Categoria: Opinião

  • Os saudosistas do 25 de Abril

    Os saudosistas do 25 de Abril


    Cada sociedade apega-se aos seus símbolos, aos seus totens, para os impor como referências, como modelos. Portugal tem, desde 1974, o seu totem: o 25 de Abril.

    Não haja mal-entendidos. A Revolução dos Cravos tem, no contexto histórico de um país quase milenar, uma relevância indesmentível. Talvez equiparável apenas à própria fundação de Portugal como nação no século XII, à recuperação da independência em 1640, à Revolução Liberal de 1820 ou à implantação da República em 1910.

    Porém, sem margem de dúvida, para as actuais gerações, e sobretudo para grande parte da elite política, a Revolução dos Cravos constituiu ainda mais do que uma referência histórica. Foi uma mudança drástica do quotidiano, começando pela afirmação de uma democracia plena que, além do direito de voto, trouxe liberdade de expressão, de associação, de intervenção cívica, criando-se também, num contexto europeu e mundial distinto – social, tecnológico, político e geoestratégico –, possibilidade de desenvolvimento de acordo com o primado dos direitos e garantias (e também deveres) individuais.

    Ou seja, a Revolução dos Cravos foi a “cozinha” que os capitães de Abril nos forneceram para cozinharmos uma democracia ao nosso bel-prazer.

    Ora, entretanto, passaram já 49 anos, para o ano estamos no meio centenário. Mais do que meia vida. Hoje, os tempos anteriores ao 25 de Abril de 1974 são somente História, literalmente História, para mais de metade da actual população portuguesa. A vida no passado – leia-se, durante o Estado Novo – “interessa-lhes” tanto como à minha geração a II Guerra Mundial, ou à geração dos meus pais a I Guerra Mundial ou mesmo a implantação da República ou os estertores da Monarquia portuguesa.

    Explico-me melhor. O “interesse” deve existir – somos o fluxo dos acontecimentos do passado. Um jovem de 30 anos ou menos deve saber como era o país antes de 1974 para que a sua geração não permita um retrocesso civilizacional. A minha geração deve saber o que foi a II Guerra Mundial para que se evite uma III Guerra Mundial. Todos nós deveríamos saber como se vivia nos tempos do feudalismo, antes mesmo desse período, durante a Inquisição, nas nossas antepassadas sociedades misóginas, esclavagistas, racistas, homofóbicas, segregacionistas, opressoras.

    Mas esse “interesse” é para saber de onde viemos e para onde não queremos regressar; não deve servir para comparar, para servir como bode expiatório dos nossos falhanços, ou para “revisitarmos” esse passado cada vez mais longínquo para exorcizar os nossos fracassos. Olhar o passado é uma referência, mas os olhos e as nossas acções devem estar focados no futuro e na ementa que queremos servir.

    As comparações entre períodos cronológicos são, aliás, muito falaciosas. E somos sempre péssimos avaliadores dos nossos antepassados. Para o bem e para o mal. É-nos fácil, e confesso que confortável, apresentarmo-nos sempre melhores do que eles, esquecendo que eles, tal como nós agora, foram frutos dos seus tempos. Do seu passado e das circunstâncias.

    Há três séculos, um português branco com posses seria, quase de certeza, machista, racista, fanático religioso (apoiante da Inquisição), defensor da pena de morte e possuiria naturalmente escravos ou serviçais que trataria sem respeito algum.

    Há seis décadas, a maioria da sociedade portuguesa aceitava, por medo ou resignação, o Estado Novo como uma inevitabilidade.

    Mas as sociedades, felizmente, evoluem. Sempre evoluíram, mesmo quando houve alguns retrocessos. E evoluíram não apenas porque houve homens e mulheres que criaram rupturas sociais – ou mesmo revoluções, como a dos Cravos de 1974 –, mas muito mais pelo sentimento comum da sociedade para aproveitar a tal “cozinha”, de modo a “confeccionar” metas e objectivos. Para termos uma sociedade mais desenvolvida, mais equilibrada, mais justa e mais equitativa. Aconteceu a Revolução dos Cravos em 1974; sucederia mais ano menos ano; era uma inevitabilidade política (a menos que alguém acredite que, nesta nossa Europa, ainda pudesse subsistir, isolada,uma ditadura à la Salazar em pleno século XXI.

    Olhar para o futuro, com o retrovisor no passado, deve ser aquilo que nos tem de nortear o presente.

    Contudo, aquilo que mais se tem visto nos últimos anos em Portugal – com uma cadência aflitiva – é olhar-se para a democracia como um facto consumado, como uma Conquista de Abril irreversível, revisitando-se ad nauseam o dia 25 de Abril como um totem, onde de cravo ao peito os políticos nos “mostram” os horrores do passado, para que, inebriados e agradecidos, aceitemos o miserável “estado a que chegámos”, parafraseando Salgueiro Maia, ao longo das últimas décadas.

    Não me “interessa” já – ou melhor dizendo, não me interessa na perspectiva de muitos – revisitar a Revolução dos Cravos ano após ano com os mesmos discursos, com as mesmas loas às “conquistas”, com a hipócrita idolatria aos heróis da democracia, quando o mais importante é saber o que fizemos com aquilo que nos ofereceram há 49 anos, que caminho soubemos trilhar em cinco décadas.

    A nossa avaliação da Revolução do 25 de Abril – ou seja, da democracia em Portugal – não pode continuar focada na comparação com o Estado Novo – deixemos já isso para os historiadores –, mas sim atenta à evolução da geopolítica internacional e aos novos perigos que se avizinham para as nações e para as sociedades, como a perda de soberania perante uma Comissão Europeia não-eleita (e com objectivos obscuros), a ameaça às liberdades individuais (incluindo a propriedade) e colectivas, o aumento da corrupção moral (raiz de todas as outras), a degradação da liberdade de expressão e até de imprensa, por via do oligopólio dos conglomerados tecnológicos e de media promíscuos.

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    Numa crescente cultura do obscurantismo e da auto-censura (por medo de represálias) – eu sei que o nosso colunista Tiago Franco acenará com o lápiz azul da Censura e com as prisões do Estado Novo, mas é suposto só nos preocuparmos se chegarmos a esse estado, porque até aí está (ainda) tudo bem? –, se quisermos salvar a democracia – e salvar significa manter ou melhorar os seus princípios –, deixemos de visitar o 25 de Abril como se fôssemos a uma romaria ou a uma feira onde os vendedores da banha da cobra nos tentam endrominar. E nós sabemos disso. 

    Não nos deixemos, por isso, anestesiar pelos saudosistas do 25 de Abril, porque se assim for, em desespero, quando tudo ruir, e vai ruir se assim continuarmos, acabaremos nas mãos de populistas de ideologia duvidosa, que a História, hélas, já nos mostrou ser caminho ainda mais insano.

    Como atrás escrevi, a Revolução dos Cravos foi a “cozinha” que os capitães de Abril nos forneceram para cozinharmos uma democracia. Ao que sabe o prato que nos estão a servir neste momento é o que nos deve preocupar mais. Hoje e amanhã. E em todos os amanhãs, mesmo aqueles que não cantam.

  • O dia mais bonito

    O dia mais bonito


    “Somos muitos, muitos mil para continuar Abril” é uma das frases mais repetidas a cada aniversário da Revolução dos Cravos. A frase terá diversas interpretações, admito; a minha é que o 25 de Abril de 1974 ainda não cumpriu todos os seus objectivos.

    Temos democracia, que era o objectivo principal, mas falta-nos justiça social, igualdade, prosperidade, solidariedade e até honestidade nas elites que nos dirigem.

    A prova que Abril ainda não está cumprido é que, também por esta altura, aparecem sempre os desiludidos da democracia que enaltecem os benefícios do Estado Novo. Se há momento da vida em que não podemos meter um “mas” na discussão é quando comparamos um regime democrático com uma ditadura. Por pior e frágil que seja a democracia, nada é pior do que viver em ditadura, sem liberdade e sem opinião.

    Um dos desiludidos da democracia é o meu colega de jornal, Luís Gomes, que escreveu ontem um texto sobre o 25 de Abril que me deixou os olhos a arder para conseguir chegar ao fim. Percebo agora melhor o sofrimento de liberais e simpatizantes da extrema-direita quando me tentam ler.

    O Luís começa a prosa com o seguinte parágrafo: “Na verdade, nunca o quase milenar povo português viveu debaixo de tanta propaganda, mentira e manipulação. Os últimos três anos foram paradigmáticos, nunca como agora a Administração Pública foi tão obscurantista: nada informa, nada partilha, nada publica, apesar da lei e a Constituição da República (CRP) obrigá-la a ser transparente.”

    Isto leva-me a pensar que, se calhar, seria boa ideia começar com uma piada para desanuviar o clima.

    Portanto, nunca o povo português viveu no meio de tanta propaganda, mentira e manipulação como agora, é isso?

    Portanto, tínhamos um povo que foi ensinado que a salvação era uma pessoa e um regime de partido único, que foi enviado para uma guerra a milhares de quilómetros de casa sem saber porquê e a quem diziam o que pensar e o que escrever…

    Nunca se tinha visto tamanha manipulação até aos dias de hoje, é isso?

    No mínimo, temos aqui um conceito bastante elástico sobre o que é a manipulação das massas.

    Sobre a parte em que o Luís afirma que a Administração Pública nada informa nos dias de hoje, eu penso logo no lápis azul de outros tempos.

    A informação chegava, de facto, mas era previamente seleccionada consoante os interesses do regime.

    Com todos os defeitos da democracia, meu caro, ainda assim prefiro os dislates do Correio da Manhã. É um facto que falam em mortes todos os dias, mas, até ver, ainda não arranjaram nenhuma por conta própria.

    Há uma frustração constante na prosa do Luís com a pesada carga fiscal que se abate sobre os portugueses. Aqui estamos de acordo. Também acho que o Otelo não planeou isto para o Costa nos ir ao bolso desta maneira. O meu colega diz até que o Estado Novo foi “de longe e sem qualquer margem de dúvida aquele que mais enriqueceu, em termos relativos, o povo português nos últimos 200 anos”.

    Ao contrário do Luís, eu não sou economista e não domino os termos técnicos do enriquecimento, de modo que resolvi ir ler os mestres da teoria do enriquecimento. E da liberdade, já agora.

    Em 1962, disse António de Oliveira Salazar: “Um país e um povo que tiverem a coragem de ser pobres são invencíveis”. Foi pena aquele incidente desagradável com a cadeira porque, quiçá, Salazar pudesse ter vivido o suficiente para perceber a quantidade de ricos que semeou no povo português. Foi pena.

    O trauma com o Estado Social parece vir de longe. Há pouco mais de três anos, noutro texto desanimado sobre o 25 de Abril, no jornal Eco, escreveu o Luís: “Em 1965, em plena guerra colonial, o estado português tributava cerca de 15% do nosso rendimento. Actualmente [2020], confisca 35%, um máximo histórico, com uma agravante: não parece que a coisa fique por aqui, dada a voracidade por mais receita fiscal e a necessidade de alimentar as clientelas que se alimentam do orçamento de estado”.

    Confesso que ao ler isto fiquei com pena de não ser vivo no glorioso ano de 1965. Imagine-se o regozijo daquela malta com 15% de impostos – curiosamente, o número mítico (flat) defendido pelos liberais – a viver como uns lordes, enquanto davam o salto para fugir da guerra ou tentavam sobreviver nas matas africanas.

    O Luís esqueceu-se de referir os 0% de impostos com que os 10 mil soldados portugueses mortos no Ultramar foram agraciados.

    Portugal foi um dos países europeus que não saiu arrasado da II Guerra Mundial e com dinheiro em caixa. Tal como a Suécia, curiosamente.

    Aqui pelo Norte, eles colocaram o dinheiro em habitação, em escolas e em hospitais – opções de uma democracia.

    Em Portugal, uma ditadura de partido único, enquanto castrava as mais elementares liberdades, empobrecia numa guerra sem sentido, de 13 anos, a milhares de quilómetros de distância. Pelo meio, ainda arrasava uma geração de jovens ou os condenava à emigração.

    O país profundamente atrasado, isolado e pobre, que cobrava menos impostos, prendia e matava pessoas por manifestarem opinião divergente. Tinha, em 1970, depois de 44 anos de ditadura, 25% da população analfabeta. Repara Luís: não eram pessoas com a quarta classe ou com o secundário incompleto. Eram analfabetas.

    Hoje, com todos os defeitos da democracia, este número é inferior a 3%. É verdade que alguns destes, que entretanto aprenderam a ler e fizeram a quarta classe, acabaram a votar no Chega, mas, compreenderás, como dizia Churchill, que de entre todos os sistemas imperfeitos, este – a democracia – é o melhor.

    Não há, por mais queixas que possamos ter do Centrão que nos governa desde sempre, lugar a um “mas” algum. A pior democracia é melhor do que qualquer ditadura. Ponto.

    Podemos votar, podemos mudar, temos alternativas. Tu, desiludido confesso da Revolução dos Cravos, podes fundar um partido ainda mais liberal do que a Iniciativa Liberal, e tentar angariar votos com uma política da selva: nada de impostos, nada de Estado Social, cada um por si. E está tudo bem.

    Se outros pensarem como tu, podem mudar as políticas do Estado. Se fosse na gloriosa década de 60, e não estivesses contente com as políticas do regime, ias arrefecer as ideias para Peniche e se continuasses a reclamar, ias fazer sauna para a “Frigideira” (Tarrafal), em Cabo Verde.

    Eu prefiro pagar mais impostos, ainda assim, e ficar em brasa quando ouço tudo o que vai do PS para a direita, inclusive.

    Repara: uma das vitórias de Abril é, por exemplo, poderes escrever uma crónica destas e seres publicado. A beleza da conquista da liberdade e do direito à opinião, de que hoje beneficias.

    E, curiosamente, uma das razões pela qual Abril está incompleto é exactamente a mesma: 49 anos depois, ainda alguém conseguir encontrar pontos de contacto com o Estado Novo.

    A Revolução dos Cravos foi das poucas coisas em que acertámos enquanto povo. Estamos cá para a continuar. Sempre.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Reescrever o 25 de Abril

    Reescrever o 25 de Abril

    O golpe militar do 25 de Abril faz hoje 49 anos. O próximo ano vai ser decisivo para a reescrita da sua história, por isso é importante assinalar alguns factos históricos que não podem ser esquecidos. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.


    A maior tentação dos vencedores é a de reescrever a História. Bem, nem sequer é uma tentação, pois podemos mesmo dizer que é uma inevitabilidade. Os vencedores têm todo o direito a reescrever a História, pois eles são isso mesmo: os vencedores.

    E a História dirá que aquela era a madrugada pela qual muitos esperavam, o tal “dia inicial inteiro e limpo” do poema da Sophia de Mello Breyner, “onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo”. Isso é muito bonito.

    Sim, o 25 de Abril terminou com uma Ditadura e deu-nos uma Democracia. Acabou com uma guerra colonial e permitiu que outros países se tornassem independentes. E Portugal tornou-se num País europeu onde, apesar das dificuldades económicas destes últimos tempos, ainda assim estamos muito melhor do que no tempo em tínhamos uma ditadura.

    O problema é que esta narrativa dos vencedores não nos deixa ver certos factos históricos que, agora, à distância de meio século, deveriam ter sido tidos em consideração para saber o que podemos fazer nos próximos 50 anos. Sobretudo hoje, quando temos uma guerra na Europa e não parecemos perceber porquê.

    Há alguns factos, breves e básicos, que deveremos ter sempre em consideração quando falarmos do que aconteceu a 25 de Abril de 1974. Primeiro de todos, temos de ver que se tratou de um golpe militar num País que era membro da NATO. Mais ainda: era membro fundador da NATO.

    Essa nobre instituição que pugna pela defesa da Democracia, afinal, em 1949, teve uma ditadura fascista como membro fundador. Ou será que Portugal não era uma ditadura fascista? Os Estados Unidos e os outros países na NATO andavam todos enganados?

    Um ano antes do nosso 25 de Abril, a 11 de Setembro de 1973, os militares no Chile fizeram aquilo que os militares normalmente fazem: um golpe militar para instaurar uma ditadura. Em Portugal, foi diferente porque a NATO é diferente.

    No Chile, dizem que os Estados Unidos estiveram por detrás do golpe, mas em Portugal, garantem que não houve qualquer influência de Washington. Aliás, para que isso ficasse bem claro, o próprio embaixador dos Estados Unidos em Lisboa até estava convenientemente ausente no dia do golpe.

    É ainda muito importante dizer aos jovens que o 25 de Abril não “derrubou Salazar”.

    O ditador António de Oliveira Salazar, que ocupou o cargo entre 1932 e 1968, só deixou de ser ditador porque teve um acidente doméstico e ficou incapacitado fisicamente. E morreu pacificamente, na sua cama, em 1970.

    Portanto, isto aconteceu quatro anos antes da revolta dos militares.

    O 25 de Abril derrubou um outro ditador, que se chamava Marcello Caetano. E esse nunca foi julgado por qualquer crime, pois, faz hoje 49 anos, saiu do Quartel do Carmo dentro de um carro militar blindado e foi levado directamente para o aeroporto. Morreria no Brasil, seis anos mais tarde, em Outubro de 1980.

    Isto foi dois meses antes do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro ter sido assassinado com uma bomba a bordo do avião que se despenhou em Camarate.

    Esclarece-se ainda que a descolonização foi feita num período de apenas um ano. Se virmos que 500 anos são apenas umas horas na História do mundo, a nossa saída de África teve lugar há apenas uns segundos.

    A última colónia a ter a independência foi Angola, em Novembro de 1975, apenas uns dias antes do golpe do 25 de Novembro, aquele que, hoje, é apontado por certos sectores políticos como o verdadeiro início da Democracia e não o 25 de Abril.

    A História livre e independente sobre o 25 de Abril ainda está por ser feita. O próximo ano irá servir para esconder muita coisa e criar muitos mitos, mas lembremo-nos que à conta de tanto reescrever a História, corremos não o risco de a repetir, mas sim o de a imitar de forma caricata, mas com efeitos ainda mais trágicos.         

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • 25 de Abril: sucesso ou desastre?

    25 de Abril: sucesso ou desastre?


    Comemora-se amanhã os 49 anos do actual regime, que já tem mais anos de vida que o anterior, pois este iniciou-se em 1926 e durou até 1974 – ou seja, 48 anos. Mais uma vez, a nossa classe parasitária, de cravo na lapela, lançará uns discursos encomiásticos à “gloriosa” revolução que pôs fim aos anos de “obscurantismo” e “trevas”, ao regime dos infames três F: Fado, Futebol e Fátima.

    Na verdade, nunca o quase milenar povo português viveu debaixo de tanta propaganda, mentira e manipulação. Os últimos três anos foram paradigmáticos, nunca como agora a Administração Pública foi tão obscurantista: nada informa, nada partilha, nada publica, apesar da lei e a Constituição da República (CRP) obrigá-la a ser transparente.

    E a imprensa? Esta recebe subsídios milionários do Estado para propagar a narrativa oficial, para nunca se dar conta de qualquer bancarrota – as três anteriores apareceram do céu aos trambolhões, onde a culpa era sempre dos “especuladores” e não do regabofe de despesa pública –, para calar e censurar qualquer voz dissidente. Até publicam, sem qualquer contraditório ou vergonha na cara, uma peça de propaganda a explicar-nos que o excesso de mortalidade em 2022 resultou do facto de estarmos velhos!

    Os órgãos de propaganda continuam a ocultar de forma despudorada a verdade à população, em particular o desastre económico deste regime socialista. Aliás, sempre foi o objectivo; no preâmbulo da CRP temos às claras tal desiderato: “…abrir caminho para uma sociedade socialista”. O fim talvez esteja quando o Estado assalte todo o nosso rendimento e em troca eles devolvam umas esmolas, já que ultimamente se tornaram peritos em tal exercício de manipulação de massas.

    A propaganda nunca nos revela os resultados económicos do actual regime. Em 47 anos, logrou o feito de convergir 0,3 pontos percentuais em relação à média do PIB per capita, corrigido pela paridade do poder de compra (PPC), de 12 países desenvolvidos – para os quais existe uma longa série histórica.

    Evolução do PIB per capita português em percentagem da média aritmética simples de 12 países: Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Estados Unidos da América, França, Holanda, Noruega, Reino Unido e Suécia (em USD; corrigido pela PPC). Fonte: Luciano Amaral (Convergência e crescimento económico em Portugal no pós-guerra) até 1992; Bancode Portugal a partir de 1992.

    Em comparação, o regime do Estado Novo convergiu 32,5 pontos percentuais, de longe e sem qualquer margem de dúvida aquele que mais enriqueceu, em termos relativos, o povo português nos últimos 200 anos – isto apesar dos panegíricos aos bem-aventurados que nos pastoreiam há 49 anos.

    A “democracia” alcançou este “notável feito” – convergência de 0,3 pontos percentuais – recorrendo a um endividamento público sem paralelo. Enquanto o Estado Novo deixou uma dívida pública que representava 13,9% do PIB em 1974, baixando-a em 60 pontos percentuais em relação ao final da Primeira República, a “democracia” subiu-a em 100 pontos percentuais, encontrando-se agora acima dos 110% do PIB – 272,6 mil milhões de Euros no final de 2022 vs. um PIB de 239,3 mil milhões de Euros.

    A recente queda apenas foi possível com a impressora do Banco Central Europeu (BCE) durante a putativa pandemia, brindando-nos com uma inflação de 7,8% (2022; Fonte: INE), algo nunca visto em 30 anos (1992: 9,6%; Fonte: INE), e um saque fiscal à boleia da subida dos preços gerada pelas autoridades socialistas. Resultado? Um butim nunca visto: 106,1 mil milhões de Euros!

    Evolução da dívida pública portuguesa em percentagem do PIB (1850-2022; Unidade:% do PIB). Fonte: Mata e Valério (1994); Banco Mundial; Eurostat. Análise do autor.

    Há 22 anos, precisamente em 2000, o assalto do Estado ao nosso bolso situava-se em 39% do PIB, quando agora é 44% do PIB. Estes 5 pontos percentuais permitiram uma pilhagem adicional de 11,8 mil milhões, algo como 1.140 Euros por português – incluindo crianças e idosos – ou 4.570 Euros por uma família de 4 pessoas!

    Também podemos medir este espólio em “ajudas” à Bancarroteira Nacional, mais conhecida por TAP: cerca de 3,7 vezes os 3,2 mil milhões esmifrados aos contribuintes em nome da manutenção em mãos nacionais das “Caravelas do Século XXI”!

    Podíamos pensar, como não convergimos com os países mais ricos, será que estamos a melhorar na ordenação no caso do indicador PIB per capita (corrigido pelo PPC) na União Europeia? Será que este inexorável assalto ao nosso bolso, cada vez maior, diga-se, levou-nos a algum lado? Este regime socialista está a conduzir-nos a algum lado?

    Evolução do PIB e Receitas totais do Estado 2000 vs. 2022 (Unidade: milhões de €). Fonte: Eurostat e Pordata.

    Nada disso. Portugal encontrava-se na 16º posição em 2000 para os 27 países que hoje fazem parte da União Europeia (UE). Atrás de si, vários países que tinham vivido o horror comunista, como a Roménia, a Bulgária, a Polónia ou os países bálticos.

    Em 2021, já nos encontrávamos na 22º posição, apenas existindo cinco países atrás de Portugal. Para ser o carro vassoura já pouco falta!

    Com este desastre económico, o que nos “vende” o actual regime para vencer os desafios dos próximos anos? Uma revisão constitucional ilegal, que atropela o artigo 288º da CRP em vigor, com o propósito de eliminar a nossa liberdade – bastando um funcionário administrativo para decretar a nossa prisão – e a nossa privacidade. Tudo em nome do combate ao terrorismo, quando os Estados são os maiores terroristas à face da Terra!

    Ao mesmo tempo, temos uma população em “fúria”, onde idiotas-úteis do regime exploram este sentimento, que se julga no direito de ter uma casa “gratuita”, ou seja, acha que tem a faculdade de assaltar o próximo em nome de um “direito”. Como sempre, pedem ao assaltante-mor que faça o serviço por elas: (i) que assalte os “ricos” e lhes construa uma casa; ou (ii) simplesmente confisque os “ricos”.

    PIB per capita corrigido pela paridade do poder de compra (PPC) em 2000 para os 27 países da União Europeia (Unidade: USD/ano). Fonte: Banco Mundial. Análise do autor.

    Os idiotas-úteis do regime, agora promotores de manifestações em nome do roubo ao próximo, são não só cobardes, mas também falsos moralistas: durante a putativa pandemia era vê-los felizes em casa a desinfectar tudo e um par de botas com álcool-gel a cada cinco minutos, de fralda facial, enquanto defendiam inoculações experimentais, “medidas” de combate ao vírus invisível e dinheiro imprenso a rodos pelo BCE, enquanto iam a festas divertirem-se e zombavam de todos os energúmenos crentes da farsa.

    Em nenhum momento denunciaram os verdadeiros culpados: o Estado e o sistema financeiro. O primeiro continua a fazer de conta que a ruína a que chegou há anos o parque imobiliário, em particular Lisboa e Porto, foi obra e graça do Espírito Santo e não do congelamento de rendas que arruinou os proprietários durante os anos 70 e 80, onde a inflação era superior a 20% e o roubo aos proprietários se efectuava sem apelo nem agravo.

    O segundo actua através da prática de reservas fraccionadas e é liderado por um inimputável Banco Central. Este sistema inflaciona os preços das casas, através de crédito emitido do “nada”, gerando dinheiro do “ar” e uma ilusão de prosperidade.

    PIB per capita corrigido pela paridade do poder de compra (PPC) em 2021 para os 27 países da União Europeia (Unidade: USD/ano). Fonte: Banco Mundial. Análise do autor.

    Aliás, até proporcionou ao nosso governo uma “vida boa” durante a putativa pandemia: o Estado emitia dívida pública e o Banco Central Europeu (BCE) imprimia dinheiro do “ar” e comprava essa dívida, que depois servia para pagar aos funcionários públicos e apaniguados do regime. Alguém se indignou com os “lucros excessivos” dos laboratórios e das farmacêuticas?

    Desde 1974, a nossa soberania tem sido vendida ao desbarato. De um país que estava no topo da lista dos países com maiores reservas de Ouro do mundo, entregámos desde então a nossa soberania monetária a funcionários desconhecidos e não eleitos ao leme do BCE. São agora os verdadeiros “Donos Disto Tudo”, ditando ordens aos capatazes que “supostamente elegemos” durante o circo denominado de “eleições livres”.

    As nossas leis são “confeccionadas” em Bruxelas por burocratas não-eleitos, que não conhecemos de parte alguma e que não podemos castigar com o nosso voto. Somos totalmente impotentes, a “democracia” é um mero simulacro, o nosso parlamento é um verbo de encher e praticamente toda a legislação não sofre qualquer escrutínio. Provém de iluminados, que sabem o que é melhor para nós!

    Mas o mais esquizofrénico do presente regime é o partido da “extrema-direita”, apelidado desta forma pelos órgãos de propaganda e idiotas-úteis do regime, que não é mais do que uma colecção de dissidentes de terceira e quarta linha de um dos dois partidos socialistas que nos arruínam há 49 anos. A zombaria é infinita!

    Pasme-se, até defende todas as bandeiras do regime, como o assalto perpetrado pela Bancarroteira Nacional em 2020 e 2021 ao nosso bolso: “Assim que tomou a palavra, o líder do Chega defendeu a ideia de que ‘a TAP é uma empresa estratégica, [algo] que ninguém nega’. E prosseguiu: “É uma empresa que, além de fazer a ligação ao exterior — e também temos as empresas privadas —, é preciso não esquecer, e o Tiago [Mayan Gonçalves] sabe isto, certamente: a questão da TAP não é só a própria empresa, é também todo o emprego e toda a economia indireta que gera à volta da TAP”. Conclusão: “É uma grande irresponsabilidade, Tiago, aparecer neste debate a dizer simplesmente, [como] uma espécie de Bloco de Esquerda invertido, ‘Não pagamos’, que é agora a posição da Iniciativa Liberal. Que é: ‘Não se pague nada, deixe-se tudo falir e o mercado vai funcionar.’ Tiago, isso não funciona assim neste país, não é assim que funciona.”. Vejam: os argumentos são todos semelhantes, parecem imanados da mesma cabeça!

    Mais, até defende limitar as margens de lucro da “grande distribuição”, uma espécie de tabelamento de preços, algo que sempre falhou ao longo da história, pois, são, segundo o partido de “extrema-direita”, “preços pornográficos” e que constituem um “assalto ao bolso dos portugueses”. Em conclusão, temos um suposto partido do “contra” e que constitui uma “ameaça à “democracia”, mas que defende todas as bandeiras do regime socialista! É hilariante se não fosse trágico!

    Mas a coisa não se ficou por aqui, até foi o partido que espoletou a presente revisão constitucional ilegal com o propósito de eliminar a nossa liberdade e privacidade, introduzindo a possibilidade de internamento compulsivo! Isto era tudo em nome de uma “doença” com uma taxa de sobrevivência de 99,8%! Agora, até parece que existem membros deste partido que são “negacionistas” – uma palavra que serve para calar qualquer um- e que falam como se fossem alheios a tudo isto!

    Em conclusão, o problema não é o roubo violentíssimo ao nosso bolso; o problema não é a falta de liberdade individual; o problema não é a falta de liberdade económica; o problema não é a inexistência de uma imprensa livre, sem censura; o problema não é a tirania de Bruxelas, que impõe certificados nazis e que nos impõe todos os dias uma economia hiper regulamentada e tributada; o problema não são os dois partidos socialistas do regime, nem tão pouco a extrema-esquerda que apoiou o circo covid-19; o problema não são os liberais que defendem agendas globalistas, calando-se perante o confisco de terras dos agricultores na Holanda.

    Não, nada disto.

    Para certos “sectores”, o problema está num partido de “extrema-direita”, mesmo se, na essência defende, tudo o que o regime defende!

    Mas, enfim, comemoremos então mais um ano desta esquizofrenia, deste “sucesso” a que chamam “democracia”!

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Que bicho mordeu a bastonária da Ordem dos Contabilistas?

    Que bicho mordeu a bastonária da Ordem dos Contabilistas?


    Causa-me estupor ter visto um bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, armado em Torquemada do século XXI, perseguindo outros médicos por delito de opinião.

    Causa-me assombro assistir ao bastonário da Ordem dos Psicólogos, Francisco Miranda Rodrigues, com a pretensão de, através também de processos disciplinares, condicionar o pensamento e a acção de outros psicólogos, o que só pode justificar-se, porventura, por alguma não diagnosticada “patologia psicossocial”.

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    Causa-me estupefacção observar como uma bastonária da Ordem dos Farmacêuticos, Ana Paula Martins, saltita da dita Ordem para um cargo de destaque de uma farmacêutica com um espantoso lobby na pandemia (leia-se Gilead, com o seu remdesivir) e a seguir, pouco tempo depois, para a presidência do Conselho de Administração do mais importante centro hospitalar e universitário do país.

    Causa-me pasmo – ou vergonha alheia, talvez mais – ter visto a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, emparceirar num videoclip do cançonetista-deputado Luís Gomez (com Z) que tem o lindo refrão: Leva-me contigo meu amor / Leva-me contigo / Não deixes que morra o nosso amor / Leva-me contigo / Leva-me contigo coração / Leva-me contigo / Não deixes que morra de dor / Leva-me contigo.

    E causa-me agora tudo isto – estupor, assombro, estupefacção e pasmo (mas neste caso pela desavergonha) – ver a bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados, Paula Franco, defender que se os restaurantes podem agora comprar produtos a IVA zero (0%), então devem vender mais barato.

    A bastonária Paula Franco, ao lado de Marcelo Rebelo de Sousa, durante o 7º Congresso da Ordem dos Contabilistas Certificados, que contou no seu programa com a presença de quatro ministros e um secretário de Estado.

    Segundo declarações de Paula Franco à Rádio Renascença, “se conseguimos comprar produtos a um preço mais barato isso terá efeito no preço final e pode-se baixar o preço final, neste caso da refeição confeccionada, porque os bens que lhe deram origem foram adquiridos a preços mais baixos.” E, com isto, diz que a decisão de os restaurantes não baixarem os preços após a decisão do Governo é “uma questão de vontade ou de ajustamento”, pois “a verdade é que compraram os bens por um preço ligeiramente inferior e podiam reduzir o seu preço final, se assim o entenderem”.

    Isto é verdadeiramente incrível saído da boca de uma bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados, porque nem num candidato a escriturário de vão-de-escada seria tal admissível.

    Que se anda a passar com os bastonários deste país? Que bicho lhes anda a morder?

    Mas vamos ao IVA – ou, melhor dizendo Imposto sobre o Valor Acrescentado, até porque a denominação o auto-explica.

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    Um dos grandes dramas dos portugueses – e era também um drama para mim, antes de uma formação tardia em Economia e Gestão – é a sua baixa literacia financeira, razão principal não apenas para más escolhas individuais ao longo vida – tanto em decisões como em argumentação em negociações –, mas também pela incapacidade de monitorizar e exigir melhor aplicação dos dinheiros públicos.

    E, por isso, a esmagadora maioria dos portugueses, depois destas palavras da bastonária da Ordem dos Contabilistas, vão pôr acriticamente o odioso sobre os donos dos restaurantes. São eles os maus por os preços não baixarem; não é da inflação para a qual o Governo muito contribuiu, e muito está a beneficiar com o enchimento dos cofres da Fazenda Pública à custa do empobrecimento real dos portugueses, a quem dá, depois, umas migalhas, enquanto faz alarde de um papel de (hipócrita) benemérito.

    De facto, o IVA é um imposto neutro aplicado a bens ou serviços, em que todos os intervenientes são sujeitos passivos, excepto o consumidor final. Significa isto que os sujeitos passivos recuperam o IVA dos bens que adquirem para o seu negócio, uma vez que deduzem esse montante ao IVA que têm depois de pagar ao Estado quando vendem os seus produtos e serviços aos seus clientes.

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    Ou seja, imaginemos que um restaurante para servir cada refeição de lombo ao preço de 22,60 euros (20,00 euros + 2,60 euros de IVA), vai ao talho comprar a carne que lhe custava, antes da decisão do Governo de aplicar IVA zero a diversos produtos, 10,60 euros (10,00 euros + 0,60 euros de IVA). Agora, pagará 10,00 euros (10,00 euros + 0,00 euros de IVA). Ou seja, o dono do restaurante poupa 0,60 euros.

    Mas isso é uma poupança aparente. De facto, tem ele margem para repercutir, só por essa redução na factura do talho, qualquer valor no preço que aplica na refeição do seu cliente?

    Não, por aí jamais. Porque, na verdade, ao fim do mês (ou trimestre), quando for “fazer contas com o Estado” no que toca ao IVA, o proprietário do restaurante terá de entregar agora a totalidade dos 2,60 euros deste imposto que cobrou ao seu cliente, uma vez que, obviamente, não tem qualquer montante a deduzir do IVA zero da carne que comprou no talho.

    Antes do IVA zero, o proprietário do restaurante entregaria ao Estado “apenas” 2,00 euros, uma vez que deduziria os 0,60 euros de IVA que lhe tinham sido já cobrados pelo talho. E o talho, obviamente, tinha então a obrigação de entregar os 0,60 euros pagos pelo proprietário do restaurante quando lhe comprou a carne.

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    Dito de outra forma, é igual ao litro, para um restaurante a existência do IVA zero nos produtos que adquire para a confecção dos alimentos. Não há nem vantagens nem desvantagens, sobretudo se a entrega das declarações de IVA for mensal.

    Mesmo com entrega de declaração trimestral, a única vantagem seria muito relativo e em termos de tesouraria, e apenas se mostraria economicamente relevante (em valores que se vissem) se os juros estivessem muito mais elevados e houvesse um grande volume de mercadorias envolvidas (algo que apenas sucede, por exemplo, nos supermercados).

    Por tudo isto, as palavras da bastonária da Ordem dos Contabilistas são, além de um disparate, de uma enorme gravidade pela imagem que dá do topo desta profissão: ou ela sabe que aquilo que transmitiu é falso e esteve a ludibriar-nos (com fins inconfessáveis); ou então pensa que aquilo que transmitiu é verdadeiro e nem sequer deveria ter passado na cadeira de Contabilidade Geral I.

  • 25 de Abril, sempre!

    25 de Abril, sempre!


    Sento-me para escrever a Crónica semanal e recordo o início da minha vida profissional, no “Jornal do Fundão”, na década de 70 do século passado.

    Dirigido por um Homem superior, António Paulouro, este Jornal era uma referência de coragem, de liberdade e de luta pelo fim da ditadura.

    Quando integrei a Redacção, o Jornal tinha acabado uma suspensão de seis meses, imposta pelos tribunais do regime, por ter publicado uma notícia sobre o prémio atribuído, pela Sociedade Portuguesa de Autores, a Luandino Vieira pelo seu livro “Luaanda”.

    Ainda hoje sinto a desilusão que, como jovem, senti ao perceber que tudo o que eu escrevia teria de ser lido e aprovado, antes de poder ser publicado, não só pelo chefe de redacção ou director mas, principalmente, por um coronel da Censura

    E quando digo tudo, era mesmo tudo.

    A mais pequena alusão à governação, fosse do Poder Central fosse da Junta de Freguesia da terra, era vista e analisada à lupa.

    Muitas vezes, o censor conseguia descobrir, no mais anódino texto, intenções que nunca tinham passado pela cabeça do seu autor.

    Verdade seja dita que, também muitas vezes, deixavam passar textos carregados de ironia e sarcasmo que os incultos coronéis não compreendiam.

    De qualquer modo, era imensa a revolta que existia por sabermos que nada do que escrevêssemos poderia ser impresso sem que essa gente mesquinha, medrosa e consciente dos seus pequenos poderes autorizasse.

    Várias vezes pisámos o risco vermelho, que a ditadura impunha, e o resultado eram processos judiciais.

    Valia-nos a ignorância da maioria dos censores e polícias do regime.

    Eram joguetes na mão dos governantes, obedecendo cegamente a todas as ordens que recebiam.

    Recordo uma rusga ao Jornal, por um grupo de elementos da PIDE, que tinham, como função, apreender tudo o que se relacionasse com a política ultramarina.

    Das estantes de livros do gabinete do Director carregaram todos os que tivessem, no título, uma alusão às “províncias ultramarinas”.

    António Paulouro perguntou, espantado, a um dos agentes, se também iria apreender o livro que tinha nas mãos.

    A resposta foi:

    – “Evidentemente. O título ‘Factos e Figuras do Ultramar’, obriga-nos a isso. A ordem é, levar tudo que mencione o Ultramar.”

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    E apreendeu um exemplar do livro de Marcelo Caetano.

    Que também não fazia muita falta, há que reconhecer.

    Durante os anos em que trabalhei no Jornal, até ao 25 de Abril, fui impedido de escrever notícias sobre factos absolutamente humilhantes para cidadãos europeus.

    Em Portugal não havia eleições, as mulheres não podiam viajar para o estrangeiro sem uma autorização escrita dos maridos, as professoras primárias não se podiam casar sem uma autorização especial, os funcionários públicos tinham que assinar uma declaração garantindo que partilhavam a ideologia do regime, rejeitavam a Maçonaria e garantiam não serem membros dela, antes de poderem tomar posse.

    O Poder geria as organizações juvenis (nomeadamente na Mocidade Portuguesa) que usava para ensinar, aos jovens, a ideologia defendida pelo regime e a obedecer e a respeitar o líder.

    Para além da PIDE, o regime apoiava-se, também, em organizações paramilitares, como a Legião Portuguesa, para proteger o regime das ideologias oposicionistas, com especial realce para o comunismo;

    Os trabalhadores estavam impedidos de criar sindicatos. Só existiam os que eram controlados pelo Estado.

    brown rope in close up photography

    Os cidadãos estavam proibidos de falar contra o Governo, de emitir opinião, de ver filmes, peças de teatro ou revistas onde se pusessem em causa estas ideias.

    Não tinham acesso a livros que defendessem opiniões diferentes das impostas pela governação.

    A riqueza estava concentrada nas mãos de meia dúzia de famílias.

    Portugal era um país “orgulhosamente só”, primeiro governado por um labrego que nunca tinha ido ao estrangeiro e que, de Portugal, só conhecia o gabinete, de onde ditava estas regras absurdas, e Santa Comba Dão, onde ia regar umas couves na sua pequena courela e, depois, por um professor universitário sem coragem para acabar com toda esta miséria intelectual.

    O 25 de Abril foi, citando Sophia de Mello Breyner, o fim do período em que lamentávamos:

    Quando a pátria que temos não a temos

    Perdida por silêncio e por renúncia

    Até a voz do mar se torna exílio

    E a luz que nos rodeia é como grades

    e passámos ao dia exemplarmente retratado como:

    Esta é a madrugada que eu esperava

    O dia inicial inteiro e limpo

    Onde emergimos da noite e do silêncio

    E livres habitamos a substância do tempo

    Hoje, quando graças aos Capitães de Abril posso escrever o que verdadeiramente sinto, só lamento ter que viver, lado a lado, com imbecis que continuam a criticar o Dia da Liberdade e que só podem ser ou acéfalos (por quem tenho pena) ou fascistas (que odeio).

    Critico, com veemência, muitas atitudes de quem nos governa, sabendo que tenho esse direito e esse dever.

    Mas, com muito mais empenho, criticarei os que querem e pensam ter forças para voltar àquele passado que nos tornava inferiores.

    25 de Abril, sempre!

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Medina, o pináculo de um governo de aldrabões

    Medina, o pináculo de um governo de aldrabões


    Hoje, o nosso colunista Tiago Franco escreveu, na sua coluna de opinião do PÁGINA UM, sobre os “engenheiros roubados a Portugal” que chegam à Suécia “sem nunca terem recebido um salário” no nosso país, “e que, em pouco tempo, se adaptam a tudo o que lhes aparece pela frente: ao clima que não ajuda ninguém, ao modo de vida, aos ritmos de trabalho, às tecnologias que nunca viram”, acrescentando que “destacam-se perante colegas muito mais velhos, com anos disto”.

    E pasmado – força de expressão –, o Tiago Franco diz que gostaria de saber “de onde virá tanta fome de aprender”, colocando três perguntas essenciais, quando se confronta aquilo que podemos ser como pessoas, de nacionalidade portuguesa, e aquilo que Portugal, lamentavelmente, é:

    “Onde é que errámos?”

    “Como é que ficámos tão pobres?”

    “De que forma é que fazemos este pessoal regressar e produzir em Portugal?”

    Fernando Medina, em foto hoje colocada no Twitter, “transportando” Mário Soares, entretanto falecido em 2017.

    E eu respondo-lhe.

    Errámos porque permitimos que um Governo desça tão baixo que até tem um ministro como Medina.

    Ficámos tão pobres porque permitimos que Governos tenham ministros como Medina.

    E, quanto à terceira questão: que esqueça ele regressos de emigrantes portugueses em massa enquanto tivermos políticos como Medina.

    Fernando Medina, o Medina, surge aqui como representante de um homem que sempre viveu debaixo de António Costa – não direi que é um capacho, mas andou sempre onde andaram os pés do actual primeiro-ministro –, mas também como metonímia de político medíocre, sem chama nem garra, sem uma ideia nem plano, que passeia a sua nulidade num país político sem glória nem honra.

    Os Medinas – que encontram, no actual Governo a sua máxima plenitude – vivem com e da manipulação, da mentira e da sem-vergonhice, mas confiantes da ilimitada capacidade dos portugueses – dos que aqui estão, não dos que partem – em suportar todas as suas diatribes.

    Os Medinas, e sobretudo o seu máximo representante, o Fernando, já esteve envolvido nas mais díspares polémicas, a começar com o caso das denúncias de activistas à embaixada russa, antes da Rússia ser um pária para o mundo lusitano, quando ele era o alcaide alfacinha. Este ano, já perdi a conta aos casos e aos casinhos deste Governo, quase sempre tendo o Fernando envolvido, mas sempre conseguindo ele, com o beneplácito de todos, incluindo do seu eterno chefe Costa, manter-se como um sempre-em-pé.

    Hoje, Medina, o Fernando, e todos os outros Medinas do Governo espetaram mais um prego no caixão da nossa já podre democracia.

    Dias sem fim, andou o Governo a garantir a existência de um parecer jurídico defendendo justa causa para o despedimento da ex-CEO da TAP, Christine Ourmières-Widener. Para salvar o coiro, o Governo não se importou de imolar uma estrangeira e uma mulher num circo mediático.

    A seguir, o Governo fez aquilo que melhor sabe fazer, e que durante a pandemia melhor desenvolveu: manipulou, mentiu e escondeu, não exactamente por esta ordem, até porque age de acordo com as circunstâncias. E confia numa comunicação social dócil.

    Ainda ontem, através de uma nota enviada à agência Lusa – que, nos últimos anos, parece funcionar como uma espécie de Pravda do Governo de Costa –, o gabinete da ministra-Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes, sustentava que “o parecer em causa não cabe no âmbito da comissão parlamentar de inquérito” e que “a sua divulgação envolve[ria] riscos na defesa jurídica da posição do Estado”.

    E hoje, afinal, Medina, o Fernando, como ministro de um Governo podre, veio dizer que, afinal, o parecer nunca existiu. E mantém-se, consta, ele como ministro… e todos os outros.

    Enfim, temos um Governo de gente de má índole, que desonra as palavras, os actos, os portugueses. Um país onde o próprio Presidente da República permite que sejamos geridos por um Governo de aldrabões. Um Governo que nos envergonha. Um Governo que só nos ajuda a ser piores. Cá dentro.

    E queres tu, Tiago Franco, regressar da Suécia e veres regressar os nossos compatriotas? Para isto? Para esta “merdina”?

  • Bem-feito por portugueses, fora de Portugal

    Bem-feito por portugueses, fora de Portugal


    Num espaço de poucos meses, o meu cenário profissional alterou-se. Os prazos esgotaram-me e as equipas de Engenharia, responsáveis pelo desenvolvimento de carros eléctricos, passaram a trabalhar a contra-relógio.

    Há dois problemas base nesta indústria dos popós.

    O primeiro é termos deixado de produzir veículos que nos levam de A para B para passarmos a produzir plataformas de entretenimento em cima de rodas. Ou seja, iPads com motor.

    street time lapse photography

    O segundo, consequência do primeiro, é que as pessoas se aborrecem depressa e, tal como nos iPhones, é preciso andar constantemente com novidades no mercado – ou, como diria Steve Jobs, a vender a mesma coisa com um novo design a um preço mais alto.

    Há 10 anos, um carro desenvolvia-se em quatro anos e durava 10. Agora, cria-se em pouco mais de um ano e ao fim de dois já precisa de uns retoques. Óptimo para a bolsa de emprego, péssimo para os Verões em casa com a família.

    Há, na verdade, ainda um terceiro problema, desde os primórdios, quando se contratou o primeiro profissional de propaganda: por norma, os génios do mercado e artistas do marketing prometem, naquelas galas de apresentação, coisas sem fazerem a mínima ideia daquilo que custa inventá-las.

    Assim, os departamentos de Engenharia descobrem que devem criar um carro com asas, movido a azeite, não poluente, que se desloque sozinho e que venha com cinema e máquina de pipocas – e, de preferência, pronto para o mês que vem.

    man in black jacket standing beside white sedan

    No meio do arranca-rabo que acontece, e das cabeças que vão rolando, ouço gritos. Nunca tinha ouvido gritos, e muito menos este tipo de exigência, na pacata e tranquila Suécia. Não se importa apenas o investimento chinês, mas também, aparentemente, alguns métodos de trabalho. O meu empregador é uma multinacional chinesa do sector automóvel.

    No meio desta confusão e loucura em que se tornaram os sete dias da semana – sim, sete –, aparecem seis portugueses: uma equipa inteira de putos, com poucos meses de experiência, mas que, ao fim de poucos dias no lagar, já estão a produzir azeite de finíssima qualidade.

    Engenheiros roubados a Portugal que chegam aqui sem nunca terem recebido um salário desse lado, e que, em pouco tempo, se adaptam a tudo o que lhes aparece pela frente: ao clima que não ajuda ninguém, ao modo de vida, aos ritmos de trabalho, às tecnologias que nunca viram. Aprendem enquanto vão fazendo, e destacam-se perante colegas muito mais velhos, com anos disto.

    Olho para eles, e pergunto-me de onde virá tanta fome de aprender e, especialmente, tanta garra de colocar no mercado algo que nunca conseguirão comprar. Aqui entre nós, sinto algum orgulho neles. Não são meus filhos e, até há pouco tempo, nem os conhecia, mas a contribuição, entre tantas equipas, eleva, na minha opinião, o nome de Portugal.

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    Por cada um que chega e apresenta bons desempenhos, há sempre alguém do lado de quem contrata que pergunta: “há mais destes por lá?”.

    E, dessa forma, acabam por ir abrindo caminho para o seguinte. São elogiados. Ouço-os várias vezes a receberem elogios. Imagino que fiquem satisfeitos com o reconhecimento numa fase tão precoce da carreira.

    O que seria do nosso país se conseguisse reter todo este talento, nas diversas áreas, que emigram aos milhares todos os anos?

    As diferenças de formação são também óbvias entre portugueses e outras nacionalidades. Não vou aqui referir quais são essas nacionalidades, mas direi, pelo que vejo em redor, que os tempos de aprendizagem são muito menores para estes miúdos que fogem dos lusos subúrbios e se lançam na selva da emigração sem grandes dúvidas ou receios.

    O ensino público português é bom. Pelo menos, na minha área, posso perfeitamente comprovar que o investimento feito não é desperdiçado. Pode não ir para o PIB português, mas vai, com alguma certeza, para o PIB de um país desenvolvido qualquer.

    brown wooden table and chairs

    E pergunto-me: onde é que errámos? Como é que ficámos tão pobres? De que forma é que fazemos este pessoal regressar e produzir em Portugal? São as três questões que coloco quase diariamente.

    Triste fado de um país que forma, e bem, para benefício de outros.

    Enquanto isto, para o ano, quando virem o novo e pequenino Volvo eléctrico na rua, ou o magnífico Polestar 4, saibam pelo menos que uma fatia do que lá vai dentro foi exclusivamente feito por portugueses.

    E se tiverem um, aproveitem. Se forem como eu, que só trabalho neles, mas nunca os compro, em todo o caso apreciem, com ligeiro orgulho lusitano, quando passarem na faixa da esquerda.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Eles sabem (balada romântica para robôs)

    Eles sabem (balada romântica para robôs)


    Se um pardal enervadamente esvoaça na rua, pousando entretanto para debicar uma beata de cigarro junto ao passeio, sentimos nos ossos o asco que ficou intrínseco a considerar que sim, estamos num mundo à parte do mundo natural.

    Nós, e todas as nossas coisas, somos entidades sujas a poluir o mundo, desligados e impositivos. Tudo o que fabricamos e construímos desintegra-se em três vezes mais partículas de lixo que entope pulmões, quem o vê, envergonha-se.

    (Vamos pedir desculpa aos pardais.)

    brown and white bird on brown rock in water

    Eles sabem que as investigações são gritos ecoados no vento.

    Eles sabem que as manifestações são pulgas sacudidas em cão sarnento.

    Eles sabem que braços e pernas se cansam e que a máquina continua, avassaladora, devoradora.

    Até os foguetes e luzes de reacções e revoluções mais não são que bailado de pernas esticadas e movimentos coreografados.

    E assim, ainda antes dos carros voarem, o fantasma da inteligência artificial finalmente adquire contornos e aterroriza muitos. Outros há que relativizam, é uma ferramenta, é só mais um martelo, é o curso natural do nosso curso artificial e desconectado (pede desculpa ao pardal).

    Até o senhor do espaço, do carro eléctrico mais bem publicitado da indústria e do pardal azul (também conhecido como Twitter) continua o seu caminho para entrar dentro de cérebros. E até ele se levanta, em mais um esvoaçar coreografado, e diz ao Robot que fique em coma uns seis meses, que vá dormir, que pare de crescer e aprender.

    Que estranho tal pedido.

    Como pedirmos aos nossos filhos que se congelem no tempo (mas o tempo continua, sempre o tempo).

    Claro que o pedido ser feito por gigantes, que competem em roubar o fogo aos deuses, é só uma coincidência (será?), e que os receios de estarmos a tactear uma caixa de Pandora são legítimos (ou infundados?).

    Há pelo menos um século que desenhamos e contamos histórias de antecipação a este momento.

    Quase todas ilustradas de forma assustadora.

    Quase todas inevitáveis, um caminho inexorável onde a Humanidade se encarrilou há muito tempo.

    E, mesmo assim, estamos espantados. Como se não fosse suposto termos chegado aqui.

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    Eles sabem, mas nós não sabemos. Nós continuamos o nosso dia, a fazer tanta coisa, a processar informação a alta velocidade. A tentar determinar o que é importante, o que é essencial, o que é mesquinho e o que é transcendente e incontornável. O que é melhor e o que é pior. Qual o caminho enquanto navegamos sem ter mapa.

    Parece que o medo é que a criação reflicta o seu criador.

    Parece que o medo é que o filho mate o pai, assim que foque o olhar e conclua que o pardal vale mais que nós.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O que Eça diria sobre Eça

    O que Eça diria sobre Eça

    O Parlamento português decidiu, por unanimidade, trasladar os restos mortais de Eça de Queiroz para o Panteão Nacional. A cerimónia está marcada para Julho. Agora, o que diria Eça sobre essa homenagem? Uma opinião livre e pessoal fica registada. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.


    Certamente que Eça de Queiroz ficaria contente por saber que o seu valor era reconhecido com honras de Panteão. Mas será que lhe agradaria saber que os deputados do Parlamento que, de forma unânime, aprovaram esta decisão são pessoas que ele, muito provavelmente, iria criticar?

    Eça, afinal, escreveu frases como esta: “O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos”.

    Uma frase que continua assim: “Já se não crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente”.

    E, para terminar: “A ruína económica cresce, cresce, cresce… O comércio definha, a indústria enfraquece. O salário diminui. A renda diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casas explora o aluguel. A agiotagem explora o juro”.

    Isto que citei, consta da colectânea “Uma Campanha Alegre” e diz respeito ao primitivo prólogo das Farpas, Estudo social de Portugal em 1871. São frases do homem cujos ossos vão agora repousar na antiga Igreja de Santa Engrácia. A tal das obras infinitas.

    Realmente, o que diria Eça sobre Eça e a homenagem à sua pessoa? Na minha opinião pessoal – e que deve ser apenas tida como tal –, Eça diria que, apesar de compreender a decisão, ainda assim o deviam recordar como alguém que escreveu sobre um País que existia enquanto ele também existia. Se agora, os descendentes dos homens daquele tempo, decidiram reconhecê-lo como um génio, como um grande do País com honras de Panteão, ao menos que chegassem a essa conclusão por o País não continuar na mesma situação em que ele o deixara!

    Diria ainda Eça que, caso as suas palavras fossem lidas ainda com a mesma luz e clareza na actualidade, ou seja, se houvesse hoje um português que as lesse como óbvias e não as citasse despudoradamente como sendo de um génio que merecia estar no Panteão – sem saberem o que o génio quis dizer na altura –, então a melhor homenagem seria deixarem-no estar tranquilo, no Douro, perto da sua Tormes e do seu Jacinto.

    Teria bem mais valor um visitante que tivesse a maçada de empreender uma viagem de propósito para o visitar e, com a devida demonstração de esforço e dedicação de uma deslocação com intenção de ir desde a cidade às serras, após mais de 120 anos desde a sua morte, essa sim seria a verdadeira homenagem à sua pessoa!

    Agora, vai para um Panteão que nem existia como tal quando ele morreu e que conhecia como a Santa Engrácia das obras inacabadas. Foi terminado em 1966, quando uma ditadura celebrava 40 anos. E vem agora, esta estranha forma de Democracia, que para ali já mandou toda a gente que politicamente lhe convinha, querer juntar o nome de Eça a uma lista de mortos apenas para a perpetuação da glória efémera de uns quantos políticos vivos e que nunca ninguém se lembrará de os visitar depois de mortos. Creio que Eça preferiria querer continuar a ser um génio do povo, sem necessidade de demonstração.

    A 28 de Novembro de 1892, Eça escreveu na Gazeta de Notícias um artigo sobre os grandes homens de França, onde analisava precisamente como aquele País e aquela cultura que tanto o marcara, decidira homenagear os seus grandes. Concluía que a França não deveria continuar a procurar mais nomes grandes e deixar “solitário no seu Panthéon como foi único no século pelo génio e pela universalidade da glória” apenas um escritor: Victor Hugo.  

    Quem souber a diferença entre quem foi Eusebiozinho e Eusébio da Silva Ferreira, poderá perceber melhor do que muitos o que Eça de Queiroz teria a dizer sobre a decisão do Parlamento português em autorizar a trasladação dos seus restos mortais para o Panteão.

    Não resisto ainda a contar aquilo que, certa vez, uma pessoa da família de Eça, partilhou como sendo uma pequena anedota sobre a inauguração da sua estátua no Largo Barão de Quintela – a original, em pedra, do escultor Teixeira Lopes, inaugurada em 1903 e que hoje está no jardim do Museu da Cidade, no Campo Grande e que, por ser constantemente vandalizada, foi substituída por uma réplica em bronze.

    Uma empregada de Eça e da sua mulher, D. Emília de Castro Pamplona, ao ver a estátua onde o escritor está abraçado à figura alegórica da verdade nua, com o escrito “Sobre a nudez forte da Verdade o manto diáphano da fantasia”, comentou depois ao chegar a casa: “O Senhor Eça está muito parecido, mas agora a senhora Dona Emília, ai meu Deus, não deveria estar assim”.

    Eça conhecia-nos melhor do que ninguém. Estamos todos no fundo da sua pena, sobretudo nessa obra magistral que é Os Maias. Sei disso, porque vejo-os todos os dias nas ruas. Somos os seus personagens. E quando sigo pelas Janelas Verdes, sei que não existe o Ramalhete, mas é aí que está a casa que os Maias vieram habitar em Lisboa. E quando corro para o autocarro, penso sempre: “Ainda o apanho! Ainda o apanho!”

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.