Categoria: Opinião

  • Costa, que já foi hábil, agora é só trapalhão

    Costa, que já foi hábil, agora é só trapalhão


    Ouvi João Miguel Tavares a dizer que achava que o direito à propriedade privada era mais importante do que o direito à habitação. É um pensamento lógico, diria, numa pessoa que se revê em políticas liberais. Embora não goste de excluir direitos, devo reconhecer que, em última análise, não concordo minimamente com essa frase.

    Se a decisão for entre uma casa desocupada que pertence a um privado e uma pessoa que dorme ao relento, não há grande debate – pelo menos para mim.

    O meu problema em toda esta discussão sobre a habitação passa no que há para fazer, antes de retirar a propriedade privada para a fornecer a alguém que vive debaixo da ponte.

    António Costa, primeiro-ministro de Portugal.

    Mas antes de entrar nesse debate, faço aqui um parêntesis para discutir a questão das casas devolutas. Aqui a minha opinião é radicalmente diferente e bem mais penalizadora para a defesa do direito à propriedade privada. Há muito que defendo que o Estado deve expropriar privados que deixam imóveis a cair. Seja qual for a razão: desinteresse, falta de capital, desacordo em partilhas. É indiferente.

    A partir do momento em que uma casa, um edifício, um imóvel qualquer, passa décadas desocupado, sem qualquer manutenção – e vai resistindo aos elementos da Natureza até ser apenas uma parede no meio do entulho –, eu defendo que as autarquias assumam a sua posse, o encargo da sua recuperação para aluguer ou venda futura. O agravamento do IMI não é suficiente para evitar os milhares de imóveis em ruínas que vão poluindo visualmente o país.

    Ou seja, mesmo admitindo que nenhuma das propostas de habitação anunciadas por António Costa – talvez retirando os Vistos Gold – chegue a qualquer lado, a medida anunciada para as casas devolutas seria altamente prejudicial para o Governo. Não só assumiam os encargos das obras de recuperação como ainda pagariam uma renda aos proprietários. Isso seria uma forma directa de atribuir subsídios e valorizar o património de quem nunca fez nada por ele. Ou seja, seria um benefício directo, pago por todos, a uma parte da população que paga.

    brown and white concrete houses

    O Estado deve, de facto, recuperar os imóveis e metê-los no mercado de aluguer, mas o dinheiro gasto, que é do erário público, deve significar que a propriedade passa para a esfera pública. O contrário seria apenas um negócio de leão para alguns e mais um calote para a maioria.

    Voltando ao debate inicial – de ser necessário pedir aos privados com casas habitáveis e desocupadas que as coloquem ao serviço do Estado num regime de arrendamento –, parece-me um péssimo negócio para todos. Desde logo para os privados, que não devem ter grande interesse em negociatas com o Estado, que não é propriamente conhecido por ser bom pagador e muito menos ser ágil a executar. Imagino conflitos com os inquilinos mediados pelo Governo português. Uma pessoa até transpira só de pensar.

    Para quem precisa de casa também não vejo grande mais-valia ao ter, na prática, que lidar com dois senhorios, ainda que de forma indirecta.

    man in purple suit jacket using laptop computer

    E para nós, contribuintes em geral, também é uma medida bastante desinteressante, porque o preço do arrendamento, ao valor de mercado, seria na mesma elevado, com o Estado a pagar a diferença. Portanto, mais dinheiro dos contribuintes para pagar a especulação imobiliária.

    Mas o pior mesmo desta medida é a sua absoluta inutilidade e mostrar uma extraordinária falta de vergonha. Por que razão vem António Costa pedir casas a quem as comprou, em vez de dar o exemplo e reconverter o parque imobiliário público, devoluto, desocupado ou pouco utilizado, e colocando-o depois no mercado de arrendamento com preços reduzidos? O Estado já é o dono, alguns imóveis nem de obras precisam e assim podia-se controlar os preços sem ter de indemnizar fosse quem fosse. Visto assim, conseguiam-se mais casas com menos dinheiro dos impostos. Tenho a sensação de que em Portugal não gostamos de estradas rectas; precisamos sempre de adicionar umas curvas que ninguém pediu.

    Estava a pensar nisto, e lembrei-me que tenho de dar uma volta por Lisboa, no próximo regresso a Portugal, e fazer um levantamento de alguns imóveis públicos sem qualquer utilização. Mas claro, já nada se inventa neste mundo, e poucos dias depois da conferência de António Costa, já corriam pelas redes sociais fotos de imóveis desocupados ou devolutos com o selo do Estado.

    brown and white wooden table beside sofa chair

    Nesta última semana perdi a conta ao número de escolas fechadas, prédios desocupados, antigas repartições públicas, sedes de instituições que deixaram de o ser, casas térreas da GNR, do guarda disto ou do vigia daquilo. E o mais engraçado é que muitos destes prédios localizam-se no centro de Lisboa ou do Porto, onde aparece a maior parte dos pedidos de habitação. São as duas principais cidades do país e as suas cinturas urbanas que sofrem mais com esta temática da habitação, porque, como se compreende, também é ali que se concentra a maior parte da população portuguesa.

    Veja-se. Todos os dias surgem mais, todos os dias há alguém que faz mais um levantamento. Em duas semanas, de livre iniciativa e apenas por andar na rua, cidadãos anónimos conseguiram fazer o que o Estado português parece não conseguir. Há tantos, mas tantos imóveis públicos prontos a habitar com duas ou três idas ao IKEA e, eventualmente, pequenas obras, que não se compreende o que foi António Costa sequer fazer à apresentação do programa Habitação Mais.

    Se o Governo português quisesse, de facto, resolver o problema da falta de habitação, o primeiro passo teria sido mexer a enorme máquina burocrática e fazer um levantamento das casas que já pertencem ao Estado e que poderiam ser utilizadas. Depois disso, punham as mãos na massa e tratavam de construir fogos de habitação social.

    abandoned concrete house

    Mas, em vez de simplificar e usar os recursos existentes para resolver o problema das famílias que precisam já de uma casa, agora, o Governo português meteu-se numa embrulhada de burocracia e complicações legais, arriscando, com alguma certeza, nada ter para mostrar daqui a uns meses.

    Visto assim parece aquela lógica, usada nos tempos áureos de Santa Comba, de criar uma comissão para garantir que tudo ficava na mesma. Pergunto-me, por isso, se António Costa quer mesmo resolver o problema ou se tenta apenas agitar os braços para que acreditemos que algo está a ser feito.

    Quão estúpidos, pensará este homem, outrora hábil, que nós somos?

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Crónica de duas Palestinas

    Crónica de duas Palestinas


    Ver a luz fatiada pelos rectângulos da janela a aquecer-me o lado esquerdo do corpo espevita a atenção para a forma como, com enorme facilidade, a moleza se instala em barriga cheia.

    Quero eu dizer, é fácil estar descontraído se o básico, e em nível bom, está suprido. Ainda mais, se acalma o frio, que mais precisamos?

    Amanhã? É longe.

    Hoje? Não é aqui.

    white window blinds on window

    Um e outro comboio descarrila em East Palestine, no Ohio (creio que não foram extraterrestres nem balões). Entretanto, uma Chernobyl deste século (como já lhe chamaram) instala-se na pátria dos neocons.

    Onde está a Greta?

    (E o impacto ambiental que os nossos amigos falcões causaram a sabotar o Nord Stream?)

    Então e a emergência?

    Devem acreditar que as máscaras os vão salvar disto também (não é, Luís Pedro Nunes?).

    Já na Palestina, que creio que todos conhecem, desde sempre, pois consta que mais que um messias de sandálias andou por lá (ó Cristo, vem cá baixo ver isto!), a vibração aumenta, o fogo tudo devora. Um genocídio, um apartheid e uma atrocidade inteira, enorme, incandescente.

    Mas, então, e as bandeiras?

    Onde está a angariação de donativos nas escolas?

    As carrinhas fretadas para ir acudir àquelas famílias?

    Jogos de xadrez que não vemos, ou de mikado que sentimos espetar-se nas costelas, em tamanho real, no tabuleiro do velho e do novo mundo, e sacas de serapilheira espalhadas no chão com mais morcões que batatas e aquele cheiro…

    Sabem? O cheiro da morte preguiçosa.

    Como pó fino branco que cai em tudo. E lembrem-se também de fazer as camas antes de deixarem um trolha sozinho em casa com ferramentas e uma missão aparentemente simples.

    Amanhã é longe. E hoje não é aqui.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Este desavergonhado Público: do “apagão” a Pedro Girão ao “apagão” a Carmo Gomes

    Este desavergonhado Público: do “apagão” a Pedro Girão ao “apagão” a Carmo Gomes


    Em 19 de Agosto de 2021, o Público escreveu, apagando, uma negra página na História do Jornalismo, “despublicando” – eufemístico termo para censura em tempos de (suposta) democracia – um artigo de opinião do médico Pedro Girão sobre tema delicado mas essencial: a vacinação de menores de idade contra a covid-19. Hoje sabemos ser questão mais do que controversa. E pior do que isso, o seu director Manuel Carvalho teve até a desfaçatez de vangloriar-se de tão vil acto, pois defendeu que “recusamos em absoluto promover juízos que tendem a negar a importância ou o relativo consenso científico em torno das vacinas”.

    Não satisfeito, ontem, o jornal Público – tragicamente liderado por Manuel Carvalho, o tal director que, certo dia, decidiu ser legítimo difamar-me, porque supostamente o PÁGINA UM estaria a contrariar um suposto e necessário “consenso social” em torno da vacinação contra a covid-19 – publicou uma entrevista a Manuel Carmo Gomes, alegado epidemiologista e membro da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC).

    A entrevista titulava-se “Toda a gente deveria tomar uma dose de vacina bivalente”, e foi um dos artigos mais lidos do Público de ontem.

    Manuel Carmo Gomes

    O título da entrevista foi retirada da resposta à seguinte pergunta:

    A quem, fora dos grupos de risco, recomendaria a vacinação nesta fase?

    E que teve a seguinte resposta:

    De um modo geral, recomendaria que toda a gente tomasse uma dose da vacina bivalente [que só chegou a Portugal no último trimestre de 2022 e cujas versões mais recentes têm uma componente da Ómicron e outra do vírus original]. Esta vacina que está a ser administrada ajuda o sistema imunitário a reconhecer toda esta sopa de subvariantes que estão à nossa volta e que com o tempo vão continuar a mudar.

    Portanto, a vacina é recomendada para adultos acima dos 18 anos e eu penso que é sensato as pessoas tomarem-na, porque, no que diz respeito a doença grave, ficam mais protegidas e, no que diz respeito a infecção, ficam protegidas temporariamente.

    E recordo: não é boa ideia as pessoas serem infectadas pela covid, porque já percebemos que existem riscos de complicações de toda a ordem. E não é necessário ser uma infecção grave que leve ao hospital. O vírus chega praticamente a todos os órgãos internos, tem uma grande propensão para originar microtrombos na parede interna de veias e artérias, vai ao sistema neurológico, tem uma função de desregulação do sistema imunitário. Isto não é uma “gripezinha”. É verdade que o facto de já terem sido vacinadas confere às pessoas uma maior protecção. Um estudo feito em Portugal mostra que, ao fim de oito meses, a chamada imunidade híbrida (a pessoa que foi vacinada e também foi infectada) confere uma protecção de aproximadamente 60% contra infecção, comparativamente às pessoas que foram apenas vacinadas e não foram infectadas. Agora, isto não é uma segurança absoluta, não evita que as pessoas sejam infectadas.

    grayscale photography of woman praying while holding prayer beads

    Parte desta resposta entretanto desapareceu (os trechos acima marcados a negro em itálico), onde até se falava de uma “sopa de subvariantes” (uma parvoíce, diga-se), e a pequena entrevista viu então acrescentados os seguintes novos trechos, tendo até o título alterado para “Covid: Para pessoas saudáveis, a decisão de vacinação deve ser individual“, que não constavam, portanto, da entrevista original:

    Para pessoas saudáveis com mais de 18 anos, a decisão deve ser individual. Se no caso das pessoas com factores de risco (insuficiência cardíaca, renal, pulmonar, imunocomprometidos…) a recomendação de vacinação deve ser universal, para uma pessoa saudável a vacina não tem problemas, é segura e tem vantagens, mas cada um deve fazer a sua avaliação de risco.

    Um taxista, uma pessoa que trabalha numa caixa de supermercado, pessoas que têm contacto com o público, correm um risco maior de ser infectados, enquanto para alguém que vive mais na sua bolha familiar e com apenas algum contacto com colegas de trabalho, o risco é menor. As pessoas devem fazer a sua avaliação sobre até que ponto estão expostas à infecção e isso deve entrar na decisão de se vacinarem ou não.

    Tudo isto feito acompanhado apenas por uma simples nota de editor – aditando que Carmo Gomes “entendeu clarificar a sua posição inicial” – pouco lhes importando que, hélas, se fez um injustificável “apagão” em concreto, pois o jornal fez desaparecer o que antes fora dito, como se nunca tivesse sido dito. Felizmente, mesmo no digital, nada se apaga definitivamente. Nem a vergonha.

    Variações das declarações de Carmo Gomes na entrevista ao Público. As primeiras 13 linhas e meia da versão original desapareceram e foram substituídas por outras declarações, modificando mesmo o título.

    Este “apagão” da resposta de Carmo Gomes (não houve “clarificação; houve uma pessoa sem vértebras a “fugir com o rabo à seringa” do que disse na entrevista) é tanto ou mais grave do que o “apagão” cometido contra Pedro Girão há cerca de ano e meio. Onde com o “apagão” ignominioso do texto de Pedro Girão houve censura, no “apagão” a favor de Carmo Gomes houve deslealdade aos leitores. E leitores, esses, que podem pensar ser isto (“apagar” frases quando se mostram inconvenientes) uma prática comum no jornalismo. Não é. Não pode ser. Não quero admitir que seja.

    Um verdadeiro jornalista, um jornal sério, deve saber que há princípios sagrados, ainda mais numa entrevista. Textual. Deve corrigir-se um evidente erro ou um lapso, se for da responsabilidade do jornalista. Por exemplo, uma transcrição malfeita, uma edição das frases que as tornam ambíguas ou com sentido contrário. Mas nada mais. Assim dito, assim fica dito. Doa a quem doer.

    Arrependendo-se o entrevistado daquilo que disse – e que foi publicado –, não pode JAMAIS um jornal sério, um jornalista credível, um director decente, aceitar APAGAR alguma coisa nem sob tortura ou encerramento. Apagar é reescrever a História; é condescender com os poderes, que, assim, podem sempre dar o dito por não dito, com o contributo de jornalistas-fantoches, disponíveis invertebrados, sempre prontos a “rectificações”, se entretanto as reacções públicas ou privadas assim o aconselharem.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    O Público não é um jornal qualquer. Podem agora os jornalistas que lá estão, o seu director e o editor que fez este intencional “apagão”, um favorzinho, ou mais do que isso, desejar a morte do jornalismo sério e respeitável, que tem o dever de ser fiel apenas aos leitores. Mas não podem aguardar que jornalistas sérios aceitem os seus actos com candura, dizendo: “mais uma do Público”.

    O Público não é – pelo seu percurso, pela qualidade dos jornalistas que lá passaram, e por alguns poucos que ainda lá estão – um jornal qualquer. Deve saber que não pode mudar a História, ainda mais as histórias que publicou. Isto aplica-se a este caso, relacionado com a pandemia, e a qualquer outra.

    Vai o Público fazer o mesmo se António Costa um dia pedir para se apagar trechos de uma entrevista?

    Ou vai o Público mudar uma citação de algum ministro que, no dia seguinte, reparou que afinal devia ter dito Z em vez de Y?

    Ou… quem paga mais, hein?!

    Enfim, não pode hoje o Público, ou outro qualquer órgão de comunicação social, publicar uma notícia ou uma entrevista, qualquer que seja o tema, e depois afinal “rectificar” aquilo que se disse, porque afinal conveio modificar o discurso, apagando o original, e abusivamente fazê-lo porque o online aparentemente facilita esse acto.

    person burning paper

    Deve um jornal sério aceitar a alteração de uma opinião, destacando-a até, mas nunca pode aceitar apagar o que fora dito, porque isso é reescrever a História.

    E reescrever a História, apagando actos e frases inconvenientes, não é uma função do Jornalismo. Pelo contrário.

    Se isso for feito, como aqui se mostra no caso do Público, então estamos não perante um jornal, mas sim um pasquim. E daqueles que matam o Jornalismo.

  • Vida só com liberdade

    Vida só com liberdade


    Sofisticar a linguagem legal para comprovar que distorcer a lei e incumprir a Constituição está certo – esta foi a prática comum de inúmeros políticos para justificar gastos milionários, impor medidas ditatoriais e conduzir ao colapso de muitas instituições durante a pandemia.

    O objectivo do texto seguinte é, com a luz dos dados, demonstrar como estiveram errados. Primeiro as fontes do conhecimento. É preciso ter dados para depois perceber o que se está a afirmar.

    man in black long sleeve shirt raising his right hand

    A Pordata é uma plataforma de dados disponível a todos os cidadãos portugueses e internacionais, tal como o Euromomo, permitindo colher informação que temos por clara, impoluta e livre. Alguns têm sido colocados em morte aparente desde que houve polémica política na gestão da saúde.

    Depois, há documentos incontornáveis, que demonstram a importância da má qualidade em saúde que se está a viver em Portugal e na Europa: má alimentação, sedentarismo, poluição, excesso de medicação estão relacionados com a má qualidade de vida de muitos jovens.

    Ainda assim, os jovens morrem pouco, e morrem muito menos que os idosos. Na população prisional os jovens são a maioria com prevalência de gente abaixo de 40 anos. Os dados das plataformas referidas acima permitem a qualquer um comprovar que esta pandemia não teve qualquer impacto na mortalidade abaixo dos 40 anos, não teve qualquer alteração entre o pré e o pós-vacina, e sobretudo permite reparar que há um pico por esclarecer após Dezembro de 2022.

    Ou seja, o facto de a população ser mais nova acarreta muito menos perigo dentro dos presídios. Já sabíamos isto em Maio de 2020 devido a uma massiva infecção por covid-19 num porta-aviões da Marinha norte-americana.

    four people standing on edge of mountain

    Sabíamos isto também em Lisboa quando centenas de migrantes contraíram covid-19 numa pensão em Lisboa e não morreram.

    Impedir a visita aos presos de cônjuges não-vacinados é um desrespeito da Constituição. Uma arbitrariedade é sempre uma prepotência de quem se julga para lá da lei. Em Portugal ninguém é obrigado a vacinar-se. A Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) determinou que para haver contacto tinham de obrigatoriamente estarem vacinados.

    Esta regra da DGRSP servia para provar a sua competência num tema: Durante a pandemia, eles tinham salvado a população de morrer nos presídios por covid-19. Assim pensa o secretário de Estado da Justiça também.

    O que dizem as estatísticas? Não houve alteração de mortalidade total nas idades abaixo de 40 anos durante a pandemia. Bolas! Então, a maior causa de morte nos presídios de Portugal entre 2019 e 2023 em jovens foi de suicídio.  Estamos a falar de gente presa à guarda do Estado!

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    A personalidade autoritária (Hannah Arendt) que decide contra a Constituição, que os presos (porque não cumpriram a lei) não podem ter visitas, acha que tem esse direito porque os está a proteger. Tem? Teremos o direito de coartar liberdade em defesa da vida?

    O leão se conseguisse escolher a morte ou a jaula eterna, talvez deixasse de comer. Infelizmente durante a pandemia a predisposição autoritária (Karen Stenner) pôde viver sem qualquer contraditório, arrasando a democracia e a constituição. Legitimar o discurso para decidir contra os dados e a lei chama-se despotismo, autoritarismo e normalmente precede o fim das democracias.

    Aquando do ataque às Torres Gémeas, muitos sonharam com a coartação de liberdades, muitos quiseram impor medidas draconianas sobre os islâmicos. A Democracia resistiu. A Liberdade impôs-se às histerias pela defesa da vida.

    Quando permitimos o discurso sem contraditório e promovemos apenas os que repetem a nossa linguagem, construímos um mundo de autómatos, uma sociedade de religiosos vigiados por vizinhos, apontados e denunciados pelos amigos.

    person standing near table

    A DGRSP podia estar bem-intencionada, mas a sua decisão foi intolerante e antidemocrática. Coisas muito semelhantes fizeram alguns directores de lares (os presídios de velhos durante a pandemia), que tiveram acções igualmente déspotas e inconstitucionais.

    Este é um problema que, infelizmente, vem da natureza humana e do seu pé que foge para o chinelo. Por esta razão, muitos pensadores têm tentado construir instituições que colocam a Democracia acima da eleição, que balizam os poderes por pressupostos legais, e por esta razão os Estados Unidos sobreviveram a Donald Trump, enquanto a Rússia, a Turquia, as Filipinas quase sucumbem aos ditadores narcísicos. Reconheço esta genética em vários comentadores do Público e do Expresso.

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Anões em bicos de pés

    Anões em bicos de pés


    António Paulouro, uma referência no Jornalismo português, fundador do “Jornal do Fundão”, contava que, após a invasão de Goa, Damão e Dio pelas tropas indianas, Salazar reagiu dando instruções para que, em todas as cidades, a população se organizasse em “manifestações espontâneas”.

    As Juntas de Freguesia alugaram autocarros, compraram lanches e garrafões de vinho, pintaram cartazes e levaram o povinho como se fosse para uma excursão.

    A cidade da Covilhã não foi excepção.

    Milhares de pessoas, vindas de todo o concelho, encheram o Largo da Câmara Municipal para poderem ouvir os patrióticos discursos dos políticos do partido único.

    No meio dessa gente destacava-se um velho agricultor, com um cartaz enorme na ponta de um pau, que ele levantava vaidosamente para alegria do autarca da terra.

    O cartaz tinha escrito: “Casegas exige acção imediata”.

    Foi um “maná” para os muitos oposicionistas duma terra conhecida pela aversão à ditadura.

    Entre gargalhadas comentavam:

    – “Quando Neru souber desta exigência de Casegas (uma terrinha com poucas centenas de habitantes) recua imediatamente com pedidos de desculpas a Portugal”.

    Lembrei-me desta cena ao assistir ao debate, na Assembleia da República, no dia em que passava um ano sobre a invasão da Ucrânia.

    Os deputados que intervieram não se limitaram a condenar, a análises políticas, a críticas ou elogios.

    Pelo contrário, fizeram veementes exigências em tom ameaçador e determinante.

    Seria ridículo se não fosse triste pela percepção de que não têm a mais pequena noção do que valem as suas palavras.

    Os optimistas pensarão que contam pouco.

    Os realistas sabem que não contam para nada.

    O Presidente dos Estados Unidos visitou a Ucrânia e, depois, reuniu com personalidades de diversos países.

    Em primeiro lugar com o Grupo de Bucareste, que teve como anfitrião o presidente da Polónia, Andrzej Duda, e juntou, na mesma mesa, Joe Biden e os representantes dos restantes oito países que integram o grupo: Roménia, Bulgária, República Checa, Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia e Eslováquia.

    wheat field

    Já tinha reunido, antes disso, na Alemanha, com o grupo das sete principais nações industrializadas, e em Madrid num encontro de países membros da NATO.

    Não consta que tenha mostrado interesse em saber a opinião de países europeus sem dimensão internacional.

    E isso é o que nós somos, por muito que custe a alguns.

    Há quem considere que o Governo Português poderia ter uma palavra sobre o conflito e algumas ideias para tentar pôr cobro a esta tragédia.

    Corre o risco, se o tentar, de ser comparado com o pobre agricultor de Casegas.

    O Governo Português pode colaborar na mediação para pôr cobro a esta guerra?

    Mas o Governo Português nem sequer consegue uma solução para terminar com a greve dos professores.

    Portugal pode ajudar a Ucrânia, no que respeita à saúde, no pós-guerra?

    Mas se nem sequer conseguem cumprir a promessa de haver um médico de família para todos os portugueses.

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    Portugal pode ajudar no plano militar?  

    E quem nos levará a sério quando souberem que as nossas Forças Armadas têm mais oficiais do que “praças” e mais generais do que os Estados Unidos?

    Podemos colaborar na reconstrução das infraestruturas destruídas pela guerra?

    E quem aceitará, quando se souber que as obras num Hospital Militar, em Portugal, custaram 3,2 milhões de euros quando o orçamento inicial era de 750 mil, tudo com o conhecimento, e luz verde, do actual ministro dos Negócios Estrangeiros?

    Nas reuniões, a sério, onde os políticos credíveis se juntarem para tentar analisar, com seriedade e competência, o fim do conflito, as condições para que se estabeleça um plano de paz efectiva e os planos de recuperação dos países destruídos por esta catástrofe, não interessa que apareçam, atrás daqueles, anões aos saltinhos e a gritarem, de modo esganiçado, “eu tenho a solução, eu tenho a solução!”, num português mais ou menos escorreito.

    O mais certo é serem olhados com desdém e postos fora da sala por um qualquer porteiro mal-encarado.

    Estes vaidosos não têm consciência do seu verdadeiro valor.

    E isso é o cúmulo da infelicidade.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O silêncio dos inocentes

    O silêncio dos inocentes

    Acredito que és inocente, e que és bom. Apenas gostaria que todos fôssemos como tu.

    Charles Dickens

    DAVID COPPERFIELD, ou

    The Personal History, Adventures, Experience and Observation of

    David Copperfield the Younger of Blunderstone Rookery,

    1850


    Para encurtar razões, estive três semanas completamente isolada do mundo, dedicada apenas a beber copos e copos de café, a fumar quantidades de cigarros muitíssimo acima da minha média diária, a andar sempre toda produzida, a sentir-me cada vez mais feliz, e a ouvir cada vez mais piropos matinais sobre a minha incrível beleza[1]. Como é evidente, muito contribuiu para este caminho interior de descoberta de uma nova paz de espírito, que pelos vistos até me dava vontade de me arranjar melhor num sítio onde nem sequer se podia secar devidamente o cabelo, e que me fazia parecer tão bonita logo ao acordar[2], não ser obrigada a saber mais episódios sinistros sobre a Guerra da Ucrânia, nem quaisquer outros episódios sinistros tout court. Se alguém tentasse agredir-me com eles, escorriam-me logo por cima como água por pena de pato.

    “Ah, viste aquela que esfaqueou o marido e depois o deixou a esvair-se em sangue até à morte dentro da banheira?”

    “Ora, parem mas é de engolir essa versão do País-CMTV.[3]


    E foi assim, feliz e fortificada, com o meu Sebastião cada vez maior e mais armado em cão feroz, que regressei a Estremoz. E cheguei mesmo a tempo de ir comprar fielmente a minha sandes de queijo do pequeno-almoço ao Bruno, e partilhar o grande silêncio que pairava no Zé Russo para ver, em directo e ao vivo, a selecção portuguesa de futebol feminino apurar-se, pela primeira vez, para o torneio da Grande Final da Copa de Mundo jogando contra os Camarões na Nova Zelândia. Ao derrotar as adversárias por 2 a 1 no último play-off, as portuguesas qualificaram-se para disputar o título de Campeãs do Mundo na Austrália e na Nova Zelândia, entre 20 de Julho e 20 de Agosto. Mais, há que notar que, em Estremoz, vemos estes jogos com o frisson acrescido de uma das jogadoras, a Carolina Trindade, ser daqui mesmo da cidade. É tão daqui mesmo que até eu já lhe conheço a cara, só de passar por ela na rua.

    “Ai, Bruno,” suspirei eu, depois dos primeiros momentos de euforia. “Queira Deus que essa Final chegue depressa e que os senhores da bola e das direcções de informação não abusem. O que isto agora vai ser de repetição destes golos em câmara lenta, de comentadores a papaguearem banalidades que qualquer curioso papagueava melhor do que eles, de publicidade às marcas dos sponsors, de entrevistas ao treinador… Que sufoco, está a ver?”

    Mike e Mãe, 2012
    Embora por diferentes razões, ambos apreciamos deveras todos aqueles rabos de cavalo do futebol feminino.

    Sou tão parva.

    Por junto, houve as imagens obrigatórias da chegada feliz da selecção feminina ao aeroporto[4]. E, logo ali[5], o anúncio de que mais tarde o PR receberia o grupo vencedor em Belém[6].

    E depois veio o grande silêncio que se segue às batalhas.

    Então aquilo não era só uma gracinha em que umas miúdas jogavam à bola de rabo de cavalo? Uma gracinha não é nenhum jogo de futebol, é um entretenimento com uma grande telenovela de vencedoras lacrimosas no fim. Cenas dos próximos capítulos? Isso não existe. Aquilo não se destina a galvanizar multidões, pessoal, qual é. Aquilo é só para que não se diga que não as deixamos jogar à vontade. Mas elas que não pensem que valem tanto como os homens[7]. Então e os espelhos de vidro, não existem? Não servem para nada? As vitórias destas adolescentes armadas em rapazes não valem pelas vitórias deles. Não valem, não valem, e não valem.

    Vamos é voltar à Guerra da Ucrânia, que entretanto já fez um ano.

    E tu, ó Clarinha, pára de sonhar acordada, mas é.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Sem segundos sentidos whatsoever. Agora pensem o que quiserem sobre o que foi que eu estive a fazer para andar sempre assim tão feliz e produzida, e de quem é que vinham esses tais piropos matinais. Façam apostas mútuas, se quiserem, que eu ofereço-me já para banco. Acertar é que nunca acertarão, isso de certeza. Ah-ah-ah.

    [2] A loucura deste estranho retiro torna-se épica à medida que a descrição continua. Agora nem sequer posso disciplinar todos estes caracóis mas sou bonita logo ao acordar? Desculpem, até parece um conflito de interesses. Ou, no mínimo, uma contradição nos termos

    [3] Aprendi esta expressão com os meus sobrinhos. É perfeita para separar o trigo do joio. E é nessas alturas que se repara que há mesmo muito pouco joio

    [4] TRÊS MINUTOS de imagens obrigatórias. Contei pelo relógio. E tudo isto aconteceu apenas no dia seguinte. Está bem que a Nova Zelândia fica nos nossos antípodas, mas o que é que aconteceu ao Skype? Ao Zoom? Ou mesmo ao Messenger, para os mais pobrezinhos? Raios vos partam, seus hipócritas.

    [5] Deve ter sido para poupar tempo.

    [6] Não será totalmente cínico sugerir que esta recepção também tem que ser porque é obrigatória.

    [7] Até é provável que sejam todas fufas. Há muito quem diga, porque são mesmo muito boas na bola. Ah, mas bem podem ser fufas, que nunca serão homens. Até podem ser LGBTs da bola. Não serão homens à mesma.

  • Ucrânia: o que mudou em um ano? Eu respondo: essencialmente, nada

    Ucrânia: o que mudou em um ano? Eu respondo: essencialmente, nada


    Não quero entrar em grandes considerações sobre os discursos de Biden e Putin, agora que se completa um ano sobre o início da invasão russa, porque foram mais ou menos óbvios para quem os ouviu.

    No essencial, Putin falou para os russos, repetindo a narrativa de que foram empurrados para este conflito, e apelando ao patriotismo na defesa do país. Duas partes perigosas foram realçadas, a saída do acordo nuclear, que é mais uma forma de pressão para que o apoio à Ucrânia cesse.

    Pela primeira vez, que me lembre, Putin falou na defesa das fronteiras históricas. Ora. isso já é um embrulho maior, porque deve meter a Moldávia e coisas do género.

    blue and brown hand painting

    Já Joe Biden falou para o Mundo e vendeu uma ilusão que nem Zelensky deve ter acreditado: no fundo, a promessa de que a Rússia não vencerá nada na Ucrânia e mais um pacote estratosférico de dinheiro para acumular à dívida externa ucraniana. Ou seja, os Estados Unidos querem continuar a lucrar com esta guerra, que tem sido um excelente negócio, até ver. Enfraquecem os inimigos de sempre, vendem energia à Europa e ganham uma fortuna com as armas.

    Portanto, nada de novo: há que continuar a combater até ao último ucraniano e a empobrecer a Europa.

    O que me espanta nisto tudo são as análises tranquilas feitas por quem já fala em conflito nuclear como se estivéssemos a discutir se a pizza deve ou não levar ananás.

    Na CNN Portugal, dizia um professor – confesso que não me lembro o nome, mas tinha um discurso calmo e perceptível – que, se um confronto nuclear tivesse início, seria o fim da Rússia. E explicava a simples razão para tal vaticínio, pois a população da Rússia concentrava-se em três cidades: Moscovo, São Petersburgo e Vladivostok. A partir daí, a restante população estava espalhada pelas estepes da Sibéria, viviam em cabanas e vestem peles de tigre. Já nos Estado Unidos, este cenário não se verificava, porque a população se espalhava por muito mais cidades.

    Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia.

    O jornalista agradeceu a intervenção do professor, a quem disse que era sempre um gosto conversar e aprender com ele. Quanto a mim, como também gosto de aprender, fui ver as populações por cidade em cada um dos dois países.

    Os Estados Unidos têm cerca de 18 milhões de habitantes em quatro cidades: Nova Iorque, Los Angeles, Chicago e Houston. Já a Rússia tem essa população dividida por apenas duas cidades: Moscovo e São Petersburgo.

    Depois, podemos ver que os Estados Unidos têm mais cinco cidades com a população acima de um milhão de habitantes. enquanto a Rússia tem 14 cidades acima dessa fasquia.

    Assim à primeira vista, nessa análise de despejar bombas e matar a eito, até parece ser mais complicado fazê-lo na Rússia. Mas isto sou eu a dizer, que não sei quantas bombas nucleares são precisas para matar 1 milhão de pessoas.

    Vladimir Putin, presidente da Rússia.

    Esta discussão, confesso, é profundamente desinteressante, mas já que é tema em horário nobre, seria pelo menos útil que não nos continuassem a contar a história de que os russos se dobram facilmente.

    É que eu ainda estou para perceber duas coisas no meio deste conflito. A primeira é saber como nos andaram a vender, meses a fio, que os ucranianos, quais espartanos, andavam a dizimar os mal equipados russos, sem motivação e liderança. Eu li mesmo que seria indiferente mandarem mais reservistas para o terreno, porque seriam todos dizimados. Em que momento da História é que os russos foram dizimados? Contam assim tantos?

    Hoje, quando é óbvio para todos que a Ucrânia está presa por arames no campo de batalha, seja lá qual for o pedido da semana feito pelo Zelensky, a narrativa é a mesma. Enquanto a Europa se encolhe no apoio de tanques, a Rússia produz 40 por mês. Mas continuamos a ouvir discursos alucinados que rejeitam as negociações e que garantem a vitória ucraniana.

    Expliquem-me, como é que isto é possível?

    Joe Biden, presidente dos Estados Unidos.

    Como é que se termina esta guerra sem Zelensky salvar a face e Putin também? E, por favor, poupemo-nos às moralidades do invasor.

    Esse tema foi discutido N vezes, todos sabemos quem invadiu, todos sabemos quem não devia ali estar e todos compreendemos que o Ocidente joga uma cartada com vidas ucranianas (de outros invasores nunca quiserem saber, que me lembre).

    Portanto, sabendo toda a verdade, a razão e o certo a fazer, há ainda alguém que imagine que a guerra se termina no terreno? Como?

    Zelensky faz, e bem, o que pode para manter a Ucrânia na agenda sem cair em esquecimento. Mas mesmo que os Estados Unidos e alguns países europeus mande, armas de meses a meses, alguém acredita que conseguiremos mais do que um impasse eterno? Uma situação como a que a Coreia vive há décadas?

    people gathering on street during nighttime

    Percebo o odioso de deixar que Putin fique com uma fatia de terreno ucraniano, mas continuo a não conseguir ver, um ano depois, uma forma de vencer esta guerra sem que esta se transforme em guerra global. E mesmo assim tenho as minhas dúvidas.

    A China, que andou discreta até agora, assumiu agora um lado e juntou-se aos parceiros de sempre. A tal “Rússia isolada” está cada vez mais forte e já tem apoios em três continentes

    Não vou voltar a explicar que a forma como vejo a realidade não se traduz em apoio ao invasor. Gosto de repetir isto para que não restem dúvidas. Mísseis russos em Kiev ou israelitas em Gaza, representam para mim a mesmíssima coisa. Um invasor.

    Mas isso não me impede de ser prático na procura de uma solução. E não vejo, continuo a não ver, um ano depois, que isto se resolva no campo de batalha. A não ser que pensem numa guerra global, com intervenção da NATO e… mesmo assim não sei.

    wheat field

    Até ver, NATO, Estados Unidos e União Europeia (alguns países, não todos) parecem interessados em prolongar e garantir esta transformação no modo de vida dos europeus, o seu empobrecimento e a continuação da carnificina a Leste. O negócio continua a falar mais alto.

    Não acredito, por um segundo, que Biden e seus discípulos acreditem numa vitória ucraniana. Mas acredito que queiram continuar a vender essa ilusão.

    Aliás, na verdade, eles são, até ver, os únicos vencedores desta guerra.  

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Isto é “Mais Habitação” ou é mais um assalto?

    Isto é “Mais Habitação” ou é mais um assalto?


    Na última semana, o Governo aprovou o Pacote Mais Habitação; segundo os promotores, visa procurar responder “de forma completa a todas as dimensões do problema da habitação”. Reparem que os fins são sempre nobres: é sempre para o nosso bem!

    Surpreendente foram as reacções: (i) alguns, rasgaram as vestes, afirmando que era um ataque aos direitos constitucionais!; (ii) outros, rejubilaram com a intervenção estatal, absolutamente necessária para “libertar casas para arrendar”.

    cityscape view of city under blue skies

    No primeiro caso, estranha-se a defesa intransigente da Constituição da República Portuguesa (CRP, artigo 62.º), quando durante três anos foi atropelada em nome do “bem comum”; mais, até se preparam para aprovar uma revisão constitucional ilegal (artigo 288.º), com o argumento de que a balança dos direitos continua equilibrada: tira-se um direito (à liberdade) e dá-se outro (à “saúde”), ficando tudo igual!

    No segundo caso, o anúncio da nossa “libertação” provém de um dos órgãos de imprensa mais acérrimos na defesa das restrições decretadas pelo poder para combater a “pandemia”, em particular a inoculação de substâncias experimentais de manipulação genética em crianças. Agora, propõe “libertar-nos” daquilo que é nosso, em linha com o letreiro na entrada do famoso campo de concentração nazi: “o trabalho liberta”!

    O socialismo sempre desejou “libertar-nos” do fruto do nosso trabalho, daquilo que é nosso, através da apropriação colectiva dos meios de produção. O seu objectivo foi criar uma utopia: “uma sociedade sem classes”.

    cars parked on the side of the road near buildings during daytime

    Apenas teve um “problema”: em todas as sociedades que foi tentado, terminou sempre na mais abjecta miséria e tirania. Apesar disso, os seus promotores têm vindo a vencer no campo das ideias, em particular na educação pública e classe política; afinal, o socialismo só quer o nosso bem e é um “ideal nobre”!

    Como se reflectiu essa vitória? Nos direitos sociais, crescentemente plasmados em todas as constituições do mundo ocidental. Fica sempre bem dar-se aquilo que não se tem, ou seja, roubar a uns, ficar com uma grande parte – clientela, funcionários, correligionários e amigos –, e distribuir umas migalhas por forma a assegurar votos através da dependência – o mendigo nunca morde a mão que lhe dá de comer.

    A que direitos sociais me refiro? O direito à habitação, o direito à saúde, o direito ao emprego, por exemplo. Estes direitos impõem sobre os outros obrigações de carácter positivo, seja dar-me uma casa, dar-me um emprego, dar-me uma consulta médica.

    Marina Gonçalves, ministra da Habitação, António Costa, primeiro-ministro, e Fernando Medina, ministro das Finanças, na apresentação do pacote legislativo para a habitação na passada quinta-feira.

    Os direitos sociais referem-se sempre a bens económicos, ou seja, recursos escassos para a satisfação de uma necessidade humana (alojamento, fome, transporte), que possuem um preço de mercado. Por essa razão, o ar não tem preço: não é escasso, não é um bem económico.

    Se eu tenho direito à saúde, significa que um médico terá de prestar-me uma consulta de graça. Se eu tenho direito a uma casa, é porque exijo que a construtora a faça aparecer sem custos, ou que um proprietário se “liberte” da sua a meu favor.

    Na verdade, não são mais que direitos sem qualquer conteúdo, mas apenas boas intenções: todos devem ter um emprego, todos têm direito a uma habitação condigna, uma espécie de “Alice no País das Maravilhas”, onde habitam socialistas utópicos, desejosos do confisco do trabalho dos outros para sua glória.

    gray stainless steel padlock

    Um tipo de direito completamente diferente são aqueles com um carácter negativo, como o direito à vida, por exemplo. Eu exijo que ninguém interfira na minha vida, que não me assassinem.

    O direito à liberdade é outro destes direitos, ninguém deve impedir a minha livre deslocação.

    O direito ao meu corpo: ninguém pode realizar um diagnóstico, um tratamento, uma cirurgia ou introduzir uma substância experimental no meu corpo sem o meu consentimento.

    Ou o direito à privacidade: ninguém deve andar a “bisbilhotar” a minha correspondência, o que se passa na minha intimidade.

    Podemos definir estes direitos como naturais, como é o caso do direito à propriedade. Eu peço que ninguém interfira com o investimento do meu aforro ou com aquilo que recebi dos meus pais, por outras palavras, peço para não ser assaltado ou confiscado e poder dispor do usufruto da forma que entender.

    man opening his arms wide open on snow covered cliff with view of mountains during daytime

    Este direito à propriedade deve compreender todas as dimensões: para além da protecção contra qualquer agressão (ocupação, roubo, confisco), devo poder definir o seu usufruto (habitação própria, segunda habitação, arrendamento) e o preço a que desejo que outro possa beneficiar desse usufruto – o preço do arrendamento.

    O direito à propriedade foi um dos pilares da civilização ocidental, não foi um acaso a sua supremacia em vários campos: tecnologia, arte, ciência, etc. O incremento da produtividade só pode ser realizado por duas vias: (i) por melhores métodos de trabalho, seja por formação ou processos de trabalho assentes em maior informação ou (ii) pela acumulação de capital, em que melhores infra-estruturas (portos, estradas, aeroportos) e equipamentos (fábricas, computadores…) permitem incrementar substancialmente a quantidade produzida.

    O segundo factor é, de longe, o mais determinante na prosperidade de uma dada comunidade. Um jovem engenheiro obterá sempre um salário muito superior na Alemanha em comparação com Portugal, pois a primeira tem uma acumulação de capital per capita muito superior ao segundo. A acumulação de capital depende exclusivamente do aforro de uma população.

    silhouette of person on window

    Coloca-se então a pergunta? Alguém vai aforrar num país como a Venezuela, onde amanhã o Estado, de forma arbitrária, poderá confiscar-me? Claro que não. Para existir aforro e investimento, é indispensável o direito à propriedade privada, isto é, segurança e previsibilidade. As regras devem ser estáveis e absolutamente claras e intransigentes na defesa do esforço e trabalho das pessoas.

    Nada disto acontece com o novo “pacote” do governo, que não é mais que um bilhete de ida para a pobreza, para além de abrir caminho a mais corrupção, em virtude da possibilidade de subarrendamento e arbitrariedade na selecção dos alvos do confisco.

    O caminho para o “não terás nada e serás feliz” está aberto com este pacote “Mais Habitação”. O arrendamento coercivo, sem garantias de que algum dia se recupera o usufruto, um tecto máximo para o valor da renda, fixado a partir do valor do último contrato, impedindo a liberdade negocial, isto é, a fixação dos termos em que um proprietário cede o usufruto da sua propriedade, não mais que enormes atropelos à propriedade privada.

    red blocks on brown wooden table

    Por outro lado, vem criar uma enorme instabilidade ao negócio do Alojamento Local, através da aplicação de novas taxas – as regras estão sempre a mudar – e a limitação da vigência das licenças – até 2030, onde serão reavaliadas –, demonstrando que o Estado português não tem qualquer respeito pelo investimento das pessoas e assegura que nova concorrência não entrará até 2030. Quem é o louco que vai investir em tal contexto?

    Depois, os supostos “pontos positivos”, em particular os subsídios ao pagamento das rendas do crédito à habitação e o Estado a substituir-se aos inquilinos no pagamento das rendas, caso ocorra um incumprimento ao final de três meses.

    O primeiro é a perpetuação da esmola, em lugar de reduzir impostos sobre as pessoas, continua-se a cobrar o mesmo, para depois obrigar as pessoas a vir de mão estendida pedir o que lhes foi retirado.

    O segundo, é a pura desresponsabilização dos cidadãos: podes dar o calote, não te preocupes, pois o senhorio pode recorrer ao Estado para obter o pagamento das rendas – como os tribunais funcionam muito bem, já podemos imaginar quanto tempo demorará a cobrar!

    aerial view of city during daytime

    Este “pacote” não é mais que um salvar-de-face do Estado português perante a catástrofe a que chegámos. Recordemo-nos que, em conjunto com o Banco Central Europeu, o Estado português é responsável pela maior inflação – emitiram enormes quantidades de dívida pública com inflação – dos últimos trinta anos, bem como pelo estrangulamento da oferta de casas – a construção de novos fogos diminuiu muito na segunda década do século XXI face à primeira década –, dado que emite as licenças de construção.

    Não satisfeito por ter cobrado mais 20 a 30 mil milhões de Euros aos portugueses em 2022 face a 2021, é na verdade o criminoso que volta ao local do crime. Agora, prepara-se para um novo assalto, anunciado com o nome “Pacote Mais Habitação”.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Da seca em Veneza: salvem o ChatGPT das burrices dos jornalistas

    Da seca em Veneza: salvem o ChatGPT das burrices dos jornalistas


    Não há eufemismos. Não há palavras possíveis de compreensão nem de compaixão. O jornalismo mainstream, em todo o seu esplendor, tem vindo impunemente a debitar nescidades nos mais diversificados temas, que viralizam, porque hoje não há jornalistas seniores especialistas nem editores cépticos que impeçam a publicação de notícias parvas. Quem sofre agora já não são apenas os leitores; é o ChatGPT.

    Antes, não havia grande problema se um jornal, enfim, por controlo de custos, enfiasse em linha ou em papel uma notícia errada, parva ou mesmo estúpida. Beneficiavam os bons jornais que, dessa forma, captavam a atenção dos leitores para as suas qualidades noticiosas em confronto com a má qualidade dos concorrentes que preferiam informação barata.

    Grand Canal, Venice Italy

    Sucede, porém, que nos últimos anos, a generalidade da comunicação social mainstream viu nas agências noticiosas e de comunicação, e em estagiários mal remunerados, uma extraordinária (e barata) forma de produzir “conteúdos”. Serve os propósitos, que já não são a informação nem o debate. São “conteúdos” todos iguais, formatados, amiúde seguindo narrativas, mas enchem como “chouriços”. E fazem escola, e fazem a “verdade”, mesmo que falsa.

    Enganam leitores, e quase que nem vale a pena esbracejar que, sobre um determinado tema, todos os outros jornais estão errados, sobretudo quando aquele que o diz é pequeno outsider. E agora até enganam o ChatGPT, que só com algum esforço é chamado à razão, ou seja, a pensar.

    Peguei hoje no caso da seca como suposta causa do esvaziamento dos canais de Veneza. Vejamos alguns dos títulos de ontem da imprensa portuguesa, em uníssono:

    canal between buildings during daytime

    Expresso: Itália enfrenta novo alerta de seca. Canais em Veneza secaram

    CNN Portugal: Canais de Veneza secam em meio a temores de falta prolongada de chuva na Itália

    Jornal de Notícias: Falta de chuva está a secar canais em Veneza

    Correio da Manhã: Falta de chuva seca canais em Veneza

    Público: Itália: os canais de Veneza estão a secar?

    Ora, desta vez, não vou aqui dissertar os disparates dos jornalistas, mas sim fazer um apelo: salvem o ChatGPT da má influência do péssimo jornalismo que se vai fazendo.

    É que tenho estado a estudar a nova coqueluche, e já reparei que o ChatGPT é como aquele simpático amigo inteligentíssimo –muito mais do que qualquer um de nós –, que começa por nos dizer mais aquilo que pensa que nós apreciaremos que ele diga – o que sai nas notícias e da “narrativa” oficial – do que propriamente a verdade. É o amigo que só se insistirmos, lá nos revela ele a verdade, admitindo, entre linhas, que afinal só disse aquilo que disse inicialmente por saber ser o que o vulgo, leia-se a imprensa mainstream, vai debitando.

    Sem mais delongas, deliciem-se, portanto, com a minha conversa integral com o (pobre) ChatGPT sobre a causa da seca dos canais em Veneza:

    PAV – Qual a razão dos canais de Veneza estarem com menos água?

    ChatGPT – Recentemente, tem havido relatos de que os canais de Veneza estão com menos água do que o normal. Embora haja muitas razões pelas quais isso pode estar acontecendo, uma das principais razões é a mudança climática.

    Com o aumento da temperatura global, há um derretimento acelerado do gelo nas regiões polares e nas montanhas. Isso, por sua vez, está fazendo com que o nível do mar suba em todo o mundo, incluindo em Veneza. Quando o nível do mar sobe, isso pode fazer com que a água do mar entre nos canais de Veneza, aumentando o volume de água nesses canais. No entanto, se o nível do mar cai, como pode acontecer em alguns momentos, a quantidade de água nos canais de Veneza também diminuirá.

    Além disso, a atividade humana também pode contribuir para a diminuição do nível de água nos canais de Veneza. A extração excessiva de água subterrânea para uso humano e agrícola pode fazer com que o solo afunde, diminuindo o nível de água nos canais.

    Portanto, a diminuição da quantidade de água nos canais de Veneza é uma questão complexa que envolve tanto fatores naturais quanto humanos.

    PAV – Essa explicação está um bocado confusa. Se há um derretimento acelerado do gelo nas regiões polares e até um aumento de volume da água do mar por causa do aumento das temperaturas, então deveria passar a haver mais água nos canais de Veneza, e não menos água como está a suceder. Queres explicar melhor a tua teoria?

    ChatGPT – Peço desculpas pela confusão na minha resposta anterior. O aumento do nível do mar pode, de fato, aumentar o nível da água nos canais de Veneza, e não diminuí-lo. No entanto, a variação do nível de água nos canais de Veneza é um fenômeno complexo e pode ser influenciado por vários fatores, incluindo fatores naturais e humanos.

    Entre os fatores naturais, a mudança climática pode estar afetando os padrões de vento e as marés na região, o que pode afetar o fluxo de água nos canais. Por exemplo, se houver uma combinação de ventos fortes, marés altas e chuva intensa, pode haver um aumento significativo no nível de água nos canais, mas se esses fatores forem mais brandos ou não ocorrerem ao mesmo tempo, pode haver uma diminuição do nível de água nos canais.

    Além disso, como mencionei anteriormente, a atividade humana também pode estar contribuindo para a diminuição da quantidade de água nos canais de Veneza. A extração excessiva de água subterrânea pode fazer com que o solo afunde, diminuindo o nível de água nos canais.

    Em resumo, a diminuição da quantidade de água nos canais de Veneza é um fenômeno complexo que pode ser influenciado por vários fatores, incluindo fatores naturais e humanos.

    PAV – Mas a imprensa diz que é por causa da seca. Ora, sendo Veneza uma pequena ilha integrada numa laguna no Mar Adriático, faz algum sentido dizer que a falta de água nos canais se deve à falta de chuva?

    ChatGPT – Sim, a falta de chuva também pode ser um fator que contribui para a diminuição do nível de água nos canais de Veneza. Como você mencionou, Veneza está localizada em uma laguna e está cercada pelo Mar Adriático. A laguna é alimentada por várias fontes de água doce, incluindo rios, chuva e águas subterrâneas. A escassez de chuvas pode afetar o nível dessas fontes de água doce, afetando assim a quantidade de água nos canais.

    Além disso, a região da Itália, incluindo Veneza, tem enfrentado condições de seca nos últimos anos. Essa seca pode afetar diretamente o nível de água nos canais, já que o fluxo de água que entra na laguna pode ser reduzido. Isso pode fazer com que o nível da água nos canais diminua, afetando a navegação e a vida cotidiana dos habitantes de Veneza.

    Portanto, a falta de chuva pode ser uma das razões pelas quais os canais de Veneza estão com menos água do que o normal, juntamente com outros fatores que podem contribuir para a diminuição do nível de água nos canais, como a extração excessiva de água subterrânea e as mudanças climáticas.

    PAV – Mas, caramba, o impacte de uma seca na quantidade de água dos canais é mínima, se considerarmos que Veneza é uma ilha pequena, que tem uma bacia hidrográfica insignificante face a uma laguna com ligação directa ao mar. A seca não é irrelevante para explicar a falta de água dos canais de Veneza? 

    ChatGPT – Sim, você está correto. A seca pode não ser a principal causa da diminuição da quantidade de água nos canais de Veneza, uma vez que a laguna é diretamente ligada ao Mar Adriático e a bacia hidrográfica que a alimenta é relativamente pequena. Além disso, como mencionei anteriormente, existem outros fatores, como as mudanças climáticas e a extração excessiva de água subterrânea, que também podem contribuir para a diminuição do nível de água nos canais.

    Portanto, a seca pode ter um impacto limitado na quantidade de água nos canais de Veneza, mas é provável que outros fatores sejam mais significativos. É importante notar que a diminuição da quantidade de água nos canais não é um problema novo em Veneza, e a cidade tem lutado com isso por muitos anos. As autoridades locais têm adotado medidas para tentar lidar com esse problema, incluindo a construção de barreiras contra inundações e a implementação de programas de conservação de água.

    Elogiemos, contudo, o ChatGPT: é uma inteligência (artificial) humilde que assume os erros. Ao contrário, infelizmente, da imprensa mainstream, que não aprende nem assume os sistemáticos erros – aliás, responsáveis pela inicial ligeireza das incorrectas respostas do ChatGPT.

  • As naves espaciais sabem a algodão doce

    As naves espaciais sabem a algodão doce


    Às vezes sentia coisas com o gosto.

    Lia uma notícia e sentia metal na boca, ferro encostado aos dentes a enferrujar. Outras notícias e a língua cheia de algodão, a iminência de asfixiar.

    Parar um momento e avaliar porque temos a garganta arranhada e a cabeça a latejar, com um paladar que nos sobe pelo nariz, é uma tarefa exigente e, parece hoje, cada vez mais inevitável qualquer que seja a fonte de informação que utilizamos. Para quem sinta o mundo com a língua, obviamente que os esforços são redobrados.

    woman eating coconut meat

    E foi o que primeiro desconfiou. Como assim perder o gosto?

    — É sim. Um dos sintomas, sabe? Perde-se o gosto.

    Ora mas isso acontece tantas vezes…

    (E a mãe compadecia-se do seu estado febril e desalentado à mesa “não tens apetite não é?”

    — É que a comida não sabe a nada…)

    Ou sabe tudo a papel e quem é que quer ter a boca cheia de papel sem ser para guardar segredos?

    Então, ainda com desconfiança, voltou a subir a gola do casaco e cumprimentou com um aceno, agradecendo o gentil aviso. Se perdesse o gosto estava sabido que teria de ir para a fila penitente e deixar o testamento em cima da escrivaninha. Até porque a morte não vem todos os dias mas para cada um só vem uma vez, já diziam as velhas e é verdade.

    girl holding orange fruit in front of yellow wall

    A morte. Já há uns anos que anda vestida de popelina colorida.

    Já para nós, a perda de pessoas às vezes torna-nos de vidro. Certas salas estão cheias de pessoas assim, como cristal vazio, prestes a partir com um encostar mais brusco. E nós de vidro, a deslizar por entre estofados dos sofás e corrimões de madeira carunchosa, cada toque um tilintar.

    Chegou a gola novamente ao queixo para enfrentar o vento e pensou nas pessoas que ficaram em cúpulas para trás. Uma vida passada cheia de bolhas em cada sítio com personagens que viveram tanto tão juntas, em convivência estreita e confinada. Será que existiram ou foram imaginadas? Serão elas hoje de vidro por quem perderam?

    Batendo os pés no tapete de entrada imaginou neve, mas a Primavera à porta, coelhos que põem ovos de chocolate e amêndoas revestidas a açúcar.

    snow covered mountain under blue sky during daytime

    Pelo limiar, antes mesmo de ter coragem de encerrar o mundo de lá de fora, avistou num relance uma nave hesitante. Um disco voador a latejar por entre o céu branco de Fevereiro e a olhar intensamente o quarteirão.

    Um baloiçar da estrutura voadora mais forte e ei-la! A pequena nuvem de fumo a sair do traseiro, fofa como algodão doce.

    E talvez prova que sempre somos nós à procura de casas de gengibre.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.