Nos dias que correm, leia-se, das redes sociais, a melhor forma de receber atenção é dizer alarvidades. Quanto mais aberrante, repleta de ódio e ofensiva for a mensagem, maior atenção recebe o seu autor.
É uma estratégia utilizada, por exemplo, por André Ventura há alguns anos – e com o conhecido sucesso que os votos demonstram. Aquilo a que muitos chamam “dizer as verdades”, ou “dizer o que os outros pensam”, é geralmente uma simples demonstração de ódio, falta de educação e pouquíssima noção do que deve ser a vida em sociedade.
Alexandre Pais, um antigo jornalista de quem nunca tinha ouvido falar, veio desde anteontem para a ribalta com uma crónica absolutamente lamentável sobre Maria Botelho Moniz, uma apresentadora da TVI, de quem também nunca tinha ouvido falar.
É relativamente indiferente o meu conhecimento de ambos para esta crónica nem isso os diminuiu. Depois de tentar perceber quem eram as personagens, entendi que a falha do desconhecimento era obviamente minha. Alexandre Pais é agora um ex-jornalista bem velhinho, que já andou a virar frangos nas redacções há muitos anos. Passou pelo 24 Horas, Record, Sábado e Correio da Manhã, o que explica o meu desconhecimento, uma vez que opto sempre pela Renova, quando compro papel higiénico.
Maria Botelho Moniz apresenta os programas que a minha avó vê – e, por aí, eu de facto deveria saber quem ela era.
O texto dedicado por Alexandre Pais a Maria Botelho Moniz resume-se a esta frase: és gorda e não devias aparecer na televisão.
Ele lá acrescentou uns parágrafos – para aquilo não parecer um tweet – mas a ideia era dizer que lhe custava ver tal personagem na tela mágica. Perguntar-me-ão que interesse há em tal texto? Pior, o que me leva a comentar um texto que não tem qualquer interesse? Seriam questões legítimas, com efeito.
Alexandre Pais, ex-jornalista e colunista do Correio da Manhã.
No meu caso é a confiança do Alexandre. Temos um velhinho, com uma careca bem polida, umas orelhas todas pontiagudas e uma pele ressequida a escorrer pelo queixo, a fazer lembrar o Voldemort, e que acorda um dia e pensa: “epá, incomoda-me ver aquela gaja na televisão… já tenho crónica”.
Já agora, convém também dizer que não sabia quem era o Lord Voldemort até o meu filho me obrigar a papar os 300 filmes do Harry Potter. Agora percebi que não era o Ralph Fiennes maquilhado que lá aparecia no castelo de Hogwarts, era sim o Alexandre, que terá sido descoberto pela J.K.Rowling numas férias no Algarve. Aposto que se conheceram na Kadoc, ali para os lados de Boliqueime.
Bem sei que o escrito era para o Correio da Manhã, mas, mesmo assim, não teria sido de básica sensatez o Alexandre olhar para um espelho antes de se meter a fazer crónicas de beleza?
Diz ele que não tem ódio e que só diz o que vê. Ele, o Alexandre, que também fazia televisão (ou parecido, já que era na CMTV) e que a todos nos presentava com aquelas feições estonteantes. Que confiança!, que altivez a do velhote!
Não contente, ainda falou nas peles caídas dos braços da Cristina Ferreira. Que rei! Lord Voldemort a dizer que a Cristina Ferreira tem de trabalhar mais os tríceps. Carlos Castro rebola no túmulo com estas crónicas do cor-de-rosa.
O meu problema não é apenas por um estafermo ser pago para irradiar ódio enquanto insulta a beleza física dos demais. Aquilo que mais me choca é como um diretor de jornal permite a publicação de tal pedaço de estrume. Repito: mesmo para o Correio da Manhã, deveriam existir mínimos olímpicos.
Alexandre Pais saiu da gruta com o alvo habitual e mais fácil: as mulheres no espaço público. Reparem que ninguém exige a um apresentador homem que seja mais agradável à vista no ecrã. Ninguém pede a Marques Mendes que chegue com os pés ao chão quando se senta ao lado de Clara de Sousa. Ninguém pedia a Fernando Mendes que desviasse a barriga para vermos o Preço Certo. Ninguém proíbe o Costa de falar aos jornalistas até limpar o tártaro dos dentes. A ninguém incomodava o olho preguiçoso do Medina Carreira. E, que me lembre, ainda não cancelaram o Mira Amaral que ao fim de 30 segundos a falar encher os cantos da boca de espuma. Isto já para não falar do exército de carecas com aqueles restos de cabelo cheios de sebo que pululam em todos os canais.
Maria Botelho Moniz, apresentadora da TVI.
Já com as mulheres, enfim, convém que sejam todas em formato de viola e com peles bem esticadas. Ao estilo de Catarina Furtado ou Sónia Araújo, como o bom do Alexandre referiu. Repare-se que é um homem que critica, mas apresenta logo a solução. “Mónica, tenta ser igual à Catarina para meu deleite pessoal”.
Que homens destes tenham espaço público para opinarem atrocidades do século XIV, aborrece-me no Portugal de 2023. Ver a mulher como um objecto que, ao contrário de homens na mesma função, não estão lá para informar, ler notícias ou liderar programas de entretenimento.
Aparecem na televisão apenas para que idosos de cabeça bem polida, já sem funções vitais operacionais no baixo-ventre, tentem sentir aquele calafrio da esperança no movimento, enquanto fazem zap nos canais nacionais.
Não penses mais nisso, Alexandre. Há peles que a partir de certa idade, por mais Catarinas e Sónias que vão aparecendo na TV, já não vão mesmo ao sítio.
Ah, e espero não ter ofendido o Alexandre com as minhas descrições físicas do sujeito. Tal como ele, também só relato o que vi.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Este homem[1]é um herói da consciência nacional[2]
Allen Ginsberg
Contracapa de THE POLITICS OF ECSTASY, 1965
Querido Zé Duarte, soube na quinta feira, dia 30 de Março, que fizeste 84 anos e pronto, encostaste à box. Provavelmente estavas farto, mas é uma grande chatice, sabes. Temos todos de morrer, mas os que nos vão fazer muita falta deviam ser obrigados a segurar a barra por pelo menos mais um século. Foste uma das figuras mais marcantes, mais criativas, mais inovadoras, do século XX português. Foste absolutamente incontornável, e agora, sem ti, torna-se complicado entender por onde é que realmente passarão mais caminhos. Isso viu-se logo na noite da tua morte. Fui sentar-me a correr diante da televisão, à espera de ouvir contar todas as invenções multifacetadas que eu sei que te devemos, porque trabalhei contigo, dei contigo em doido, andei contigo ao murro, e ri contigo como com poucas outras pessoas. Epá Zé, mas, olha, não. Não, imagina. Tanto espaço novo que tu desbastaste para o sorriso inteligente de um país que inventaste sempre à beira de uma ou outra neurose feliz, e sabes o que é que eles diziam?
“José Duarte foi durante 40 anos o autor do programa diário CINCO MINUTOS DE JAZZ, que apresentou na Renascença, Comercial, e Antena 1.”
Ouve lá. Eu não aguento estas vistas curtas. A puta que os pariu, Zé. Entendes? Nunca te ouviram, sequer, a passear pelo estúdio da Comercial enquanto fazias sermões louquíssimos com o sotaque de um padre de Viseu. Não sabem nada de ti. Desconhecem por completo a tua arte mágica do improviso – como daquela vez em que me atiraste à cara, assim mesmo completamente lixado, “a tua felicidade ofende-me!”. Lembras-te? Só tu, Zé. Só tu é que gritavas uma frase destas enquanto te punhas em pé de um salto, com toda a gente a ver, no meio do Café de São Bento.
Este filme que ninguém que lá estava esqueceu quer dizer muitas coisas boas, infelizmente todas elas extintas algures durante os anos 90. Passava da uma da manhã, a meio de uma semana de imenso trabalho. Na minha mesa éramos quatro miúdas, todas entre os trinta e os quarenta anos, produzidas, giras, descascadas, a comer bifes e a beber Moet Chandon, o que implica que, na altura, desde que se trabalhasse muito e o resultado fosse bom, havia dinheiro para festas como estas. Assim sendo andávamos atraentes e contentes, pelo que o estrago de dormir pouco, desde que repetido com moderação, era o menor dos nossos males.
S observa atentamente o cuidado com que CPC embala o seu novo afilhado, a quem acaba de dar o nome de Panzer, já que os Leões da Rodésia não crescem tanto como os Rafeiros Alentejanos mas quase. Sempre que as piadas em quadrinhas de pé quebrado que eu escrevia para o PÃO COM MANTEIGA sobre os dilemas dos animais eram perdidamente cruéis, sobretudo para uma jovem bióloga que tinha a obrigação de gostar muito deles, o Zé Duarte olhava para mim sem esconder a sua perturbação e rosnava-me “You’re sick!” E eu, que só tinha 25 aninhos, ficava tããão orgulhosa…
Acontece que, nessa noite em particular, o Zé Duarte entrou quando os nossos bifes iam a meio e foi sentar-se na mesa ao lado da nossa, na companhia de mais dois indivíduos incaracterísticos. Fez-nos os devidos acenos de cabeça. Deu à situação a sua devida pausa romântica. Por fim, iniciou as manobras de aproximação com base numa razão perfeitamente aceitável: conhecia-me do PÃO COM MANTEIGA, já lá iam muitos anos, aqueles anos daquela vida que eu tive antes de ir para a América.
Reparem, isto também quer dizer que, nesse nosso mundo, nesse nosso País, uma pessoa descontente com o curso que a sua vida estava a seguir podia agarrar em si e mudar tudo de uma só vez, assim mesmo completamente, de todo em todo radicalmente. Aliás, nessa noite estávamos ali todas de encher o olho porque eu acabava de defender as minhas provas de doutoramento em Portugal[3]. E isto quer dizer que, nessa altura, estas coisas não eram fáceis, mas eram uma questão de teimosia e de qualidade, e faziam-se. E mais, e faziam-se bem[4]. Os outros dois indivíduos não tinham ponta por onde se lhes pegasse, portanto a mais alta e imponente de nós todas começou a mandá-los desamparar a loja, porque se era para cenas canalhas a gente preferia uma cena canalha em que só entrasse o Zé. O Zé começou a puxá-los pelas mangas e a ordenar-lhes que pagassem tudo antes de sair.
Foi quanto bastou para a minha melhor amiga, linda de morrer, os olhos azuis a atravessar os pobres homens como espadas, os cabelos loiros a enfeitiçá-los como os olhos caleidoscópicos da serpente, o minivestido de licra amarela a revelar-lhe todas as belíssimas curvas e todas as arrojadíssimas ausências de fios dentais e wonderbras, ir ter com os dois inexistentes a bambolear as ancas em cima da vertigem dos seus saltos agulha, agarrar no maço de Dunhill que eles tinham na mesa, levar um cigarro aos lábios, beber do copo de um deles, depois beber do copo do outro, e depois pedir aos dois ao mesmo tempo sem fixar a atenção em nenhum deles em especial,
“Meu Baby, tu, ou tu, meu Baby. Dá lume à mãe e dá lume à mãe, please,”
de onde resultaram acto contínuo dois isqueiros acesos logo ali, o que me fez abrir a minha caixa dos medicamentos e dizer aos dois que tomassem um cor de rosa que ia fazer-lhes bem, e a seguir que hit the road Jack, a malta queria era ficar com as partes todas do Zé Duarte e não tinha interesse em partes transparentes de mais ninguém.
Como o empregado vinha a aproximar-se para nos trazer outra garrafa que era oferta de dois senhores do balcão, a nossa amiga New Age, com os seus olhos verdes enormes e os seus dedos como algas, disse-lhe em voz comandante e cristalina,
“Ó Octávio, amoroso, és capaz de pôr estas duas criaturas inexistentes na rua, para pararem de bloquear o nosso acesso ao Zé Duarte?”
O que quer dizer que nessa altura nós sabíamos o nome dos empregados e estávamo-nos bem nas tintas para os senhores do balcão, mas começámos a encher uma flute para o Zé e eu ofereci-lhe um pratinho quentinho cheio de batatas fritas enquanto o Octávio tratava de pôr os transparentes a milhas depois de os ter obrigado a pagarem as contas de toda a gente, incluindo as nossas.
“A mãe é má, Baby”, disse a minha melhor amiga para o Octávio, com uma piscadela de olho que ou eu me engano muito ou assustou um bocado o Zé Duarte.
“E já agora toma quatro destes cor-de-rosa, Zé,” acrescentei eu, decidida a tranquilizá-lo mas um bocado perdida de riso. “Fazem o quádruplo do efeito com batatas fritas e Moet de senhores do balcão.”
“Mas eu tenho que ir para casa!”, gritou o Zé.
“Come, bebe, toma os cor-de-rosa, relaxa, que depois vamos todas contigo,” prometi-lhe eu. “Assim enquanto eu guio elas tiram-te a roupa pelo caminho.”
“Tiram-me a roupa?”, protestou o Zé.
“Sim!”, garantiram as miúdas, a despachar Moet e batatas fritas. “Toda a gente te tira a roupa, menos a Clarinha, que vai a guiar.”
“Clarinha!”, gritou-me o Zé, como se a culpa fosse minha. “Para que é que elas querem tirar-me a roupa pelo caminho?”
“Para sermos todos muito felizes, querido Zé!”
E foi esta resposta tão doce que fez o Zé levantar-se como que impelido por uma mola, apontar para mim de dedo em riste, começar a recuar para a porta, e bradar o já famoso,
“CLARINHA! DESAPARECE!A TUA FELICIDADE OFENDE-ME!”
Saímos as quatro a correr atrás dele, e o Café de São Bento brindou-nos com uma grande salva de palmas.
Quando a porta se fechou por completo e já ninguém podia ver o verdadeiro desfecho, metemos o Zé Duarte num taxi que ia a passar e mandámos o motorista seguir para o Vá-Vá. Era o super-poder incomparável daquele homem. Para onde quer que fosse, estava constantemente a potenciar o acontecimento de coisas impossíveis como esta. Depois fomos andando para o meu Toyota amarelo alugado, empandeirado algures em cima do passeio. Sabíamos as quatro, perfeitamente, que o Audi cintilante do Zé Duarte estava estacionado na esquina, do outro lado da rua, mesmo em frente ao Parlamento, onde o reboque entra em acção logo às sete da manhã. Mas nisso é que nunca poderíamos interferir, mesmo que quiséssemos. Toda aquela aventura inesquecível era dele. Não era nossa.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Ginsberg referia-se aqui a Timothy Leary, e não ao Zé Duarte, que obviamente nunca conheceu. Mas o efeito é o mesmo e a heroicidade aplica-se da mesma forma a ambos os homens.
[2] Ginsberg referia-se aqui à consciência americana, que Leary sacudiu vivamente nos anos 60. Mas, exactamente no mesmo acto deliberado de assalto à psique, com a mesma vivacidade, poderia estar a referir-se à consciência portuguesa. O Zé Duarte guiou-nos durante dezenas e dezenas de anos num MAGICAL MYSTERY TOUR absolutamente fantástico. Se o consumíssemos, sabíamos que a viagem nunca seria má. É extremamente raro podermos dizer isto de alguém. Nos tempos que correm, então, já não há praticamente mais nenhuma personalidade que nos ofereça garantias semelhantes. Talvez o Papa Francisco. Mas, infelizmente, tudo indica que também ele está prestes a ir-se embora. Ficaremos, então, radicalmente órfãos de todo e qualquer bom gosto.
[3] Isso contribuiu, em grande medida, para a tal felicidade que ofendeu o Zé.
[4] Para encurtar razões, aquilo foi um castigo: além da prova normal do primeiro dia, no dia seguinte ainda tive que defender mais uma prova, consistente em apresentar e argumentar um projecto de investigação. No primeiro dia o material era muito menos interessante, mas o anfiteatro estava a deitar por fora. No segundo dia só estavam os familiares e amigos, o que me entristeceu, porque neste caso sim, o material era apaixonante. “A audiência veio toda no dia errado,” comentei com um amigo que dava lá aulas ao terceiro ano. “Hoje é que era giro ouvir as novidades.” O meu amigo riu com carinho, na constatação óbvia de que eu já começara a esquecer o meu próprio País. “Clarinha, então?”, disse-me ele. “O pessoal não veio ouvir as tuas provas. O pessoal veio ver-te chumbar, porque era isso que toda a gente dizia que ia acontecer. Quando perceberam que não chumbavas coisa nenhuma deram à sola. Não estamos todos fartos de te avisar que as pessoas são más?” Mas não, eu não conseguia ouvir. Passava demasiado tempo na América para me cair a ficha de que as pessoas são más. Nem com a acusação de plágio caiu como deve ser, uma vez que eu também estava na América quando me fizeram essa baixaria. Foi mesmo preciso toda aquela ordinarice do orgasmo, o desemprego, o abandono – ou seja, só me caiu a ficha quando fiz cinquenta anos, caraças! Tinhas toda a razão, Zé: “I WAS SICK”!
Porque há uma enorme insensibilidade crítica na esquerda alcoólica e fumadora contra os direitos dos outros? Fumar e beber, mesmo que em excesso, é uma habilidade social, um escape de todos os que entendem aquelas imagens do intelectual excessivo, do poeta enevoado, do escritor tombando no regresso a casa.
Esta ideia da bebedeira premiada de Cultura encobre e “justifica” muitos casos de violência sobre as mulheres, muitos acidentes de viação, e muitas causas de doença.
Já o nevoeiro interno e externo, todas as lutas para o direito de fumar, encobrem a brutalidade das patologias que lhe estão associadas e todos pagamos no Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Fumam porque são direitos individuais e direitos de liberdade. As consequências nunca importam.
Já a presença do jogo livre, em casinos e em Santas Casas de enriquecer com a miséria alheia, é outra coisa muito aceite pela esquerda e pela tolerância actual das lideranças do Mundo.
Também a completa democracia do açúcar é considerada uma coisa intocável, sendo hoje a maior causa de doença da juventude. O uso de telemóvel nas estradas é outra fantástica causa de acidentes e mortalidade nos condutores mais novos. Não se criam aplicações nem métodos de impedir o seu funcionamento dentro de automóveis, se calhar porque não se quer.
Porque vem um tipo com os dedos amarelos da nicotina, de copo de whisky na mão gritar contra a liberdade da prostituição protegida pela lei?
Porque não somos a favor da máxima liberdade sujeita a códigos de boa convivência?
A construção de regras e de limites permite definir as condutas e os gestos em tecido social.
Detesto que ouçam teleparvoíces nos lugares públicos. Detesto ouvir as conversas alheias à porta da consulta e no bar do Hotel. Teremos de regrar esta poluição sonora trazida pela tecnologia que hoje é o novo tabaco dos aviões, das salas de espera, dos restaurantes. Os cidadãos têm mecanismos de nos poupar aos seus sons – usem-nos.
O som espalhado pelas Câmaras Municipais nas cidades. O tonto que vai para a floresta ouvir rock aos berros, o estúpido que nos impede de escutar o vento e os pássaros ao pôr do Sol. Mas há uma lista de coisas que sim e outra que não, mesmo que o contraditório não se coloque. O que importa são as minhas certezas e as minhas convicções.
Não, não tendes razão. A prostituição de seja quem for, deve ser livre e protegida, e pagar impostos e permitir a reforma. Sim, o trabalho de casa pode e deve ter algum valor que permita a mulher, mãe e dona de casa defender-se num divórcio com um abusador. Sim, o alcoolismo deve ser causa favorável de divórcio e protecção de menores. Sim, o tabaco é uma droga e deve ter as mesmas opções terapêuticas que as outras dependências. Sim, o tabaco é causa de absentismo laboral e de menor trabalho em muitas circunstâncias.
Dito tudo isto, defenderei sempre o direito de fumar, o direito de beber, o direito de estar ao telemóvel, o direito de dares umas voltas cobrando o teu corpo, mas sempre no respeito da existência do outro. O outro está antes do teu egoísmo, é isso? – é boa educação.
Diogo Cabrita é médico
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Susana Silva, Ana Rita Torres, Baltazar Nunes e Ana Paula Rodrigues são investigadores do Departamento de Epidemiologia do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), e receberam a incumbência de realizar um relatório que tem, “como objetivos, descrever a evolução da mortalidade por todas as causas durante o ano de 2022 [semana 01/2022 à semana 52/2022 (03 janeiro de 2022 a 01 janeiro de 2023)], bem como identificar e analisar os períodos de excesso de mortalidade identificados.”
Sem prejuízo de ser uma análise muito criticável em muitos aspectos – como já expus esta quinta-feira –, certo é que, pela primeira vez, se viu um relatório de uma instituição oficial a referir um tema tabu: o excesso de mortalidade “no grupo etário entre os 15 e os 24 anos”, cuja afectação directa pela covid-19 foi nula (ou até com balanço favorável, porque a mortalidade dos doenças respiratórias nestas idades até regrediu).
Esta informação não me surpreendeu. Alertei sobre este problema pelo menos três vezes no PÁGINA UM: em 3 de Setembro e em 15 de Novembro do ano passado, já este ano, em 2 de Janeiro:
Mas que fizeram estes quatro investigadores do INSA? Foram analisar as causas para esse tão grave desvio? Nada disso. Especularam somente e passaram adiante. Na página 16 escreveram apenas: “Os excessos de mortalidade nos grupos mais jovens são raros estando, maioritariamente, associados a causas externas de mortalidade. A ausência de informação disponível quanto às causas de morte não nos permite confirmar esta hipótese que colocamos como mais provável, dado o conhecimento anterior e o padrão do excesso observado (aumento acentuado em relação ao habitual e de curta duração).”
O negrito é meu. E esta pergunta também: mas que raio de investigadores são estes que, perante um excesso de mortalidade num grupo etário que congrega naturalmente tanta preocupação, descartam qualquer análise posterior, assumindo de forma leviana ser “provável” que siga um padrão de “causas externas”? E como podem investigadores – que investigam nesta área da epidemiologia – dizer que existe uma “ausência de informação disponível”?
São eles preguiçosos?
Análise feita em 2 de Janeiro passado pelo PÁGINA UM para o grupo etário dos 15 aos 24 anos: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e excesso de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do excesso de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável. Fonte: SICO.
Ou são eles apenas incompetentes?
Qualquer um destes dois predicados são incompatíveis com a função de (bom) investigador.
Vamos lá ver. Recordo-me que recentemente – em Maio do ano passado, para ser mais concreto – houve grande burburinho mediático e político porque se soube que “morreram 17 mulheres devido a complicações da gravidez, parto e puerpério, em 2020”, o valor mais alto dos últimos 38 anos. São 17 óbitos em cerca de 100 mil gravidezes por ano. Mas logo se anunciou a criação de uma “equipa com especialistas de diferentes áreas para investigar o problema.”
Ora, sabe-se que o excesso de mortalidade no grupo etário dos 15 aos 24 anos durante o ano passado foi de 65 mortes superior à média do quinquénio anterior à pandemia. Morreram 375 jovens; a média para o período de referência foi de 310. Se se considerar o quinquénio 2017-2021 a média é de 314.
Estamos perante um desvio de 75 mortes em relação ao valor que seria expectável para esse ano (face à redução do número de jovens). É um acréscimo relativo muito significativo, que não pode ser descartado numa frase sobre uma alegada “ausência de informação disponível”: 20% acima da média dos cinco anos anteriores.
Face a um desvio de 20% não é o padrão da “causa externa” que nos deve surgir como a mais “provável” – a menos que tenha caído uma camioneta cheia de estudantes por uma ribanceira e ninguém se tenha apercebido disso.
Se houve um desvio tão pronunciado e repentino num curto espaço de tempo, o mais provável é que o padrão tenha sido quebrado; não o contrário.
Além disso, como é possível que investigadores do INSA, ainda mais do Departamento de Epidemiologia, ignorem os seus direitos (mas também os deveres) de acesso à informação que lhes concedeu a lei que instituiu o Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO)?
Se não sabem, eu relembro-lhes. De acordo com a Lei nº 15/2012, que criou o SICO – onde se integram dados não disponibilizados ao público, como os certificados de óbito de cada falecido – no seu artigo 12º, “os dados constantes do certificado de óbito podem ser disponibilizados pelo diretor-geral da Saúde às entidades do Ministério da Saúde responsáveis pela vigilância epidemiológica, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 7.º da Lei n.º 67/98, de 26 de outubro.”
E para que não haja dúvidas, a Lei Orgânica do Ministério da Saúde estipula, no seu artigo 18º, que “o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, I. P., abreviadamente designado por INSA, I. P., é o laboratório do Estado que tem por missão contribuir para ganhos em saúde pública através da investigação e desenvolvimento tecnológico, actividade laboratorial de referência, observação da saúde e vigilância epidemiológica, bem como coordenar a avaliação externa da qualidade laboratorial, difundir a cultura científica, fomentar a capacitação e formação e ainda assegurar a prestação de serviços diferenciados, nos referidos domínios.”
Portanto, e dizem estes quatro investigadores que estamos perante uma “ausência de informação disponível”?
Repito, por isso a pergunta: são estes quatro investigadores do INSA apenas preguiçosos ou incompetentes? Ou estão antes a tentar relativizar e esconder uma verdade inconveniente?
Portugal deve ser o único país do mundo com a Presidência entregue a um Ser omnisciente.
Diariamente, cerca de dez milhões de portugueses escutam, ávidos de novidades e conhecimento, os discursos, as opiniões, os conselhos ou, simplesmente, os apartes do Chefe de Estado.
São horas de lições dadas sobre todos os assuntos, a todas as horas, em todos os dias do ano.
Não será uma Enciclopédia, com todos os temas bem arrumados e classificados, mas é, indiscutivelmente, um “google com pernas”.
Marcelo fala de tudo, e de todos, com uma convicção superlativa.
As frases saem, em catadupa, sobre ouvintes estarrecidos com tal sapiência.
Gestos, calculados ao milímetro, acompanham as frases numa coreografia que faz aumentar a confiança no orador.
Um rosto expressivo, onde ao olhar duro da reprimenda se segue um sorriso de desprezo dirigido aos que ousam pensar diferente, permite o aumento da credibilidade à enorme falange de portugueses formados na “universidade da vida”.
Seus indefectíveis votantes.
E são milhões, como o Facebook prova.
Marcelo é um mestre-escola do início do Século XX.
Impõe a sua autoridade, fala para ensinar e não para dialogar e é homem de certezas absolutas.
Tudo com ar paternal.
Os raros momentos em que não nos entra pela casa adentro, em conluio com os canais de televisão, permitem-nos analisar todas as suas palavras com mais serenidade.
Discuti as conclusões a que cheguei, com alguns amigos, e para meu espanto vi que a maioria concordava comigo.
Marcelo discute futebol e ficamos a perceber que talvez entenda de Justiça.
Fala de defesa nacional e compreendemos que saberá de pesca.
Opina acerca de finanças e todos concordam que pode ser expert em gestão hospitalar.
Analisa a situação internacional e sentimos que é, quiçá, especialista em educação.
Aborda a guerra na Ucrânia e ficamos com a certeza absoluta de que é um profundo conhecedor de melões.
Comenta a qualidade dos vinhos, qual enólogo, e fica a convicção do seu saber sobre obras públicas.
Marcelo debate música clássica, com qualquer maestro consagrado, nos quinze minutos de intervalo de um jogo de futebol.
Faz crítica literária ao almoço, entre o prato de peixe e o de carne. Sempre com adjectivos ultra qualificativos.
Concede uma entrevista-monólogo nos vinte minutos que tem livres entre a recepção a um atleta português, terceiro classificado numa prova de badminton no Burkina Faso, e um jantar comemorativo dos vinte anos de existência da Sociedade Filarmónica de Boliqueime.
Analisa um orçamento de estado enquanto sobe as escadas de um avião que o levará para uma das dezenas de viagens que faz, anualmente, ao estrangeiro.
E, nesses países, o frenesim continua.
Reuniões com políticos e compatriotas, discursos em dezenas de cerimónias, inaugurações, distribuição de medalhas e bailaricos.
Nos discursos em línguas estrangeiras consegue esquecer a lição que todos os políticos deviam aprender antes de se aventurarem a falar noutra língua que não a portuguesa:
Poliglota é um indivíduo que sabe falar várias línguas, poliglota inteligente é o que sabe estar calado em vários idiomas.
Marcelo fala, consciente da sua omnisciência, um pouco de tudo.
Conclusões:
Marcelo não é, ainda, um político confiável.
Talvez nunca venha a ser.
Marcelo não é, ainda, Caetano.
Com a sorte que tem, talvez nunca chegue a ser.
Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Quando soube da morte de duas pessoas às mãos de um agressor armado com uma faca, em plena luz do dia em Lisboa, fiquei chocado. Não é, infelizmente, o tipo de notícia rara nos dias que correm, mas não costuma ter a capital portuguesa como local da ocorrência.
Daqui da Suécia, desconhecia totalmente o Centro Ismaili, ou a sua comunidade, e, como tal, escuso-me a engrossar o rol de pessoas que elogiaram a sua accão na integração de emigrantes. Estou certo que fazem um trabalho louvável, e não será esse o objecto deste texto.
Parto da tragédia como ponto de análise. Duas pessoas foram assaltadas no seu local de trabalho e assassinadas. Há várias questões que a partir desse momento são importantes para o debate. Tudo isso passou para segundo plano assim que se soube a identidade do autor do crime: afegão.
Pessoalmente, comecei a fazer contas aos minutos que faltariam para a primeira intervenção de André Ventura. Como é óbvio, ele não desiludiu. Um afegão em Lisboa envolvido num crime é tudo o que a extrema-direita precisa para começar a cavalgar a onda do populismo.
Contudo, não estiveram sozinhos na empreitada. Vi um ex-inspector da PJ que à pergunta “por onde deve começar a investigação”, começou por responder que “os políticos abrem as fronteiras e vendem o sonho do El Dorado europeu”.
O ódio e o xenofobia começam a ser sentimentos normais, até corriqueiros, nesta Europa que vai levantando muros todos os dias.
A quantidade de disparates, de incitação ao mais básico racismo e de falta de sensibilidade foi de tal forma grande nas horas seguintes ao crime que, no fim, acabámos por não perceber o que interessava (as razões daquele crime) e cedemos o palco a demagogos que vivem da exaltação da raiva.
A meio do dia vi que tinham convidado Ventura para um debate numa televisão. Quem é que tinha alguma dúvida do discurso que aquele energúmeno ia debitar? E que mais-valia é que podia trazer à conversa, para lá de pedir votos em cima do sangue derramado?
Foi quase penoso de ouvir. Mas, aposto, foi eficaz como faca quente em manteiga; aquele discurso de ódio cativou mais uns votos.
Entre os argumentos mais idiotas está o de acolher gente que foge de guerras ou de países árabes. A primeira pressupõe que, se chegam de zonas de conflito, estão todos malucos e de faca nos dentes. O padre que acompanha o Ventura e lhe dá a mão, provavelmente, ainda não teve tempo de lhe explicar que é exactamente pela guerra que precisaram de fugir. Se a NATO ou as potências vigentes pararem de lhes bombardear o quintal, pode ser que não precisem de vir para o “El Dorado europeu”. É questão de, no confessionário, o André abrir os olhos enquanto lhe fazem o desenho.
O outro soundbite forte é que “não é a mesma coisa receber um brasileiro ou um paquistanês”. Esta conversa faz-me lembrar as gritarias dos ciganos e do RSI e, quando se foi ver, os beneficiários daquela fortuna de 100 euros eram uma gota no oceano. Ora, com os “emigrantes que não são de bem”, a conversa é a mesma. Portugal tinha uma quota de 10 mil lugares para refugiados e acolheu pouco mais de mil.
Ou seja, por mais que o Ventura grite, a realidade é que nem a fugir de rajadas de metralhadora os refugiados escolhem Portugal como destino. Mesmo assim, os poucos que cá vêm parar têm que levar com as bandeiras do Chega e ser usados como bode expiatório. Todos os dias há assaltos de “emigrantes de bem”. Todos os dias há problemas com portugueses. Mas se um crime é levado a cabo por um afegão, está a generalização feita a sírios, paquistaneses, iraquianos e aos outros afegãos todos.
Aquele energúmeno – julgo que é um nome aceitável para o desempenho – até chegou a dizer que o PS e PSD tinham votado a favor da lei que tinha permitido que este homem, depois de ver a mulher morrer num campo de refugiados da Grécia, tivesse conseguido chegar a Portugal com os três filhos menores.
Como o país está a envelhecer – julgo que essa estatística André Ventura saberá –, ainda se deu ao luxo de dizer que devemos acolher emigrantes mas apenas alguns: os que vêm trabalhar e contribuir para o país, não os que fogem de zonas de guerra. É um conceito engraçado, porque, se a memória não me falha, os louros que fugiram da Ucrânia vinham contribuir; já os que fugiram dos Talibã, nem tanto. Mas é curioso que nos tempos do PSD, o mesmo André defendia que devíamos receber os refugiados sírios.
É uma solidariedade à la carte, ao sabor do vento das redes sociais e sempre, mas sempre, ao encontro do que pode trazer mais uns votos.
Ventura diz, como diz sempre a cada desgraça, que o Governo tem sangue nas mãos, porque permitiu que este homem entrasse no país. Mais lógico seria afirmar que ele, por cada discurso de incentivo ao ódio, fica com as mãos ensaguentadas de cada vez que um crime racial acontece. E esses, ao contrário do ataque no Centro Ismaili, não são tão raros nos tempos que correm.
Alguém me explicará como é que um partido sem ideologia ou ideias próprias, para lá do racismo e do ódio, chegou um dia a terceira força política de um país de emigrantes, como é o caso de Portugal.
E como é que, num dia de absoluto drama e sofrimento para as famílias envolvidas, o homem mais citado, visto e ouvido é o Pastor Ventura?
Trilhamos caminhos perigosos.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Uma menina em cadeira de madeira em escola bafienta, desconfortável, pernas a baloiçar, pergunta-se sobre que mapa é aquele ao fundo, na parede ao lado do quadro, se aquilo é a vista dos fantasmas de quem morreu. O atlas. Nós ao centro, os mares que se unem mas têm nomes diferentes, a cauda da Ásia que por alguma razão inexplicável tem direito a ser outro continente (perguntou, não disseram porquê), a enorme África calcada aos pés de tão ridículo e pequeno continente de pequenos retalhos e a sombra inclinada da ameaçadora América do norte, com garras apontadas em tenaz.
Pobre Antártida ignorada, e como diferente seria o mapa se tivessem decidido pô-la ao centro (perguntou, não disseram porquê). Devia ser por medo do frio.
A menina nota que há uma decoração obrigatória naquela sala, parecida com as outras salas do resto da escola. O mapa, um ábaco, um crucifixo, a lousa com a data e o nome da escola impecavelmente caligrafados a branco, o apagador sempre sujo ou a tela com todas as notas e moedas de escudo. Tudo é imensamente velho. Nomes cravados diligentemente nos tampos de madeira, os sulcos mais parecem uma nova rugosa casca de árvore e não pode escrever numa folha sem ter o livro debaixo. Outras pessoas foram meninos e meninas ali e hoje só existem aqueles nomes. Que raiva a mesa destruída mas, ao mesmo tempo, pobres meninos de quem só sobram aquelas rugas, melhor assim, deixa estar. (E já agora, vou preencher a caneta, vou ressuscitá-los.)
Quando as pernas já chegam ao chão o mapa ganha tamanho, a corrida acelera e corta o fôlego.
Como assim eles venceram a guerra e libertaram-nos? E não quiseram nada em troca? (Perguntou, não disseram porquê.)
A bomba cai, depois cai outra (e de Dresden não falamos). A bomba. É vê-los ainda a tiritar de medo.
Para a menina não dá medo, a bomba não existe e histórias em papéis e mapas há muitas e ela lê todos os dias debaixo do cobertor durante a noite com uma lanterna de bolso, como assim não quiseram nada em troca? Simplesmente foram embora pelos nossos lindos olhos e disseram “estais salvos europeus, sejam felizes e continuem a tocar piano e a erigir catedrais, nós vimos cá nas férias, gabar-vos a sopa”.
Curiosos os povos ocupados que não sabem que o são. (Tenham medo do novo bigode, seja ele do tamanho do dedo do anjo ou farfalhudo, o perigo está no bigode, homem que é de confiança apresenta a cara lavada!)
Santa América, nosso reich salvador, nossa mestra. Falaremos tua língua, consumiremos avidamente tua cultura, tua subcultura, tua usura. Estamos habituados a mapas cor de rosa, diz-nos o que fazer, nós fazemos, vocês decidem. (A bomba.)
Que sente o pai a quem a filha pergunta se matou pessoas quando esteve em África?
– Mataste pessoas na guerra, pai?
A guerra não existe. A guerra não existiu. Nós fomos mandados para lá, nós não queríamos ir e tiritavamos de medo. O mapa ganhou tamanho (e a corrida acelera e corta o fôlego) e nós queremos é sobreviver e uns correm prá frente, outros correm pra trás, e isto é assim e no fim se tivermos sorte vimos embora e talvez não nos falte nenhum bocado (do corpo) enquanto apanhamos bocados (da alma) e engavetamos memórias algures, uns mais à frente, outros mais atrás, que isto dos móveis onde guardamos as coisas é tudo uma questão de decidir se usamos portas de vitrine (e estarão os vidros limpos?) ou madeira velha com nomes marcados em sulcos rugosos e ainda a menina se lembra de ir preencher a caneta, a ver se ressuscita crianças que por ali passaram.
Que sentiria um pai se tivesse vencido a guerra e a filha lhe perguntasse se matou pessoas na guerra?
E o que é vencer a guerra, rapariga? Quem tem de ir são os homens, vocês ficam aqui a tomar conta.
Tomar conta do quê? Aqui onde? E se a guerra chega cá?
E os homens a tiritar de medo mas as histórias são de papel e o mapa ficou decidido ao centro, a Europa, essa velha senhora, tão pura, tão odiosa.
Os mundos vão e vêm e as guerras aparecem e desaparecem sem que nada disto esteja afinal nas nossas mãos. Se é um eixo, se é um muro, se são aliados que desatam a morder as gabardines uns dos outros assim que saem de Ialta. Enquanto as pernas balouçando na cadeira e a azáfama de folhas de livros a tentarem enfiar-se na nossa cabeça (e na nossa alma), que desconfiança dos livros que se querem enfiar no meu corpo (e na minha alma), se me mandares ler eu já nem vou querer pegar nele.
E os meninos a tiritar de medo (e vão ser homens) mas as histórias mudam de papel e quando voltam da guerra para navegar o mapa descobrem que os barcos são feitos de mar.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
No presente ano, estamos a viver uma nova crise bancária. Em cada crise – por exemplo, a de 2008, quando sucedeu a falência do centenário banco de investimento norte-americano Lehman Brothers –, os reguladores, a imprensa e o governo culpam sempre o “falhanço dos mercados”, a “ganância” e o “lucro a todo o custo”, como as razões mais prováveis para tal cataclismo.
Para resolver uma dada crise, a receita dos reguladores é sempre a mesma: necessitam de mais poderes e de maior regulação sobre os bancos que supervisionam. Uma espécie de: agora é que vai ser!
Acontece que os problemas teimam em aparecer, é sempre uma questão de tempo; mais uma vez, depois de anos e anos com juros a zero, bastou uma pequena subida das taxas de juro, que visava “combater a inflação” que os bancos centrais criaram durante a pandemia (assim classificada pela OMS), para, de imediato, começarem bancos a falir.
O que aqui proponho esclarecer é apontar as razões para o aparecimento cíclico de crises bancárias. Segundo a minha opinião, tal deve-se à prática de Reservas Fraccionadas.
Não é possível a existência de mercados livres sem o respeito da propriedade privada, algo que esta prática pisa e atropela a todo o momento. Com uma licença bancária, os bancos podem confiscar riqueza aos cidadãos, silenciosamente, imprimindo dinheiro sempre que emitem dívida.
Em Março de 2020, em nome de um estímulo monetário para ajudar a economia castigada pela pandemia (assim classificada pela OMS), esta prática até se tornou ainda mais escandalosa, quando o banco central norte-americano, a Reserva Federal, deixou simplesmente de exigir quaisquer reservas, nem 10%, nem 5%, nem 1%, apenas 0%, elevando esta prática ao pináculo do assalto ao cidadão. Que apareça só agora uma crise até espanta os mais cépticos…
Vou então explicar em que consiste a actividade bancária e como apareceu: essencialmente, visava satisfazer três necessidades:
Serviço de custódia;
Processamento de pagamentos – transferência por ordem de um cliente da propriedade sobre uma determinada quantidade de dinheiro;
Intermediação de poupança.
Estas são as três funções originais realizadas pelos bancos. A primeira, consiste em cobrar, por exemplo, 0,5%, do valor do depósito à guarda do banco. Imaginemos que o leitor depositava 100 onças (30 gramas, aproximadamente por onça) de ouro. Neste caso, o banqueiro cobrar-lhe-á 0,5 onças de ouro ao ano pela guarda do seu dinheiro.
Isto significa que se o leitor não realizasse qualquer levantamento ou depósito durante um ano, no final desse período, o seu depósito passaria a valer 99,5 onças. Desta forma, o banco ganhou 0,5 onças consigo, dado que gastou dinheiro numa caixa forte, em segurança e em funcionários para zelarem pela segurança do depósito.
Esta actividade implica que os extractos de conta de todos os clientes do banco coincidam com a quantidade de ouro existente na caixa forte. Imaginemos que este banco emite uma nota, neste caso vamos chamar nota do Banco A, no valor de 1 onça, por cada onça depositada.
Se na caixa forte existem 3.000 onças, propriedade dos clientes do banco, as notas emitidas por esta entidade devem corresponder a 3.000 notas do Banco A. A receita proveniente desta actividade resulta de uma comissão variável ou fixa pela guarda deste dinheiro. Este tipo de depósito designamos por depósito à ordem.
O que é um depósito à ordem: significa que o dinheiro não é propriedade do banco, nem tão pouco um empréstimo ao banco, é apenas algo que ficou à guarda do banqueiro, devendo estar disponível de imediato, assim que os clientes exijam o dinheiro do depósito à ordem.
A segunda função, consiste em identificar a propriedade de cada cliente na caixa forte do banco. Vamos supor que o banco pode actuar de duas maneiras com os seus clientes: (i) emitindo notas por contrapartida de um depósito de dinheiro (onças de ouro); (ii) emissão de um extracto, indicando um valor, por contrapartida do depósito de dinheiro (onças de ouro).
Vamos então imaginar que das 3.000 onças existentes na caixa forte do banco, 1500 correspondem a notas do Banco A e 1.500 constam nos extractos emitidos por esta entidade. No fundo, será o mesmo que o leitor ir-se divertir a uma discoteca e, à entrada, deixar o seu casaco.
Em troca, poderá receber uma ficha uniforme de cor vermelha que indica um casaco, se entregar dois, duas fichas, ou então receber um papel com a descrição do casaco que entregou. No primeiro caso, estamos a falar de notas (um valor uniforme), no segundo caso, de um extracto (uma relação dos casacos entregues).
Como o leitor deverá imaginar, o bengaleiro deverá sempre ter na sua posse os bens, neste caso os casacos, que correspondam às fichas ou extractos do que entregou no início da noite aos clientes, caso contrário, estes irão aborrecer-se, para não dizer outra coisa.
No caso das notas, em particular as do nosso Banco A, estas podem servir como meio de pagamento. Imaginemos que o leitor tem na sua posse 20 notas do Banco A e tenciona realizar um pagamento na feira do livro.
Vamos supor que o livro custa uma onça de ouro. Neste caso, em lugar de ir ao banco converter a sua nota em dinheiro, ou seja, levantar uma onça de ouro, e regressar à feira para pagar ao livreiro, simplesmente entrega uma nota ao livreiro.
Atendendo que o Banco A já atingiu uma enorme popularidade junto da população, a sua nota é aceite pelos demais, assumindo que cada uma corresponde efectivamente a uma onça de ouro, não havendo necessidade de a converter – a tal “confiança” tão reclamada agora.
Desta forma, para realizar o pagamento, basta que o leitor entregue uma nota ao livreiro; este, quando assim o entender, poderá dirigir-se ao balcão do banco A e convertê-la em ouro. Outra possibilidade seria a seguinte: vamos imaginar que ambos, o livreiro e o leitor, possuem uma conta no Banco A.
Vamos igualmente supor que o livreiro possui um terminal POS e o leitor um cartão de débito associado à sua conta. Neste caso, o leitor ao autorizar o pagamento através deste método, o Banco A altera o extracto das duas contas: no caso do leitor, retira uma onça de ouro (débito da conta), no caso do livreiro, adiciona uma onça (crédito da conta).
Esta função pode ser equiparada ao seguinte: se os casacos dos clientes de uma discoteca fossem todos iguais, o bengaleiro entregava fichas em troca da guarda dos mesmos. Durante a noite, os clientes podiam transaccionar entre eles os casacos; desta forma, o que vendeu não necessita de se dirigir ao bengaleiro e o que comprou, caso deseje, passa pelo bengaleiro a levantar os casacos.
Esta é uma das funções de um banco – saber a todo o momento quem é o proprietário do dinheiro guardado no seu armazém; este conhecimento poderá ser anónimo, no caso do portador da nota, ou personalizado, no caso de um extracto.
Para esta função, o banco cobra uma comissão por processar a transferência de propriedade, no caso do extracto, por exemplo, ao emitente da transferência; ou, pode cobrar uma comissão para a conversão das notas em ouro, quando o cliente se dirige ao balcão.
A terceira e última, e talvez a mais importante, é a intermediação de poupança: em que consiste? Vamos imaginar que o leitor tem 120 onças de ouro depositadas no Banco A. Não necessita de 50 onças, podendo conceder um crédito ao banco e, em troca, receber uma remuneração pelo mesmo.
Seguidamente, o leitor terá de saber por quanto tempo está disposto a não necessitar desta quantia: vamos imaginar dois anos. Ou seja, durante dois anos, não terá à sua disposição esta quantia, não podendo usá-la para consumo – aquilo que designamos por Depósito a Prazo, que tem risco, ao contrário do que nos fazem crer.
Por fim, este sacrifício terá um preço. Vamos assumir que o banqueiro está disponível para lhe pagar 4% ao ano por este depósito a prazo. Ao fim do primeiro ano irá receber duas onças (50 × 4%) e ao fim do segundo ano outras duas onças.
Assim, após dois anos de sacrifício, o leitor irá ser o proprietário de 54 onças de ouro. Para pagar ao leitor o que terá de fazer o Banco A?
Neste caso, terá de realizar empréstimos a empresários ou particulares com uma taxa de juro superior, caso contrário, não obtém lucro desta actividade. Vamos imaginar que decide obter uma margem de 4%, desta forma, está disponível para emprestar a 8%.
Caso corra tudo bem, o banqueiro irá ganhar quatro onças, tal como o leitor. Recebe de um cliente quatro onças, a quem emprestou a 8%, e paga ao leitor quatro onças, de quem recebeu um depósito a prazo.
É importante ter em conta que este negócio implica um risco para o depósito do leitor, pois o banco pode emprestar a alguém que não seja capaz de devolver o empréstimo (insolvência, falência…). Assim, ao longo da história, os banqueiros, no sentido de mitigar o risco, emprestam estas 50 onças em fracções, fazendo vários empréstimos ao mesmo tempo: empréstimo 1 de 10 onças, empréstimo 2 de 15 onças…etc.
Desta forma, realiza uma das regras que deverá existir para qualquer investidor: a diversificação. Em que consiste? Em não colocar todos os ovos no mesmo cesto, diluindo o risco por várias empresas ou particulares. No caso de um falhar, não afecta na sua globalidade o risco das operações – ou seja logrará superar as quatro onças que terá de pagar ao depositante a prazo.
Ao longo da história, os banqueiros conseguiram alargar o seu âmbito de funções, através da prática de reservas fraccionadas, tal como seguidamente se explicará. No fundo, trata-se de um método fraudulento, visando obter mais receitas, fruto de algumas particularidades associadas ao dinheiro.
Voltando ao exemplo do bengaleiro numa discoteca. Se os clientes de uma discoteca deixam os seus casacos no início da noite, em troca de uma ficha; é quase 100% seguro que os mesmos serão todos recolhidos ao final da noite. Ou seja, os clientes voltam a entregar as fichas e a recolher os seus casacos. Tal não acontece com o dinheiro.
Os banqueiros cedo se aperceberam que os clientes não levantam os seus depósitos à ordem, apenas uma pequena percentagem o faz. Vamos imaginar que apenas 10% dos clientes converte o seu extracto ou notas em dinheiro no Banco A.
Vamos também supor, que devido ao prestígio atingido junto da comunidade, os clientes do Banco A, na sua grande maioria (90%), não convertem as suas notas ou extractos em dinheiro. Apercebendo-se de tal fenómeno, o Banco A pode fazer um negócio fantástico: imprimir dinheiro do nada!
Vamos supor que o Banco A tem nos seus cofres 1.000 onças de ouro, que correspondem a depósitos à ordem dos seus clientes, 500 em notas emitidas e em circulação e 500 registadas nos extractos. Desta forma, poderá realizar empréstimos a empresários e consumidores por valor de 9.000 onças. – Como? – Pergunta o leitor.
Simplesmente, o Banco A emite notas por contrapartida de um empréstimo. Ou seja, imaginemos o empresário X que chega ao balcão e necessita de um empréstimo de 50 onças de ouro. O Banco A aprova o crédito mediante a entrega ao empresário de 50 notas.
Agora, este empresário pode pagar a fornecedores e colaboradores com estas notas, pois toda a gente as aceita. Como o Banco A actua em monopólio, estes fornecedores podem ir depositar estas notas no Banco A ou utilizá-las para realizar pagamentos, assim sucessivamente. Ou seja, o Banco A, caso tudo corra bem, pode obter as seguintes receitas:
Caso não utilizasse reservas fraccionadas: cinco onças de ouro por ano, correspondente a 1.000 × 0,5% (guarda do dinheiro na caixa forte);
Caso utilize reservas fraccionadas: 725 onças de ouro, correspondente ao serviço de custódia (1000 × 0,5%) e dos empréstimos a partir de reservas fraccionadas (9000 × 8%= 720 onças).
Assim, este negócio é absolutamente extraordinário, atendendo que o banqueiro está a emprestar algo que não possui, abusando da confiança dos clientes que depositaram na instituição.
Vamos agora imaginar que aparece um Banco B a realizar concorrência ao Banco A. Desta forma, abre as suas portas ao público e começa a captar depósitos, tanto à ordem como a prazo. Ao fim de três meses começa a atrair clientes e já tem 100 onças de ouro em depósitos à ordem e 50 notas do Banco A (cada nota corresponde a 1 onça).
Por que razão o Banco B possui 50 notas do Banco A? Porque muitos clientes levam estas notas consigo e, ao abrirem uma conta, em lugar de depositar onças de ouro, simplesmente entregam notas do Banco A, pois toda a gente julga que as mesmas são convertíveis de imediato em ouro.
Vamos supor que, por agora, o Banco B decide não liquidar as notas do Banco A em sua posse, ou seja, entregar as notas em sua posse e exigir a entrega de 50 onças de ouro. O Banco B continua a ganhar quota de mercado e atinge depósitos valorizados em 1.300 onças de ouro, uma parte correspondente a 1.100 notas do Banco A e outra parte, correspondente a 200 onças de ouro depositados na sua caixa forte (150 notas do Banco B emitidas e 50 registadas em extractos).
Devido ao elevado número de notas e proporção dos seus depósitos, decide, finalmente, solicitar a conversão das mesmas ao Banco A: já imaginou o que vai acontecer? Certo, o Banco A não irá conseguir cumprir com esta exigência, atendendo que não possui ouro suficiente para satisfazer esta liquidação.
Ou seja, o Banco A corre o risco de insolvência, atendendo que não é capaz de respeitar algo sagrado: a recolha de uma nota por si emitida deverá corresponder à entrega imediata de uma onça de ouro. Num mercado livre tal prática é impossível.
Esta situação ocorre se o Banco B decide actuar de forma séria; no entanto, podia actuar da mesma forma que o Banco A, concedendo crédito igualmente a partir da emissão de notas sem contrapartida em ouro.
Vamos imaginar que decide embarcar nesta actividade, com os seguintes números: (i) crédito concedido, através da emissão de notas sem contrapartida em ouro, 8000 notas do Banco B; (ii) 1100 notas do Banco A; 200 onças em ouro.
Assim, é muito provável que os receptores das 8.000 notas emitidas pelo Banco B tenham realizado pagamentos a particulares com uma conta no Banco A. Assim, vamos supor que o Banco A recebeu 1050 notas do Banco B. Agora, caso decidam acertar contas entre as duas instituições financeiras, o Banco B simplesmente tem de entregar 50 onças (1100-1050) de Ouro ao Banco A.
Em conclusão, se as duas instituições realizam esta actividade de forma coordenada, a sua situação de insolvência, o não terem ouro correspondente ao valor emitido em extractos e notas emitidas, não será descoberta. Num mercado concorrencial e de livre entrada é muito difícil assegurar que esta coordenação seja correctamente aplicada e seguida por todas as instituições bancárias, diria mais, impossível.
Para assegurar esta coordenação, os banqueiros inventaram o banco central. Qual foi a sua função inicial? Assegurar a coordenação desta actividade fraudulenta, passando esta entidade a ter no seu balanço as reservas de ouro e a emitir as notas de forma centralizada, ou seja, nas notas passa a constar o nome do banco central.
Como sempre, tal invenção só poderia vir de um país de cultura protestante: neste caso, a Suécia. Em 1668, foi fundado o Banco Central Sueco, ainda em actividade. Posteriormente, foi fundado o Banco Central de Inglaterra em 1694, uma instituição que teve uma enorme importância na história dos mercados financeiros.
Como bons católicos, acéfalos a partir do “reinado” do tirano Marquês de Pombal, acabámos por copiar este modelo, através da fundação do Banco de Portugal, em 1846. Ou seja, quando falamos em capitalismo, uma das premissas é o respeito pela propriedade privada, algo que não acontece com tal modelo.
Ou seja, o padrão-ouro vigorou durante séculos, mas recebeu um importante revés em 1933, com a “Executive Order 6102”, em que criminalizava a posse de ouro para qualquer particular, empresa ou associação, com o argumento de que o açambarcamento estava a agravar a recessão então vivida nos Estados Unidos.
Desta forma, as pessoas foram obrigadas a vender todo o ouro na sua posse ao banco central dos Estados Unidos – Reserva Federal – a 20,67 dólares norte-americanos (USD) por onça. Em Janeiro de 1934, o governo norte-americano, com o “Gold Reserve Act” decretou que o valor por onça passaria a ser 35 dólares por onça; em questão de meses, os norte-americanos tinham sido confiscados em 40%, tudo em nome do combate à crise. O presidente responsável Franklin D. Roosevelt, como sempre um homem de esquerda, foi o responsável por este assalto à população.
O preço de 35 dólares norte-americanos por onça manter-se-ia até ao final dos acordos de Bretton Woods, em 1971. No final da Segunda Guerra mundial, os Estados Unidos saíram como a primeira potência mundial, substituindo o Reino Unido, o anterior líder do mundo financeiro.
O dólar tornou-se a divisa reserva do sistema financeiro mundial: com funcionava? Em 1944, na conferência “International Monetary Conference” realizada no hotel Mount Washington (Bretton Woods, New Hampshire, USA), foi decidido que todas as divisas existentes no mundo passariam a ter uma taxa de câmbio fixa em relação ao dólar norte-americano, o USD; este passou a ser a única moeda convertível em ouro.
Apenas os Bancos Centrais podiam solicitar esta conversão ao banco central norte-americano. A taxa de câmbio desta conversão em ouro estava de acordo com o “Gold Reserve Act”, anteriormente mencionado, ou seja, 35 dólares por onça.
A guerra do Vietname, que durou durante toda a década de 60 e princípios de 70 do século passado, fez disparar os gastos militares dos Estados Unidos, que, abusando do facto de serem a moeda reserva do mundo, decidiram imprimir moeda para financiar estas despesas.
Acontece que tanto a França como Alemanha seguiam uma política conservadora, ou seja, gastos públicos contidos, com superavits externos, acumularam uma enorme quantidade de dólares norte-americanos. Assim, quando o general Charles de Gaulle, então presidente da República Francesa, decidiu pressionar os Estados Unidos para a conversão dos dólares em ouro. Não é uma casualidade o Maio de 68, serviu apenas para os serviços secretos norte-americanos porem a andar o “atrevido” de Gaulle.
Apesar do golpe, a falência dos Estados Unidos foi inevitável, pois foram obrigados a pôr um fim ao sistema de câmbios fixos determinado em Bretton Woods.
Em 1971, o presidente norte-americano, Richard Nixon, decidiu suspender a convertibilidade do dólar em ouro, dando, desta forma, origem ao actual sistema em que vivemos. A partir desta data, e pela primeira vez no mundo ocidental, a moeda que utilizamos deixou de ter qualquer relação ou convertibilidade com metais preciosos. Ao fim de 5.000 anos, a era do ouro chegou ao fim. Como sempre imposta pelo Estado, passando a existir um sistema fiat – baseado na confiança, ou seja, decidimos acreditar nas notas do governo.
Que activo passou a ser utilizado pelos Bancos Centrais? Dívida pública dos Estados, em lugar de ouro. Desde então, foram criados todos os incentivos para o crescimento da dívida pública, pois o jogo é emitir dívida pública, os bancos compram e depois vendem ao banco central com lucro, com este a emitir dinheiro do “nada” para as adquirir. É um sistema em pirâmide gigantesco, instável, em que basta uma simples corrida da população aos bancos a exigir o seu dinheiro em notas para o desmoronar.
Após a crise financeira de 2008, marcada pela falência do Lehman Brothers, em Setembro desse ano, os Bancos Centrais do mundo ocidental, liderados pela Reserva Federal norte-americana, decidiram imprimir moeda de forma massiva, apelidando estes programas de “Quantitative Easing”, no fundo um nome pomposo para apelidar uma técnica antiga: gerar inflação através da impressão de dinheiro.
A loucura da impressão massiva de dinheiro teve lugar em 2020, durante a putativa pandemia (assim classificada pela OMS), em que tanto o banco central norte-americano como o europeu imprimiram cada um mais de 4 biliões (12 zeros) nas moedas respectivas.
Alguém se admira com a inflação que vivemos? Alguém se admira que este sistema esteja permanentemente a colapsar se assenta numa fraude? Deixo a resposta para o leitor.
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Ouvi, descansada e tranquilamente, a notícia de que Vladimir Putin tinha ordenado o transporte de umas quantas bombas nucleares e dez aviões para o território da Bielorrússia.
Até despejei mais um bocado do Periquita Reserva que tinha ali ao lado, só para ver se não perdia o momento de descontracção.
Isidro Morais Pereira foi o primeiro a deixar-me descansado porque, segundo ele, não havia aqui nada de novo. Desde logo, porque há muito que os russos têm ogivas nucleares em Kaliningrado, ali mesmo nas barbas da NATO e, nem por isso, o mundo parou. Muito bem.
Juntamente com o seu companheiro de painel, Armando Marques Guedes, garantiu-me, novamente, que a Rússia estava cada vez mais isolada, que tinha cada vez mais mortos e menos material de combate.
Todo este discurso de Putin é apenas uma gigantesca manobra de propaganda com o bom do Armando, um divertido especialista em relações internacionais, a garantir que Xi Jinping já tinha dito ao Vladimir que bombas atómicas, nem pensar.
Depois de Nuno Rogeiro, que falava com Zelensky por interposta pessoa, temos agora o Armando, que comunica com o Xi por pombo-correio.
O momento alto da noite ficou guardado para a citação de Biden que, nas palavras do Armando disse: “if you’re thinking about using nuclear weapons… DON’T“. (Se está a pensar em usar armas nucleares… Não o faça.)
Parou para respirar e acrescentou: “e, depois, o Biden reforçou… DON’T… e voltou a dizer, pela terceira vez… DON’T!! Ora… isto é que é uma ameaça a sério!”
De modo que enchi mais um bocadinho o copo e fiquei a pensar. Mexer bombas e aviões de um lado para o outro, enfim, é propaganda. Já dizer três vezes “don’t” é que é para um gajo se encolher todo.
O meu problema com estes filósofos, é que há um ano que me andam a vender que os russos andam descalços e isolados e, quando damos por ela, por lá continuam a morrer e a matar, com os chineses pelo braço e nós, na nossa retórica idiota, a pagar tudo com dinheiro que não temos e a comprar combustível indiano feito com petróleo russo.
A quantidade de países que se une ao eixo China-Rússia é bem maior do que o “mundo ocidental”. Até os sauditas começam a mudar de lado, mas nós, de Madrid a Varsóvia, continuamos a vender a fábula da Rússia isolada. Faz-me lembrar a história de um amigo que não gostava da cidade do Porto, mas nunca tinha saído de Lisboa.
Como a alucinação ainda não tinha atingido o clímax, eis que aparece Helena Ferro Gouveia dizendo que, para já, não havia sinais visíveis de qualquer movimentação de bombas portanto, estaríamos no reino da bazófia de Putin.
Longe de mim duvidar da Helena, mas talvez o prazo dado (até Julho) seja uma das razões para não verem, nos satélites, bombas a mexer três dias depois do anúncio. Mas é só uma ideia.
Entra a discussão sobre o tipo de armas nucleares, e aqui é que fico mesmo anestesiado. São tácticas, segundo a Helena, não têm grande perigo de radioactividade. Tenho a sensação de a ter ouvido falar em exames de raio-x como termo de comparação mas posso estar enganado.
Nesta altura, só queria encontrar a garrafa o mais depressa possível e, admito, desviei um pouco a minha atenção. Pelo que percebi, uma arma nuclear táctica pode ter entre 1 a 100 quilotons, sendo que cada quiloton corresponde a 1000 toneladas de dinamite.
A bomba de Hiroshima, por exemplo, tinha 15 quilotons. Portanto, estas armas nucleares tácticas que os russos ameaçam entregar à Bielorrússia têm capacidade para matar muita gente na explosão, mas poucos de cancro.
Era essa a mensagem da Helena. Sim, de facto podem morrer mais umas pazadas de ucranianos num espaço de minutos mas, atenção ao lado positivo, poucos vão ao pé coxinho para o instituto de oncologia de Kiev.
Ainda ouvi alguém explicar – já não me lembro quem porque por essa altura nem a garrafa via – que o que os russos fazem agora é algo que os americanos já fizeram há muito, quando distribuíram 150 ogivas por seis países europeus: Bélgica, Holanda, Itália, Turquia e outros dois que não me lembro.
E, sendo assim, tudo bem. De bluff em bluff, as ogivas vão passeando e arejando as ideias.
Durante as últimas duas décadas, os americanos controlaram o mundo a seu belo prazer e agora, russos e chineses também querem uma fatia do bolo. Se pensarmos na história recente, do Afeganistão à Síria, do Iraque à Líbia, não há uma grande vantagem em ter uma única superpotência a decidir o destino da humanidade.
Não sendo possível o ideal – ou seja, povos que se preocupam com o seu quintal sem quererem dominar os vizinhos –, é pelo menos preferível ter poder e contrapoder de forma a que a balança se vá ajustando.
É pena que este novo estabelecimento das superpotências seja feito à custa do sangue dos mais pobres. Sejam eles ucranianos ou russos. Não passam de peões num jogo muito maior onde, até ver, apenas americanos e chineses poderão sair a ganhar.
Por mais que nos tentem vender, há um ano, que um dos lados está de joelhos, a realidade diz-nos que não é assim. Chegámos a um beco sem saída, nem Putin nem Zelensky têm condições para sair desta situação com uma vitória clara nas mãos (sem que a NATO ponha as botas no terreno) e o sacrifício dos anónimos segue a um ritmo diário.
Agora, dizem-nos que esta escalada, óbvia, no conflito, não é um risco mas sim propaganda.
Propaganda? Acreditemos, pois.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Como entroncam as questões referentes à prostituição na nova lei espanhola do “só sim é sim”? Como entra o convénio de Istambul na tentativa de ilegalização da prostituição em Espanha?
Como duas mulheres, as ministras da Justiça, Pilar Llop, e da Igualdade, Irene Montero, conseguem mudar o código penal para que o conceito de abuso vá casar com o de violação. Que fronteiras se abatem e que muros se criam?
A verdade é que tudo começa com cinco selvagens autointitulados de La Manada que saíram em Pamplona à rua e violaram uma jovem. Veio depois uma sentença polémica de um tribunal de primeira instância e seguiu-se a raiva, a manifestação de milhares de mulheres e o movimento cuenta-lo.
Do “Metoo” para um denuncia-o.
A Lei de Garantia Integral da Liberdade Sexual conhecida por “só sim é sim” tem sido uma farpa na coligação governativa de Espanha e levanta muitas questões. Trata-se de defender as mulheres ou penalizar os homens?
Não há violência das mulheres sobre os homens? A penalização, o aumento de penas corrigiu ou alterou o crime em algum país?
Os números comprovam que países com muitas cadeias e milhares de presos não são mais seguros que os que optaram pelo inverso. Educar, formar, construir cedo barreiras de elegância e limites estritos à má conduta, associados com vigilância, comportamentos assertivos das instituições que devem monitorizar os comportamentos suspeitos, sempre teve mais eficácia nestes problemas.
Também é uma consequência das oportunidades, uma consequência dos salários maus e dos custos de vida altos, que pessoas decidam enveredar pelo negócio do sexo.
Há prostituição que é forçada e, por isso, a luta contra as redes de tráfico de humanos, a luta contra a miséria e o apoio das mulheres e homens que se prostituem tem de ser substantivo se vítimas de abuso ou de qualquer tipo de violência ou ignorância.
Há prostituição que nasce apenas da mais triste das misérias – a intelectual, enraizada no machismo mais primário, que esta lei quer combater. Saúda-se! Mas estes problemas são associados à pobreza mais desafortunada e muitas vezes ligada ao alcoolismo e ao consumo de drogas. Existe numa marginalidade que a sociedade demora em erradicar nas suas políticas distributivas.
Mas há venda de sexo que é consentida, escolhida e procurada sem qualquer violência, sem qualquer abuso. O problema de confundir leva ao passo de alterar a legislação sobre os clubes de sexo, os hotéis famosos de toda a Espanha.
A prostituição regulada, pagando impostos como todas as profissões, exercida em livre consentimento em lugares protegidos e vigiados, é segura para todos os que a praticam e utilizam. Regressar às ruas, aos lugares sem qualquer segurança é a inevitável consequência do fecho dos puticlubs, não é uma melhoria da vida de quem optou pela prostituição.
O sexo livre e pago é honesto e é seguro se utilizar lugares apropriados onde vai quem quer e está lá quem escolheu essa via. Não tenham ilusões os moralistas de que uma pessoa que se prostitui nos clubes pode garantir salários que muita(o)s formada(o)s e doutorada(o)s nunca alcançarão.
Diogo Cabrita é médico
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.