a pobre Lídia Augusta ia desatar a chorar, pelo que o ZL voltou a abraçá-la, e, já que eu tinha montado uma conferenciazinha com os meninos, lá lhe vendeu a conversa da treta de eu ser muito boa a explicar assuntos difíceis às crianças e ao povo. Ela implorou-me que explicasse mesmo porque ela, que não tinha qualquer amor na sua triste vida, nunca conseguiria fazê-lo. Eu deitei a língua de fora ao J, virei-me para a turma e para todas as mãozinhas no ar que apareceram imediatamente, e falei-lhes dos livros do Astérix, onde havia um druida de roda de um grande caldeirão onde preparava a poção mágica que tornava invencíveis todos os gauleses lá da aldeia, sempre à tareia com os pérfidos invasores romanos.

    Na segunda fila levantou-se logo a mãozinha de um menino armado em bom.

    Todos não, s’tora. O Obélix não pode beber a poção mágica porque caiu dentro do caldeirão quando era pequenino.

    Eu já te lixo, pestinha.

    Que bom,

    Respondi-lhe toda sorridente, como se a interrupção do puto não tivesse sido do pior intencionado carácter provocatório,

    parece que temos aqui uma turma de sábios em Astérix. Pois é, meninos. Quem já caiu no caldeirão em pequenino não pode voltar a beber mais poção mágica. Ora acontece que eu e o ZL caímos os dois no caldeirão em pequeninos, mas depois esquecemo-nos. E então ontem à noite, ao jantar, estivémos os dois outra vez a beber poção mágica. Era uma poção mágica muito boa que há cá em Portugal, chamada Tiago Cabaço, e então como era muito boa nós bebemos muita, e foi por isso que ficámos assim como vocês viram, e é por isso que quem já caiu no caldeirão quando era pequenino nunca mais deve beber poção mágica, senão está sempre a fazer filmes e nunca trabalha, e a vida dos crescidos é trabalhar, não é curtir.

    E foi com esta explicação, que mereceu pelo menos a concordância tácita de todas as criancinhas, que aliás adoraram o uso da palavra curtir, de onde se prova que já sabiam o que é que isso que queria dizer, que eu e o ZL fizemos finalmente rir a Lídia Augusta.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Estudioso e autor romano considerado o fundador da História Natural, a ciência que veio a dar origem à Biologia. Homenageando a sua natureza de grande cientista, morreu no ano de 76, data que poderá parecer familiar a alguns leitores, e por razões que ninguém pode discutir com a Natureza: Plínio ia de barco, a passar ao largo, quando o Vesúvio explodiu. Pediu ao comandante para se aproximar mais da margem, por forma a observar devidamente o fenómeno, e morreu envenenado pelos gases tóxicos da explosão. Ninguém sabe o que é que aconteceu aos outros tripulantes do barco.

  • Índia, uma história amorosa (e de odiosa tradição)

    Índia, uma história amorosa (e de odiosa tradição)


    As conversas começavam quase sempre com um “tu não percebes, vocês europeus não percebem”. Era a forma de ele me explicar que não existia a hipótese de se casar por amor.

    Ele é o Rohit, um miúdo que conheci aos 24 anos, no primeiro emprego que teve na Suécia. Era um entre uma legião de engenheiros que chegam aos países nórdicos para preencher os milhares de empregos que a população local não tem capacidade para corresponder.

    Desde o primeiro dia que mostrou três interesses muito fortes: fazer os pais felizes, ver montanhas e comer galinha com arroz, o famoso byriani da sua Hyderabad natal.

    Não sei quantas vezes vi este rapaz a comer byriani ao almoço. Umas centenas, certamente. 

    Ainda assim, o grande objectivo da vida era fazer os pais felizes. Disse-me variadíssimas vezes que a sua geração seria a última a sofrer. Casaria com quem os pais escolhessem e aos filhos daria total liberdade para escolherem as companhias para a vida.

    Durante anos escondeu uma paixão que tinha em Gotemburgo: Anna vinha da mesma cidade, trabalhava no mesmo sector e era amiga desde sempre. Tinham feito o percurso entre a escola em Hyderabad e o mercado de trabalho em Gotemburgo, juntos.

    Os pais não aceitariam o casamento, dizia ele, de cada vez que tentava convencer-se de que não valia sequer tentar. Eram de castas diferentes embora altas. Rohit e Anna não fazem parte da Índia que vemos nos filmes. O mundo deles é separado da realidade por muros altos e condomínios privados verdejantes.

    Os anos foram passando e fomos saltando juntos de projecto em projecto. Em todas as equipas onde trabalhei desde 2017, sugeri a contratação do Rohit. Desde logo porque é um excelente companheiro de jorna, mas, principalmente, para o poder proteger das agruras do mercado que não se compadecem com dramas indianos.

    O stress causado pela situação de não poder estar com quem queria, trouxe-lhe anos de noites mal dormidas, várias idas ao médico por doenças que apareciam não se sabia de onde, e, de quando em vez, risco de despedimento por causa das fugas para a Índia para acalmar os pais e tentar convencê-los que aquele era o caminho certo.

    Um dia telefona-me a pedir que vá com ele ao médico. Estava convencido que ia ouvir que tinha cancro e não queria estar só. Fomos juntos e, felizmente, era apenas um hospital privado que cobrava por cada consulta, mesmo aquela de três minutos para lhe dizer que não tinha nada.

    Perdi a conta ao número de situações destas que foram acontecendo ao longo dos anos. Certo dia atirou-se para o mar e, uma vez lá dentro, disse-me “a propósito, eu não sei nadar”. Depois de o “rebocar” para terra, passei a hora seguinte a ensiná-lo a boiar. Outra vez foi a conduzir um carro com caixa manual.

    Algures no tempo, o meu filho disse-me que parecia que tinha adoptado o Rohit. De certa forma, foi o que aconteceu com ele, a alternar a forma como me chamava: ora “velho rezingão”, ora “baba”.

    Até que cedeu à pressão e disse à Anna que nunca mais a queria ver. Iria cumprir o desejo dos pais, já não aguentava o drama 24 horas por dia. Nessa altura disse-lhe que estava a cometer um erro. Percebendo ou não, mesmo com os óculos europeus postos, só via a parte prática da coisa. Ele é um emigrante, vive 95% do tempo longe dos pais… Que raio importam as tradições?

    Disse-me que seria expulso de casa e rejeitado pela família. É muito drama junto, a que acresce o facto de ter de aturar uma mulher escolhida por outros.

    Se já é difícil acertar quando escolhemos no decorrer normal da vida, quanto mais quando aparecem num catálogo de qualidades e capacidades.

    Repeti. O drama não era o que a família pensava, mas sim a perda de um amor para a vida.

    Começou a ir a entrevistas e a conhecer as “pretendentes”. Nenhuma interessava. O pai fez muita força com uma candidata que vinha de famílias próximas do primeiro-ministro. Rohit ficaria garantido para a vida.

    Num sistema de castas não existe elevador social. Dinheiro puxa dinheiro, miséria puxa miséria. 

    Ele disse que não queria saber. De nada. Dinheiro, posição, as candidatas. Queria ver montanhas, ser feliz e livre. E comer byriani.

    Engonhou o mais que pode e Anna, curiosamente, fez o mesmo. Durante um ano foram rejeitando todas as hipóteses, até que Anna disse que esperaria por ele o tempo que fosse necessário. 

    É aqui que tudo muda e Rohit decide ir contra a família. Mais um ano de drama com cortes de relações, mais doenças e intermináveis conversas telefónicas ou viagens à India.

    Estamos em período de covid-19 e eu sento-me em frente à nossa chefe de equipa, de então, para a convencer a não despedir o Rohit.

    white concrete castle near body of water

    O avô aconselha o pai para que expulse o filho da família. Que raio de avô valoriza mais as tradições do que o neto? Sacana do velho, está aqui ao meu lado, enquanto escrevo isto, na Índia, com cara de poucos amigos.

    As ameaças são tantas por parte da família que Anna resolve desistir. Tem perto de 30 anos, e isso, em linguagem de tradição, significa que “ninguém a quer”.

    Rohit pede-me que escreva uma carta ao pai dele e fale com a Anna. Encontramo-nos num bar e, depois de duas cervejas, ela está convencida de que desistir não seria opção. Felizmente, não está habituada a beber, porque, se fosse uma portuguesa, ao preço da cerveja em Gotemburgo, aquela sessão tinha ficado pela hora da morte.

    Chegamos ao dia 15 de Fevereiro, a data escolhida sem consentimento do pai do noivo. Data que deixa a noiva a poucos dias de completar os 30 anos e casar, ainda, “dentro do prazo”. O pai de Rohit aparece no evento, cumpre a tradição, faz o seu papel, sem dirigir uma palavra à família da noiva. 

    two men walking on street

    O ambiente é pesado. O casamento dura três dias e os momentos estranhos sucedem-se. 

    Rohit aproxima-se de mim, com a cabeça cheia de arroz, depois de um ritual aos deuses de duas horas e diz: ” e agora, já percebes?”

    Disse-lhe que sim. Percebo. Percebo que vai voltar para a Suécia com a mulher que ama. Casado. E com a bênção dos deuses. Todos os três mil que devem existir.

    O amor venceu a tradição.

    Essa é que é a notícia. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Confissões em palcos cheios

    Confissões em palcos cheios


    Eu comecei a dizer “às vezes desobedeço…”, e ele respondia “não é às vezes, é sempre!”

    Eu fazia uma pausa arreliada e respirava fundo, dizendo “…e às vezes respondo torto…”, e ele interrompia “não é às vezes, é sempre!”

    Pensava eu que se não me conheces de lado nenhum, raisparta isto!…

    “Vai em paz e que o senhor te acompanhe.”

    kneeling woman wearing brown dress

    E cismei eu, “não quero companhia, seu ranhoso, a fazer de mim mau diabo!”

    Fui embora e cheguei a casa berrando a minha revolta “o padre era um estúpido! Nunca mais lá volto!” E a minha avó ria-se:

    — Ainda agora chegaste da confissão e já estás a pecar!

    O conjunto de pecados que uma criança inventa para brincar aos adultos é quase tão proporcional ao tamanho do mundo tal qual o vemos. Pequenino. E as portas são todas imensamente largas e altas.

    Dependendo do quanto espigamos, talvez já possamos ver adultos sem nos ficarmos pelas pernas e, talvez, sintamos mais direito a levantar a cabeça e a cometer o pecado da insolência de pedir satisfações das regras arbitrárias que nos impõem.

    Eu não sabia o que os adultos murmuravam baixinho de joelhos. Pensando que estavam a sibilar por entre os lábios como quem chama um gato, limitei-me a imitar.

    As velhinhas no banco encantavam-se com o meu ar compungido e penitente, e gabavam à minha avó a minha dedicação à transcendência em tão tenra idade. Já a minha avó, ciente que eu estava a bichanar gatinhos imaginários, dava-me uma cotovelada e sussurrava “levanta-te estapunho! Que estás a fazer, rapariga?!”

    Foi a primeira vez que reparei que imitar um comportamento sem o compreender a fundo era em si mesmo ilustrativo da minha imaturidade. E se havia coisa que eu estava investida em esconder era essa inocência. Pois essa inocência para mim era o que me mantinha grilhões de dependência, algo absolutamente intolerável para quem sonhava em receber correspondência endereçada a si.

    O meu pai ironizava “hás-de receber estas cartas e veres que são contas para pagar e já não vais querer.”

    — Não, não! Eu quero receber, porque se receber cartas para pagar é porque são coisas minhas que eu conquistei!

    Claro que fui descobrindo que há quem discorde. Ainda hoje em dia me espanto que queiram pôr a unha no que eu paguei com o meu esforço. Como a rapariga da carteira em frente que, depois de cobiçar a minha linda lata de lápis de cor, todos virados com as letrinhas douradas para cima, sussurrou, com a colega do lado, “vamos dizer que não temos lápis e assim ela empresta-nos os dela!”

    — Eu ouvi! E só por causa disso agora não vou emprestar!

    A injustiça a borbulhar-me na voz! Também era facto que não tinha sido eu a conquistar literalmente os lápis, mas eram meus, conquistados pela resiliência de só responder torto às vezes e desobedecer pouco, para que me brindassem o conformismo com o prazer de ter lápis novos a pintar a folha.

    — Olha que depois destes, não há outros! Vê se os estimas!

    “Todos os animais são iguais, mas alguns, são mais iguais do que outros.”

    Depois comecei a descobrir que afinal as injustiças eram permanentes. Actos divinos que não me tocava compreender, diziam. Enfureci-me com o adágio “Deus dá nozes a quem não tem dentes”. Como assim? Que absurdo! Então um homem tão inteligente, com visão panorâmica em tempo real de tudo o que se passa cá em baixo, e mesmo assim vai dar nozes a um desdentado sem pelo menos poder moer aquilo?! Isso é injusto e não faz sentido!

    brown walnut

    Ao menos fazia um bolinho.

    Em vez disso manda um terramoto zurzir o mundo de quem já vive sem nada ou com muito pouco. Até nos vizinhos, sem unhas, nem dentes e as chamas a deflagrar, rasteiras, as casas a caírem e nada sobra.

    Pomos o coração com quem não podemos acudir. E mesmo que nunca mais tenhamos voltado a uma igreja, rezamos, porque basta bichanar baixinho, um pensamento de fundo, que se tenta permanente, por todas as pessoas que sofrem longe, enquanto a nossa vida continua com visão panorâmica em tempo real.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Dos valores e do populismo dos vendilhões de comendas

    Dos valores e do populismo dos vendilhões de comendas


    Uma coisa é a solidariedade activa e o apoio a um povo invadido por outro Estado autoritário; outra é um branqueamento de um regime não-democrático e de um político que está longe dos padrões da liberdade e da verdadeira democracia.

    A atribuição do Grande-Colar da Ordem da Liberdade pela República Portuguesa ao presidente de um país que tem uma classificação de 39/100 no índice do Freedom House (e antes da invasão da Rússia era igual) e uma avaliação de 5,43/10 no índice de democracia do Economist (considerado um regime híbrido perto do autoritarismo da Rússia) é um ultraje aos valores da Democracia.

    Volodymyr Zelensky

    Um regime corrupto e não-democrático não o deixa de ser só porque se torna vítima de outro. Um regime corrupto e não-democrático não o deixa de ser só porque, enfim, políticos fracos e populistas de um país que “vende” comendas da Liberdade lhe decidem colocar como um artificial paladino da Liberdade.

    Zelensky pode vir a merecer uma comenda portuguesa desta natureza, e muito mais, mas não agora, nunca agora.

    Mas compreendo a pressa: Marcelo não quer agraciar Zelensky, quer sim ser fotografado a agraciar Zelensky. A graça é por ele e para ele – e a isso chama-se populismo.

    E quando os valores se rendem ao populismo enfraquecemos a Democracia. Vendemos a Democracia.

  • Caso Instituto Superior Técnico: não queremos vitórias de Pirro; queremos saber a verdade

    Caso Instituto Superior Técnico: não queremos vitórias de Pirro; queremos saber a verdade


    Terá sido com alívio que Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico, recebeu a sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa da juíza Telma Nogueira no passado dia 27 de Janeiro. Depois de uma atitude de puro obscurantismo e prepotência, arriscava a ser obrigado por um tribunal a disponibilizar não apenas 52 relatórios (supostamente) científicos como também os ficheiros de dados que, durante um ano, serviram para a Ordem dos Médicos alimentar um clima de manutenção do pânico.

    Em causa estava, e continua a estar, a qualidade científica e sobretudo a idoneidade moral e ética de Rogério Colaço e de quatro investigadores do IST, a saber: Henrique Oliveira, Pedro Amaral, José Rui Figueira e Ana Serro. Não é de ânimo leve que um relatório científico pode atribuir mortes directas (e logo 330) a eventos em concreto. Não é de ânimo leve que uma instituição científica, ainda mais pública, recusa facultar os dados que terão suportado essas “conclusões”.

    Instituto Superior Técnico foi fundado em 1911; o campus universitário da Alameda foi construído a partir de 1927.

    De facto, a sentença acabou por considerar que o último relatório do IST – o tal que chegou a ser classificado pelos seus autores um “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório” – é um documento administrativo, ordenando que fosse disponibilizado ao PÁGINA UM.

    Porém, a juíza esqueceu-se que em causa, para ela decidir, não estava apenas o conteúdo do tal relatório – denominado Relatório Rápido nº 52 –, mas sim o acesso “de todo e qualquer documento considerado como administrativo na posse do Instituto Superior Técnico – por publicamente ter sido elaborado e/ ou utilizado por investigadores desta instituição universitária – relacionados com a avaliação epidemiológica da covid-19”.

    E mais, esqueceu-se a juíza que se explicitava, no requerimento, que “de entre esses documentos classificados como administrativos devem constar, entre outros, a totalidade dos relatórios elaborados no âmbito do protocolo formal ou informal (acordo) realizados pelo Instituto Superior Técnico e a Ordem dos Médicos – e apresentado no dia 14 de Junho de 2021 (vd. aqui: https://archive.ph/wip/C9YTD) –, incluindo ficheiros informáticos contendo elementos (numéricos) que permitiram ou auxiliaram a elaboração desses relatórios”.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes na sede do Ordem dos Médicos, em Julho de 2021, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico realizou 52 relatórios, que foram solicitados, mas esqueceu-se de falar de 51 desses 52 relatórios.

    No requerimento do PÁGINA UM, que consta integralmente na petição do processo de intimação, ao qual a juíza deveria dar resposta integral, até se enviou a ligação para o site da Ordem dos Médicos onde se anunciou esse acordo, com a presença do bastonário Miguel Guimarães, do inefável Filipe Froes, do presidente do IST Rogério Colaço e do investigador Henrique Oliveira.

    Ora, havendo 52 relatórios – uma vez que o tal “esboço embrionário” era o relatório com o número 52 –, significa que existem 51 relatórios anteriores, sobre os quais a sentença da juíza Telma Nogueira absolutamente nada diz.

    Tal como nada diz sobre os ficheiros informáticos com os dados numéricos.

    Esqueceu-se a juíza de tudo isto.

    Sumário do famoso Relatório Rápido nº 52, que agora divulgamos integralmente.

    Por isso, não surpreende que o IST tenha vindo logo a correr enviar o Relatório Rápido nº 52 – que agora divulgamos, sem mais comentários, porque a sua pobreza científica fala por si –, requerendo também à juíza que o original enviado em envelope lacrado lhe fosse devolvido.

    Pudera! Com esta “doce” sentença livrava-se de piores males: de ser colocada na praça pública (e nos corredores da Ciência) um miserável trabalho científico de objectivos ínvios.

    Podia o PÁGINA UM, perante esta “novela”, assumir que venceu a postura prepotente do IST e do seu presidente – que conseguiu demonstrar, com a sua postura ao longo do processo, que um cientista excelente pode ser, em simultâneo, um péssimo cientista sem ética –, mas nunca neste processo esteve uma causa pessoal, mas sim a avaliação do rigor científico de uma instituição académica durante a pandemia.

    Por esse motivo, não desistimos de saber toda a verdade sobre os estranhos relatórios do IST. Não de apenas um, mas de todos os 52 que foram produzidos semana após semana.

    Não queremos apenas os 52 relatórios e os dados, apenas para avaliar a postura dos investigadores do IST neste caso concreto, mas pelo seu simbolismo. Constitui um aviso. É inaceitável a possibilidade de pessoas sem escrúpulos usarem, e abusarem, do seu estatuto de académicos, de professores e de investigadores universitários, para comporem narrativas e fazerem fretes para entidades externas ou para interesses obscuros.

    Fizemos, por isso, um requerimento à juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa pedindo para clarificar a sua sentença por ininteligibilidade. Respondendo em tempo útil, e perante a evidente falha na sentença, evitava um recurso e mais atrasos de justiça.

    Não respondeu ainda, o que nos obrigou mesmo a ter de apresentar um recurso ao Tribunal Central Administrativo Sul, de contrário o processo ficava encerrado por transitar em julgado, e jamais se esclareceria o comportamento do IST. O “crime” compensaria. Não poderíamos aceitar sem contestação. Por isso, foram mais 306 euros gastos do FUNDO JURÍDICO para mais taxas de justiça.

    sun rays inside cave

    Infelizmente, fazer Justiça custa dinheiro, mas esta acção não poderia morrer assim.

    Não queremos uma vitória de Pirro; desejamos sim apurar a verdade.

    O caso do “esboço embrionário” do IST deve servir de lição para o futuro, sobre o rigor, a isenção e a transparência que se deve exigir às Universidades como bastiões da Ciência. Não deixemos, por isso, esta lição a meio.


    Caso queira fazer um donativo dirigido em exclusivo ao FUNDO JURÍDICO, utilize preferencialmente a plataforma do MIGHTYCAUSE. Se preferir usar outros meios, pode assim recorrer mas agradecíamos um aviso para procedermos ao depósito na plataforma. Se necessitar de esclarecimentos, escreva-nos para geral@paginaum.pt. A gestão das verbas do FUNDO JURÍDICO, ao contrário das verbas destinadas à actividade do jornal (geridas pela Página Um, Lda.), é da minha inteira responsabilidade (Pedro Almeida Vieira), de modo a serem consideradas donativos (e não receitas ou rendimentos), o que se mostra mais favorável contabilisticamente para o jornal. No passado dia 7 de Janeiro foi apresentado um balanço sobre os processos concluídos e em curso, incluindo também a parte contabilística. No final de 2022, as receitas do FUNDO JURÍDICO atingiram os 13.943,40 euros e o saldo era positivo em 1.067,87, após deduzidas taxas de justiça e honorários com advogado.

  • Os vilões da pandemia

    Os vilões da pandemia


    No final da semana passada fomos presenteados com mais uma acção de propaganda do regime, desta vez a inauguração de duas esculturas com fraldas faciais esburacadas a tapar as faces e cabeças ocas, talvez a denunciar a inexistência de massa encefálica. Segundo nos informam, servem para homenagear os “Heróis da Pandemia”.

    Talvez seja o símbolo perfeito dos idiotas-úteis que ao longo de três anos foram zombados, extorquidos, manietados e que entregaram os seus corpos a experiências médicas sem paralelo na História da Humanidade.

    Esculturas “Heróis da Pandemia”, inauguradas na sexta-feira passada em Lisboa.

    O evento contou com a presença de excelsas figuras da Pátria, com destaque para o bastonário da Ordem dos Médicos, que referiu ser uma forma de reconhecer o trabalho dos médicos. De onde sacou tal ideia, já que em 2020 e 2021 tivemos hospitais com taxas de ocupação consideravelmente inferiores aos anos anteriores? Talvez tenham trabalhado a partir de casa, quem sabe…

    Já podemos adivinhar quem pagou ao mestre Rogério Abreu: a milionária Ordem dos Médicos ou talvez a conta pessoal do seu bastonário, que, como todos sabemos, recebe chorudos donativos das farmacêuticas; tudo é possível, pois o dinheiro abunda por aquelas paragens e durante a “pandemia” mais abundou.

    Após três anos de atropelos aos mais elementares direitos dos cidadãos, de ruína da Economia – falência de pequenos negócios e a inflação mais elevada dos últimos 30 anos –, de mortalidade excessiva por explicar, de negócios milionários para farmacêuticas e laboratórios de análises clínicas, o regime continua a subsidiar canais de propaganda para que estes cancelem qualquer voz dissidente, recorrendo ao estafado insulto: “negacionista da pandemia”!

    Recordemo-nos que tudo isto começou com a simulação de uma pandemia em Outubro de 2019, o evento “Event 201 Pandemic Exercise” organizado pela Universidade Johns Hopkins Center for Health Security e patrocinado pelo Fórum Económico Mundial e a Fundação Bill & Melinda Gates.

    white and black printer paper

    Em Janeiro de 2020, aparentemente os chineses caíam repentinamente nas ruas aos milhares ou às centenas de milhares, depois de terem andado a comer sopa de morcego, a origem “oficial”, até hoje, do vírus SARS-CoV-2. Hoje, tudo parece indicar o laboratório chinês de Wuhan como o principal suspeito, mas na altura a propaganda cancelava quem se atrevesse a dizer o contrário.

    Logo em 2020, o professor John Ioannidis, um dos mais citados epidemiologistas do Mundo – ao contrário dos putativos especialistas que pulularam pelos canais de propaganda –, dizia-nos que a taxa de mortalidade por infecção era apenas 0,23%, ou seja, uma taxa de sobrevivência de cerca de 99,8%, algo semelhante à gripe. Apesar da Ciência, os nossos Governos decidiram fechar-nos em casa.

    A decisão de confinar populações inteiras nada teve de científico; em 2006, o artigoDisease mitigation measures in the control of pandemic influenza” dizia-nos o seguinte:

    • Não há observações históricas ou estudos científicos que apoiem o confinamento por quarentena de grupos de pessoas possivelmente infectadas por períodos prolongados, a fim de retardar a propagação da gripe”;
    • O interesse pela quarentena reflecte as visões e condições prevalecentes há mais de 50 anos, quando se sabia muito menos sobre a epidemiologia de doenças infecciosas e quando havia muito menos viagens internacionais e domésticas num mundo menos densamente povoado”;
    white textile on white table
    • É difícil identificar circunstâncias no último meio século em que a quarentena em larga escala foi efectivamente usada no controle de qualquer doença”;
    • As consequências negativas da quarentena em grande escala são tão extremas (confinamento forçado de pessoas doentes; restrição completa de movimento de grandes populações; dificuldade em fornecer suprimentos, remédios e alimentos essenciais para pessoas dentro da zona de quarentena) que essas medidas de mitigação devem ser eliminadas de considerações sérias.”

    Eles sabiam que estavam a cometer um crime, mas, mesmo assim, decidiram cometê-lo, anunciando-nos da primeira vez que iria durar apenas 15 dias, com o simples propósito de “achatar a curva”! A coisa, como sabemos, terminou em intermináveis meses com a malta na caverna.

    Fecharam uma sociedade inteira, proibindo a escola presencial às crianças, quando apenas os idosos estavam a ser afectados pela doença: mais de 85% tinham uma idade igual ou superior a 70 anos, com a propaganda a imputar tal desgraça sobre as crianças!

    Distribuição dos óbitos por covid-19 em Portugal até 17 de Novembro de 2021 por grupo etário. Em termos proporcionais, a situação não se alterou até à actualidade em que se registam, oficialmente, 26.059 óbitos atribuídos à covid-19 Fonte: DGS. Análise do autor.

    Para os “matar de vez”, os lares foram transformados em estabelecimentos prisionais, onde as visitas tinham de “respeitar” o sacrossanto “distanciamento social”, através de acrílicos por todas as partes – na altura o ambiente foi enviado às malvas –, tornando a vida dos idosos um autêntico “inferno”, talvez com o objectivo de os eliminar pela demência e loucura.

    Em paralelo, as contagens de mortos eram ininterruptas nos canais de propaganda, chegando, por vezes, a serem medidas em quedas de aviões Airbus, com o detalhe de nunca sabermos exactamente se era “de covid” ou “com covid”; tudo era enfiado no mesmo saco, com um único propósito: criar o pânico e o terror sobre a população.

    Seguidamente, vieram as fraldas faciais, a única forma de nos deixarem sair de casa em “segurança”, apesar da Ciência, desde o início, em Março de 2020, afirmar exactamente o contrário: de que eram “uma falsa sensação de segurança”. E eram! Logo em Dezembro de 2020, a insuspeita Organização Mundial de Saúde (OMS) afirmava:

    • Actualmente, são limitadas e variáveis as evidências científicas que corroboram a eficácia do uso de máscaras por pessoas saudáveis na comunidade com o intuito de prevenir a infecção por vírus respiratórios, incluindo SARS-CoV-2;
    persons hand on glass window
    • Um grande estudo randomizado, de base comunitária, no qual 4.862 participantes saudáveis foram divididos em um grupo que usou máscaras cirúrgicas e um grupo de controle, não encontrou diferença na taxa de infecção pelo SARS-CoV-2”;
    • Uma recente revisão sistemática encontrou nove estudos (dos quais oito foram estudos randomizados e controlados com aglomerados, nos quais grupos foram randomizados em comparação a indivíduos) que compararam o uso de máscaras cirúrgicas com o não-uso de máscaras para prevenir a disseminação de doenças respiratórias virais. Dois estudos foram realizados com trabalhadores da saúde, e sete em comunidades. A revisão concluiu que o uso de máscaras pode fazer pouca ou nenhuma diferença na prevenção de síndrome Gripal ou influenza confirmada laboratorialmente; o nível de certeza das evidências foi baixo para síndrome gripal e moderado para influenza confirmada laboratorialmente.”

    Mas a propaganda foi tal que assistimos a indivíduos isolados na rua, ou sozinhos a conduzir um carro, com duas fraldas faciais, ou mesmo idiotas-úteis da propaganda a revelar que dormiam com a fralda facial! O importante era manter uma atmosfera de psicose colectiva, de que havia uma terrível “pandemia” que nos ia matar a todos.

    Até tivemos o prócere máximo da Ordem dos Médicos, a oferente das “magnificentes” esculturas, a apelar em missas diárias de propaganda ao uso permanente do “instrumento de protecção individual – referia-se à fralda facial!

    three clear beakers placed on tabletop

    É natural; ele conhecia em detalhe os fornecedores de fraldas faciais, seus amigos seguramente, dado que lhes enviou umas facturas falsas em nome da Ordem dos Médicos, tudo, claro está, em nome de uma campanha pelo bem – houve dinheiro e negócios sem fim nestes últimos três anos, talvez por isso estejam tão saudosos e lacrimejantes pelo seu fim!

    Recentemente, a ciência das fraldas faciais foi novamente confirmada: “Usar máscara na comunidade faz provavelmente pouca ou nenhuma diferença relativamente a ter-se (ou deixar-se de ter) doença (grau moderado de evidência), em comparação com não usar máscara”. Apesar de tudo, o circo mantém-se em serviços de saúde, talvez para não nos fazer esquecer que “existe uma pandemia”!

    Chegámos assim a etapa final do golpe, para terminar com tudo isto, confinamentos e fraldas faciais, a inoculação de uma substância experimental no nosso corpo – administrada com autorização emergencial, pois não haviam tratamentos alternativos! – seria o regresso “à normalidade”.

    A propaganda aqui atingiu o zénite: “inocula-te para proteger os outros” – atenção, não era para a pessoa proteger-se –, “queres ir à discoteca, chegou agora a tua vez”, “vem, até temos música para receber-te”. Em paralelo, tínhamos os próceres do regime, cujo único emprego é viver de cobrança coerciva ou a comentar banalidades, a apelar às virtudes e benefícios da “inoculação salvífica”!

    person in white gloves holding white plastic bottle

    Para os renitentes, a suprema intimidação, a suprema chantagem. Veio o certificado nazi. A premissa era de que os vacinados não transmitiam nem eram infectados; mais tarde, e como sempre nesta tragédia, descobrimos que era a mais despudorada mentira.

    Assim, os que não cederam a esta inqualificável intimidação, que ainda acreditavam que quem mandava no seu corpo eram elas mesmas e não o Estado, eram ostracizadas, humilhadas e segregadas em diversos locais públicos. O opróbrio veio dessa infame expressão: “a pandemia dos não-vacinados”!

    E quais são os resultados de tudo isto? Felizmente, tivemos o “placebo” Suécia, o único país liderado por um cientista de verdade – ao contrário dos putativos especialistas que circulavam pelos canais da propaganda –, que permitiu que a sociedade continuasse a viver uma vida normal: sem distanciamento, sem fraldas faciais.

    Recorrendo ao Eurostat (aqui está para o Excel para quem tem dúvidas) e analisando os óbitos para o grupo etário com idade igual ou superior a 80 anos – o mais afectado pela “pandemia” –, podemos constatar que a Suécia é o único país com uma mortalidade em tendência descendente no triénio 2020-2022 face ao triénio 2019-2022.

    Óbitos por 10 mil habitantes para os anos 2017-2022 do grupo etário com idade igual ou superior a 80 anos (Nota: 50 primeiras semanas ISO de cada ano). Fonte: Eurostat. Análise do autor.

    Por outro lado, e ao contrário do afirmado pela propaganda, tanto em 2021 como em 2022, regista-se uma mortalidade muito inferior aos demais países nórdicos – os únicos que, segundo a propaganda, eram comparáveis!

    Analisando a média de óbitos por 10 mil habitantes para o mesmo grupo etário, em particular comparando o triénio 2020-2022 vs. 2017-2019, podemos constatar que a Suécia apresenta o melhor desempenho, com uma queda de 34 óbitos por 10 mil habitantes, uma vez mais melhor que os demais países nórdicos – nem vale a pena falarmos do desastre Portugal.

    Óbitos por 10 mil habitantes para a média 2017-2019 vs. media 2020-2022 do grupo etário com idade igual ou superior a 80 anos (Nota: 50 primeiras semanas ISO de cada ano). Fonte: Eurostat. Análise do autor.

    Mas algo nos deixa perplexos: se as inoculações eram salvíficas, se a Suécia continuou a ter os seus hospitais e sistema de saúde a funcionar em normalidade – não teve nem consultas, nem diagnósticos, nem tão pouco cirurgias por realizar –, como nos explicam o brutal aumento da mortalidade em 2022 comparada com 2021? A excepção foi Portugal, mas, entretanto, a razia sobre os idosos já tinha sida feita.

    No caso da Suécia, esta registou mais 7 óbitos por 10 mil habitantes do grupo etário com idade igual ou superior a 80 anos, enquanto países com um excelente desempenho histórico, como a Espanha e a França, tiveram uma subida expressiva. Os demais países nórdicos também registaram um desempenho desastroso!

    Óbitos por 10 mil habitantes 2022 vs 2021 do grupo etário com idade igual ou superior a 80 anos (Nota: 50 primeiras semanas ISO de cada ano). Fonte: Eurostat. Análise do autor.

    No grupo etário com idade entre 70 e 80 anos (os dois grupos mais atingidos pela “mortal pandemia”), também se regista uma subida da mortalidade em 2022 – excepção para os países que foram uma desgraça, como Grécia e Portugal, com a Suécia e a França a terem reduzidíssimas reduções.

    Afinal se a miraculosa inoculação não serviu para reduzir a mortalidade, para que serviu? Para que serviu a inoculação em tudo o que mexia?

    Óbitos por 10 mil habitantes para a média 2017-2019 vs. média 2020-2022 do grupo etário com idade entre 70 e 79 anos (Nota: 50 primeiras semanas ISO de cada ano). Fonte: Eursotat. Análise do autor.

    Hoje sabemos: proporcionou um dos maiores negócios com dinheiros públicos da História da Humanidade. Tal como na União Europeia, o Estado português também não quer facultar os contratos com as farmacêuticas, sinal de que vivemos numa ditadura, em que o Estado sabe tudo sobre nós e não sabemos nada a seu respeito, onde o obscurantismo parece agora reinar. A propaganda teima em não pedir explicações!

    Não é surpresa tais esculturas. Os seus promotores foram felizes durante estes últimos três anos, protagonismo e negócios chorudos, é natural!

    Que tal fazermos uma homenagem a tais personagens, intitulada: “O vilões da pandemia!”

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.