Categoria: Opinião

  • P1 PODCAST e a sustentabilidade financeira do Página Um

    P1 PODCAST e a sustentabilidade financeira do Página Um


    Nascido em Dezembro de 2021, o PÁGINA UM é manifestamente um jornal diferente. Assumidamente independente, sem publicidade e sem parcerias comerciais nem mecenas. Sem reverências. Sem concessões. Fazemos aquilo que os outros não fazem ou não querem fazer, mesmo com parcos meios humanos e financeiros – a independência absoluta tem essas desvantagens. Os processos de intimação que temos colocado nos tribunais, perante a cultura do obscurantismo que reina em Portugal, são disso exemplos paradigmáticos.

    Mas sabemos – e eu sei, pessoalmente, em particular – que este “modelo de negócios”, chamemos-lhe assim, implica limitações muito fortes, sobretudo se, como é o caso do PÁGINA UM, os donativos dos leitores são a única fonte de financiamento e, mesmo assim, o acesso às notícias é inteiramente livre. Ou seja, os leitores que nos apoiam, sustentam a produção das nossas notícias e permitem, em simultâneo, que leitores com menores posses tenham também acesso.

    macro photography of silver and black studio microphone condenser

    Para o PÁGINA UM conseguir fazer mais – e queremos fazer mais, de forma sustentável, sem endividamento (o nosso passivo é zero) –, temos também de diversificar as nossas plataformas ou a forma como chegamos aos nossos leitores. O design do novo site enquadra-se nessa estratégia de consolidação e contínua melhoria.

    Foi também com esta filosofia em mente que criámos no início do ano o P1 PODCAST, que, neste momento, é constituído sobretudo pelos podcasts diários da Elisabete Tavares (Caramba,ó Galamba) – que hoje chegou ao 100º episódio –, mas também pelos “debates” entre mim e o Luís Gomes (Os economistas do diabo), pela minha improvisada “crítica de imprensa” (Que nos salves, São Francisco de Sales) e pela crónica semanal do Frederico Duarte Carvalho (Histórias que eu sei).

    Produzir estes podcasts – e outros mais que temos em mente – não deve, contudo, afectar a necessária prossecução da actividade normal do PÁGINA UM, nem pode retirar, de forma contínua, financiamento à nossa actividade como jornal de investigação. Produzir tanta diversidade com tão poucos meios implicaria reduzir a qualidade.

    Por esse motivo – e embora tenha sido já anunciado previamente –, o P1 PODCAST somente tem condições para se manter se for sustentável de forma autónoma do ponto de vista financeiro. Ora, como os recursos financeiros do PÁGINA UM se têm mantido estáveis, não temos outra hipótese que não seja a aplicação de subscrições para a audição dos nossos podcasts por um período máximo de 10 dias.

    black and silver microphone with white background

    Ou seja, significa que, a partir de hoje, apenas os subscritores (através de um pagamento mensal de 5,99 euros) terão acesso, durante os primeiros 10 dias de cada emissão, aos podcasts que formos produzindo. Findos esses 10 dias, para cada emissão, o acesso passa a ser livre.

    Sabemos que para alguns dos nossos leitores – sobretudo os que nos apoiam com maior regularidade –, o pedido de apoio suplementar em troca de acesso aos conteúdos do P1 PODCAST no período inicial de 10 dias será profundamente injusta, até porque muitos deles apoiam com valores bem superiores. Contudo, por razões logísticas e operacionais, não se mostra possível fornecer senhas de acesso aos apoiantes regulares, uma vez que o sistema de subscrições é gerido por uma entidade externa ao PÁGINA UM (e.g., Spotify). Com outros meios, porventura teremos oportunidade de implementar um sistema de gestão que controlemos directamente.

    Temos consciência que esta é também uma experiência que fazemos, um teste à nossa credibilidade – mas também uma forma de mantermos o espírito e a filosofia do PÁGINA UM como jornal, que é o nosso core business: manter a linha editorial independente, sem publicidade e sem parcerias comerciais, e de acesso livre. Mas isso não significa que seja um jornal de custo zero; significa sim que o jornalismo independente depende mesmo dos leitores. E dos ouvintes para o P1 PODCAST.

    Por isso, se concluirmos, em breve, que o P1 PODCAST não é um projecto sustentável, e que “canibaliza” os recursos do PÁGINA UM, não hesitaremos em dar um passo atrás para nos dedicarmos em exlusivo apenas no jornal digital. É nele que apostamos as “nossas fichas”.


    Para aceder aos conteúdos do P1 PODCAST (apoio mensal de 5,99 euros) em exclusivo durante os primeiros 10 dias de cada emissão, clique AQUI.

  • Montenegro e a chapada em Ventura

    Montenegro e a chapada em Ventura


    Luís Montenegro foi à CNN fazer serviço público. Começo com um elogio para dizer, em seguida, que acho o presidente do PSD um fraquíssimo candidato e uma óptima notícia para António Costa.

    Ainda assim, e finalmente, durante a entrevista a Maria João Avillez, respondeu ele à questão que há meses lhe faziam: “vai com o Chega?”

    Não, não vai. Pela primeira vez desde a era Rui Rio, que, à mesma questão, ele respondia “nim”. Desta vez, Montenegro foi claro na demarcação dos limites da cerca sanitária imposta ao Chega.

    Luís Montenegro

    Não quer coligações com políticos xenófobos, racistas e populistas. Seja no Governo ou no apoio parlamentar como acontece, por exemplo, na solução de governo encontrada na Suécia – onde os nacionalistas viabilizaram o Executivo de direita, a troco de várias medidas impostas no programa de Governo.

    A atitude de Montenegro segue a tendência que, se a memória não me atraiçoa, os Liberais, na altura pela voz de Cotrim Figueiredo, já tinham iniciado nas últimas legislativas: recusa de qualquer coligação com o Chega.

    Esta é uma excelente notícia para quase todos os partidos. Desde logo para o PS e para a esquerda que ganham novo fôlego. Uma coligação com o Chega valeria ao PSD, com as sondagens de hoje, um Governo de direita garantido. Os Liberais também poderão aproveitar a boleia de Montenegro e cativarem alguns votos à direita, de forma a “substituírem” o Chega nessa suposta aliança. Montenegro, como é óbvio, não fechou a porta a outras coligações porque sabe que, sozinho, terá dificuldades em vencer.

    André Ventura reagiu como se esperaria a esta declaração de interesses, ou seja, com mais um disparate: vai avançar com a candidatura para primeiro-ministro sozinho e disputar a vitória com o PS. É esta a estratégia. Pessoalmente, acho bem. E se fosse líder da IL estaria agora a esfregar as mãos de contente, pelo maná que me estaria a cair no colo.

    André Ventura

    Voltemos à entrevista. Maria João Avillez cortou a palavra de cada vez que Montenegro falou no PS e obrigou-o a comprometer-se com a posição do Chega. Essa parte da entrevista foi engraçada, uma vez que ele, tal como Rui Rio, começou por fugir ao tema dizendo que era cedo, que ia lutar por maioria absoluta e que ninguém questionava o PS a propósito das alianças com a “extrema-esquerda” – um conceito muito próprio. Até disse que alguma esquerda portuguesa apoiava a invasão da Ucrânia por um Governo de extrema-direita (Montenegro também está baralhado como outros).

    Avillez, como quem estava a tourear, só descansou quando o deixou de joelhos, e o homem lá disse que racistas e xenófobos não, e que, nesse perfil, nem CDS ou IL encaixavam. Por esta altura do campeonato, se para ver o Chega longe tivermos que aturar o Nuno Melo, até se pode considerar um mal menor.

    Fico agora curioso para ver se Luís Montenegro manterá a palavra quando as sondagens forem mais a sério, e, já agora, para perceber que eleitorado mais conseguirá o Chega convencer.

    Terão atingido o pico nas últimas legislativas?

    António Costa

    Eu acho que não. Até considero que as trapalhadas da maioria socialista estão a fazer, essencialmente, campanha eleitoral a favor de André Ventura. Ainda assim, não acredito que sozinho o Chega tenha capacidade de ameaçar a governação. Criada a cerca sanitária, se não for quebrada por ninguém, talvez seja possível viver e reduzir a quantidades de racistas e xenófobos na Assembleia da República.

    A esperança da esquerda reside agora, e curiosamente, nos Liberais. As voltas que a vida dá.

    Também não é um cenário animador, mas entre as trapalhadas do PS, uma coligação entre PSD/IL e qualquer coisa que meta o Chega, apesar de tudo, o cheiro não é o mesmo.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Diana, a destemperança e a irracionalidade

    Diana, a destemperança e a irracionalidade


    Acusações podem ser falsas ou verdadeiras. O grito de alerta pode ser público ou nas instituições adequadas. Todos podemos recorrer aos tribunais para atacar quem nos prejudica ou nos está a causar dolo. Para isso eles existem. O Ministério Público pode ser chamado a filtrar algumas das acusações, mas não impede o cidadão de se constituir assistente num processo e avançar, embora com custas.

    O que não gosto?

    man pointing at camera

    Não gosto de ver acusar pessoas na praça pública como se fossem roupa suja. Não gosto de ver ataques da honorabilidade que podem redundar em inocência, mas nunca mais branca e imaculada, porque a imprensa e a rede social sujam para sempre.

    Atentar contra a honra de outros deve ser uma cerimónia, um gesto de reflexão com avaliação de amigos. Os amigos verdadeiros não se esticam, não empertigam, não gritam mais que o ofendido.

    A Diana usou a rede social sem cuidar do julgamento. Juntaram-se milhares de pessoas aos gritos do aprendiz de cirurgião, envolvendo as suas emoções, suas circunstâncias, sem cuidar de reflectir, de colocar dúvidas ou de seguir a lógica: inocente até prova em contrário, in dubio pro reo.

    Dezenas de jovens médicos (no triste espectáculo que muitas vezes é o lugar “médicos unidos”) solidarizaram os seus dramas, suas vivências, seus egos narcísicos e pouco humildes com uma história que desconhecem. A boçalidade veio à rua vestida de bata, com estetoscópio aos ombros.

    doctor holding red stethoscope

    Acusações a colegas são legítimas, são necessárias, mas devem decorrer nos lugares certos. Este costume de mal dizer, como agora experimenta o Professor Boaventura de Sousa Santos e outros catedráticos de Coimbra, acarreta um problema psiquiátrico de colagem do eu ao que acabamos de ouvir. “Parece mesmo a história que me emociona e eu vivi”.

    Pumba! Lá estão todos solidários e aos gritos. Boaventura está a comer de um prato que a esquerda adora – o insulto aos adversários políticos, a ofensa gratuita, a mentira abaixo da cintura. Bolsonaro, Trump, Ventura, sabem do que estou a falar. Claro que Lula, António Costa, Seguro já beberam deste cálice também.

    Pode ser que as acusações tenham fundamento, não duvido que algumas tenham lógica, mas pela vida de trinta anos de cirurgia posso garantir que já vi inábeis com grandes sucessos, gente cheia de conhecimento e habilidades ter rotundos fracassos.

    A Medicina não é uma ciência exacta, e não é verdade que aquilo que as pessoas afirmam corresponda a má prática. A maioria das queixas em saúde devem-se à forma como se fala, ou por tempos de espera – e nada disso é Medicina.

    medical professionals working

    A realidade exposta pelo Professor Villaverde Cabral é que “os que pior dizem do SNS nunca o utilizaram”. A verdade também é que mais de 95% das queixas contra médicos em tribunal se mostraram infundadas, sendo uma decisão que não envolve corporativismo. Também é verdade que mais de 95% das pessoas que usaram o SNS se referiram elogiosamente em inquéritos.

    Quanto mais grave a doença melhor a aferição. A verdade é que a sorte e o azar existem. A realidade é que, muitas vezes, o melhor é não causar dano.

    Não sou corporativo, e até sou demasiado conhecido e visado por ser incómodo, e por tudo isso, estou aborrecido com o que se está a passar em Faro, com o protagonismo que a desorientada comunicação social dá a esta Diana, e com o que estão a fazer com Boaventura Sousa Santos de quem já escrevi duras críticas.

    O problema está na inocência – imaginem, por um segundo, a quantidade de mentiras que já brotaram de divórcios. Lembrem-se durante um curto tempo dos inocentes que Portugal encarcerou sem razão alguma. Reflictam sobre a possibilidade de alguém vos fazer o mesmo. Basta entrar sozinho num elevador com uma maluca que se ponha aos gritos e estás acusado de assédio. Basta um tipo gritar que maltratas o teu cão e o mundo incendeia-se.

    grayscale photography of woman praying while holding prayer beads

    Aquilo que me doeu mais foi a quantidade de gente sofrida, cheia de azedume, que se solidarizou sem qualquer freio ou cuidado com esta jovem. Todos os textos e discursos desta médica são de uma moralidade que não lhe pertence.

    Ninguém é a defesa da moral alheia, ninguém é a fronteira do bem e do mal, ninguém é a garantia da qualidade, ninguém consegue o erro zero. A humildade devia chover sobre esta gente que transporta regadores de trampa nas casas alheias. Talvez um pouco de senso e reflexão, dissolvidos como açúcar na humildade desse jeito também. 

    Já agora dizer que as declarações mais lúcidas, assertivas que ouvi foram do Carlos Cortes, bastonário da Ordem dos Médicos.

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Ga-jas

    Ga-jas

    Uma luz solar minúscula, que não passa de um de um dos cem mil sóis da nossa galáxia, será dificilmente detectada. E a nossa galáxia é um dos mil milhões de galáxias, rodando a velocidades que excedem a velocidade da luz – até que cada galáxia acaba por arder, para ser substituída pelas novas galáxias que preservam o equilíbrio desta dança.
    Timothy Leary
    THE SEVEN TONGUES OF GOD, 1965


    Deixei-vos, na última semana, prestes a começar a ouvir o monólogo improvisado de um actor com um grave problema oncológico, que veio viver aqui para Estremoz com o filho de quatro anos, Miguel, a quem tenciona dedicar este seu último trabalho. Gonçalo estudou Shakespeare em Londres, especializou-se nos seus monólogos, recebeu críticas entusiásticas e ovações em pé. Quando voltou para Portugal foi devidamente ostracizado, como o País tanto gosta de fazer aos que se destacam no estrangeiro sem a ajuda de ninguém. Nunca se queixou. Aceitou papéis parvos em novelas e participações em reality-shows, continuando a trabalhar na sua arte, mas agora em português, aperfeiçoando cada vez mais o estilo e aguardando a hora certa. Ao saber-se gravemente doente veio viver para uma rua perto da minha, e decidiu começar a falar de Pai para Filho. Convidada a assistir ao primeiro improviso, sentei-me silenciosamente ao lado do Miguel, também ele muito atento na sua cadeirinha, liguei o gravador, e ouvi o monólogo delicioso que aqui partilho convosco.


    “Querido Miguéu,” começou o Gonçalo num tom firme mas carinhoso, sem qualquer teatralidade, “por favor, ouve o teu Pai. Tens mesmo que ouvir o Pai agora, porque a seguir ninguém vai ter tomates para te dizer tudo isto, por muito que tudo isto seja verdade.”

    Embora falasse sem qualquer esforço aparente, havia no seu tom de voz qualquer coisa de tal forma dramática que o Miguel ficou imóvel, de boca aberta, a olhar para o Pai.

    “Quando fores um homem crescido”, continuou o Gonçalo, “por favor, promete-me que vais ter muito cuidado com o pior que pode haver, meu querido filho. Sabes o que é o que pior que pode haver, para um crescido, Miguel? O Pai diz-te. O pior que pode haver é não nos defendermos a tempo e depois sermos vítimas deste Género… deste cerco constante deste Género… sei lá, desta porcaria deste circo deste Género Feminino. Tu vais ver. Juro-te, é que tu vais mesmo ver! Cresce só mais uns aninhos, que vais logo ver! Tem cuidado, Bebé. Nunca oiças nada do que elas te disserem. Se por acaso ouvires mesmo alguma coisa, esquece-te logo do que foi. E, sobretudo, nunca respondas a nada do que elas te perguntarem, porque nunca hás-de conseguir responder-lhes o que elas queriam ouvir, e te garanto que não há ninguém neste mundo que saiba verdadeiramente o que é que elas querem ouvir, assim para cada contexto, para cada momento, até para qualquer porra de qualquer fotografia. Nem se respira. Tu tens é que ser bruto, mas mesmo um ganda bruto, porque, assim como assim, mais cedo ou mais tarde, elas vão TODAS, SEMPRE, acabar por te acusar de seres um ganda bruto. Então olha, goza-te bem disso. Deixa-lhes sempre a puta da cama por fazer. Esquece-te sempre de limpar o raio que o parta do lavatório depois de te barbeares. Vê se consegues deixar sempre a tampa da retrete para cima, porque nunca ninguém disse que elas é que têm o direito de mandar na casa de banho. E, se puderes, deixa todos os dias imensas palavras por dizer. Todos os dias, mesmo. Convictamente. Deliberadamente. Como se fosse uma religião. Não se pode dar qualquer espécie de confiança a uma GA-JA quando se quer passar bem e viver em paz.

    Miguel, animadíssimo com a animação crescente do Pai, deu um murro na mesinha da sua cadeirinha alta de bebé e repetiu, todo enfático,

    “Uma GA-JA!”

    Gonçalo fez-lhe um grande sorriso, muito orgulhoso dos seus ensinamentos e da boa recepção do Miguel. Respirou fundo, bebeu um copo de água, piscou o olho ao Filho, e prosseguiu.

    O meu Pai, José Pinto Correia
    Tinha seis ga-jas lá em casa, portanto imagina-se o que terá sofrido.

    “Então vá, Miguéu. Muita atenção, agora, boa? É importante. Vamos mas é a uma boa CENA DE GAJOS, porque por hoje já tivemos toneladas de paciência para os números delas, e portanto já temos todo o direito de curtir sem ter que dar explicações a ninguém.”

    “Querido filhote, alguma vez te disse qual é a especialidade do teu Pai? O Pai é um actor de Shakespeare. E o seu melhor sempre foram os monólogos. E portanto, como já te dei os meus conselhos mais importantes e depois não sei se depois ainda te volto a ver, aqui vai um Monólogo de Shakespeare, improvisado só para ti.”

    Céus. Afinal nada daquilo, e aquilo já tinha sido do caraças, era ainda o monólogo. Era “apenas” o prólogo do monólogo. Em certa medida, fôra o prólogo porque se notava que Gonçalo ficava cansado com facilidade: não conseguia tirar a mão do fundo das costas, sentou-se ao meu lado para respirar fundo e tomar dois opióides valentes, aproveitou para esvaziar toda a garrafa de água, e só quando eu lhe perguntei se queria que fosse buscar-lhe outra é que se lembrou que eu também estava ali. Riu-se, disse que sim, agarrou avidamente na garrafa de litro e meio que eu lhe trouxe do frigorífico, e entretanto já estava o Miguéu a fazer uma birra porque queria mais.

    “Devias falar sentado”, sugeri eu.

    “Monólogos de Shakespeare sentado? Não, não posso, sentado não consigo. Só preciso de respirar um bocado e esperar que os comprimidos façam efeito. Conta tu uma história qualquer ao puto para ele estar sossegado entretanto, pode ser?”

    Claro que podia ser. Cansado, doente, ignorado pelo seu país, escondido do caos do mundo numa casinha de Estremoz, o Gonçalo tinha ali uma audiência captiva.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora

  • Mau governo, péssima oposição!

    Mau governo, péssima oposição!


    Quando, a 30 de Janeiro de 2022, contra a expectativa da maioria dos portugueses, o Partido Socialista ganhou as eleições legislativas, com maioria absoluta, fiquei a aguardar a apresentação do novo Governo.

    António Costa vinha de meses difíceis.

    Tinham sido muitos os casos “estranhos” no seu mandato, vários os ministros debaixo de fogo, imensos os comentadores que consideravam “desajustados”, para as funções, alguns dos ministros, e havia, também, alguns destes a querer bater com a porta.

    Pensaram, todos os que se preocupam com a governação, que o líder do Partido Socialista iria aproveitar aquela extraordinária votação, que os eleitores lhe tinham dado, para fazer uma limpeza radical na estrutura governativa.

    Tinha motivos, e Poder, para tal.

    Era a hora de retirar, dos Ministérios, todas as maçãs podres.

    Que eram muitas.

    Talvez fosse, até, mais correcto dizer que ele deveria retirar, daquele cesto chamado Governo, as poucas maçãs que continuavam boas e não tinham sido “tocadas” pelas que, completamente putrefactas, as rodeavam.

    Quando, a 30 de Março, o Governo tomou posse, a desilusão foi total.

    Percebeu-se que, de novo, se tinha optado pelo pagamento de serviços prestados ao Partido, em detrimento da qualidade.

    Os Ministérios e Secretarias de Estado, com raríssimas excepções, foram entregues a carreiristas lambe-botas.

    A tomada de posse foi um desfilar de gente medíocre, sem vida e sem carreira outra que não a escalada, no Partido, desde especialistas em colar cartazes a moços de recados das figuras de referência.

    Na realidade, eu só estranhei a entrada de algumas personalidades, poucas, com conhecimentos e coragem para conseguir algum sucesso.

    Apesar da convicção de que os seus companheiros, nesta missão, lhes iriam dificultar essa tarefa.

    Essas poucas excepções, admito, davam-me alguma confiança.

    Quando vi uma delas, o Ministro da Economia, a ser atacado por Secretários de Estado absolutamente acéfalos, sem uma tomada de posição firme do Primeiro-Ministro, fiquei com a certeza de que este Governo iria ser o bombo da festa da Oposição.

    Os inúmeros casos que se seguiram, e que mostraram, à saciedade, a total incompetência, e até insanidade mental, de alguns dos governantes, mostraram, à evidência, a fragilidade da equipa.

    São muitos, são incompetentes, são burros!

    Numa palavra, o Governo é mau.

    Muito mau.

    A Oposição tentou aproveitar para convencer o Presidente da República a dissolver o Parlamento e levar o País a eleições antecipadas.

    Embora não o afirmando taxativamente.

    Mesmo quando o “líder” da Oposição, repetindo as frases de um seu antecessor (Passos Coelho), garantia que “o PSD não está cheio de vontade de ir ao pote, percebíamos que estas frases soavam a falso.

    O problema do líder social-democrata, contudo, é igual ao do Primeiro-Ministro: está rodeado de incompetentes e imbecis.

    E sabe que, a querer construir uma nova “Geringonça”, vai ter que se entender com o pessoal do “Chega”.

    E aquilo não são maçãs podres.

    Porque não há, ali, maçãs…

    O problema é que talvez ele seja o único português que ainda não percebeu isso.

    Maior prova de que a Oposição é péssima é que nem Marcelo a leva a sério, por muito que isso lhe custe!

    Só que, é difícil não se perceber que o actual PSD nunca ganhará umas eleições legislativas.

    A Oposição tem, portanto, um caminho difícil.

    Logo à partida porque encontra, à sua frente, um monte terrivelmente íngreme e difícil de transpor ou, mesmo, de rodear.

    É um monte que tem de se fazer com cautela, desconfiando de todo o terreno a pisar e, sobretudo, dos companheiros de caminhada.

    Talvez não precise de ter um olho nos burros e outros nos ciganos porque, à sua volta, não há ciganos.

    Mas o monte ergue-se, imenso, no caminho de todos os portugueses.

    Um monte que cheira a falso, que se sabe perigoso, sem caminhos visíveis, sem mapas, sem bússola.

    Um grande, imenso, tenebroso, monte negro.

    Talvez esteja na hora de seguir, pela primeira vez, um conselho de Passos Coelho e… emigrarmos.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os julgamentos em praça pública

    Os julgamentos em praça pública


    Há coisa de um par de anos, numa das minhas habituais deslocações entre Suécia e Portugal, julgo que no aeroporto de Frankfurt, entrei num avião que me traria a Lisboa.

    Ao meu lado estava um dos arguidos do processo Casa Pia. Por esta altura já ele tinha passado por todo um calvário público. Detido para interrogatório, preso preventivamente vários meses e constituído arguido. Nunca chegou a ir a julgamento, foi ilibado e o Estado Português foi condenando a pagar-lhe uma indeminização. Contudo, o julgamento público estava feito e a sentença dada: aquele homem era um pedófilo.

    flock of birds flying under blue sky during daytime

    Quando me sentei ao lado dele, apesar de saber todos estes detalhes que acima escrevi, interrogava-me, apenas, se de facto o teria feito.

    O julgamento na praça pública fica para a vida.

    Duram dias, semanas, meses.

    Moldam a opinião de todos e, quando anos depois aparece a notícia de que, afinal, estava tudo errado, e o tribunal ilibou o Joaquim ou o Manel, já ninguém lê o rodapé. 

    A credibilidade de uma vida, para quem a tem, destrói-se em dois dias com um par de insinuações sem qualquer prova material.

    Quer isto dizer que as insinuações são sempre falsas e os visados inocentes? Não. Não sei. Não faço ideia. 

    Quer apenas dizer que nós, inconscientemente, traçamos o veredicto na nossa cabeça e descartamos tudo o que o tribunal venha a dizer posteriormente. É humano. Não sei bem se será racional, mas, provavelmente, estará de alguma forma ligada com a nossa pouca fé no sistema de justiça português.

    text

    Boaventura de Sousa Santos é o mais recente exemplo deste tipo de casos.

    Tenho pouca simpatia pelo dito, e certamente, vindo eu da área de ciências exactas, tenho alguma dificuldade em encontrar o brilho que lhe apontam no pensamento alternativo. Para Boaventura de Sousa Santos, isto do conhecimento científico ser hierarquicamente superior, é uma chatice.

    Há que trazer à tona coisas que se sentem, mas não se comprovam, deixando o detalhe das evidências para outras calendas. Interpretação minha do pensamento dele. Ou senso comum, como ele diria.

    Isto para dizer que me custa escrever o que virá depois, mas que me parece lógico e razoável. Ao contrário do Boaventura, eu aprecio ciências exactas e provas concretas. E acho perigoso e pouco recomendável que, à mínima insinuação, uma pessoa se transforme em culpada. Mesmo que seja.

    De entre as várias acusações que lhe são dirigidas, fiquei curioso com uma em particular: uma aluna, em 2014, alegadamente terá rejeitado uma investida de Boaventura no apartamento deste. Diz ela que as portas se fecharam a partir daí e que o assédio sexual se tornou moral.

    city with high rise buildings under white clouds during daytime

    Tenho sempre a tendência, lá está, vinda do julgamento público, de achar que homens em locais de poder se aproveitam desse poder. Parece-me simples de encaixar essa ideia. Mas não consigo perceber porque vai uma aluna para casa de um professor, com 70 anos de idade, à noite, discutir um trabalho que poderia fazer na universidade e quando, ela própria, já relatava assédio sexual da parte do mesmíssimo professor. É no mínimo esquisito.

    E, no fim de todo este embrulho, com todas as queixas envolvidas, e já cinco anos depois de voltar ao seu país de origem (Brasil), a aluna volta a aceitar um convite de Boaventura de Sousa Santos para se encontrarem na Bahia. Nesta altura uma mulher com 35 anos, ou perto disso.

    Perdoar-me-ão, pelo menos, de me sentir confuso com esta lógica do pensamento.

    Será Boaventura mais um velho licencioso, predador e abusador do poder que a universidade lhe atribuiu? Não faço ideia e aliás, agora que penso nisso, vou colocar um “alegadamente licencioso” para não ser processado como o embaixador Seixas da Costa ao referir o óbvio sobre Sérgio Conceição.

    Acredito que seja um tipo a evitar, mas, mesmo para personagens destas, por mais odioso que seja o papel de advogado do diabo, não chega mandar umas bocas e ir buscar os paus para a fogueira da inquisição. É preciso mais.

    shallow focus photography of padlocks in steel cable

    Um dos professores a quem uma das alunas se queixou terá dito que “Boaventura é brilhante, mas já todos sabemos que é assim”.

    Se, de facto, é esse o caso, deve ser facílimo apanhá-lo com o pé em ramo verde. Sugiro que levem para as reuniões um smartphone com o gravador ligado. É absolutamente impercetível e funciona como o Javisol: deixa tudo claro em poucos minutos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O PÁGINA UM 2.0: novo design, uma renovada prova de sucesso dos nossos leitores

    O PÁGINA UM 2.0: novo design, uma renovada prova de sucesso dos nossos leitores


    O PÁGINA UM, sempre em continuidade desde Dezembro de 2021, renasce hoje com um novo design, mais moderno, num estilo mais próximo de um jornal digital.

    Este é um esforço que, em primeira linha, se deve à colaboração do José Maria Gonçalves Pereira e do António Almeida – que, no seu caso, nos tem acompanhado desde os primórdios.

    Com este modelo do site do PÁGINA UM confirma-se a magia do projecto, e também a nossa quimera, que afinal se tem alcançado no quotidiano, ao longo dos últimos 16 meses: é possível a criação de um projecto editorial de acesso livre, que se afirma pela acutilância e irreverência, sem quaisquer reverências, e que conjuga dois (bons) géneros de pessoas: o primeiro grupo, aquelas que vêem o PÁGINA UM como um modelo de jornal absolutamente independente – que deve ser acarinhado e apoiado financeiramente através de donativos, tanto mais que o modelo de negócio (em contraponto com a mercantilização do jornalismo na imprensa mainstream) não inclui anúncios nem parcerias comerciais; e o segundo grupo, aquelas pessoas que colaboram, pro bono ou a troco de pequenas compensações, em tarefas que colocam o jornal como uma referência na imprensa portuguesa.

    silhouette of person

    Não falo numa referência em termos de dimensão e de desafogo financeiro (mesmo se o desafogo financeiro na imprensa mainstream se faz, em muitos casos, à custa de passivos estratosféricos, que colocam sempre em causa a independência), mas de prática e de princípios deontológicos, mostrando aos leitores aquilo que deve ser o jornalismo.

    Sabemos que, perante uma redacção minúscula, dificilmente conseguiremos uma abordagem temática similar à da imprensa mainstream, mas temos dado cartas – e mais haverá – sobre como deve (e tem de) ser o comportamento do jornalismo perante os poderes económicos e políticos. Além das investigações que temos apresentado, os processos de intimação que temos colocado no Tribunal Administrativo de Lisboa para a obtenção de informação pública, com a extraordinária coragem do nosso advogado Rui Amores, são exemplos paradigmáticos. Não que estejamos a fazer muito; os outros é que, nesta matéria, nada fazem. E deviam fazer.

    Em todo o caso, o novo design do PÁGINA UM mostra sobretudo a nossa vitalidade, e é o corolário do sucesso que nos foi concedido e confiado pelos leitores que nos apoiam. É mais do que prova de sobrevivência; é uma prova de vitalidade: para fazermos esta aposta num novo design é porque estamos cientes e conscientes de que o projecto editorial, mesmo nos moldes actuais, apresenta potencial para crescer, para obter financiamentos para crescer mesmo se somente através dos donativos dos leitores. E isso consegue-se também se, em paralelo, mantivermos ou até crescermos em quantidade informativa com a qualidade de sempre.

    asphalt road between trees

    E este novo design mostra também a vitalidade e interesse dos nossos colunistas habituais, que já ocupam as nossas páginas diariamente. Assim, os artigos de opinião e as crónicas do Tiago Franco, Clara Pinto Correia, Frederico Duarte Carvalho, Mariana Santos Martins, Vítor Ilharco e Diogo Cabrita passam a ter uma maior visibilidade logo na página principal do site.

    Por outro lado, com este novo design fica mais clara a nossa aposta na Cultura, existindo a possibilidade de se produzir mais temáticas nesta secção – para além dos ensaios (que serão retomados em breve) de Carlos Jorge Figueiredo Jorge, ou da crítica de cinema e de séries televisivas do Bernardo Almeida –, para além das recensões habituais, sobretudo a cargo da Ana Luísa Pereira, Maria Carneiro e Paulo Moreiras (e também das minhas e dos outros colaboradores do PÁGINA UM).

    Esta segunda fase da vida do PÁGINA UM também contará com um pequeno reforço de meios humanos. A Maria Afonso Peixoto passará, nos próximos tempos, a ter uma presença mais assídua, bem como a Elisabete Tavares, que se tem vindo a destacar, neste momento, na criação de podcasts de análise ao quotidiano. Haverá, muito em breve, novidades sobre o P1 PODCAST, que constitui um projecto paralelo do PÁGINA UM, com recursos autónomos, mas também sem publicidade nem parcerias comerciais.

    aerial view of people walking on raod

    Já agora, por falar na Elisabete Tavares, é da sua safra a intimista entrevista que hoje publicamos, em manchete, com a psicóloga Laura Sanches, que merece ser lida (e reflectida) para compreendermos os perigos que ainda pairam sobre a nossa democracia e vida pós-pandemia. E sobre as novas gerações.

    Convém, aliás, referir que as entrevistas serão uma das nossas apostas nos próximos tempos, procurando ouvir sobretudo quem julgamos que deve ser ouvido. E que queira expor-nos os seus pontos de vista sem contemplações.

    Por fim, um agradecimento especial a todos aqueles que nos têm acompanhado e sobretudo apoiado desde os primórdios desta aventura do PÁGINA UM, em Outubro de 2021, quando a semente nasceu. Se hoje estamos aqui, a fazer um jornalismo incómodo – um pleonasmo que, por esquecido, convém aqui usar –, deve-se aos nossos leitores, aqueles que nos apoiam mesmo sabendo que não precisariam de apoiar para nos lerem – mas que sabem bem que a informação, mesmo gratuita, tem um valor. E nos tempos que correm parece tão rara que deve ser cuidada e mantida.

  • Falemos de Maria Botelho Moniz

    Falemos de Maria Botelho Moniz

    A apresentadora Maria Botelho Moniz teve o seu nome visado por um cronista que se referiu às suas características físicas de forma depreciativa. Aproveitemos nós então para dizer coisas verdadeiramente importantes sobre o nome Botelho Moniz. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.


    Quero agradecer ao cronista Alexandre Pais o facto de ter chamado a atenção para o aspecto físico da apresentadora Maria Botelho Moniz, pois sem ele e sem o alarido público que a crónica provocou, não teria agora uma oportunidade de dizer algumas coisas que eu sei.

    Não, caro Alexandre, não vou falar de ti e das coisas que sei sobre ti – trabalhei com ele no 24 Horas e Tal&Qual e poderia contar factos, mas isso seria dar demasiada importância a assuntos que só interessam a uns poucos. Só tenho a dizer que não me surpreendeu o conteúdo da crónica. Está coerente com aquilo que há muito o Alexandre faz e tem o seu público.

    Maria Botelho Moniz

    Aquilo que o Alexandre não faz, vou fazer eu: vou contar-vos algumas coisas sobre o nome Botelho Moniz que, acredito, a grande maioria das pessoas não sabe e que são bem mais importantes do que andar a discutir o aspecto físico de uma das pessoas que ostenta o nome dessa família.

    O bisavô de Maria Botelho Moniz, chamava-se Jorge Botelho Moniz e, tendo nascido em 1898, entrou cedo na vida política. Pode-se mesmo dizer que foi com um estrondo, pois esteve envolvido no golpe de Sidónio Pais, a 5 de Dezembro de 1917, com apenas 19 anos. No ano seguinte, foi eleito deputado pelo Partido Nacional Republicano. Será depois um dos participantes do golpe militar do 28 de Maio de 1926, juntamente com o seu irmão, Júlio Botelho Moniz.

    Se a bisneta Maria tem no sangue a comunicação, então isso também se justifica pelas raízes familiares, pois o bisavô foi o fundador da Rádio Clube Português, em 1931. Segundo as informações que podemos ler sobre ele no News Museum, Jorge era amigo de Salazar e, durante a guerra civil de Espanha, por estar à frente uma rádio privada, conseguia ser mais activo na defesa da propaganda nacionalista espanhola do que a própria Emissora Nacional, que tinha de manter uma posição mais neutral.

    Foi, segundo a página da Assembleia da República com a sua ficha parlamentar, um “dos entusiastas da fundação da Legião Portuguesa”. Entre outros cargos que teve ao longo da vida, destaca-se ainda o de Administrador da RTP, em 1957, quatro anos antes da sua morte, em 1961.

    Jorge Botelho Moniz (1898-1971) e Júlio Botelho Moniz (1900-1970)

    O nome de Jorge Botelho Moniz será ainda recordado por ter sido ele, no início dos anos 50, responsável pelo fim da chamada Lei do Banimento. Essa era a lei que, vinda ainda do tempo da monarquia, mantinha banida de Portugal a família real descendente do rei D. Miguel, derrotado na guerra civil de 1832-34 pelos liberais de D. Pedro IV.

    Na sequência do fim da lei, um pequeno príncipe chamado Dom Duarte de Bragança, foi autorizado a vir viver em Portugal e ser hoje considerado como pretendente ao Trono de Portugal, apesar de ser descendente de uma linhagem banido desse direito.

    Coisas que a ditadura de Salazar conseguiu criar e que a República de hoje, ao ter em Dom Duarte a única e aparente réplica monárquica, aproveita isso como se fosse um seguro de vida. E é algo que bem que podem agradecer ao bisavô de Maria Botelho Moniz.

    Enquanto Jorge era uma pessoa bem integrada no regime de Salazar e um fiel seguidor das ideias do Estado Novo, o seu irmão Júlio, militar de carreira, tornou-se no ministro da Defesa, mas ficaria conhecido por ter estado na origem de uma tentativa de golpe militar. No mesmo dia em que o soviético Iuri Gagarin se tornava no primeiro homem no espaço, 12 de Abril de 1961, o tio-bisavô de Maria Botelho Moniz tentava atirar por terra o regime de Salazar. Queria promover a independência das colónias e evitar uma guerra, mas sem sucesso.

    António Salazar, à direita. Foto: Horácio Novais (1910-1988).

    A tentativa de golpe de Júlio Botelho Moniz levou então a uma remodelação no Governo e foi nessa altura que Adriano Moreira se tornou no ministro do Ultramar, tendo Salazar passado a assumir a pasta anteriormente detida pelo tio-bisavô de Maria Botelho Moniz. Só 13 anos mais tarde e muitos mortos depois é que Portugal encontrou a Democracia que hoje vamos tendo.  

    Como se vê, haveria muito mais para se dizer sobre Maria Botelho Moniz. Muito mais do que o mero comentário a respeito do seu aspecto físico que – cá entre nós, há quem goste e muito. Mas como a Imprensa portuguesa, nestes últimos 50 anos, não produziu grandes nomes, lamento apenas que fiquemos a conhecer Alexandre Pais por ter dito o que disse em vez de falar daquilo que eu sei.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Páscoa com vista para o Vaticano

    Páscoa com vista para o Vaticano


    Como bom ateu que sou, trato as religiões todas por igual. A nenhuma reservo particular importância na minha vida e vejo-as, quase todas, como motivo de divisão e conflito entre as pessoas.

    Entro numa basílica católica, numa catedral ortodoxa, numa mesquita secular ou num templo budista com o mesmo interesse: a arquitectura, os materiais, as decorações, os motivos.

    Gosto de imaginar como é que se construíram monumentos, tão magníficos e imponentes, há 500 ou 600 anos. Ignoro o que representam ou como foram financiados. Concentro-me na obra e aprecio a beleza daquilo que o Homem consegue fazer.

    A Páscoa nunca teve outro significado para mim que não fosse a de, enquanto criança, abrir um ovo de chocolate. Era uma desculpa para doces. Ponto final. Lembro-me de, há uns anos, na Igreja da Natividade (Belém-Palestina), ver alguns visitantes ao suposto sítio onde nascera Jesus a beijar a salva de prata que assinalava o local. Entre choro e comoção, demonstravam a sua fé. Poucas horas depois, via judeus, a alguns quilómetros dali, encostados, entre pedidos, ao Muro das Lamentações (Jerusalém).

    Nada, absolutamente nada, nestes rituais cruza qualquer um dos meus caminhos ou pensamentos. Respeito a fé alheia, ainda que não me consiga rever na devoção. É como sandes de leitão: respeito quem a coma, mas não percebo por que o fazem.

    Dou por mim a cruzar a Praça do Vaticano no fim-de-semana da Páscoa. Não vim para aqui por acaso, mas a altura do ano foi uma mera coincidência. Passaram nove anos desde a última visita à Cidade Eterna, se a memória não me atraiçoa.

    São quase 19 horas, de um sábado, e a interminável fila para ver a esplendorosa Basílica de São Pedro tem agora os seus últimos resistentes. Tal como eles, aperto o passo e penso que vou fazer uma visita nos últimos cinco minutos de abertura diária. 

    Quando lá entro, perco-me a olhar para cima e admiro a imensidão da catedral. Há gente sentada. Muita gente sentada. Guardas por todo o lado e senhores com fato que distribuem velas e livros de canções. Imagino que tenha outro nome técnico, mas é aquele livro que as pessoas na missa usam para fazer o coro no refrão da música. Julgo que me percebem.

    Vou ouvindo uns zunzuns e as portas fecham. Vai haver missa e eu estou lá. Pensava que, na Páscoa, só se fazia aquela missa do Domingo de manhã que passava sempre na TVI e que, por norma, nos levava a mudar de canal. Afinal não, também há qualquer coisa no Sábado.

    Baixam as luzes e pedem silêncio para a entrada do Santo Padre. Francisco vai mesmo contrariar a frase “ir a Roma e não ver o papa” e, ao fim de 20 minutos, aparece no meio de vários cardeais, guardas e um périplo digno de uma entrada em cena dos Queen.

    A missa corre em várias línguas, Português de Vera Cruz incluído. Estão milhares de fiéis dentro da Basílica. Imagino que fossem fiéis, talvez alguns fossem apenas pessoas que pensavam ver as cúpulas da Basílica de São Pedro antes da hora de encerramento.

    O Papa mal consegue falar ou mexer-se. É ajudado para se levantar, para se deslocar, para se sentar. E até para falar. Há um clima de santidade no ar. Há um luxo imenso nas paredes, nas roupas, nos ornamentos. Tudo brilha.

    Saio de lá a pensar, como em todas ocasiões semelhantes, que foi uma experiência interessante. Digo-o sem preconceitos.

    Da mesma forma que gostava de entrar em Meca (o que infelizmente me é vedado), gostei de ver tantos crentes numa cerimónia com o representante de Deus na Terra. Julgo que é assim que os católicos o definem, mas certamente estarei a ofender alguém.

    Fora das paredes do Vaticano, contudo, o brilho do ouro é substituído pela realidade italiana. Dezenas de sem-abrigo dormem nas arcadas, ali a poucos metros da praça onde, no dia seguinte, Francisco apelará à paz na Ucrânia e ao combate à pobreza.

    Todas as noites, quando os turistas se vão embora e só os polícias ficam na Praça de São Pedro, cartões com cobertores descobrem um canto protegido. Tendas de uma pessoa são montadas. Colchões são arrastados.

    A ironia de uma noite passada, ao relento, com vista para um dos mais ricos Estados do Mundo, onde se prega a fé cristã e a ajuda ao próximo.

    Ali, a poucos metros do Banco do Vaticano e de tesouros oferecidos pelas cortes europeias durante séculos, uma riqueza incalculável, insuficiente para dar guarida ou uma sopa quente a quem faz das arcadas do Vaticano, a sua casa. Há lá ironia maior?

    beaded brown rosary

    Em 2021, ao fim do primeiro ano de pandemia, cerca de 5,6 milhões de pessoas, onde se incluíam um terço de todos os emigrantes, vivia em risco de pobreza. Esse período fez com que 22% da população italiana ficasse em risco de não ter acesso a comida.

    Lembremo-nos que Itália foi dos países europeus que mais sofreu com confinamentos. A população empobreceu e teve, nos últimos anos, várias crises de refugiados por causa de intervenções militares desastrosas.

    Líbia e Síria são alguns dos exemplos. Desde 2022, receberam mais uma onda de refugiados da Ucrânia e, como todos os europeus, vão perdendo poder de compra, enquanto são obrigados a pagar a disputa entre russos e americanos, com o patrocínio dos idiotas úteis da União Europeia.

    Nunca vi, em Itália, tantas pessoas na rua a viver em caixotes como desta vez. Maradona, outro génio meio louco, disse em tempos numa afronta à Igreja Católica que, se de facto estivessem preocupados com a fome em África, em vez de rezarem, podiam começar a raspar as paredes do Vaticano. Bem sei que soa a demagogia, mas convenhamos, era de facto mais útil.

    black ceramic bowl with rice and spoon

    Ursula von der Leyen foi à China de braço dado com Macron, ofender um pouco o presidente chinês e complicar ainda mais a nossa vida. Macron, com Paris a ferro e fogo, foi meter-se numa aventura para a qual não tem arcaboiço, como lhe fez entender Xi Jinping.

    Von der Leyen levou o recital do costume e procurou, achava ela, explicar o que os chineses devem fazer. O resultado é uma ofensa que os afastará ainda mais, novas mortes ucranianas e mais empobrecimento europeu. Aquele que tem varrido a Europa no ano pós-pandemia e que é visível de Kiev ao exterior das ricas paredes do Vaticano. 

    Enquanto pensava nisto, voltava a passar nas arcadas do Vaticano, a poucas horas da missa de Domingo. Tudo limpo. Tudo impecavelmente limpo e vigiado pela polícia. Os caixotes foram dobrados, as tendas desmontadas, os sem-abrigo foram para parte incerta.

    person in red sweater wearing silver ring

    Como vos explicarão em Hollywood, importa o que a câmara capta. Tudo o que está fora do enquadramento não existe. Domingo, o Vaticano aparece em todas as televisões do Mundo. Há que brilhar. Há que rezar pelos pobrezinhos sem os ver.

    Segunda-feira tudo volta ao normal. Com os caixotes, a vista do saco de cama para a Basílica, a hipocrisia da fé e o desinteresse de quem nos rege.

    Deve ser por isso que nunca, fé alguma, me seduziu.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Somos racistas quando queremos parecer não-racistas

    Somos racistas quando queremos parecer não-racistas


    Em Portugal, a cor da pele – ou a raça ou etnia, termos que, em si mesmo, devem ser usados sempre com a máxima prudência, porque o wokismo está ao virar da esquina para tachar epítetos – é considerada um dado nominativo e, por esse motivo, quase nunca é recolhido para efeitos de estudos sociológicos, económicos, sociais ou sanitários.

    Ora, mas como grande parte de toda a informação relevante para a elaboração de diagnósticos e de avaliação de políticas económicas, sociais e de saúde pública somente fazem sentido se a componente étnica e racial constituir uma variável com informação fiável, ficamos sempre às cegas.

    selective focus photography of woman and boy

    Por exemplo, não conseguimos em Portugal comparar, com uma base minimamente rigorosa, qual o rendimento médio da população negra em comparação com a população de origem caucasiana; não conseguimos comparar o grau de qualificação da população de etnia cigana; e não conseguimos sequer saber qual a esperança média de vida e o impacte de determinadas doenças – por exemplo, a letalidade da covid-19, hélas – nas diferentes etnias que vivem no nosso país.

    Não se sabe porque, ai Jesus!, seria uma promoção do racismo recolher essa informação sensível. E assim protegida a intimidade dos negros, assim ignoramos as carências da população negra. Assim protegida a intimidade da população cigana, assim a ignoramos e a estigmatizamos, com mitos e preconceitos.

    O racismo é, na verdade, o reflexo da ignorância, de um medo tantas vezes infundado ao desconhecido. O racismo alimenta-se do desconhecimento, da congeminação de preconceitos, da alimentação de estigmas, de mitos, do boato.

    woman dancing on seashore

    Esta reflexão sobre a forma como em Portugal se colocam sempre mil obstáculos em incluir a variável étnica em estudos – e de isso ser, para mim, um acto de perpetuação do racismo e da discriminação –, surge a propósito de dados divulgados na sexta-feira passada no The New York Times sobre o impacte da pandemia – covid-19 e outras doenças – naquele Estado norte-americano.

    Ora, como se sabe, o sistema de saúde norte-americano não é universal, estando muito dependente do tipo de seguro individual e, obviamente, dos rendimentos. E existem enormes diferenças em função das etnias, que não está associada a questões genéticas.

    No Estado de Nova Iorque, mesmo antes da pandemia, a esperança média de vida da população negra não chegava sequer aos 79 anos, sendo três anos inferior à da população branca e hispânica.

    people walking on street during daytime

    Em 2020, com o impacte da covid-19 e de toda a desestabilização dos serviços de saúde nos Estados Unidos, sendo certo que a queda da esperança média de vida foi substancial e generalizada em todas as etnias – muito pela elevada mortalidade na população idosa –, a população negra e hispânica foram as mais afectadas comparando com a (mais rica) população branca.

    Enquanto a “perda” no primeiro ano na população hispânica – que pela alimentação mais saudável era até superior à população branca em 2019 – e na população negra foi de seis anos (passando de cerca de 83 anos para 77,3; e de um pouco menos de 79 para 73 anos –, a “queda” na população branca foi de três anos, passando para 80,1 anos.

    Evolução da esperança média de vida no Estado de Nova Iorque. Fonte: NYT

    Este indicador demonstra não apenas um impacte das políticas económicas, sociais e de saúde antes como durante a pandemia, mostrando que o impacte das doenças não atinge todos por igual.

    E em Portugal, o que sucedeu?

    Não se sabe, porque não se pode saber. Saber seria ser-se racista.

    Mas conhecerem-se esses dados permitiria que os políticos não tivessem a desculpa da ignorância para não actuarem, para não corrigirem essas desigualdades absurdas. E não corrigirem as desigualdades, supostamente evidentes mas não quantificáveis, logo não “avaliáveis” (em termos de diagnóstico e de avaliação de medidas), isso sim, é que é um acto de perpétuo racismo.

    woman wearing leotard sketch

    Por isso, quando se defende em Portugal que a recolha de dados étnicos se mostrará sempre uma atitude intolerável, discriminatória e mesmo racista, eu acho exactamente o contrário: racismo é a manutenção desta ignorância sobre dados fundamentais para se definirem políticas sociais que combatam as desigualdades, a discriminação e o “negócio da lamúria”.

    Para deixar de se ser racista, convém conhecermos como vive cada uma das nossas etnias. Somente assim se eliminam os preconceitos e se ganha empatia e se promove a equidade, e por fim a igualdade de oportunidades.