Categoria: Opinião

  • O apodrecimento da democracia

    O apodrecimento da democracia


    Quando analiso a situação política portuguesa, começo a idealizar cenários para o futuro e caio em profunda depressão.

    Os comentadores políticos insistem em que o actual Governo está ferido de morte, devido às inúmeras trapalhadas em que se meteu, e que, numas prováveis futuras eleições antecipadas, é possível a criação de uma nova “geringonça” mas, desta vez, de direita.

    A acontecer, garantem, o líder do PSD seria o novo Primeiro-Ministro com a necessidade de uma coligação que incluiria o partido Chega.

    Ora, sabemos as exigências dos responsáveis (?) deste partido.

    Aceitam participar na condição de lhes serem entregues várias “Pastas”, com a da Justiça à cabeça.

    Este simples facto deveria deixar qualquer português com insónias.

    Aceitar que a Justiça fique nas mãos de um ministro militante de um partido que defende a “castração química”, a “prisão perpétua” e a “pena de morte” é impensável num país europeu e que se quer democrático.

    É sabido que todos os populistas se julgam isentos de pecado, e candidatos a uma santificação ou, no mínimo, a uma canonização.

    Garantem ser pessoas que não falham. Que não podem cometer um delito.

    E o mesmo com os seus familiares e amigos.

    Explicar-lhes, por exemplo, que uma distração ao volante de um automóvel pode resultar num acidente grave, ou até num atropelamento mortal a ser considerado homicídio por negligência, é considerado insultuoso.

    person hands with black liquids

    Jamais lhes poderá acontecer porque são, sempre, respeitadores de todas as regras e nenhum imprevisto os pode levar a erros desses.

    E porque pensam estar no patamar superior da raça humana sentem-se no direito de condenar quem prevarica a viver o resto da sua vida numa cela, longe de tudo e de todos.

    Ou, mesmo, à morte.

    Para mais, tentam mostrar a sua “superioridade moral”, exibindo-se nas igrejas onde tentam cumprir todas as regras a que a religião obriga os crentes.

    Vão à missa, todos os domingos, recebem todos os sacramentos e citam, constantemente, o Papa.

    O mesmo Papa que, na Quaresma, lava os pés a doze presos.

    Não a doze deputados, não a doze ministros, não a doze padres, não a doze bispos.

    A presos.

    man in black long sleeve shirt raising his right hand

    E faz isso numa demonstração na esperança da reabilitação, e não, obviamente, para branquear qualquer crime que aqueles doze tenham cometido.

    O líder do partido a que me refiro disse, num debate durante a campanha eleitoral, que “não se perdia nada” se cortassem as mãos aos ladrões.

    O líder parlamentar do mesmo partido, disse, em pleno hemiciclo da Assembleia da República, quando do debate sobre uma proposta de perdão de penas e amnistia para pequenos delitos, que, para ele, “os presos deviam apodrecer nas cadeias”.

    Todos eles, presume-se.

    Sabemos que 7,6% desses são homicidas e que 7,8% estão detidos por serem detectados a conduzir veículos sem terem a respectiva carta de condução.

    Como acontece em todo o Mundo, alguns haverá que estão presos sendo inocentes.

    Para estes “políticos” portugueses são todos bandidos.

    barbed wire

    No nosso país há quem desvalorize estas frases porque consideram que os seus autores são uns imbecis.

    Eu sei que são, mas temo que, ainda assim, cheguem ao Poder.

    De qualquer modo custa ouvir alguém vomitar frases, carregadas de ódio, do tipo das acima mencionadas, em plena Casa da Democracia.

    Como nem no tempo da Assembleia Nacional, sequer durante o mais negro período do fascismo, se ouviu algum daqueles pulhas a dizer algo igual, é caso para perguntar se o que está a apodrecer, no nosso País, não é a Democracia.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O pássaro da sabedoria

    O pássaro da sabedoria

    Pelo sim, pelo não, vai rezando uma oração.

    Provérbio tradicional transmontano


    Quando estou a acabar os livros que demoraram muitos anos a escrever-se dentro de mim, acontece-me com alguma frequência deixar de controlá-los, porque começam eles a controlar-me a mim. Por exemplo, estou a arrumar a cozinha e sou subitamente atacada por uma frase que teria ficado muito melhor na abertura do terceiro capítulo da segunda parte. Outro exemplo, menos prosaico, é quando nem sequer consigo dormir: as pessoas dos papéis principais podem acordar no meu cérebro, podem entrar no meu quarto, podem invadir-me de imensas maneiras, mas o resultado é sempre o mesmo: estão a ter grandes conversas, zangam-se, riem-se, e eu, feita parva, por muito que não queira sou refém daquilo tudo. Desta vez, enquanto o deus do desejo tentava contar uma lenda à narradora, só espero que fosse mesmo tudo um sonho[1]; e que aquele sonho assinalasse o fim da escrita[2]. Senão só poderei concluir que enlouqueci mesmo[3]; e que, pior ainda, aquela escrita não terá fim[4].


    “Sabes”, disse ele, “gostava especialmente que me deixasses contar-te a história do jovem príncipe a quem o Pai, no seu leito de morte, ofereceu um pássaro chamado Angha Kouch, que trazia inscrita nas penas, em arabescos sagrados, toda a sabedoria do mundo.

    “Sabedoria essa que devia ser, então, muitíssimo maior do que a nossa.”

    “Miúda, tu és lixada. Até a rapidez do teu raciocínio me dá tesão.”

    “Pois, mas também já se percebeu que a ti tudo te dá tesão, o que não é minimamente surpreendente considerando o que fazes na vida. A sabedoria do mundo só podia ser muito maior, uma vez que as pessoas tinham muito mais tempo, muito mais espaço, e é certo que também tinham muito mais servos e escravos, mas isso são contingências culturais. O que interessa é que as pessoas tinham imenso campo aberto para o jogo infinito de tentar vislumbrar o que virá a ser possível. Alguém tem que devorar alguma biblioteca para ser rápido nisto?”

    “Não, não tem,” respondeu-me ele mansamente. “Mas olha que tu vês incrivelmente bem no escuro, mulher.”

    “E é com esse género de conversas que tu costumas despertar o nosso desejo, grande kizombeiro?”

    “Bom, as outras mulheres…”

    “Eu não sou as outras mulheres. Conta-me lá a história do Príncipe e do Pássaro, vá. Adoro histórias.”

    “Então, depois da morte do Pai, o jovem estudou as penas do Angha Kouch com tanto afinco, durante a vida inteira, na paz dos seus jardins, que chegou à perfeição dos homens realizados.

    “E foi muito feliz?”

    Capas de diversas obras de CPC, tando de ficção como de não-ficção
    Qualquer um destes títulos poderia facilmente ser o nome do sonho que visitou a Autora na última noite, muito embora o diálogo aqui utilizado fosse cuidadosamente limpo do seu impressionante vernáculo.

    “Ai que chata. Voltaste a fazer a única pergunta que interessava fazer no fim desta história. E, portanto, calculo que já pressintas a resposta.”

    “Eu apenas duvido imenso da felicidade desse puto. Nunca ouvi falar de nenhuma lenda, nem de nenhuma fábula, nem de nenhuma história tradicional, onde a sabedoria levasse à felicidade.”

    “Tem calma. Antes de mais nada, assim, de repente, dir-se-ia que tens razão. A lenda do Angha Kouch diz-nos claramente, por repetidas vezes, que o jovem chegou à mais perfeita sabedoria. Mas nunca menciona a sua felicidade ao atingir semelhante perfeição.”

    “E portanto eu aposto que esse puto nunca chegou sequer a saber o que era a felicidade.”

    “Ai é?”

    “Ah pois é, meu, pois é. O meu trabalho já me fez caminhar por vezes ao lado de grandes sábios. E eles tinham todos o mesmo padrão em comum: quando começavam a falar do que sabiam às pessoas que se reuniam para os ouvirem, ficavam imensamente felizes. E essa felicidade vinha-lhes da partilha dos seus conhecimentos. Agora esse rapaz da tua história, se sabe tudo mas nunca partilha nada, epá, tu esquece. Acaba por transformar-se num velhote tão arrogante e tão cheio de manias que as criancinhas fugiam a correr assim que ouvissem a tosse dele ao fundo do corredor. Ai que lá vem o dragão. Coitadinhas.”

    “Ai mulher, mas tu não vês que estás a estragar completamente o glamour do momento? Então eu digo não mais do que a primeira frase de uma fábula de um lugar muito distante que tu nunca visitaste e cuja língua desconheces, e a partir daí pões-te tu a contar-me o resto, como se sempre tivesses conhecido todo o imaginário de todo o universo? Achas normal?”

    “Podes crer que acho. A vida ensinou-me que nenhum grande sábio é um sábio completo se não souber rir. Não te dei nenhuma explicação para o fenómeno, porque isso, as explicações, meu pináculo da perfeição… como de certeza que sabes muitíssimo melhor do que eu, há imenso tempo que já não existe explicação nenhuma para absolutamente nada.”

    “Ah, minha menina, que uma coisa é quando a gente sonha, mas outra coisa é quando a gente prova. E provar isto assim, isto de nós os dois, isto é tudo tão bom…”

    “Eu sabia.”

    “Grande coisa. Lá saber também eu sabia.”

    “E então tu, que és um deus pagão e portanto tens possibilidades que eu não tenho, tu sabes, e então não te lembras de nada melhor do que fazer-me esperar por ti durante dezenas de anos?”

    “E então, há azar? Não cheguei a tempo?”

    “Tu és imortal, meu filho. Assim também eu. Só que eu, sendo humana, por esta altura até já podia muito bem ter batido as botas.”

    “Oh, vá lá, não sejas dramática. Eu tive de fazer-te esperar porque, antes de vir ter contigo, precisava de testar o teu próprio pressuposto.”

    Despenteei-o à bruta.

    “Precisavas de testar o quê?”

    E ele despenteou-me mais à bruta ainda.

    “Não eras tu a grande megera que estava sempre a dizer aos seus pobres filhinhos, meninos-meninos-saber-esperar-é-uma-grande-virtude”?

    “Cabrão.”

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Pertenço aos 15% das pessoas que sonham a cores, e aos 27,2% que se lembram dos sonhos quando acordam.

    [2] O diálogo poderia não ter sido exactamente este, até porque me lembro de que ambos os protagonistas usavam e abusavam dos palavrões mais escabrosos da língua portuguesa. Mas o sentido era este, isso de certeza.

    [3] Note-se que esta última frase não é necessariamente adversativa da antepenúltima.

    [4] Seja como for, o seu fim nunca será o fim da lenda. Já está decidido há bastante tempo que a mulher raramente deixa o deus pagão chegar ao fim dos seus raciocínios.

  • Prova de acesso ao liberalismo: bater na TAP

    Prova de acesso ao liberalismo: bater na TAP


    O meu camarada de jornal Luís Gomes, economista de bandeira liberal, escreveu no seu último texto publicado no PÁGINA UM um conjunto de perguntas que deveriam ser colocadas na Comissão de Inquérito à TAP ou, como ele lhe chamou, “bancarroteira nacional”.

    Eu ainda sou do tempo em que os liberais andavam escondidos no PSD e no CDS e, ainda a medo, combinavam reuniões secretas nos corredores, quando se encontravam com os tapetes debaixo do braço para rezarem virados para os mercados.

    Agora, com um partido próprio e quase duas mãos cheias de deputados, parecem os gajos da Herbalife a vender pastilhas para emagrecer, ou lá o que se vende na Herbalife. Se calhar são ervas, não sei.

    Ainda assim, admito, eu gosto de ler liberais. É o meu guilty pleasure. Um pouco como aquela música das Spice Girls que passava na rádio na década de 90. Uma pessoa batia o pé, mas fingia que não gostava.

    E gosto de os ler porque, se pensarmos bem, a vida aqui no planeta é dura, a luta é constante e os problemas bem reais. Aqui e ali, ler histórias de Nárnia, pelo menos a mim, transporta-me para mundos coloridos e permite-me alhear das dificuldades do dia-a-dia. Dispensá-los-ia, aos liberais, se o Benfica jogasse todos os dias, mas as pernas do Rafa não aguentariam tanta pancada.

    E pancada foi exactamente o que o meu camarada Luís deu na TAP. TAP, é esse o nome, não é “bancarroteira nacional”. Bancarrota nacional foi a década e meia de dinheiro público despejado na banca privada, quando a direita, que incluía os liberais envergonhados na altura, nos garantiu que havia “risco de contágio dos mercados”.

    Milhões deitados numa sarjeta para aguentar uma família de corruptos, manter alguns segredos de Estado e aumentar as fortunas de quem já era rico. Que serviço foi prestado aos portugueses nessa injecção de capital? Nenhum. Conseguiram perder dinheiro investido, ficar sem poupanças, ver administradores distribuírem prémios entre si e hoje, como prémio, lutam contra as taxas de juro para não perderem as suas casas.

    Uma das dificuldades no debate com a nova vaga de liberais portugueses é que, mal nos começam a vender uma teoria, ela já está a falhar num sítio qualquer. Se nos falam em saúde e perguntamos se é o modelo “cada um por si e Deus por todos” que vigora em Meca (EUA), dizem que não, que optam pela versão escandinava.

    Depois, quando percebem que na versão escandinava é tudo público, apontam para os Bálticos. Quando os Bálticos chegam aos dois dígitos de inflação, dizem que o Brasil é socialista. Quando reparam que o Bolsonaro é o Presidente, apagam o vermelho do cartaz e dizem que precisamos de menos Estado.

    Nisto surge a covid-19 e o Cotrim grita com o Costa na Assembleia para lhe dizer que o apoio do Estado às empresas está a demorar muito. A dada altura, uma pessoa pede só para sair do carrossel e decide que o Liberalismo é como uma discussão com a mulher. Um gajo concorda com tudo só para não ter que ouvir mais.

    A TAP, por muito que custe admitir a quem a desdenha, presta um serviço ao país e à economia. Transporta pessoas, dá emprego a vários milhares direta e indiretamente. A lista de fornecedores nacionais da TAP é coisa para fazer mossa ao fundo de desemprego, no dia em que conseguirem acabar com ela.

    E quando digo fundo de desemprego, estou a partir do princípio que a Iniciativa Liberal não será Governo por essa altura porque, se for esse o caso, então refiro-me ao acolhedor espaço que sobrar debaixo da Ponte 25 de Abril.

    O Luis faz várias perguntas, essencialmente sobre medidas de gestão e desperdício de dinheiro, a partir de 2015, altura em que a TAP voltou para a esfera pública. Não há nada de errado com as perguntas, tirando o facto de não incluírem mais um punhado de dúvidas sobre o período anterior e a forma como também pagámos para a TAP ser privatizada.

    Deduzo que não se possa tocar no Governo de Passos. Na narrativa liberal, afinal, Pedro de Massamá era o homem que cortava nas gorduras do Estado. Pelo menos, naquelas que aqueciam os trabalhadores. Já na clientela habitual, nem tanto.

    Mas sem me desviar muito e voltando às questões, elas encerram em si mesmas a razão pela qual me aborrecem textos difamatórios da TAP. É que, por norma, classifica-se a companhia pelos actos de gestão de um punhado de boys, lá colocados por PSD e PS, consoante o momento governativo. E isso é de uma tremenda injustiça.

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    A TAP são milhares de pilotos, pessoal de bordo, assistência em terra, engenheiros de manutenção, técnicos de aeronaves e outros que, na minha opinião, prestam um serviço insubstituível ao país. No fim da lista, lá aparecem meia dúzia de boys engravatados que vão arrastando a companhia para a lama, com o patrocínio do Governo, fazendo da TAP arma de arremesso de qualquer oposição populista e, pior, prejudicando os trabalhadores da companhia que são alheios e todos estes folhetins.

    Mas a TAP, a transportadora nacional que é das poucas empresas que de facto transportam o nome de Portugal pelo mundo fora, não pode ser misturada ou julgada por actos criminosos de gestão de uma minoria. Ou, como se diria num debate televisivo, não podemos mandar o menino fora com a água suja do banho.

    Sempre que um liberal grita pelo encerramento da TAP, sem explicar o que faria com os milhares de desempregados, dizendo que o mercado tratará de ocupar os slots, eu, emigrante confesso, puxo do tapete, aponto-o para Wall Street e começo a rezar aos deuses da mão invisível. Adoro explicacões de como o mercado tudo resolve até percebermos que não é bem assim.

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    Quando ouço a malta da IL a falar de mercados, penso sempre no gregos da antiguidade que esperavam pelo trovão de Zeus para se aquecerem. A fé é semelhante, tirando a parte de “os mercados” não serem uma entidade divina (para os não-liberais, entenda-se). 

    Por exemplo, o deus dos mercados, no caso do desaparecimento da TAP, funcionaria da seguinte forma:

    a) se turistas quisessem vir para Portugal (procura), alguma EasyJet haveria de aparecer (oferta). Neste caso, portugueses que estivessem na zona de onde partiam os turistas, conseguiam transporte.

    b) se os turistas se aborrecessem dos pastéis de nata ou dos cimbalinos e quisessem ir pregar para outra paróquia (quebra na procura), a Easyjet ia-se embora, a oferta reduziria e os portugueses ficariam com menos hipóteses de se movimentarem.

    Ou seja, Portugal, um país periférico da Europa, sem ligação por ferrovia ao Velho Continente (12 horas até Madrid não contam como ferrovia uma vez que é o tempo para lá chegar de bicicleta) ficaria refém dos interesses financeiros do mercado para ter rotas aéreas. Não é um negócio extraordinário para um povo que tem 1/3 dos seus fora de portas.

    O que dizem os liberais neste caso do risco do mercado? Não há problema porque, nesse caso, o Governo pagaria a uma companhia privada qualquer para garantir rotas com a diáspora. Ora…pagaria quanto? E já agora, companhias pagas por governos é aquilo a que se costumam chamar companhias de bandeira ou seja, a TAP.

    Essa conversa de acabar com a TAP para se pagar à Ryanair (o O’Leary passa a vida a chorar por subsídios e a chantagear aeroportos com taxas) parece a discussão do SNS onde a IL nos tenta convencer que, liberdade, é destruir a saúde pública e fazer o Governo pagar as nossas consultas nos hospitais privados.

    O mantra liberal é sempre o mesmo: desviar dinheiro público para o bolso de uma minoria de magnatas do setor privado. É esta a base da teoria “os mercados resolvem” e aplica-se numa escola, num hospital ou nas asas de um avião.

    Nem vou entrar na discussão da importância que a TAP tem para a comunidade emigrante (que representa 2% do PIB), no serviço que a TAP presta na ligação aos países de língua portuguesa, na coesão territorial com as regiões autónomas, nos prémios de engenharia que recebe ou no facto de estar entre as cinco companhias mais seguras do mundo.

    Era conversa para umas horas e vocês têm que ir à vossa vida produzir, para a mão invisível sacar depois. Nunca uma empresa de tamanho prestígio foi tão mal tratada.

    Miguel Sousa Tavares disse, no seu podcast, que a comissão de inquérito não deveria ter elementos do PS e do PSD. Concordo. Enquanto os outros lá estarão a fazer perguntas, os deputados de PS e do PSD tentarão despachar culpas para o vizinho.

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    Não sei o que sairá desta Comissão de Inquérito à TAP mas pergunto-me, se a solução para evitar mais indemnizações milionárias, nomeações de boys, desvio de dinheiro na compra de aviões e escândalos do género, é mandar milhares de trabalhadores para a rua?

    Ou se ganham os portugueses ao ficarem dependentes dos abutres e do lucro para, no canto da Europa, se conseguirem mexer? Já nem vou mencionar nas idas a casa dos emigrantes ou luso-descendentes, os tais cinco milhões que andam espalhados pelo mundo e que só servem para enviar remessas, pagarem festas de Agosto na aldeia ou serem gozados na praia. 

    Dizem-nos repetidas vezes que a Ryanair transportou milhões de pessoas para o território nacional e por isso podemos dispensar a TAP. O que acontecerá então quando Porto e Lisboa saírem da moda e a TAP não existir? Ficamos como Bratislava ou Liubliana? Capitais onde as low cost levam couro e cabelo por um voo de duas horas?

    A minha pergunta, para o Luís e para os liberais em geral que tentam fechar a TAP desde que Pedro Nuno Santos a resgatou, é a seguinte: porque não exigem apenas uma administração competente para a transportadora nacional? O mantra dos mercados não se aplica na substituição de gestores inúteis?

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Deram um dia…

    Deram um dia…


    Há uma enorme responsabilidade em falar de um dia, ainda mais se esse dia foi adoptado por grande parte do Mundo para lembrar uma luta (uma opressão), uma reivindicação (uma morte), enfim, pessoas.

    Quando milhares de operárias, algumas antes mesmo de terem sufrágio, começaram as suas marchas por mais respeito e iguais condições de trabalho, estas nossas bisavós não poderiam imaginar que hoje o dia 8 de Março era engolido por pequenos gestos vazios, uma rosa, um dizer de postal de cartão, uma campanha de marketing.

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    As nossas bisavós e avós que deixavam a saúde e a vida em chão de fábrica, em tinas industriais de lixívia, em suor, miséria e abuso sexual, não poderiam imaginar que hoje se poria em hipótese suprimir o feminino das palavras, anular o sexo biológico ou existir uma invasão dos espaços seguros das mulheres, desde a casa de banho pública ao acesso a uma bolsa universitária por mérito atlético.

    As nossas mães não poderiam sonhar que em nome da empatia com outros grupos oprimidos, haveria quem achasse legítimo rasurar a maternidade, rebaixar-nos à classificação de “portadoras de útero” ou “pessoas gestantes”.

    Os leitores de sensibilidade (existem, eu também não acreditava) têm estado a rever a matriz que nos educa e concluíram que a mulher já não deve ser protegida, defendida ou exaltada. Supostamente, a bem da igualdade.

    Então assim, na geração em que ainda falta tanto fazer, vemo-nos a braços (mulheres e homens) com mais uma agressão.

    Podemos enumerar as vítimas de violência doméstica, abusos de anos, escravatura, mortes violentas.

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    Podemos enumerar as vítimas de violência obstétrica, mulheres que muitos profissionais de saúde ainda tratam como meros portais de passagem do bebé, (um buraco), corpos serrados a meio para deixar passar outro.

    Podemos enumerar as vítimas de abusos laborais, grávidas e mães que são despedidas por serem consideradas força de trabalho manca, mulheres que são escrutinadas e julgadas pela aparência, que são desconsideradas e assediadas.

    Pelos vistos é preciso ter sorte, dizem.

    Isso não é aqui, ouço também.

    Sabem o que é o “ponto do marido”?

    (É um buraco, é um buraco, é um buraco.)

    three woman holding each other and smiling while taking a photo

    Dia 8 de Março, eu faço uma pausa em silêncio pela luta das nossas bisavós, avós, mães. Mulheres, de onde todos nós viemos.

    Não somos iguais não. Nem tampouco superiores ou inferiores. Somos diferentes.

    Podia falar-vos de correntes feministas, evolução histórica dos diferentes grupos, diferentes lutas, tensões entre as mulheres afro americanas e as mulheres brancas nos Estados Unidos, a união de forças com os grupos LGB (houve quem lhe chamasse ameaça lavanda) e agora o aguar da definição de “mulher” pelo activismo trans.

    Podia até dar-vos uma opinião bem vincada sobre isso, tenho-a na devida medida, o cinzento está lá no meio do arco-íris, mas há um novo ataque às mulheres sim. E as nossas filhas estão de novo em risco porque cometemos erros. Porque pensamos que as conquistas estavam garantidas.

    Não estão.

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    Se derem uma flor, não escolham a rosa.

    Se assinalarem o dia experimentem fazê-lo a reflectir sobre a diferença entre a mulher e o homem.

    Por isso é que há um dia internacional da mulher.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • TAP: um caso político ou de polícia? De polícia, obviamente!

    TAP: um caso político ou de polícia? De polícia, obviamente!


    No início de Fevereiro do presente ano, vários órgãos de propaganda noticiavam que uma Comissão de inquérito à TAP ia avançar. Qual o âmbito? A actuação do Governo sobre a gestão da TAP, sobretudo entre 2020 e 2022, período em que a companhia aérea se encontrava sob controlo público.

    Este rasgar de vestes do regime, resultou da escandalosa indemnização de 500 mil euros que Alexandra Reis recebeu quando saiu da TAP, sendo depois – pasme-se! – nomeada presidente da NAV, outra empresa pública, e, no final do ano passado, escolhida para secretária de Estado do Tesouro. Um percurso que diz tudo.

    O caso levou a que o Governo anunciasse ontem a exoneração da presidente-executiva da TAP, Christine Ourmières-Widener, e do chairman da companhia aérea, Manuel Beja. Ambos estavam na liderança da empresa desde Junho de 2021.

    Aparentemente, o regime apenas se indigna com a milionária indemnização a Alexandra Reis, não acontecendo o mesmo com os escandalosos 3,2 mil milhões injectados na bancarroteira nacional nos últimos oito anos que serviriam para pagar 6.400 indemnizações de 500 mil euros; definitivamente, o coração bate-nos mais forte quando falamos de 500 mil euros.

    Tenho fé e esperança que os representantes da nação irão colocar as perguntas certas, ao contrário do que fizeram durante a putativa pandemia, mas, de qualquer forma, quero aqui apresentar-lhes uma humilde sugestão de uma lista de questões a serem colocadas na Comissão de Inquérito à bancarroteira nacional:

    • Após a “renacionalização” da empresa em 2015, a administração da bancarroteira nacional foi preenchida com apaniguados e amigos, todos a auferirem valores em torno de 100 mil euros brutos anuais ou mais; nenhum destes senhores indagou na reuniões de administração acerca da racionalidade económica e valores pagos pela compra de 53 aviões, num contrato que totalizava 1.600 milhões de euros? Se perguntaram, queremos conhecer o conteúdo dessas actas; caso contrário, podemos concluir que andavam lá apenas a encher os bolsos e a tomar café nas reuniões?
    • A compra destes 54 aviões obrigou ao pagamento de 320 milhões em excesso; foi noticiado que o empresário David Neeleman recebeu 70 milhões de Euros da Airbus para adquirir 61% do capital da TAP através da Atlantic Gateway – detida em partes iguais por Humberto Pedrosa (50%) e David Neeleman (50%); existem agora duas hipóteses que devem ser equacionadas: (i) Humberto Pedrosa também recebeu 70 milhões de euros da Airbus, os restantes 180 milhões de euros foram para o bolso de quem? (ii) Os 70 milhões de euros da Airbus foram para os dois empresários, os restantes 250 milhões de euros foram para o bolso de quem? Gostaríamos de saber!
    • Os 224,1 milhões investidos pela Atlantic Gateway no capital próprio, a título de Prestações Suplementares, isto é, dívidas a sócios, em que condições podiam ser exigidos de volta pelos accionistas privados, isto é, pela Atlantic Gateway? Seria em caso de renacionalização ou controlo dos direitos económicos por parte do Estado? Esta condição, ou condições, foi alguma vez utilizada na negociação da saída dos privados em 2020? Estas Prestações Suplementares foram alguma vez remuneradas?
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    • Em 2016, o empréstimo obrigacionista de 120 milhões de euros emitido pela TAP, dividido em duas séries, A e B, a primeira de 90 milhões tomada pela Azul – empresa controlada por David Neeleman, a segunda de 30 milhões tomada pela Parpública. Estas obrigações ao final de 10 anos permitiram a conversão em acções da TAP SGPS: (i) por que razão se utilizaram duas séries com direitos e deveres diferentes, em particular para a Parpública que tinha apenas alguns anos para decidir pela conversão ou não em acções, deixando de receber juros? (ii) quais os termos e condições exactos de cada série e qual a razão da sua ocultação nos relatórios e contas da TAP; (iii) quais as condições de remuneração de cada uma das séries; (iii) a Azul recebeu e está a receber 67,5 milhões de Euros em juros, correspondentes à remuneração de 90 milhões a 7% durante 10 anos; (iv) a Parpública foi efectivamente remunerada e em que condições? Recebeu os 30 milhões que emprestou à TAP SGPS?
    • Em 2016, no regresso das Caravelas do século XXI ao Estado português, quem da tutela aprovou o acordo que atribuía 5% dos direitos económicos ao Estado português, apesar deste possuir 50% do capital? Para dar um exemplo, no caso de 100 milhões de euros de lucros, correspondiam apenas 5 milhões de Euros à Parpública, apesar de deter 50% do capital! Esta renacionalização tinha apenas como objectivo recuperar sinecuras e negócios para amigos e apaniguados do regime? Qual a lógica, servia apenas para proporcionar empregos?
    • A Dra. Maria Teresa Lopes, promovida a administradora em 2014, ainda debaixo do controlo Estatal, e que saiu em 2017 para o lugar de Consultora da Administração, auferia em 2015 – último ano onde havia transparência a este respeito – 255 mil euros brutos. Por essa “despromoção”, em 2017, recebeu uma indemnização de 1,2 milhões de euros – pobre Alexandra Reis! Também será solicitada a devolução da indemnização a esta senhora, tal como parece estar a acontecer com Alexandra Reis?
    • O escritório de advogados de Pedro Rebelo de Sousa, irmão do Sr. Presidente da República, que negociou a indemnização milionária atribuída a Alexandra Reis, também vai devolver o montante que recebeu da TAP por ter intermediado aquela negociação? Ou vai indemnizar a TAP pelos danos financeiros e de imagem e reputação provocados pelo pagamento indevido da indemnização?
    • Em 2020, durante a negociação da saída de David Neeleman, as Prestações Suplementares foram usadas por este como arma negocial? Os 55 milhões de euros que recebeu pela venda da sua participação de 22,5% – indirecta através da Atlantic Gateway – incluía as ditas prestações suplementares, nomeadamente metade dos 224,1 milhões de Euros? É verdade que recebeu 45 milhões de euros de Humberto Pedrosa pela sua participação de 50% na Atlantic Gateway? A holding de Humberto Pedrosa, a HPGB, SGPS, tornou-se proprietária de 50% destas prestações suplementares, ou seja, de 112,05 milhões de euros?
    • Tal como consta na auditoria realizada pelo Tribunal de Contas à TAP, na sua nota 125, temos o seguinte: “Em todas as opções de compra e venda das ações da Atlantic Gateway, a Parpública adquire também os créditos acionistas da Atlantic Gateway, incluindo-se nestes as prestações acessórias submetidas ao regime das prestações suplementares e suprimentos sobre a sociedade.” Na negociação da saída de Humberto Pedrosa – o empresário patriota – do capital da TAP, qual o valor que este recebeu pelas Prestações Suplementares? 169,1 milhões de euros?
    • Em caso de uma liquidação da bancarroteira nacional, que parte da dívida financeira – em 2021 era de 1,5 mil milhões de euros – está garantida com um aval da República portuguesa. Como podemos imaginar, não há nenhuma instituição financeira disponível para emprestar dinheiro a tal desastre, como é óbvio o Joaquim do restaurante, a Maria do cabeleireiro, irão sempre pagar todos os desmandos. A pergunta é simples: em caso de calote à banca, qual o montante com garantia do Estado?
    • Por fim, e talvez a questão de maior importância. Os órgãos de propaganda, uma vez mais, ignoraram por completo que os contribuintes são agora accionistas a 100% – quase, há uma parte da TAP SGPS que pertence aos desgraçados dos trabalhadores – de duas empresas: (i) a TAP SGPS, a holding de participações que deixou de ter qualquer participação na TAP S. A! (ii) a TAP S.A. Agora, nem relatórios e contas publicam em relação à TAP SGPS, nem tão pouco esclarecem o porquê da administração ser remunerada através de uma holding que nada tem! Para que serve a TAP SGPS, para ocultar os negócios favoráveis a favor dos privados, para pagar por “debaixo da mesa” aos administradores, para ocultar o não pagamento de juros à Parpública, para ocultar vergonhas e desmandos?

    Estas perguntas não deviam ser colocadas pelos deputados da Nação, mas pela polícia, pois a bancarroteira nacional é, há muito, simplesmente um caso de polícia.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Manuel Pinho, um alegado vigarista com visão de jogo

    Manuel Pinho, um alegado vigarista com visão de jogo


    Dizia-me o director do PÁGINA UM, depois do meu regresso ao continente europeu e à espuma dos dias, que temas não faltavam, dada a confusão instalada. E, de facto, assim é. A enxurrada de notícias, casos e absurdos são de tal monta que poderia sentar-me a escrever de manhã à noite sem repetir um assunto. Fui ao pote… e tirei a senha… Manuel Pinho.

    É um caso absolutamente genial e um óptimo exemplo dos bastidores da política e do mundo das empresas que gravitam na órbita do Estado. Os famosos DDT – leia-se, Donos Disto Tudo –, cujas histórias nos motivam sempre a produzir e pagar impostos. Especialmente numa segunda-feira.

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    Manuel Pinho foi ministro da Economia do Governo de José Sócrates – o tal que foi tomar banho mais cedo quando fez uns corninhos na Assembleia da República.

    Em 1994, aos 40 anos de idade, Manuel Pinho entrou para o Conselho de Administração do Grupo BES, onde exerceu vários cargos, saindo dez anos mais tarde para concorrer nas listas do PS às Legislativas. Foi nomeado ministro da Economia por José Sócrates. Poucos dias depois de chegar ao cargo, influenciou a ida de António Mexia para a EDP e, ao longo do seu mandato, concedeu vários benefícios indevidos à empresa. Em troca, a EDP sustentou a carreira profissional de Pinho como, por exemplo, aquele curso patrocinado pela eléctrica portuguesa na Universidade de Columbia, para onde Pinho foi pregar depois de sair do Governo.

    Enquanto ministro da Economia ficaram famosas as suas palavras, aquando de uma visita à China, apelando ao investimento em Portugal, porque, segundo ele, éramos “um país de mão de obra barata”. Os chineses acreditaram e vieram tomar conta da EDP e da REN, entre outras empresas. António Mexia continuou a ser o homem certo no lugar certo.

    Manuel Pinho fez um gesto indecoroso em 2 de Julho de 2009 em plena Assembleia da República, e que causaria a sua demissão de ministro da Economia.

    Vários anos depois de sair do Governo, um pouco arrastado pelas acusações a Sócrates, Manuel Pinho foi acusado formalmente de corrupção por ter beneficiado a EDP enquanto ministro. O Ministério Público disse ainda que Manuel Pinho recebia dinheiro do BES para cuidar dos seus interesses enquanto ministro. O BES era um dos maiores accionistas da EDP.

    Foi, por esta altura, que se começou a investigar o património de Pinho, e se descobriu, entre outras coisas, apartamentos em Manhattan. Uma das coisas curiosas em boa parte da classe política portuguesa é a capacidade que têm de multiplicar salários. Não sei se sabem qual é a remuneração de um deputado, de um ministro da Economia ou até de um primeiro-ministro. Posso garantir-vos, porém, que não dá para apartamentos em Paris ou Manhattan.

    Como não há fumo sem fogo, e apartamentos na City não se sorteiam em pacotes de Nestum, descobriu-se que Pinho, durante os seus anos no Grupo Espírito Santo (GES), recebia salários e prémios, através de um esquema de saco azul. Uma trafulhice comum para fugir ao pagamento de impostos com o dinheiro a passar por destinos off-shore. Estima-se em mais de um milhão de euros recebidos por Manuel Pinho sem passar no crivo do fisco (que rei!).

    A fraude fiscal é por demais evidente, mas Manuel Pinho começou por negá-la.

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    A história melhorou quando ficámos a saber, também por investigação do Ministério Público que, durante o seu tempo na política, Manuel Pinho recebeu uma avença mensal do BES de 15 mil euros mensais. Cheira a mesada para garantir os interesses do empregador, mas o Ministério Público foi mais longe: acusou Pinho de ser um verdadeiro agente do GES infiltrado no Governo. Pinho nega tudo sem conseguir explicar muito bem que salário era aquele.

    Estas “luvas” do GES nunca foram declaradas por Pinho, vá-se lá saber porquê, mas depois do início da investigação em 2017, e acusação formal em Julho de 2018, o antigo ministro de Sócrates aproveitou uma lei de perdão fiscal para regularizar a declaração do dinheiro recebido. Fê-lo em Setembro de 2018, dois meses depois de ter sido acusado.

    Em 2020 foi acusado de ter sido subornado por Mexia, na EDP e, em 2021, foi formalmente indiciado por corrupção, por favorecimento à Odebrecht na obra da barragem do Baixo Sabor. Ainda em 2021 foi detido para interrogatório e ficou a aguardar julgamento em prisão domiciliária, por se recusar a pagar a caução de seis milhões de euros.

    Agora, em 2023, algum advogado de Manuel Pinho lhe deve ter explicado que era mais fácil assumir o crime de que se podia safar – a fraude fiscal – e defender o mais perigoso – a corrupção. E sabem que mais? É absolutamente brilhante.

    Pinho veio revelar, arrependido como se quer nestas ocasiões, que recebeu dinheiro sem pagar impostos, e que esta era uma prática comum no GES. Ou seja, recebiam todos pequenas fortunas e deixavam os impostos para mim, para ti, para quem os quisesse pagar.

    Lembrem-se que enquanto os administradores fugiam aos impostos e enriqueciam, os contribuintes tiveram de ser chamados a pagar durante 13 anos o caos que lá ficou instalado. Isto é quase poético e revelador da impunidade entre quem verdadeiramente manda e quem deve obedecer.

    Pinho acrescentou ainda que tinha regularizado o dinheiro malparado no tal perdão fiscal de 2018 e, por isso, já não podia ser acusado de nada. Ou nas palavras dele: “o que já está, já está”.

    close-up photo of assorted coins

    Não sou advogado, mas espero que este argumento faça jurisprudência. Imaginem uma sociedade onde a cada roubo, cada crime, cada assassinato se pudesse dizer: “pronto, o que já está, já está… agora há que olhar em frente e seguir caminho”.

    Imaginem um mundo onde a impunidade dos ricos se propaga aos pobres, como se fosse um vírus respiratório. Que maravilha!

    A estratégia de Pinho e dos seus advogados é, de facto, brilhante, porque, tal como nós, eles sabem que estão em Portugal, o país onde é muito difícil ser-se condenado por corrupção. E quando tal sucede é com penas doces.

    Sempre que virem uma notícia de um rico indiciado por corrupção, lembrem-se do desfecho do caso Bragaparques, quando José Sá Fernandes era vereador do Bloco de Esquerda na Câmara de Lisboa. Tentaram comprar o homem para que beneficiasse uma empresa de construção civil com uma obra de um parque de estacionamento em Lisboa. Quiseram dar-lhe uma mala de dinheiro. O deputado fez queixa, dizendo que o estavam a tentar corromper e fez uma gravação com o irmão Ricardo Sá Fernandes.

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    Um tribunal chegou a condenar os dois irmãos a pagar uma multa por gravação ilícita, e um outro tribunal até absolveu o empresário Domingos Névoa porque estaria a tentar corromper quem não tinha tutela nas decisões autárquicas. Ou seja, o dono da mala, para ser condenado, teria de ir a uma reunião de vereadores e perguntar: “Ouçam!!! Quem é que aqui trata do urbanismo?? És tu?? Então toma lá esta mala!!”

    Isto ainda foi corrigido, com Domingos Névoa a ser condenado, mas pelo Supremo Tribunal de Justiça, embora com mão leve: multa de 200 mil euros para não ir para a prisão por cinco meses. E o empresário continuou a sua vidinha, que lhe correrá bem, até porque já este ano comprou o Shopping Cidade do Porto por 28 milhões de euros.

    Portanto, Pinho sabe que jamais cairá por corrupção num país (ainda) de brandos costumes para os corruptos, e como a fraude fiscal está resolvida no perdão, há mesmo a hipótese de sair disto limpinho como um rabinho de bebé depois de três Dodot.

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    Absolutamente brilhante. A prova cuspida de que existe uma justiça para ricos e outra para pobres, até porque pobre nem deve ter dinheiro para ter acesso à Justiça, sendo um bom exemplo o recente chumbo na Assembleia da República da redução das taxas e custas judiciais. Bem sei que é um conceito estafado, mas visto assim de perto, ao vivo, tem sempre outro impacto.

    Como mantemos esta aparente indiferença, e deixamos esta gente safar-se, uma e outra vez, é que continuo sem conseguir compreender.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • ‘Máfia do sangue’: a toda a parte chegam os vampiros!

    ‘Máfia do sangue’: a toda a parte chegam os vampiros!


    Sempre que as televisões, as rádios ou os jornais falam de sangue, fico com o meu a ferver.

    Acreditava eu que, sendo um “bem” imprescindível, estaria protegido pelo Estado, de modo a que ninguém pudesse beneficiar com as fragilidades de cidadãos.

    Negociar em sangue é próprio de vampiros, como bem cantava Zeca Afonso.

    Por isso fui, e muitos da minha família são, dadores de sangue.

    Não conheço maior prova de cidadania do que partilhar, anonimamente, sangue para ser utilizado por quem dele necessita sem nos preocuparmos em saber quem serão os beneficiados.

    Nem esperar contrapartidas.

    Dar sangue a alguém doente, sem sabermos quem, desconhecendo a cor da pele, a conta bancária, a ideologia política, a crença religiosa, a idade, o género, do receptor, é solidariedade pura.

    E são milhares os portugueses que o fazem.

    Por isso, repito a primeira frase da crónica, “sempre que as televisões, as rádios ou os jornais falam de sangue, fico com o meu a ferver”.

    Sei que a nossa imprensa só faz manchetes quando algo de mal acontece.

    Se falam de sangue, algo aconteceu de muito mau.

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    Há uns anos foi noticiado que milhares de colheitas de plasma, recolhidas de dadores, seguia para o lixo dada a incapacidade de armazenamento.

    Isso porque – acredite quem quiser – “as câmaras de frio, para conservar o plasma, estavam a ser usadas como armazém para guardar, por exemplo, papéis”.

    Em dois meses, informava o jornal Público, cerca de 40 mil unidades tinham sido inutilizadas, nos três centros regionais do sangue (Lisboa, Porto e Coimbra).

    Num dos mapas de produção, constava, na coluna dos “componentes inutilizados”, relativa ao plasma, a razão para o não aproveitamento: “incapacidade de armazenamento”.

    Cada bolsa tinha entre 180 a 250 mililitros de plasma.

    Curiosamente, o responsável do Instituto Português do Sangue não se mostrava preocupado.

    person injecting syringe

    Segundo ele, “estão já neste momento armazenadas em Lisboa 22.300 unidades de plasma”

    E acrescentou que “há, actualmente, uma reserva, à disposição dos hospitais, de mais 900 unidades que cumprem com a segurança da quarentena”.

    Questionado sobre a quantidade de plasma que ainda é desperdiçado, limitou-se a responder: “Para que todas as colheitas sejam aproveitadas, ministério e IPS estão a desenvolver os procedimentos necessários para a aquisição de viaturas equipadas, ou equipamentos para as já existentes, que permitam o transporte de plasma congelado entre regiões, com todas as garantias de qualidade e segurança”.

    Depois, para que os jornalistas se recordassem que estavam em Portugal, alertou, quando questionado sobre a data prevista para a aquisição de tais viaturas: “Está em curso a avaliação dos sistemas de refrigeração que sejam mais adequados, não estando ainda aberto o procedimento. Não temos ainda uma previsão da data para aquisição das mesmas.”

    Os números, na altura, indicavam que Portugal produzia, com as suas dádivas de sangue, 450 mil bolsas de plasma por ano, sendo que os hospitais apenas precisavam de 90 mil.

    Que não eram aproveitadas.

    Sabia-se que, se fossem exportadas, poderiam render seis milhões de euros.

    Mas… não eram porque, repete-se, as câmaras de frio onde poderiam ser armazenadas estavam a ser utilizadas para guardar papéis.

    Para não adoecer, e com medo de ir parar a um hospital dirigido por gente com esta inteligência, optei por deixar de ler qualquer notícia onde a palavra sangue aparecesse.

    Quebrei essa norma, hoje.

    Queria saber como é que é possível haver uma “máfia do sangue”.

    Como é que alguém se prontifica a pagar meio milhão de euros para não ser julgado por negociatas com sangue?

    A última notícia que eu tentei ler dizia que esse produto, que eu pensava ser, em grande parte, oferecido por dadores, e que se deitava para o lixo por falta de equipamentos para o guardar, já que o que havia estava destinado a outros fins, afinal era fonte de riqueza e, mais, era a base de processos crime por corrupção e branqueamento de capitais.

    man in black framed eyeglasses

    Crimes esses que, obviamente, prescreveram.

    Os implicados estão, agora, acusados de falsificação de documento e recebimento indevido de vantagem.

    Até que estes crimes também prescrevam.

    É gente de sangue frio e que sabe esperar.

    E, claro, rica!

    Ainda os verei a encher as tulhas, beber vinho novo e dançar a ronda no pinhal do rei.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O ano de 1938 segundo Sérgio Sousa Pinto

    O ano de 1938 segundo Sérgio Sousa Pinto


    Sérgio Sousa Pinto (SSP), em tempos que já lá vão, um jotinha destacado e bem-comportado, está hoje para o PS como o Pacheco Pereira está para o PSD: é a oposição interna. É ele hoje o liberal rebelde que se incomoda com políticas de esquerda, mas que por lá vai ficando, no PS, provando o que há muito já sabemos: aquele S deixou de ser socialista desde que Mário Soares se reformou.

    Fez ele, o Sérgio, na semana passada, um discurso de 12 minutos na Assembleia da República de encher a alma, daqueles que puxam às lições da História para nos alertar sobre o caminho a seguir.

    Vivemos em 1938, segundo SSP, o ano em que França e Inglaterra se acobardaram quando Hitler anexou uma parte da Checoslováquia, onde vivia uma fatia considerável de alemães. Chamberlain, primeiro-ministro inglês de então, assinou o pacto de Munique que garantia a Hitler aquele território sem guerra ou grandes gritarias. Hitler jurava que, depois daquele problema fronteiriço resolvido, estariam concluídas as disputas territoriais da Alemanha nazi na Europa. O continente mantinha-se assim no rumo da paz, sacrificando os cordeiros checos.

    O Donbass – era aqui que SSP queria chegar. O Donbass é a nova Checoslováquia, Putin o novo Hitler, e nós, a comunidade internacional, não devemos ser o novo Chamberlain.

    SSP esqueceu-se de alguns detalhes dessa história relativamente importantes. Por exemplo, que não foi só a Alemanha nazi a trinchar o peru. Polónia e Hungria foram convidadas a retirar umas fatias de território, onde viviam comunidades polacas e húngaras. E não se fizeram rogados. A Roménia também foi convidada, mas recusou por ser uma aliada antiga da Checoslováquia. Os checos perderam território entre três vizinhos, e o que lhes sobrou passou a ser administrado por um governo-fantoche à ordem dos nazis. O Putin de 1938 não estava sozinho nas intenções expansionistas…

    landscape photo of cemetery during daytime

    Esta é uma primeira diferença que não é propriamente um detalhe.

    Contudo, de facto Chamberlain foi enrolado, e Hitler, uns meses mais tarde, começou a fazer olhos ao norte da Polónia (Gdansk) e a exigir o seu regresso ao território alemão. Como sabemos, foi essa invasão que ditou o início da II Grande Guerra, e não só Hitler mentira descaradamente no tratado de Munique como, hoje sabemos, mais do que resolver problemas de fronteira, queria controlar todo o continente europeu.

    Voltemos ao “erro de Chamberlain” – e também de Daladier, primeiro-ministro francês em 1938 que, juntamente com Mussolini e Hitler assinaram o tratado de Munique. O que poderiam eles fazer? Enfrentar Hitler? Como? Em 1938, o exército alemão era, de longe, o melhor, mais bem armado e mais tecnologicamente avançado exército do Mundo. Uns meses depois, em 1939, “varreram” a Holanda, a Bélgica, o Luxemburgo e a França em apenas seis semanas.

    Portanto, diz-me Sérgio Sousa Pinto, o que devia Chamberlain ter feito? Ou o pobre francês que em pouco mais de um mês perdeu o controlo de um dos maiores países da Europa. Deviam ter-se atirado para a frente do rolo compressor e começado a guerra um ano antes?

    grayscale photo of ceramic mugs with coffee

    Eu acho sempre piada a conversas de heróis com o couro dos outros.

    Não fosse o inverno russo e os disparates de Mussolini na Grécia, e queria ver quem é que tinha parado a máquina nazi.

    Voltando ao Donbass e ao argumento de que se Putin não for parado agora, virá desfilar tanques até Paris como Hitler. Permitam-me discordar. O exército russo anda há semanas, senão meses, com mercenários e tudo o que vão arranjando pelo caminho, a tentar tomar Bakhmut, uma pequena cidade com metade do tamanho do Seixal e 70 mil habitantes (antes da guerra).

    Não é gente que eu queira ter por perto, concordo, mas não me parece aquele tipo de pessoal que acaba a obra na Ucrânia e desata a limpar países até chegar a Madrid.

    Aliás, Sérgio, tu próprio não deves acreditar no que disseste porque, eu bem te ouço, ao lado do amigo Sebastião na CNN, a dizer há meses que o Putin está a perder a guerra, que os ucranianos são uns espartanos e que o exército russo é formado por um grupo de bêbados malvestidos e mais mal liderados.

    Portanto, em que ficamos? A Rússia é um gigante com pés de barro, como andas a vender em horário nobre há meses, ou estamos em 1938 e esta versão do exército vermelho, depois do aquecimento na Ucrânia, vai bombardear tudo o que mexe entre Berlim e Lisboa?

    Ao contrário de Hitler, Putin não parece muito interessado em fazer bluffs. O homem já disse que quer o Donbass, a Crimeia, um bocadinho da Moldávia e algumas fronteiras históricas da União Soviética. Compreendes? Ele disse mesmo ao que vai. Nós é que andamos entretidos a discutir o sexo dos anjos e não ouvimos. Ele não quer confrontação directa com a NATO (não é idiota), não quer invadir Bruxelas nem Amsterdão, e já percebeu que se vê grego só contra ucranianos armados pelos americanos. Portanto, o homem não só sabe os seus limites como já nos informou. Ele quer esticar um bocado os pés, arranjar ali uns quintais e meter os vizinhos em sentido.

    É chato? Epá… é. É mais ou menos como os israelitas que foram sacando território na Palestina, no Líbano e no Egipto sem avisar. Também é chato. Mas ninguém pensou que eles, mesmo com as costas quentes, fossem começar a desancar em todos até à Tailândia.

    Mudará a correlacão de poderes se o Ocidente deixar a Ucrânia e a Moldávia caírem? Claro que sim. Os blocos estão a formar-se. Europa e americanos para um lado, enquanto a China, Índia e Rússia estão para outro. África e Ásia pobre com eles, enquanto o Japão, Coreia do Sul, Canadá e Austrália “connosco”. Está a acontecer, Sérgio.

    Agora… estamos a viver 1938? Corremos um risco de guerra global contra o exército mais poderoso do Mundo? Não me parece.

    Ao contrário de 1938, não só as intenções do invasor não estão escondidas como, já percebemos, Putin não quer controlar a Europa, mas sim voltar a ser um dos decisores no Mundo. Tarefa que ficou mais facilitada com a aliança assumida pela China. Estamos mais perto da Guerra Fria do que de uma nova invasão de Gdansk e um conflito global.

    Honestamente, pelo que vou vendo, as hipóteses de uma escalada no conflito (com armas nucleares, NATO, etc.) aumentam, isso sim, enquanto fizermos questão de ir alimentando este conflito.

    brown and gray concrete building during daytime

    Era essa a conclusão do discurso de SSP. Um apelo para não repetir o erro de Chamberlain e “enfrentarmos” o mal, em nome da liberdade das gerações futuras. “Enfrentarmos”, Sérgio? Também vais vestir o kevlar e meter o capacete?

    Por favor, Sérgio Sousa Pinto e demais políticos com direito a palanque. Pelas alminhas, poupem-me a discursos inflamados e heróicos a exigir a luta armada, feita por outros, como resolução dos problemas criados por vocês. Andaram 20 anos a comer na mão de Putin, a fazer negócios, a vender-lhe armas a troco de gás. Agora queres enfrentá-lo? Como? Com a NATO? Com arsenal nuclear?

    Se há coisa em que a História, de facto, se repete é na origem de todas as guerras. Políticos e governantes combinam a chacina onde as elites enriquecem e os pobres vão morrer. Aí sim, talvez estejamos a viver 1938.   

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Manuel Pizarro e o Titanic das Mentiras

    Manuel Pizarro e o Titanic das Mentiras


    O ministro da Saúde, Manuel Pizarro, diz que vencemos a pandemia, acrescentando que “é essencial, agora, continuar a materializar as lições aprendidas”. Escreveu-o num artigo de opinião publicado no Correio da Manhã (publicidade política gratuita na primeira pessoa) – e depois lido como peça de marketing político no Twitter.

    Vencemos, portanto, apesar de ainda não sabermos as causas do contínuo morticínio dos idosos – o grupo etário que deveria ter sido protegido nos últimos três anos –, mesmo quando a covid-19 já há muito está na fase endémica.

    Vencemos, portanto, apesar de o Governo e os media mainstream nem sequer colocarem como hipótese em discussão académica que a gestão da pandemia fez mais mal do que bem a médio e longo prazo.

    Vencemos, portanto, apesar das revelações das últimas semanas (Twitter Files, metanálise da Cochrane e Lockdown Files) que conformam que a Ciência esteve arredada de uma estratégia racional, como se viu na imposição das máscaras e dos certificados digitais, criados para segregação dos não-obedientes.

    Vencemos, portanto, apesar do evidente descrédito das vacinas contra a covid-19, bem patente no facto de apenas 1% dos adultos com menos de 50 anos terem acreditado na eficácia de um fármaco cuja dose seguinte é que será sempre a melhor.

    Vencemos, portanto, apesar do obscurantismo da Administração Pública na disponibilização de documentos, de informação, de base de dados, enfim, de tudo.

    Vencemos, portanto, apesar de termos consultores da Direcção-Geral da Saúde que determinam as escolhas terapêuticas, enquanto se amasiam com as farmacêuticas.

    woman in black bikini top on water

    Vencemos, portanto, apesar de se ignorarem os efeitos adversos das vacinas, porque a entidade reguladora – que deveria proteger os cidadãos – se mostra mais preocupada em mentir e em proteger as farmacêuticas e os políticos.

    Vencemos, portanto, apesar do Ministério da Saúde esconder activamente os contratos das vacinas de um portal da transparência da contratação pública nas “barbas” do Tribunal Administrativo.

    Vencemos, portanto, apesar de um bastonário da Ordem dos Médicos ter cometidos várias irregularidades e ilegalidades na gestão de fundos de uma campanha de donativos, que é um caso exemplar de polícia.

    Vencemos, portanto, apesar de uma imprensa mainstream que mandou os princípios deontológicos às malvas.

    Vencemos, portanto, apesar de serviços básicos não estarem a funcionar por falta de profissionais de saúde e de recursos, pouco importando o despesismo de ajustes directos sem controlo desde 2020 à volta de um maná chamado pandemia.

    sunken ship

    Manuel Pizarro garante que vencemos.

    Parece, porém, o presidente de um clube da bola a garantir que “vencemos” mas recusando mostrar o placard.

    Ou então um maestro de um Titanic à deriva que colidiu com um icebergue chamado Verdade, e que continuará a tocar uma marcha da vitória até ser engolido pela evidência. Ou pela História.

  • O verdadeiro milagre

    O verdadeiro milagre

    Desprezava-os a todos sem excepção,

    esses velhos jardineiros enregelados dos canteiros do amor.

    Charles Dickens

    DAVID COPPERFIELD, ou

    The Personal History, Adventures, Experience and Observation of

    David Copperfield the Younger of Blunderstone Rookery,

    1850


    Para grande incredulidade dos meus filhos quando eram pequeninos[1], tive o privilégio de crescer num tempo em que só se escrevia à mão, só se faziam contas utilizando a memorização da tabuada, num mundo em que os gadgets ainda não existiam, e lá em casa nem sequer tínhamos uma mera televisão a preto e branco, daquelas só com dois canais e de horário muito limitado, uma vez que os nossos Pais partilhavam firmemente o credo de que a televisão destruía as famílias, impedindo-as de conversar[2]. O que é que esse MAGICAL MYSTERY TOUR[3] me deu? O gosto pela observação, sem dúvida; e, com ele, deu-me desde logo o prazer de inventar histórias. Mas, se soube inventá-las, foi porque vivi uma infância riquíssima passada a devorar livros atrás de livros. Aos oito anos, numas férias grandes em que estava doente e via da janela ao lado da minha cama as pessoas que iam para a praia todas satisfeitas com os seus chapéus de sol e os seus baldes de plástico, eu estava ainda mais satisfeita do que elas: iam-se todos embora, ninguém me chateava, a coberto de todo aquele sossego tinha começado a ler A MARAVILHOSA VIAGEM DE NILS HOLGERSSON ATRAVÉS DA SUÉCIA, da Selma Lagerlof[4], e agora não conseguia parar. Até soneguei algures uma lanterninha para não parar nem à noite. Estava positivamente enfeitiçada. Já tinha lido imensos livros antes, mas isto era diferente. Naquela cama, sem poder ir àquela praia por intervenção directa de Deus, eu acabava de descobrir o verdadeiro milagre da literatura.


    Os verdadeiros livros, quando são verdadeiramente bons, têm a generosidade de não esperarem que as crianças cresçam para se deixarem ler, e, assim fazendo, imprimir nelas a qualidade que fica marcada nos seus passos. Aquele meu excitex do Nils Holgersson continuou a caminhar comigo. Aos dez anos, veio parar-me às mãos[5] um romance pouco conhecido de Erico Veríssimo, CAMINHOS CRUZADOS[6]. Não sei quantas vezes o terei lido, mas foram dezenas, de certeza. Fiquei a conhecer de cor todos os personagens, fiz a lápis folhas inteiras de esquemas de como os caminhos de todos eles se cruzavam ao longo do romance.

    CPC e S, O SEMINÁRIO
    “Estás a ouvir, Sebastião?
    “Repara bem na pérola do Dickens que pus em epígrafe. David está tão apaixonado por Dora que despreza todos os seus colegas do Tribunal que não amam ninguém. A metáfora é fabulosa, e o humor é irresistível: David está ridiculamente apaixonado, e como os leitores já foram avisados várias vezes de que o caso vai ter um desfecho trágico esse enlevo ainda é mais ridículo. É contra todas as regras do bom inglês usar várias comparações numa única metáfora, e Dickens usa imensas palavras mas nunca abandona os jardineiros e os jardins. Não se é considerado um dos melhores escritores do mundo por acaso.”
    Note-se a expressão atenta, concentrada, e positivamente maravilhada do canídeo.

    Claro que aprendi várias coisas sobre as vicissitudes do comportamento humano, mas o que aprendi de mais importante, já lá vão 53 anos, foi como se constrói em três parágrafos uma proeza literária autêntica, que neste caso assinala o início da história. Já tive muitas décadas para tentar, mas ainda não consegui chegar nem perto da qualidade com que o autor começa a sua narrativa, descrevendo o nevoeiro que cobre a cidade na primeira luz da manhã.

    Vivi em Alfama, onde caminhei muitas manhãs por entre esse nevoeiro. Estudei em Monterey, onde de madrugada esse nevoeiro era quase intransponível. Já por várias vezes, nos meus próprios livros, dei o meu melhor para descrever o mundo enfeitiçado das manhãs de nevoeiro. Mas, embora nunca mais tenha lido o CAMINHOS CRUZADOS, sei que o nevoeiro do Erico Veríssimo sempre foi melhor do que os meus.

    Deus andava a mandar-me estas revelações de dois em dois anos, sem dúvida para que eu conseguisse digeri-las convenientemente na minha tenra idade. E foi assim que, aos doze anos, durante as férias de Natal, alguém me ofereceu de presente[7] AS VINHAS DA IRA, de John Steinbeck[8]. Dois anos antes do 25 de Abril, toda aquela saga da tenacidade dos pobres e da indiferença dos ricos, com todos aqueles pequenos pormenores de outras histórias constantemente intercalados, deu comigo em doida.

    Pela primeira vez na minha vida, sublinhei várias passagens e dobrei os cantinhos dessas páginas[9]. Andei ali uns tempos a escrever à Steinbeck, sempre a meter aquelas pequenas narrativas de circunstância no meio da história principal. Há poucos inícios tão bons como o de CAMINHOS CRUZADOS. Mas há poucos finais mais belos do que o de TORTILLA FLAT[10], quando Danny já morreu, a sua casa já ardeu, e todos os seis amigos que ali partilharam com ele a estranha vida de aventuras dos anos anteriores contemplam os escombros:

    “A gente de Tortilla Flat dissolveu-se na escuridão. Os amigos de Danny continuaram a olhar para a ruína fumegante. Olharam de forma estranha uns para os outros e voltaram a olhar para a casa queimada. Instantes depois, voltaram-se e afastaram-se lentamente, sem que, ao lado de um, caminhasse outro.”

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Note-se a importância deste “eram pequeninos”: estavam naquela idade em que os meninos acreditam em tudo o que lhes dizem as Mães. Mas, mesmo assim, um mundo sem PCs, sem calculadoras, sem smartphones, sem TV-Cabo… “Oh, Mãe! Não digas essas coisas que eu fico cheio de medo!” E foram perguntar ao Pai se era verdade, os pestinhas. Based on a true story.

    [2] Sempre reconheci que eles tinham uma certa razão, e agora ainda acho mais, sobretudo quando as famílias se sentam à mesa do restaurante, cada um agarra no seu tm, e nunca mais se ouve um pio. Para que conste, nunca dei tms aos meus filhos, quando os brindei com um PC era para fazer os TPCs durante duas horas e “ir a sítios” durante quinze minutos, a televisão esteve seriamente regulada até o mais velho fazer quinze anos, e nunca lhes comprei nenhuma PlayStation nem nenhum outro monstro desses. Resposta a bombardeamentos de solicitações usando a técnica do golpe baixo que se ouvia mais vezes lá em casa: “MAS-EU-NÃO-SOU-A MÃE-DOS-OUTROS-MENINOS!”

    [3] Para benefício dos mais novos, o MAGICAL MYSTERY TOUR é o album psicadélico dos Beatles em que John Lennon canta I AM THE WALRUS (letra escrita totalmente em ácido durante dois fins-de-semana diferentes, o que explica ser tão difícil de perceber) e STRAWBERRY FIELDS FOREVER (escrita só de uma vez e baseada na infância de Lennon, portanto de compreensão um pouco mais fácil).

    [4] Claro que a ideia não foi minha, que só tinha oito anos, quand mêmme. Foi a minha professora primária, a Madalena, que eu adorava e achava linda, que nos leu umas passagens nas aulas. Oh. Nunca mais larguei a minha Mãe até ela me comprar o livro.

    [5] Não sei como. De certeza que foi Deus.

    [6] “Então, Clarinha, o que é que a menina está a ler agora?” – “É um romance do Erico Veríssimo.” – “Ah, muito bem! Com que então está a ler o CLARISSA?” – “Não. O CLARISSA é para meninas. Este é mesmo um romance de crescidos, e chama-se CAMINHOS CRUZADOS.” – “Ah, muito bem, muito bem.” E lá ia a puta da velha (que, pensando bem nisso, provavelmente era bastante mais nova do que eu) confabular com a minha Mãe sobre o tal de romance para crescidos.

    [7] Ou então, no meio de caos das dezenas de prendas da família, foi Deus que lhe pôs na capa um post-it a dizer CLARINHA e está a andar. Foi assim, aliás, que nasceram os post-its.

    [8] Era a tradução portuguesa, claro está. Aos 28 anos, quando estava em Monterey (no meio do nevoeiro) e, ao tentar traduzir o título usei THE RAISINS OF ANGER, toda a gente me percebeu mas fui gozada até mais não. O verdadeiro título original do livro é THE GRAPES OF WRATH. Eu sei que Deus queria facilitar-me a vida com a tradução portuguesa, mas depois também se devem ter divertido imenso à minha custa, lá nos Céus.

    [9] Haviam de ver os meus livros agora. É cantinhos de página dobrados por todo o lado, e, na ausência de lápis nas proximidades, chego a marcar passagens, e até a gatafunhar notas à margem, a esferográfica vermelha, ou a marcador de ponta de grossa. E o que é que tem? Os livros são meus, ou não são?

    [10] Tortilla Flat é um pequeno planalto, cimeiro a Monterey, onde se acolhe a camada populacional incapaz de pagar os custos extravagantes da vida na cidade. Porque é que este título foi traduzido em português como O MILAGRE DE SAN FRANCISCO, sendo que, ainda por cima, o romance não nos fala de milagre absolutamente nenhum – a menos que a amizade entre os homens deva, de facto, considerar-se um milagre? Estamos certos de que as más traduções não provam a existência de Deus. Por outro lado, no entanto, pode ser que provem a existência do Diabo. Já era meio caminho andado para Deus existir mesmo.