Categoria: Opinião

  • Eu e os outros

    Eu e os outros


    Os autorretratos de Gaugin, que estão desde anteontem expostos no Museu de Arte de São Paulo (MASP), são uma sofisticação daquilo que hoje são as selfies, a exposição instagram. O eu narcísico ocupa todo o espaço da nossa existência. O eu dos meus direitos é intrusivo e ameaçador sobre os outros.

    A cultura do outro é humilde, preocupada, tem o seu preceito em não incomodar o próximo, não causar embaraço ou constrangimento. Contrariamente a esta ideia do outro como circunstância, onde nos encontramos, há o eu magnífico, o eu que se projecta na envolvência, que se alicerça sobre a existência alheia.

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    No restaurante eleva-se o som do telemóvel, não importando se incomoda. Na estrada aparca-se onde dá jeito, não merecendo cuidado se atrapalha ou dificulta. Na loja tira-se tudo do lugar, desarruma-se sem pudor. Em casa faz-se ruído após as horas de repouso dos outros. No autocarro, ou na praia, ou no passadiço, coloca-se música a inebriar o sossego dos outros, a violar o direito de todos ao silêncio.

    Não importa se incomoda desde que eu me exiba ou fique bem. Aliás, que importa se incomoda? O centro dos outros sou eu, e eu sou já a circunstância.

    Os novos boçais nascidos desta cultura narcísica são pouco sensíveis a perceber o lugar dos outros, porque neles os outros são likes de redes sociais, são frases nas app, mas não são verdadeiramente as pessoas com quem convivem.

    Olhar e perceber nos olhos que desgostamos, entender a insatisfação do outro, e ajustar o comportamento, corrigir o modo, está a perder o espaço. Abrir a porta a alguém é um gesto antigo que tem componentes de acção/ reacção formatadas.

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    Deves estender a mão para segurar a porta que te abrem. Não deves passar sem agradecer ou mostrar simpatia. Quem te abre a porta não é porteiro, é delicado e cordial. Mas as bestas narcísicas passam sobranceiras.

    A nova esquerda é a dos eus conturbados, a dos narcísicos direitos. Por isso, a nova esquerda luta mais pelos indivíduos, pela agenda dos direitos, pela afirmação das diferenças, pela configuração legislativa da repressão dos lugares-comuns, o apagamento das regras educacionais, a ofuscação da tradição apostólica romana num combate do eu contra os outros.

    Mas os outros serão o espaço social onde gravitará o eu, porque a “inibição de contacto”, o reconhecimento dos outros é a garantia da pertença ao tecido social humano. Não há tecidos de uma célula só. Não há existências de muitos sem conturbação e discussão.

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    O espaço da esquerda tem de continuar a ser a dos direitos colectivos, a de garantir soluções transversais para os direitos dos trabalhadores e dos desfavorecidos.

    O eu e os outros trespassa a identidade dos políticos de hoje.

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A política do ódio

    A política do ódio


    Não há nada que melhor prove a nossa falta de cultura política do que o tempo gasto em debates, notícias, críticas e análises com a intenção de se tentar perceber, e derrubar, a política de ódio levada a cabo pelos partidos de extrema-direita.

    Falso problema e anormal dispêndio de energias.

    Estes partidos surgem com a ideia única de arregimentar, para o seu seio, os derrotados da vida, seja por menor capacidade intelectual, por falta de estudos ou, simplesmente, por quererem viver à margem da sociedade.

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    Todos conhecemos gente assim.

    Cidadãos que abandonaram a escola por preguiça, ou por terem compreendido que não conseguiriam os resultados mínimos para terminar um curso, que recusam trabalhar, porque se consideram demasiado competentes para salários tão baixos, que não aceitam sugestões e, menos ainda, conselhos, porque se consideram especialistas em todas as matérias.

    Gente que, apesar de tudo, não tem qualquer escrúpulo em criticar quem estuda e faz.

    Mais, que não tem qualquer pejo em arrasar, sempre em tom depreciativo, qualquer estudo, qualquer lei, qualquer obra.

    Essa cáfila de camelos é um maná para a extrema-direita.

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    Miguel Unamuno ensinava que “o que os fascistas odeiam, acima de tudo, é a inteligência”.

    Ao escutarmos as intervenções dos deputados desses partidos, na Assembleia da República, percebemos que não hesitam em se rebaixarem ao nível dos medíocres que enxameiam o país, fazendo apelo aos seus mais baixos instintos, com o único intuito de conseguirem o seu voto.

    Falam de justiça (com j pequeno) e sabemos que são defensores da justiça popular, com julgamentos na rua, com condenações por “ouvir dizer”, sem a mínima preocupação com os regras de um qualquer Estado de Direito.

    O líder parlamentar de um desses partidos garantiu, em Plenário da Assembleia da República, que os presos “deviam apodrecer nas cadeias”.

    O presidente do mesmo partido, não se preocupou em garantir, num debate eleitoral, que a alguns [que roubassem] não faria mal se lhes cortassem as mãos.

    E disse isso uns meses depois de garantir: “Sinto que Deus me concedeu esta missão”.

    Não faço ideia de como se sentirão quando vêem o Papa, na altura da Quaresma, de joelhos, a lavar os pés a doze reclusos.

    Não a doze padres, não a doze deputados, mas a doze presos!

    O historiador, e conhecido palestrante brasileiro, Leandro Kamal diz que discurso de ódio em nome de Deus é a suprema elaboração do mal”.

    E é, sem dúvida!

    Mas… resulta. Pelo menos na fase de reunir seguidores.

    André Ventura, presidente do Partido Chega

    Custa ver, num país que lutou contra uma ditadura de 48 anos, uma franja importante de cidadãos a apoiar este tipo de populismo.

    Dói perceber que um discurso, que tem como base o ódio, no seu grau mais elevado e primário, consegue arregimentar centenas de milhares de pessoas.

    Entre elas, vizinhos, colegas de trabalho, ex-companheiros de escola.

    Como entender que se siga quem tem como ideologia a destruição do Estado de Direito, como discurso político o palavreado de qualquer bêbedo numa taberna mal frequentada, como pensamento político as certezas de um taxista analfabeto?

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    O que leva tanta gente a elogiar alguém que, em todas, rigorosamente todas, as intervenções, ao longo dos anos, se limita a gritar impropérios, destilar ódio, apontar erros e falhas, sempre num tom de pretensa superioridade intelectual e moral?

    Eles querem ser, mais do que o top da raça ariana, candidatos a canonização.

    Sentem-se puros, isentos de erro e pecado, gente superior e exemplar.

    O que lhes permite criticar, sem limites, com ar professoral e ditatorial, quem ousar contestar qualquer uma das suas afirmações.

    Ao fim e ao cabo, gastam mal a sua inteligência (porque alguns a têm) na crítica a erros enormes, gravíssimos, dos adversários políticos que eles vêem como inimigos.

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    A maioria do povo não aceita isso de bom grado.

    E perde-se uma boa oportunidade de mudar para melhor.

    A política do ódio já foi experimentada em inúmeros países, sempre com mau resultado para quem a segue.

    William Shakespeare ensinou o porquê desse desfecho comum numa simples frase: “A raiva é um veneno que bebemos esperando que os outros morram”.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Do pântano à cloaca

    Do pântano à cloaca


    Na semana passada, escrevi que Medina representava o pináculo de um Governo de aldrabões. A mentira, o obscurantismo e a manipulação são, já há muito, marcas de um estilo de vida e de desgoverno desta gente que, confundindo interesses corporativos – no sentido de interesses pessoais – com o interesse público, usam o Governo para abusar do Estado. E abusam de nós.

    Sempre sabemos que, na vida, e também na política, que um mal sempre pior pode ficar. Ainda mais quando António Costa, querendo chegar ao fundo do poço com Fernando Medina, ainda arranjou um Galamba para depois escavar ainda mais.

    Quando um primeiro-ministro não tem o discernimento para sequer antever o desastre de nomear João Galamba para ministro das Infraestruturas, é porque já passou o prazo de validade. Galamba não podia ser melhor escolhido para um fim de ciclo trágico-cómico: é o típico ministro com faca na liga, a quem se espera sempre dali sair arruaça, que parece ter mesmo sucedido no Ministério das Infraestruturas pela posse de um comprometedor computador.

    Por mais que possamos imaginar que o assessor Frederico Pinheiro – que anda em andanças de gabinetes governamentais desde 2017 – seja um incompetente, um violento, um criminoso e o diabo a quatro, os episódios mais recentes envolvendo o gabinete de Galamba, tal como todos os que já apanharam o de Medina, mostram um bando desgovernado em plena queda livre – ironicamente à conta da TAP.

    Este segundo Governo de Costa faz-nos lembrar, cada vez mais, o Governo de Santana Lopes, com os seus rocambolescos episódios quase diários no Verão de 2004, e que viriam a ditar a dissolução da Assembleia da República.

    Quem será o Henrique Chaves de António Costa é a única incógnita. Quem quer que seja, certo que involuntariamente prestará um serviço público ao país, mesmo havendo, por aí, um fantasma chamado Chega, que amedronta muitos – eu inclusive, já agora.

    Mas antes tudo do que isto. Neste momento, o país já nem sequer está no estado do pântano de Guterres – isto já parece mais uma cloaca. É altura de puxar o autoclismo. Fim de ciclo.

  • O penetra imbecil

    O penetra imbecil

    Bem-aventurados os que choram.

    Jesus


    O meu vizinho Gonçalo, o grande especialista em monólogos de Shakespeare que não se deixou abater nem pelas dores das metástases acabadas de remover do pâncreas, deixou-se ficar sentado, a beber mais uma garrafa de água, obviamente a poupar energias e a esperar que as duas Vicodins de dose máxima acabadas de engolir começassem a fazer aquele seu efeito mágico de limpar dali as dores, como se lhes passassem uma esfregona por cima. Fumou tranquilamente um cigarro, e quando chegou ao fim era evidente que já estava a sentir-se melhor. Levantou-se, respirou fundo, cravou os olhos no filho, aclarou a voz, e foi-se vendo ao espelho até encontrar o seu melhor ângulo. Depois de tudo isto, segurou no queixinho de Miguel com toda a ternura do mundo, pôs-lhe em cima da mesinha um balde de pipocas, e começou a debitar, mesmo só para ele conforme prometido, a última parte do seu monólogo de Shakespeare para crianças improvisado ali na hora.


    “Ouve bem o teu Pai, meu querido filhote,” disse Gonçalo ao menino, muito baixinho, como se estivesse a revelar-lhe um plano secreto. “Eu dantes todas as noites pedia ao destino que te deixasse chegares a conhecer o teu Pai, que te deixasse chegares a ter verdadeiras aventuras de gajos com o teu Pai, entendes? Coitadinho do meu bebé, um menino tão feliz, e a gente quer contar-lhe uma história tão complicada… E esta história complicada nem sequer interessa, nem a ti nem a ninguém. O que interessa é que, depois de tantos esforços para me fazer feliz, a tua Mãe há-de fartar-se de esperar por um marido desaparecido. Nessa altura, a tua Mãe há de querer voltar a gozar-se da companhia de tudo o que eu não fui para ela nos últimos anos, a companhia assim de um Homem Mesmo Homem …”

    Quando disse isto, por muito que quisesse mostrar-se compreensível e maduro, Gonçalo não conseguiu deixar de fazer uma careta – assim como se tivesse provado uma qualquer comida de paladar insuportável.

    “E então, como isso não pode deixar de acontecer e eu não posso deixar de detestar a ideia, preciso que entendas que nada disso tem mal nenhum, onde quer que eu tenha ido parar na minha longa viagem, eu continuo a gostar da tua Mãe. E, sobretudo, continuo a gostar muito de ti. Só não tenho é a obrigação de gostar da outra besta que a tua Mãe escolher para pôr no meu sítio. Mas tu, filhote, vê se respeitas esse penetra imbecil, porque só fazer a tua Mãe feliz já é uma grande magia. És muito pequenino. Mas serás capaz de prometer isto ao Pai?”

    O Miguel estava, evidentemente, todo orgulhoso de todas as palavras novas que já tinha aprendido nesse dia. Pôs-se a olhar para o pai com um sorriso rasgado.

    “Esse Penetra Imbecil. Pai! Penetra Imbecil, Penetra Imbecil que quer fazer mal ao Pai. Penetra imbecil. Mata-se!”

    O Gonçalo não conseguiu deixar de rir.

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    “Tu nunca mais ouvirás falar deste Penetra Imbecil, meu Principezinho,” explicou ele ao filho, ainda dentro desse riso.

    “Porquê?”, perguntou logo o Miguel, naquele tom imperioso de complexidade epistémica tão própria das crianças[1].

    “Porque não,” respondeu-lhe o pai, muito sério e muito terno. “Porque eu sou uma pessoa muito civilizada[2], portanto não vais ter autorização nem do Pai nem da Mãe para falares do Penetra Imbecil. Entendeste, meu pestinha? Não vais falar dele porque eu não vou deixar, e a tua Mãe também não vai deixar, porque queremos os dois que tu sejas muito feliz, mesmo quando eu já não estiver cá para te fazer rir. E a tua Mãe há-de contar-te que eu te amava muito e te fazia rir muito, assim como a fazia rir a ela, para ela ter mais coragem para tomar melhor conta de ti. Queres uma história nova muito gira, daquelas histórias que só o Pai é que sabe?”

    Olhou outra vez para o bebé com um sorriso, mas este, agora, era meio comovido e meio contristado. Em resposta, o Miguel desatou aos berros que não queria que o Pai se fosse embora, e não demorou nada até já estar a fazer uma birra tremenda de menino assustado. O Gonçalo desistiu logo de falar mais com ele.

    “Tenho aí centenas de truques para acabar imediatamente com estas situações,” sussurrou-me ele com um rápido piscar de olhos. “Enquanto a Catarina não souber deles e não decidir logo que sou um péssimo pai, tá-se bem.”

    Então subiu tranquilamente o volume do plasma, mudou de canal, e apareceu subitamente a jovem Angelina Jolie num dos seus antigos filmes de Lara Croft. O Miguel deu um salto tal na cadeirinha, com uma expressão de assombro tão grande, que deixou cair ao chão o baldinho das pipocas. Depois, já sem ligar nenhuma a nenhum de nós, começou a tentar virar sozinho a sua cadeirinha, para ficar mais perto do monitor onde decorriam as aventuras de Lara Croft.

    “Estás a ver?”, sorriu-me o Gonçalo, enquanto eu me preparava para sair. “Gajos!”

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Claro que há formas muitíssimo mais simples de dizer “complexidade epistémica”, mas e então? Numa história como esta, onde é que eu havia de exibir a minha cultura?

    [2] Aqui Gonçalo fala exactamente com aquele tipo de humor com que eu escreveria, pelo que admito que possa ter havido um erro nas minhas notas.

  • A visita de Luiz Inácio

    A visita de Luiz Inácio


    A visita de Lula da Silva a Portugal tem provocado um autêntico “fuzuê” na vida pública deste pacato cantinho à beira-mar plantado. Tenho visto a novela com o mesmo encanto com que acompanhava as aventuras do Roque Santeiro. Sim, eu sou desse tempo.

    A primeira nota de destaque foi o aproveitamento que os partidos de direita e extrema-direita fizeram. A Iniciativa Liberal veio a terreno criticar as declarações de Lula sobre a Ucrânia e o Chega montou um circo, digno de se ver, com a presença de Lula nas comemorações do 25 de Abril.

    Lula da Silva veio a Portugal tratar de negócios, fechar acordos, parcerias, trocas comerciais. Como qualquer presidente que visita outro país, o objectivo é fechar acordos. Fê-lo na China, nos Estados Unidos e agora, à nossa micro-escala, fá-lo-á em Portugal.

    Hoje, por exemplo, ia de manhã, de avião para o Porto para umas negociatas em Matosinhos. De tarde, regressa no mesmo avião ao aeroporto militar de Figo Maduro, a tempo de entregar o prémio Camões ao Chico que importa. Amanhã, imagino, vai discutir problemas ambientais e como reduzir as emissões de carbono, que não as dele.

    Ao chegar, Lula falou sobre a Ucrânia e disse o óbvio: é preciso sentar e conversar para negociar um plano de paz.

    Foto: Rui Ochoa/ Presidência da República

    Compreendo a intenção do presidente brasileiro ao tentar meter o país irmão novamente na agenda internacional, depois do buraco de isolamento onde Bolsonaro o tinha deixado. Mais uma vez, está a tratar da vida e dos interesses económicos, como qualquer presidente faz.

    A novidade, para mim, é ver o coro de virgens ofendidas do lado da Iniciativa Liberal com as declarações de Lula. Segundo eles, quem faz o apelo à paz com cedências territoriais está a premiar o invasor e, como outras vozes já o defenderam, só se podem sentar à mesa quando os russos saírem do país e largarem os territórios ocupados.

    Ora, não querendo ser eu o portador das más notícias, se os russos fizessem isso, já não era preciso ir para a mesa porque não haveria muito para negociar. Não sei se me faço entender.

    Foto: Rui Ochoa/ Presidência da República

    E isto é particularmente aborrecido de ouvir dos lados da Iniciativa Liberal porque, habitualmente, definem-se como uns tipos práticos, conhecedores da realidade, dos mercados e do mundo que nos rodeia. Mas depois ficam ali, presos em ideologias que não têm e moral de café, quando o pragmatismo lhes bate à porta.

    Desde logo, esta narrativa da guerra que começou em 2022 já está mais do que desfeita. Já todos sabemos que a Rússia invadiu a Ucrânia depois de oito anos de conflitos e escaramuças com russófonos. Isto não muda o nome do invasor mas, pelo menos, centra o debate onde ele deve estar.

    Depois, chegados aqui, não entendo como é que líderes partidários continuam a falar em soluções impossíveis como se tivessem qualquer aplicação prática.

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    A solução ideal, defendida por Rui Faria, é uma utopia: é os russos arrumarem a trouxa, irem para casa e depois sim, sentarem-se à mesa a ouvir que indemnizações vão pagar.

    Não sei se Rui Faria sabe, mas não existem impérios do bem ou do mal. Existem impérios. E, tal como nas outras invasões de que ninguém quer saber, os russos não vão sair dali com as mãos a abanar. Existem portanto duas opções: 1) sentar a uma mesa a discutir que parte de território a Ucrânia vai perder; 2) invadir a Rússia com o exército da NATO.

    Lula defende a primeira. A Iniciativa Liberal diz que isso é uma vergonha e, como proposta, sugere uma que não existe. No fundo é apenas uma continuação do respectivo programa eleitoral.

    Aquilo que ainda espero, de todos os que querem a continuação da guerra por tempo indeterminado, é como a pensam pagar e, principalmente, que rapaziada é que estão dispostos a perder? 

    O tempo para a conversa do “não premiar o invasor” está esgotada. Até porque, habitualmente, é isso que acontece com invasores mais fortes, habitualmente com o apoio do chamado Ocidente.

    Podem olhar para cinco continentes e encontram povos oprimidos e com terra roubada, sem que a comunidade internacional perca o sono por isso. Esta hipocrisia da realidade alternativa já enjoa.  

    Já o Chega aproveitou a ida de Lula à Assembleia da República para encher autocarros e trazer pessoal para uma manifestação “anti-ladrão”.

    Já tinham feito uns vídeos bem catitas no TikTok a insultar o presidente brasileiro e, como é óbvio, para um partido que defende o Estado Novo e abomina o 25 de Abril, nada melhor do que criar um momento de populismo que renda mais uns votos e visibilidade, numa altura em que se devia celebrar a libertação da ditadura. Ou como eles lhe chamam lá no Chega, os Glory Days.

    É todo um modus operandi que já não apanha ninguém despercebido e promete animar a agenda de Lula.

    Mas há mais. Há directos atrás de directos à porta do hotel Tivoli e largos minutos a encher chouriços na esperança de ver a comitiva a passar cinco segundos no direto a caminho dos Mercedes que ali ficaram estacionados, na rua bloqueada para o efeito.

    Muito bem, a diplomacia brasileira a conseguir estacionar 10 carros na Avenida da Liberdade, todos juntos, de borla e sem que a EMEL os consiga bloquear.

    Mas Portugal não seria Portugal se não levasse a não-notícia ao extremo. Assim, no Domingo de folga, algum assessor disse que Lula iria visitar a Nazaré. Pela-se por ondas gigantes e arroz de marisco, dizem fontes próximas do local. As televisões correm para lá mas Lula não aparece.

    Foto: Rui Ochoa/ Presidência da República

    O edil local disse que mandou o número de telefone para a comitiva, caso quisessem ajuda para visitar o farol. Há desilusão porque Lula, afinal, fica a dormir no Tivoli e a rever os episódios do Succession no HBO.

    Mas as TVs não desarmam, há uma peça para encher e material para enviar para as redacções. Entrevistam nazarenas que mostram bancas recheadas de coisas que tinham para vender a Lula. Uma delas diz, com uma voz marota, que tinha um bolo do amor para vender ao septuagenário presidente que o deixaria a fazer amor, toda a noite, como na canção do Toy.

    Lula não sabe o que perdeu. Portugal é, ainda e sempre, uma pequena aldeia sem protocolo diplomático. Valha-nos isso.

    E já agora, sê bem-vindo, Luiz Inácio.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Lama (ou o que é um spin doctor)

    Lama (ou o que é um spin doctor)


    Todos temos um ângulo morto. E todos sabemos os riscos desse ângulo morto caso a viagem prossiga em velocidade acelerada e não tenhamos tempo de virar a cabeça para confirmar a nossa própria segurança.

    Este nosso império onde arrastamos os pés na lama apostou há séculos num enorme amor por tudo o que esteja fora das fronteiras conhecidas. É a nossa grande força, mas pode ser uma enorme fraqueza.

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    O descontentamento de um curioso, ávido de novos pastores, depois de séculos de abusos de poder e quebras de confiança com os guias espirituais de Roma, depois do deboche tão bem denunciado por Sade, depois de atropelos sucessivos de vozes de denúncia a instalar a dúvida na mente de todos sobre cada padre, cada representante do divino na Terra, fez muitos beberem o que não compreendiam porque não lhes estava na pele e na alma colectiva que carregavam.

    Eis que, em flagrante delito, vemos o que é um homem que ocupou o nosso imaginário (com a sua vida de sandálias) a passar de Estado em Estado, apelando a ajuda militar, clamando por apoio contra a anexação do lobo que lhe irrompeu pela porta (se vestisse caqui e fosse um actor eleito poderíamos até achar que vinha de outros lados), na sua baixeza vil.

    Na sua tão natural violação de algo que, na nossa sociedade, (ainda) é sagrada conquista: protecção da inocência da criança e pudor. Respeito pelo corpo e a natureza íntima da partilha do mesmo. Respeito pela absoluta necessidade de consentimento adulto para essa partilha.

    Lama.

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    Raramente a vemos até enfiarmos os pés naquilo que julgávamos sólido, e ficarmos sujos até aos tornozelos, lamentando a velocidade com que corremos a erguer uma bandeira.

    Porque neste nosso império se abriram caixas de ressonância enormes, a reverberar ecos de opiniões e reacções, como em nenhuma outra parte do mundo, antes mesmo dos mecanismos de censura aparecerem e deitarem as unhas de fora, a raspar-nos as opiniões permitidas e não permitidas das costas, surgiram os spin doctors.

    Não são profissão nova, nem tão pouco advento sem embasamento em mecanismos de propaganda tão antigos quanto as nossas estruturas de poder. São, regra geral, invisíveis, inteligentes e rápidos.

    As redes sociais são pasto para estes doutores. São os especialistas de discurso. Os produtores de conteúdo. Os feiticeiros escondidos atrás da cortina que preparam pseudonotícias, análises, opiniões. Pequenos menus de degustação de fast food pronta a consumir, completos com imagens ilustrativas e impactantes.

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    Vem o Brexit e correm todos os visores de telemóvel com iscos sobre ameaças turcas ao povo britânico. Vem a “pandemia” e pululam os textos cheios de números, factóides, pedrinhas lamacentas no charco sobre como vamos todos morrer (e algo de novo, há?)

    O malvado urso de leste põe uma pata em território alheio, e estrategicamente seus laboratórios (mas é uma coincidência), e logo correm resenhas enciclopédicas sobre uma nação mágica de searas douradas e céus azuis, pura, sagrada, inocente (e pode sempre ser isto e o resto também).

    Os ângulos mortos instalam-se e abafam em gritos as outras faces de cada moeda. A quebra da cooperação europeia pela interferência americana no Reino Unido. Os custos altíssimos que nos forçaram a pagar por confinamentos, máscaras e inoculações experimentais. As ingerências externas em mais um país que serve de palco a uma guerra que não é sua, enquanto no leme seguem conduzindo nacionalistas de cepa alta, agressiva, feroz.

    Lama.

    Uma pessoa criada já neste mundo sem adultos, sujo de ideais contraditórios, barulhento por uma caixa de Pandora aberta com grande estrondo, entra num hospital em Faro e horroriza-se com o mundo real (será real?)

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    Com o nojo, o asco, a língua de fora. A sobranceria, o autoritarismo, a negligência.

    O crime. Lama.

    Claro que existe presunção de inocência (é bom que se lembre quem se apressou a condenar padres católicos). Claro que existe devido processo (é bom que se lembre quem vai para a lama gritar denúncias, mas e não tentou?) Claro que existe choque cultural (é bom que se veja o que é um texto cheio de imagens catitas do senhor doutor “spin”, a branquear o pecado ou a capitalizar o mesmo).

    Claro que existe a lama, principalmente se a chuva de Abril chega e cobre a terra. Cuidado com o ângulo morto.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Domingo de Páscoa

    Domingo de Páscoa

    A analogia pode então erguer-se aos nossos olhos enquanto melhor instrumento de análise que possuímos – porque Deus trabalha de formas misteriosas. E de que outra forma nos seria possível ligarmos os grãos de areia no deserto às estrelas no céu?
    Stephen Jay Gould
    QUESTIONING THE MILLENNIUM, 1997


    Domingo de Páscoa, aqui em Estremoz, é hoje, segunda-feira. Ainda ontem a cidade fervilhava de vida e de alegria, passavam leitões e cabritos inteiros rumos aos fornos de lenha, o pessoal ia e vinha para os montes para deixar tudo pronto quando chegasse a família, as famílias que iam chegando iam enchendo cada vez mais as esplanadas – mas nada daquilo era a Páscoa. Era só o prelúdio da Páscoa. Ao fim do dia tomei café com uns amigos muito dados a artes e a trabalhos manuais[1]. Foram eles que, quando souberam que eu ia passar a Páscoa[2] aqui em casa a trabalhar, insistiram com imensa veemência que, desta vez, é que eu não tinha mesmo desculpa para não ir visitar o Gonçalo, que é de Lisboa como eu, se mudou para Estremoz há oito meses, vive aqui mesmo ao pé de mim, é um verdadeiro solitário, parece infeliz, e eu bem podia ir mostrar-lhe todas as minhas cenas.


    Mas eu não tenho nem o telefone do Gonçalo! Sei quem é, toda a gente sabe quem é, Portugal nunca teve nenhum grande profissional de monólogos de Shakespeare antes, mas eu nem sei se ele está em casa…” – “Meu, Clarinha, toda a gente sabe que o Gonçalo nunca sai de casa!” – “Então é porque não quer ver ninguém, certo? – “Mas tu és diferente. Vamos apostar. A mulher foi de férias para o Sudoeste e ele está sozinho com o puto, que é um mulatinho bué fixe de quatro anos chamado Miguel. Eu faço-lhes o catering…” – “O catering?” – “E então? Os monólogos de Shakespeare não chegam? O gajo também precisava de cozinhar?” – “Se fosse uma gaja, precisava[3]” – “Ah, vamos mas é apostar. Eu ligo. Se ele atender, e se disser que quer que tu vás lá, tu vais?” – “Vou” – “Juras?” – “Juro:”

    Está-se mesmo a ver. Um gajo que não sai de casa nem atende o telefone, o que mais vai querer é visitas da Clara Pinto Correia.

    Só que o caterer levanta o polegar quando esse Gonçalo atende, diz-lhe que está a ali a Clara Pinto Correia que o admira, e se ela pode ir visitá-lo. E põe aquela merda no alta-voz mesmo a tempo de ouvirmos um gajo responder, mesmo à rádio,

    “Sim!”

    E pronto, lá vou eu até à porta do actor dos monólogos, com a juventude toda a espiar para ter a certeza de que eu entro mesmo, o que faz o dito cujo actor puxar-me para dentro com força, atirar comigo ao chão, trancar a porta quatro vezes, e depois fechar também a corrente. Foi tanta manobra que deu tempo para voltar a levantar-me, recompor-me, e sentar-me numa poltrona super-confortável estrategicamente colocada mesmo ao lado do tal Miguel, que é, de facto, um amor de mulatinho. Ora, sabendo eu que a mulher dele é loura, de olhos azuis…

    Eu sei que este título é meu, mas…
    Que mais poderia dizer hoje, “Domingo de Páscoa” em Estremoz, depois de ouvir os segredos do Gonçalo, e o belíssimo monólogo que se lhes seguiu?

    “Fizeram muito bem em adoptar o puto,” digo-lhe eu com um sorriso comovido. “Sabes, os meus dois putos também são adoptados. Já têm 31 e trinta anos, e eu já tenho cinco netos, e…”

    O gajo abanou-me tanto o ombro que quase voltou a atirar-me ao chão.

    “Antes de mais nada, cala-te já, enquanto vais a tempo. E sai já daí, porque estás na minha poltrona de improvisar monólogos para o Miguel e acabaste de interromper um!”

    “Mas um actor não faz um monólogo de Shakespeare sentado. Tens que estar em pé, a fazer gestos, e a passear pelo palco, não é?”

    “Pois é! Pois é. Mas eu, com estas dores, não me aguento em pé durante um monólogo inteiro” – esticou a mão para uma série de rolinhos que estavam na bancada dentro de um frasco de vidro fosco, tirou um charro, e começou a fumar – “Se queres que eu fale em pé, eu falo em pé assim, ou então não aguento. Mas então é melhor fumares também, senão és capaz de achar esta última parte do meu improviso muito estranha. Bora lá! Fuma! Eu pedi para tu vires cá para saber a tua opinião. O pior que te pode acontecer é teres que voltar cá amanhã, eu fico sentado, e ninguém fuma.”

    “Ó Gonçalo, tu desculpa… antes de começares o teu monólogo, para eu depois nunca te interromper… que dores horríveis são essas, para dizeres que nem te aguentas em pé sem fumares charros… aliás, para nunca saires sequer à rua?”

    Gajas,” ponderou o Gonçalo com a mão no queixo – e de repente desatou a rir tanto, tanto, tanto, que me fez rir a mim também. “Não aguentam não perguntar tudo. Olha, minha filha, isto é assim. Tenho imensas dores porque tenho um cancro do testículo, e foi por causa desse cancro que não tivemos filhos biológicos. Tinha dores, tinha cada vez mais dores, mas achei que haviam de passar, e quando a minha mulher me levou ao hospital já não saí de lá. Recuperei bem do cancro. O problema é que já tinha metásteses. Portanto estou para aqui sem saber quanto tempo duro. Vim viver para Estremoz para conseguir ter calma, para legar ao Miguel os monólogos de Shakespeare que serei eu próprio a escrever, e porque assim, também, não tenho as gajas lá de casa a entrarem e a saírem e a mandarem palpites e eu adoro-as mas tu nem imaginas o que aquelas gajas todas proactivas fazem da cabeça de um gajo desactivo” – “Desactivo não existe em Português, tem que ser desactivado” – “Ora bolas, mas desactivado não rima com proactivo e isto tem que rimar tudo porque é um monólogo de Shakespeare” – “Então usa inactivo, em vez de desactivo” – “Vai-te lixar, inactivas são as amibas, e isto ainda não está assim tão mal, meu.”

    De tudo o que se seguiu neste meu estranho “Domingo de Páscoa” darei contas para a semana. Mas – se admirei a coragem do homem? Claro que admirei.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] As intenções não eram boas. Tratava-se de arrombar um portão – pelos melhores dos motivos, mas é sempre arrombrar a entrada para propriedade alheia. Ninguém foi na conversa, mas entretanto enredei-me eu na converva do Gonçalo.

    [2] Ou seja, o dia de hoje, 2ª feira, em que tudo está fechado e nunca vi tanto lugar para arrumar.

    [3] Esta mudaria habilmente o tema da conversa, não era? Noutro planeta que não Estremoz, talvez.

  • O que a TAP nos revelou

    O que a TAP nos revelou


    Estive mais de oito horas sentado, frente ao televisor, para ouvir os depoimentos das ex-administradoras da TAP na Comissão de Inquérito da Assembleia da República.

    Como a maioria dos portugueses, fiquei atónito com o desplante, a descontração, o sentido de impunidade, com que estas responderam às questões dos deputados.

    Christine Ourmières-Widener.

    Pela ex-CEO, Christine Jeanne Ourmières-Widener, uma francesa que ainda não compreendeu Portugal, ficámos a saber que o ex-secretário de Estado das Infraestruturas, Hugo Mendes, lhe pedira para adiar um voo, proveniente de Moçambique, que tinha como passageiro o Presidente da República, já que este, alegadamente, precisava de ficar mais dois dias em Maputo.

    Em troca de mensagens, a ex-CEO da TAP terá dito que não achava correcta essa medida e isso a incomodava.

    Ao que o ex-Secretário de Estado respondeu:

    “Bom dia, sei que isto é um incómodo para ti, mas não podemos mesmo perder o apoio político do Presidente da República. Ele tem-nos apoiado no que diz respeito à TAP, mas se o humor dele mudar, tudo se perde. Uma frase dele contra a TAP ou o Governo e ele empurra o resto do país contra nós. Não estou a exagerar. Ele é o nosso principal aliado político, mas pode transformar-se no nosso pior pesadelo.”

    A alteração não foi feita e Christine Jeanne Ourmières-Widener, mostrou-se satisfeita na Comissão de Inquérito:

    airplane on sky during golden hour

    “Não fiquei surpreendida deste pedido não ter origem na Presidência da República, mas talvez de alguém no processo que achou que era uma boa ideia. Este voo não foi alterado e o Presidente encontrou outra solução. Não fiquei surpreendida, o Presidente nunca nos pediria para alterarmos um voo. Neste caso teria impacto em mais de 200 passageiros.”

    A maior desilusão, no fim de tudo isto, vem de percebermos a facilidade com que qualquer asno pode chegar a Secretário de Estado.

    Basta mostrar toda a subserviência com os fortes, bajulando-os a toda a hora, para subir alguns patamares até conseguir chegar a um ponto em que será ele um dos bajulados.

    Neste caso não resultou porque a vaidade em querer mostrar o seu poder foi ainda maior do que a sua imensa burrice ao dar aquelas instruções por escrito.

    Vai ter que regressar à Juventude Socialista e ali estagiar mais uns anos, colando cartazes nos períodos eleitorais e carregando as pastas dos chefes.

    white and red passenger plane on airport during daytime

    Mas o maior escândalo divulgado nessas audiências veio da Deputada do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua, que deu conta de uma indemnização a um ex-CEO da TAP, um gestor brasileiro que todos criticam por negócios desastrosos e “estranhos” (digamos assim), com empresas do Brasil, e que terão prejudicado a transportadora portuguesa em milhares de milhões de euros.

    Segundo a Senhora deputada, esse gestor terá recebido uma indemnização de mais de um milhão de euros, já depois de ter saído da empresa, e que, para tal pagamento, fora utilizada a conta bancária de uma firma criada dias antes, com esse propósito.

    Todos os membros da Comissão ouviram.

    Presumo que muitos elementos da Procuradoria-Geral da República também tenham escutado.

    Não tornei a ouvir falar desse tema.

    Estará a ser investigado?

    person holding airplane control panel

    Como é que uma empresa, que recebe milhares de milhões de euros de todos os contribuintes, pode distribuir prendas, de milhões de euros, a administradores e quadros superiores, usando subterfúgios para tentar esconder ilegalidades, sem que nenhuma autoridade investigue, puna os ilegalmente beneficiados e recupere essas verbas?

    O que se espera?

    Quem beneficia com esta inércia?

    Não se poderá falar de desconhecimento porque a informação foi dada por uma Senhora Deputada, numa Comissão de Inquérito da Assembleia da República, com transmissão, em directo, em vários canais de televisão.

    Com toda a certeza, alguém da Procuradoria-Geral da República terá ouvido.

    Vão permitir que os responsáveis (???) por uma empresa subsidiada em milhares de milhões de euros, com o apoio dos impostos de todos os portugueses, continuem a distribuir fortunas entre si?

    Este escândalo da TAP só veio tornar mais claro o dia-a-dia de empresas geridas pelo Estado.

    Gerir o dinheiro dos outros é tão fácil…

    E tão lucrativo…

    E, em Portugal, isento de riscos!

    Air Canada airline

    Pelo menos que isto sirva de lição a candidatos a ladrões.

    Querem assaltar empresas lucrativas, sem qualquer risco e com êxito garantido?

    Nada mais fácil, basta conseguir um lugar nos conselhos de administração.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A Ordem dos Psicólogos e os pequenos ditadores de capelinhas

    A Ordem dos Psicólogos e os pequenos ditadores de capelinhas


    Francisco Miranda Rodrigues é o bastonário da Ordem dos Psicólogos. Para mim, tanto me faz como me fez. Na breve biografia que se lhe conhece, diz-se que nasceu em 7 de Abril de 1974 – portanto, viveu 17 dias em ditadura (já moderada), que é psicólogo formado pela Universidade de Lisboa e especialista em Psicologia do Trabalho, Social e das Organizações e da Saúde Ocupacional, que dirigiu equipas de recursos humanos, qualidade, ambiente e de segurança, higiene e saúde no trabalho. E é bastonário da Ordem dos Psicólogos há mais de seis anos, embora ocupasse funções na associação antecessora desde o início do século.

    Procuro na internet, e vejo ser homem de opiniões, “autor de vários artigos de opinião na imprensa portuguesa”, segundo a sua página da Wikipédia. Publicou no mês passado aquele que julgo ser o seu primeiro ensaio para o mercado editorial, Como gerir pessoas, com prefácio do ex-ministro Poiares Maduro.

    Francisco Miranda Rodrigues, bastonário da Ordem dos Psicólogos.

    Não conheço a obra, mas deve ter muitas opiniões. Aliás, muitas opiniões deverão estar reflectidas também nos seis prefácios em diversos ensaios na área da Psicologia que escreveu nos últimos quatro anos, de acordo com consulta na Biblioteca Nacional.

    Pesquiso discursos seus pelas redes sociais, por exemplo no YouTube da Ordem dos Psicólogos, ele bota profusa faladura. Opina. Não é nenhum Freud, mas enfim, não é isso que está aqui em causa.

    Aquilo que está em causa é eu achar – e devo mesmo achar, por um imperativo de cidadania democrática – que o Doutor Francisco Miranda Rodrigues tem todo o direito a dizer o que bem lhe apetece, como lhe apetece, quando lhe apetece e da forma que lhe apetecer. Pode ser aplaudido pelo que disse, pode ser criticado negativamente pelo que disse (ou não disse), pode passar a ser, pelo que disse, respeitado, gozado ou endeusado.

    Faz parte da convivência democrática que tal suceda.

    E é exactamente pela convivência democrática que, estando eu a borrifar-me para as opiniões do Doutor Francisco Miranda Rodrigues, sobretudo em discursos que nem aquecem nem arrefecem, antes pelo contrário, defendo que ele tem o direitos proferir tanto sentenças como parvoeiras.

    stack of stack of books

    E, exactamente pelo mesmo motivo, não posso então tolerar que ele, como circunstancial bastonário da Ordem dos Psicólogos – que, recorde-se, tal como a famigerada Ordem dos Médicos, é apenas uma associação profissional de direito público, o que lhe traz direitos mas também obrigações perante os cidadãos comuns –, condicione a opinião de outras pessoas, somente por deterem a mesma profissão dele. E que use e abuse de um estatuto concedido pelo Estado – o de regulador de uma profissão – para condicionar e até punir opiniões de seus colegas de profissão, que, antes disso, são meus e nossos concidadãos.

    Ontem, o PÁGINA UM publicou uma entrevista com a psicóloga Laura Sanches e, até atendendo à sua genética (filha de Maria José Morgado e Saldanha Sanches), chega a ser perturbador saber que, em 2023 – quase cinco décadas após o 25 de Abril –, a Ordem do Doutor Francisco Miranda Rodrigues intentou-lhe dois processos disciplinares por mero delito de opinião ou por intervenção pública como cidadão. Pior: um desses processos é sobre alegadas opiniões que ela nem sequer tomou, estando até “proibida” de falar sobre o assunto.

    O esquecimento da História, acrescido da “alimentação” dos egos de pequenos ditadores com os seus “gabinetes”– que se pavoneiam de opinar mas em simultâneo condicionam a livre opinião dos seus pares – é um dos maiores flagelos da nossa democracia, que rapidamente caminha para uma degradação irreversível.

    Laura Sanches, psicóloga.

    Ver hoje que até a filha de Maria José Morgado e de Saldanha Sanches pode ser perseguida por delito de opinião – e não por más práticas clínicas ou por outra qualquer infracção punida pelo Código Penal – é intolerável. Imaginemos o que sucede aos cidadãos sem essa aprendizagem de luta democrática. Ou aos cidadãos anónimos ou aos profissionais que não têm sequer uma”rede protectora”. Esses calam-se.Cria-se o podre unanimismo controlado por inquisidores de opinião.

    Vivemos hoje uma aberração democrática com estes pequenos ditadores de capelinhas. A existência e acção debragada de figuras como as de Francisco Miranda Rodrigues – e, infelizmente, há tantos e tantos como ele nessas pequenas igrejas de condicionamento social – são um cancro autêntico para a nossa democracia. E deve ser o quanto antes extirpado. A Bem da Nação, como diria o outro, que era um ditador.

  • Uma comissão de inquérito à Republica das Bananas

    Uma comissão de inquérito à Republica das Bananas


    A comissão parlamentar de inquérito à TAP ainda vai no seu início e já parece a História, em três volumes, de uma República das Bananas. Uma pessoa ouve aquilo e pensa como é possível tamanho deboche e destruição de património público. Sim, a TAP é património público e, ao contrário do palco no Trancão, património daquele que interessa.

    Sem grande surpresa, PS e PSD estão naquela comissão em missão de passa-culpa. Nenhum tem grande interesse em tornar a TAP um caso feliz de gestão. Apenas tentam esconder as suas irresponsabilidades, culpando o companheiro do centrão.

    Nesse aspecto, devo dar os 12 pontos, à la festival da canção, ao PS, por convidar a CEO da TAP para uma reunião na véspera do dia em que seria ouvida. Reunião essa onde estava o deputado que, por sua vez, na comissão de inquérito do dia seguinte, a questionou.

    Christine Ourmières-Widener assumiu que descobriu ter sido demitida pela comunicação social e, provavelmente, compreenderemos daqui a uns tempos que a indemnização a pagar-lhe ainda será maior. Mais uma trapalhada do governo de António Costa na sequência de um sem número de confusões na transportadora aérea nacional.

    Também percebemos que a indemnização de Alexandra Reis contém ilegalidades que a CEO da TAP não sabia, e, segundo ela, se limitou a confiar nos advogados do processo. Há ainda a história mal contada do escritório de advogados que deu apoio, pertença do irmão de Marcelo Rebelo de Sousa.

    Há o episódio de Alexandra Reis que disse, entre outras coisas, que proibiu qualquer negócio entre a TAP e a empresa do marido de Christine Ourmiéres-Widener. Ficou no ar uma zanga de comadres, mas ainda não consegui perceber o convite para secretária de Estado. A simpática da Christine também não sabia de nada.

    Christine Ourmières-Widener

    Já sabíamos das indemnizações de 500.000 euros aprovadas por sms e ligeirezas do género.  Alexandra alega que já tentou saber quanto é que deve devolver, mas, ao que parece, ninguém lhe responde. Só a mim é que a EDP não perdoa três euros que sejam. 

    Pelo que percebi ainda estão mais 50 pessoas em fila para serem ouvidas e, portanto, esta novela promete, mas cheira-me que no último episódio tivemos o que será um dos momentos best of.

    Um alegado pedido da Presidência da República chegou à TAP, para que o horário do voo entre Maputo e Lisboa fosse alterado, de forma a facilitar a vida de um passageiro. Ignorando, lá está, os restantes 200 e tal ocupantes do A330 que voava para a capital portuguesa.

    Há até um e-mail de um secretário de Estado a pedir que a TAP desenrasque a coisa para o Governo continuar a agradar ao seu aliado de Belém. O mail tinha um smile, mas faltou-lhe um gratidão. O secretário de Estado entretanto despediu-se e voltará daqui a uns meses para outro tacho qualquer.

    Espero, ardentemente, que o Marcelo comentador, sempre disponível para opinar sobre tudo, não se cale por muito mais tempo.

    Liberais gritam que “é por isto que a TAP não pode ser pública”, acrescentando que “este dinheiro podia ser aplicado em hospitais e escolas”, as tais que eles não defendem. Há todo um campo fértil para a a direita mais ou menos populista aproveitar. Mas é um facto que a TAP serve de bode expiatório para o pior que a administração portuguesa tem. Corrupção, encosto de boys do centrão, jogos de interesses, má gestão de dinheiro público.

    Alexandra Reis

    No fundo, o mesmo que acontece em qualquer uma daquelas empresas parasitas que vivem no erário público, câmaras municipais, institutos públicos e todos os sítios financiados pelo Orçamento do Estado. Só que são mais pequenos, mais anónimos. Mas o princípio é o mesmo: desvio de dinheiro público, desonestidade, corrupção.

    Está-nos no sangue, e é uma das razões basilares do nosso atraso. Ainda não percebemos que ao roubar o que é de todos, também roubamos a nós e aos nossos filhos.

    Com a TAP tudo se amplia; é grande demais para passar despercebida. Não é um cambalacho do Valentim em Gondomar ou da Felgueiras em Felgueiras. É uma das maiores exportadoras nacionais, decisiva para o PIB. Se a TAP espirra, a Economia constipa-se.

    Esta é parte da realidade. A bandalheira da gestão pública (ou privada com dinheiros públicos, tanto dá para o caso) e o desbaratar de capital que vem dos impostos.

    A outra é o arrastar para a lama um nome que a todos nos orgulhava e que há mais de 75 anos liga Portugal, um país pequeno, pobre e periférico, ao mundo. A TAP são os milhares de trabalhadores que se esfolam lá todos os dias a ouvir gritos em terra ou a desviar de tempestades no ar.

    Não são as Cristines, as Alexandras ou todos os boys que a usam como uma linha no CV para chegar ao tacho seguinte.

    Meia dúzia de inúteis e incompetentes, com uma vida profissional ligada ao cartão partidário, vão destruir uma das bandeiras de Portugal, e pior, meter em risco milhares de empregos. 

    Hoje, quando todos desancam na TAP, falam dela como se a companhia fosse estas tristes figuras que aparecem em frente à comissão de inquérito. Não são. Era bom que não os confundissem.

    Daqui a uns meses ou anos, a TAP será vendida. Todos os que agora arrastam o seu nome na lama, virão fazer grandes análises para os jornais para que se perceba como foi vendida ao desbarato.

    Aquela comissão parlamentar não investiga a TAP. A TAP são os trabalhadores que lá andam há décadas a reparar motores, embarcar pessoal, mudar reservas ou a aterrar com ventos cruzados. Trabalhadores que já viram muitos ministros, secretários de Estado ou presidentes. 

    Aquilo que verdadeiramente se discute naquela triste comissão é o grau zero da política portuguesa, a escandalosa má gestão de dinheiro público e a República das Bananas que, assumidamente, não conseguimos deixar de ser.

    Entreguem a TAP aos trabalhadores, e deixem quem sabe tomar conta da companhia. Pior não fica.  

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.