Categoria: Opinião

  • PÁGINA UM: em 2025, queremos crescer com os leitores, para não estagnar

    PÁGINA UM: em 2025, queremos crescer com os leitores, para não estagnar


    Terminado o ano de 2024 – e com números impressionantes, pois ultrapassámos um milhão de visitas nos últimos dois meses –, é também tempo de reflectir sobre o caminho percorrido e olhar para o horizonte que se desenha em 2025. O PÁGINA UM, criado há três anos, não apenas sobreviveu num ambiente de crescente crise financeira e de valores que assola a imprensa nacional, como se consolidou, num contexto hostil, como um bastião de jornalismo rigoroso, independente e incómodo para os poderes instituídos. Foi mais um ano de desafios, mas também de conquistas que nos enchem de orgulho e nos motivam a continuar. 

    Desde o início, escolhemos um caminho difícil, mas íntegro: o acesso totalmente livre aos nossos conteúdos, recusando qualquer tipo de publicidade ou parceria comercial. Vivemos apenas da generosidade dos nossos leitores, cuja confiança tem sustentado este projeto único. Graças a este modelo, conseguimos atingir um terceiro ano sem prejuízos, mas as limitações económicas começam a pressionar a ambição que nos move. As receitas mantiveram-se estáveis em relação aos anos anteriores, mas as despesas fixas aumentaram significativamente, forçando-nos a uma gestão ainda mais meticulosa, que inevitavelmente limita a nossa acção. Terminamos, contudo, o ano com um passivo virtualmente nulo, mas com um ‘custo’: continuamos aquém daquilo que desejaríamos. Não podemos estar satisfeitos; algo que não é necessarianente mau, mas não é bom.

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    Contamos actualmente com um conjunto notável de colaboradores que têm enriquecido o PÁGINA UM com uma diversificação temática notável, especialmente nas áreas de Opinião e da Cultura. Gostava de deter mais tempo e disponibilidade para agradecer devidamente o apreço e a honra por os ter aqui, ao nosso lado, dando tanta qualidade a este projecto.

    No entanto, o coração do jornalismo de investigação do PÁGINA UM – aquele que incomoda e desmascara – mantém-se dependente de apenas dois jornalistas a tempo inteiro, por questões orçamentais, tendo em conta a premissa de não apresentarmos prejuízos nem encetarmos uma estratégia de endividamento, que nos condicionaria. Esta realidade impõe-se e condiciona-nos perante os desafios crescentes: solicitações que aumentam exponencialmente, obstáculos legais e administrativos (como processos judiciais que se arrastam em tribunais sem decisão durante anos ou sem as entidades públicas quererem cumprir sentenças e acórdãos) e uma avalanche de denúncias que nos chegam mas, mesmo promissoras, não conseguimos investigar por falta de recursos. 

    Ainda assim, o PÁGINA UM está longe de querer desistir. Pelo contrário, 2025 será um ano decisivo. Estamos a trabalhar na remodelação do nosso site para torná-lo mais atractivo e funcional, reorganizando as notícias e as secções para melhor servir os nossos leitores. Porém, se as circunstâncias económicas não mudarem, seremos forçados a considerar alternativas que nunca desejámos: a introdução de publicidade ou, em último caso, de subscrições. Estas opções, que não me agradam, serão apenas introduzidas se forem o derradeiro recurso para elevar o impacto do nosso jornalismo e responder à nossa crescente responsabilidade perante a sociedade, mas sem hipotecar o rigor e a independência. 

    Em todo o caso, uma certa frustração que sentimos por não podermos fazer mais – e há muitos assuntos que não podemos ‘pegar’ por incapacidade humana – é acompanhada de uma determinação inabalável. Não aceitamos que o jornalismo se limite a fazer cócegas ao poder. Queremos ser incisivos, aprofundar mais temas, investigar sem limites e garantir que determinados assuntos não caiam no esquecimento. Acreditamos ser isso que os nossos leitores esperam do jornalismo do PÁGINA UM. 

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    Por isso, este editorial não deve ser lido, incluindo pelos nossos ‘detractores’, como um sinal de desânimo, mas sim de compromisso renovado perante os nossos leitores e os nossos apoiantes. O PÁGINA UM tem sido a prova viva de que é possível resgatar o espírito do verdadeiro jornalismo, sem concessões e sem amarras. Se conseguimos chegar até aqui, foi graças aos nossos leitores. Juntos, temos demonstrado que o jornalismo livre, independente e rigoroso não é uma utopia, mas sim uma necessidade imperativa para a democracia e a cidadania. 

    Para 2025, renovamos assim o nosso compromisso de ir mais longe, com a mesma determinação que trazíamos no final de 2021, quando nascemos. Com a vossa confiança e apoio, estamos prontos para enfrentar os desafios e abraçar as oportunidades que o futuro nos reserva. 

    Desejamos a todos um Bom Ano Novo, com a promessa de que continuaremos a lutar pelo jornalismo que faz a diferença! 


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

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  • PÁGINA UM: Três anos juntos a caminhar por um jornalismo independente

    PÁGINA UM: Três anos juntos a caminhar por um jornalismo independente


    Três anos passaram desde o nascimento do PÁGINA UM, um projecto editorial que ousa ser diferente em Portugal. Três anos de desafios constantes, de estimulações intelectuais permanentes, mas também de desgastes profundos. Afinal, não é fácil nadar contra a corrente, remar num oceano mediático onde o comodismo, a dependência económica e o alinhamento ideológico tantas vezes sufocam aquilo que o jornalismo deveria ser: independente. Sim, independente é uma palavra que usamos sem qualquer ligeireza. No PÁGINA UM, a independência é a matriz que define cada linha que publicamos, cada tema que investigamos e cada poder que incomodamos.

    Este é um projecto único em Portugal. Um jornalismo verdadeiramente independente que não aceita parcerias comerciais, que não se verga perante os ditames do capital ou os caprichos do Estado. Vivemos apenas dos apoios dos nossos leitores, aqueles que compreendem e valorizam a necessidade de uma imprensa livre e sem amarras. E que desafios temos enfrentado! Desde processos judiciais que nos tentam silenciar, até pressões subtis – e outras nem tanto – que chegam de várias esferas dos poderes. Enfrentamos tudo isso de cabeça erguida, movidos pela certeza de que aquilo que fazemos é necessário.

    Ao longo destes três anos, o PÁGINA UM tem desbravado caminhos que muitos evitam. Investigámos e publicámos sobre temas que outros preferem ignorar. Desde a pandemia da covid-19 e a forma como os números foram manipulados e usados como instrumentos de controlo, até à falta de transparência nas contas das instituições públicas e privadas. Denunciámos práticas corporativistas e nepotismos que atravessam várias áreas da sociedade portuguesa. Recusámos ceder aos “temas tabu” que dominam boa parte da imprensa tradicional.

    Este é um jornal que não teme incomodar. E, por isso, temos sido alvo de processos movidos por aqueles que se sentem expostos ou ameaçados pelas verdades que trazemos a público. Esta semana, por exemplo, recebi um prazo curto para contestar duas acções judiciais: uma interposta pela Ordem dos Médicos e os médicos Miguel Guimarães, Filipe Froes e Luís Varandas; a outra interposta pelo Almirante Gouveia e Melo. Existem, pelo menos, mais dois. E são incontáveis já as queixas junto da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), que move sempre processos, contribuindo, em vez de travar, para a estratégia conhecida por SLAPP (Strategic Lawsuits Against Public Participation), que têm como principal objectivo impedir, restringir ou penalizar a participação pública e a liberdade de imprensa.

    Mas também movemos os meios para lutar em prol do acesso à informação, cada vez mais agrilhoada. Nos últimos três anos interpusemos mais de duas dezenas de intimações nos tribunais administrativos, porque os princípios de transparência e responsabilidade devem ser defendidos. Nos próximos dias falaremos, aliás, de um desses casos que teve um desfecho ao fim de 29 meses, porque não desistimos jamais. E ainda esta semana apresentámos mais uma intimação, além de estarem a decorrer pedidos de parecer à Comissão do Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) em outros dos casos de obstaculização. As dificuldades são, contudo, imensas, mesmo quando os tribunais nos concedem razão. Por exemplo, uma petição do PÁGINA UM para acesso a um relatório de inspecção do Conselho Superior da Magistratura continua sem ser cumprido, mesmo depois de um acórdão do Tribunal Administrativo Central do Sul. Os mecanismos para obrigar as entidades a cumprir sentenças e acórdãos estão minados à partida, transformando-se em processos verdadeiramente kafkianos. Mas, apesar disso, a nossa missão mantém-se firme e clara, neste aspecto: trazer luz onde há sombra, mesmo quando isso significa desagradar aos mais poderosos.

    Mas estamos cientes dos custos, das críticas explícitas ou veladas ou mesmo dos boicotes. Curiosamente, os maiores sinais de desconforto têm vindo de onde eu, em particular, menos esperaria. Por mais que alguns queiram posicionar o PÁGINA UM num determinado espectro ideológico – e, absurdamente, há quem force meter-nos nos antípodas daquele que é, há décadas, o meu pensamento e postura –, a verdade é que somos vistos com desconfiança e desprezo, quando fazemos determinadas abordagens que desagradam, ou como instrumentos de esperança, por outros, quando as notícias ou artigos lhes parecem ‘simpáticos’. Talvez porque há agora uma crença enraizada de que o jornalismo deva ser uma extensão de uma agenda ideológica, o que jamais será o caso do PÁGINA UM.

    No eixo do poder, a reacção não é diferente: nem dirigentes nem candidatos do PSD ou do PS aceitaram, até agora, conceder-nos quaisquer entrevistas, mesmo tendo sido o único órgão de comunicação social a realizar, este ano, em duas circunstâncias, entrevistas aos candidatos às eleições legislativas e para o Parlamento Europeu. Esta ausência, contudo, não é um problema; será, a manter-se, uma flor na nossa lapela. Mais preocupado ficaria se houvesse escritores que se recusassem a sentar comigo na nossa Biblioteca do PÁGINA UM para falar de livros, de criação, de vida. Esses, sim, são os diálogos que marcam a História de um povo.

    No entanto, mais do que tudo, é importante destacar que este caminho de três anos jamais seria possível sem aqueles que nos leem e apoiam. Um profundo agradecimento a todos os nossos leitores, especialmente aos que acreditaram no PÁGINA UM desde o primeiro dia, e nos apoiam financeiramente de uma forma voluntária e de uma generosidade que nos afaga e estimula a continuar. São os leitores a apoiantes, nos momentos de maior pressão e de menor ânimo, a razão pela qual continuamos, e o vosso apoio é fundamental para a nossa existência. A vós, que não apenas desejam a continuidade deste projecto, mas também o seu fortalecimento, deixo o meu mais sincero agradecimento.

    Entramos no quarto ano com o mesmo entusiasmo que nos guiou desde o início, mas também com os pés assentes na terra. Sabemos que só poderemos fortalecer este projecto editorial com mais recursos. Para isso, precisamos de continuar a crescer, a conquistar mais leitores que vejam no PÁGINA UM não apenas um jornal, mas um baluarte do jornalismo independente em Portugal. Porque sem jornalismo livre, não há democracia verdadeira. E sem democracia verdadeira, não há futuro para uma sociedade que se queira justa e informada.


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  • Como o Estado nos roubou o dinheiro

    Como o Estado nos roubou o dinheiro


    Desde os primórdios da civilização, o dinheiro emergiu como uma solução natural para os problemas da troca directa. O ouro e a prata foram escolhidos não por decreto, mas pela sua capacidade de preservar valor, facilidade de transporte, divisibilidade e aceitação geral. Era um fenómeno de mercado, fruto da selecção natural dos bens mais adequados para servir como intermediário universal das trocas. Contudo, como sempre, onde há valor, há parasitas. O maior deles, o Estado, foi rápido em compreender que controlar o dinheiro seria uma forma eficaz de roubo sistemático.

    Na Roma republicana, as transacções eram feitas com barras de metal pesadas e avaliadas em cada troca, atrasando consideravelmente o comércio. Com o Império, os Césares centralizaram a cunhagem, monopolizando a produção monetária sob o pretexto de “garantir” a qualidade. O Denário, uma moeda de prata que deu origem à palavra dinheiro, foi progressivamente adulterado. Reduziram o seu conteúdo de prata e adicionaram metais inferiores, como o latão. Não era apenas uma manipulação, mas um roubo flagrante. Os imperadores financiaram guerras e luxúrias, empobrecendo a população ao desvalorizar o meio de troca que oleava a economia.

    Tal como hoje, os criminosos culpam sempre os homens de negócios pela subida dos preços. Em 301 d.C., o imperador Diocleciano decretou um édito de preços máximos (Edictum de Pretiis Rerum Venalium), ameaçando com severos castigos quem praticasse preços superiores. É como se o bandido não desejasse aceitar as consequências do seu roubo. Veja-se a recente nota de culpa lançada à guerra da Ucrânia, depois dos Bancos Centrais terem andado a imprimir biliões durante a falsa pandemia.   

    Na Idade Média, Portugal seguiu o mesmo caminho. D. Dinis centralizou a cunhagem, eliminando as experiências descentralizadas que, em países como a França medieval, permitiam a vários privados cunhar moeda. Esse monopólio prometia “simplificar” as transacções, eliminando a necessidade de verificar o peso e a pureza em cada troca – existiam várias moedas em circulação –, mas abriu as portas aos abusos. Com D. Fernando, o reino conheceu o desastre. Para financiar as guerras contra Castela, o rei emitiu moedas de fraca qualidade. A falta de lastro permitiu uma inundação de moeda falsa no mercado, arruinando a economia. Depois de um bandido de tal calibre, não foi uma surpresa a crise dinástica que se seguiu.

    Na Idade Média, surgiu outro esquema brilhante – ou fraudulento – que transformou os banqueiros em comparsas do poder estatal. Os ourives, que armazenavam ouro para comerciantes, emitiam recibos representando os valores depositados. Esses recibos circularam como substitutos do ouro. Mas, percebendo que os depositantes raramente retiravam todo o ouro ao mesmo tempo, os banqueiros começaram a emitir mais recibos do que o ouro guardado. Criaram dinheiro do nada. Essa prática, denominada de reservas fraccionadas, foi a origem do que hoje chamamos de sistema bancário “moderno”. Quem melhor para se aproveitar dela do que os bandidos ao leme do Estado?

    As reservas fraccionadas foram rapidamente apropriadas pelos Estados. As guerras são dispendiosas e os reis preferiam evitar revoltas populares causados por um aumento de impostos. Nada melhor que recorrer à inflação monetária, um imposto silencioso e quase invisível. Quando o povo percebia, era tarde demais. Na Barcelona medieval, as fraudes bancárias eram punidas severamente. Banqueiros falidos tinham um ano para restituir os depósitos. Caso não conseguissem, perdiam não apenas os bens, mas também a cabeça. Era uma época de maior responsabilidade, pelo menos comparada ao que viria depois.

    O golpe de génio dos banqueiros foi legalizar a fraude. Para isso, recorreram ao Direito Romano, que diferenciava o depósito de bens fungíveis (como dinheiro) do depósito de bens não fungíveis (como um quadro ou uma jóia). No caso dos bens fungíveis, o depositário podia utilizar os bens, desde que devolvesse um equivalente. Assim, o depósito virou um contrato de mútuo, permitindo que os bancos especulassem com o dinheiro dos depositantes. Era uma distorção completa do conceito original de depósito, transformando tal legalização num instrumento de roubo institucionalizado.

    Com os Bancos Centrais, essa fraude foi escalada para um nível global e sem precedentes. Fundado em 1694, o Banco de Inglaterra foi criado para financiar a guerra contra a França, emitindo títulos de dívida que podiam ser convertidos em moeda. Era a primeira vez que a inflação era centralizada e controlada directamente por um governo. John Law, na França do início do século XVIII, refinou o esquema. Convenceu o regente a emitir papel-moeda sem lastro, prometendo riqueza infinita com base na especulação. O resultado foi a bolha do Mississippi, um colapso que arruinou milhares de franceses. John Law fugiu, mas as suas ideias persistem nos Bancos Centrais modernos. Enfim, deixara-nos um grandiloquente legado.

    Para justificar tudo isso, o Estado precisava de intelectuais dispostos a transformar a fraude em “ciência”. Milton Friedman, o pai do monetarismo e do perverso esquema de extorsão conhecido por retenção na fonte, afirmou que a Grande Depressão foi culpa da Reserva Federal norte-americana, o Banco Central dos EUA, por não emitir dinheiro suficiente! A sua solução? Imprimir. Economistas como Paul Krugman continuam hoje a defender que a criação de moeda é necessária para “estimular” a economia, ignorando os efeitos destrutivos a longo prazo. Esses “cientistas” são os apóstolos de um sistema que enriquece elites financeiras e empobrece as massas.

    A inflação, frequentemente definida como a “subida generalizada de um índice de preços”, não é nada mais que o aumento da oferta monetária. Quando os Bancos Centrais criam dinheiro do nada, não criam riqueza; apenas diluem o poder de compra da moeda existente. Quem recebe o dinheiro em primeiro lugar, como as grandes empresas fornecedoras do Estado, compra os bens e serviços antes que os preços subam. Quem recebe por último – os mais pobres – paga os preços inflacionados. É um sistema de redistribuição ao contrário, que tira dos mais vulneráveis para dar aos privilegiados.

    A bolha imobiliária de 2008 foi um exemplo claro. Taxas de juros artificialmente baixas, manipuladas pelos Bancos Centrais, incentivaram investimentos insustentáveis no sector imobiliário. Quando a bolha estourou, o capital acumulado foi destruído e milhões perderam as suas casas. Na Argentina, onde a inflação fora crónica até à chegada de Javier Milei, o poder de compra evaporava diariamente, deixando a população presa a um ciclo de pobreza interminável.

    O sistema monetário actual é uma fraude institucionalizada. Os Bancos Centrais, longe de protegerem a economia, são instrumentos de roubo. O Estado age como um parasita, transferindo riqueza das massas para plutocratas e burocratas. O dinheiro precisa de ser devolvido ao mercado, onde pertence. Ouro, prata e, agora, o Bitcoin são as únicas formas verdadeiras de preservar riqueza, livres das manipulações do Leviatã estatal.

    Enquanto continuarmos a aceitar o papel-moeda e os sistemas de crédito desenfreado, perpetuaremos um ciclo de exploração, onde os Bancos Centrais e os seus comparsas devoram o que resta do nosso poder de compra. O Estado e a máfia organizada em partidos que o lidera, como sempre, continuará a viver às nossas custas, um parasita que se alimenta incessantemente do trabalho alheio.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Os pobres

    Os pobres

    Aquele jornalista era sem dúvida o mais cão-de-fila de toda a cáfila jornalística que pululava pelas principais redacções de televisão.

    Tinha uma postura agressiva sempre que o seu entrevistado parecesse estar numa posição antagónica à sua. Se estivesse então conotado, ou fizesse mesmo parte daquilo que é hoje considerada a nova direita, mordia.

    Era agressivo, mal-educado, interrompia, sentia-se a vontade insolente de cuspir para cima do interlocutor e isso verificava-se num franzir de olhos bastante nervoso, sendo mesmo acometido por esse movimento muscular frequentemente, sobretudo defronte de entrevistados alvo.

    Mas o jornalista era baixinho e parecia não ter físico que garantisse em caso de luta, uma vitória fácil, mesmo que se tratasse de uma mulher.

    Para estes feministas de estúdio, ser mulher não interessa se não partilharem das mesmas ideias. Nesse caso o universo feminino não é para defender.

    Imaginava-se até que fosse medroso e provocador tipo “Ò Evaristo tens cá disto?” 

    Um toca-e-foge sempre que não tivesse as costas quentes de um estúdio ou de uma voz gélida a dar ordens no seu auricular.

    Mas desta vez a entrevistada vinha do Partido Socialista e era Presidente de Câmara de uma pequena cidade. A realização da entrevista devia-se à senhora ter gerado alguma polémica por ter proferido na rádio local da sua cidade que existiam muitas pessoas dessa região a usufruírem de subsídio, quando se sabia que algumas ostentavam casas com piscina, ou vivendas caras, ou mesmo carros de luxo, incluindo Teslas e Audis.

    A Presidente da Câmara denunciava-o de uma forma até convencional, pausada e calma, sem grandes oscilações térmicas tanto na voz como nas expressões faciais. Parecia querer aproveitar o facto de estar na televisão para apelar a que se resolvessem este tipo de situações que muito prejudicavam os verdadeiros pobres. Não denunciava nenhuma etnia em particular e embora fosse uma política ligada a um partido do Poder, parecia querer mostrar alguma sensibilidade para com o problema e queria torná-lo público.

    Queixava-se também de certa forma do pouco orçamento que a sua autarquia tinha para poder ajudar a resolver o assunto.

    Queria apenas que se investigassem essas pessoas, de forma que a investigação se certificasse de onde provinham os sinais de riqueza dos suspeitos para que se pudesse fazer justiça e uma outra redistribuição mais equitativa e justa pelos mais necessitados.

    Pelo que parecia, era uma socialista convicta.

    Mas o jornalista não estava a gostar da conversa. Interrompia constantemente e alegava com razão eventualmente, não fosse o seu tom, que as pessoas podiam ter smartphones e serem pobres. Não estava a perceber muito bem onde a Presidente queria chegar. Será que a senhora pretendia denunciar alguma etnia em particular?

    No entanto percebia-se que a senhora queria sobretudo alertar os espectadores para essa situação anómala e desprestigiante para o ser humano. Isso era claro.

    Infortúnio que o jornalista se recusava a aceitar como sendo prática comum e até parecia duvidar se alguma vez isso poderia vir a ocorrer, chegando mesmo a evocar a possibilidade caso acontecesse, de ser uma excepção com a qual não nos devíamos preocupar para assim se confirmar a regra da não existência desse tipo de abusos. O Estado é hoje um dos grandes financiadores das televisões.

    Percebe-se.

    Mas, no entanto, não deixa de ser absurdo.

    No meio da entrevista sob o fundo verde-croma, a senhora entrevistada respondeu a uma pergunta idiota e ainda acrescentou:

    —… Até lhe digo mais… Há por lá pela cidade um caso muito conhecido de um cidadão que aufere desse subsidio, mas que no entanto ostenta um Audi, eléctrico e tudo. Portanto é até um cidadão com cuidados ecológicos por sinal.

    —Mas não pode, é?

    Perguntou o jornalista cão-de-fila, mal ouviu falar em ecologia.

    —Nada disso. Apenas estou a dizer que normalmente esses carros são mais caros e que pessoas muito necessitadas nem sequer se podem dar ao luxo de ter prioridades ecológicas por muito que o queiram.

    Por momentos parecia até que o jornalista estava a deixar passar a ideia de que não gostava de pobres, tendo nesse caso uma doença chamada aparofobia, e é sabido que hoje muita gente padece dessa patologia. Até pobres.

    Aparecia o reino do nonsense mais uma vez para pautar uma entrevista grotesca. Coisa comum hoje em dia nos canais televisivos cheios de estagiários, embora não fosse este o caso. Este jornalista já se arrastava há uns anos pelas cadeiras de pivot.

    —Mas então como é que a senhora sabe que o carro não é emprestado?

    Perguntou o jornalista convicto de estar a fazer a melhor pergunta de sempre.

    A Presidente fez uma cara de espanto não querendo acreditar naquilo que acabara de ouvir e antes que pudesse responder, houve um apagão geral. Uma parte do mundo ficou sem energia. Podia ser um simulacro também.

    Um Cyber Polygon.

    Assim de um momento para o outro.

    Trássss!! Puffff!!!

    Vários sons estridentes e desconhecidos potenciaram o frenesim generalizado das pessoas que se encontravam na redacção e no estúdio.

    Mas mesmo depois de o jornalista constatar que já não estavam no ar, começando a sentir-se o caos associado a um apagão de grande extensão, com quase tudo às escuras, em off ainda insistiu com a senhora autarca:

    —Sim, responda-me. Como é que a senhora sabe que o Audi do cigano não é emprestado?

    Hum!!!

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Ruy Otero


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  • Estoril 3.0

    Estoril 3.0


    Aquele golo sofrido, no fim-de-semana passado, no último lance do jogo contra o AVS – que nem sei bem o que significa – doeu muito. Não tivesse o Trubin despachado tão mal aquele atraso, não houvesse falta, não tivesse a defesa do Benfica andado a ver navios…  Enfim, o prazer faz-se pagar caro, mas, de igual sorte, quanto mais tarde chega, mais saboroso parece ser. E estou confiante, depois de mais um percalço do Sporting, graças ao excelente treinador João Pereira (longa vida lhe desejava eu aos comandos dos lagartos, mas, infelizmente, como o peru, não sobreviveu à quadra), desta vez é que é: vamos mesmo chegar ao Natal em primeiro lugar. Presumo eu, que comeceu esta crónica pouco depois dos primeiros pontapés, ali em baixo.

    Nisto, depois de tudo o que se passou com o Roger Schmidt, prenunciar o Benfica em primeiro lugar é melhor do que aquela filhó que chega à mesa, dourada como o sol deste Inverno, estaladiça na borda e macia no centro, com um aroma subtil de aguardente a aquecer a alma.

    Não há melhor. Nem que fosse uma daquelas rabanadas que se desfazem na boca, banhada em calda de açúcar e canela, húmida e perfumada, como se trouxesse o abraço do Natal num pedaço.

    O Benfica em primeiro no Natal será melhor do que uma fatia generosa de bolo-rei, de brilhantes frutas cristalizadas, de crocantes nozes e amêndoas, daquele que liberta perfume a laranja e vinho do Porto, ou melhor, aquilo é mais do Douro, ou, vá lá, de Vila Nova de Gaia.

    (tudo calmo ali em baixo, já agora… e já agora, poderia o Benfica ofertar uma fatia de bolo-rei que este famigerado farnel merecia melhorias; se melhoraram o treinador, metendo o Lage, não sei a razão para manterem o lanche como está…)

    Enfim, continuemos nestas analogias. Acrescento eu que ver o Benfica no topo da clasificação será mais apetitoso do que qualquer tronco de Natal, mesmo se com aquela textura cremosa de chocolate, laivos de açúcar como neve fresca em decoração, a envolver as papilas num abraço de sabores.

    Nem qualquer sonho se iguala, que sonho já vivem agora os benfiquistas depois do pesadelo alemão – e mesmo que fosse um daqueles sonhos que parecem flutuar, leves como uma nuvem, por terem sido fritos até à perfeição, com a superfície caramelizada e polvilhada de açúcar.

    E metam também os pudins de ovos em calda de caramelo, ou as broas-de-mel em farinha de trigo ou as tartes de amêndoa de crosta dourada – tudo perde no confronto com o Benfica em gloriosa posição.

    (é goloooooooo; golooooooooooooo… já está. O nosso PAVlidis a dar-nos melhor música do que o Vangelis!)

    E digo mais agora, que o primeiro lugar me parece garantido: nem todo o ouro, nem todo o incenso, nem toda a mirra valem mais do que este momento. Exagero? Talvez. Acho que exagero mesmo. Quer dizer, pelo ouro de todo o Mundo eu até prescindia – que não sou doido –, mas só para que pudesse guardar uma pequena porção. Para quê? Ora, para alguns reforços cirúrgicos na ‘janela de Janeiro’, claro, que o assalto final à época não se faz com romantismos, mas com pragmatismo. E, além disso, temos a Champions, e eu não quero mais ver derrotas desta varanda.

    Em todo o caso, sendo certo que o ouro pode comprar jogadores, não compra o espírito. Não compra o grito da multidão, o abraço colectivo nos golos, nem o sabor desta vitória. Aquilo que desejo vincar é que o Benfica no topo, antes deste Natal, transcende qualquer presente material. É um presente que se sente, que nos percorre as veias e nos aquece melhor do que qualquer lareira da casa das nossas avós.

    O prazer de ver este nosso Glorioso no cume da tabela não é só estatística; é a chegada de triunfo que, como dizia Nietzsche, só se torna verdadeiramente glorioso depois de superados os obstáculos. E superámo-los: os percalços com o Roger Schmidt, o renascimento com Bruno Lage, e até os deslizes que pareciam comprometer o destino.

    (chega o intervalo, e o Benfica, na verdade, não deslumbra, mas mostra-se competente, mas tem de marcar mais golos para nos sossegar)

    Enquanto isto, filosofo mais, enquanto os guerreiros descansam, sobre esta reconfortante sensação que é o prazer, e que, desde tempos imemoriais, tem sido um tema central da Filosofia – e que me parece ter nesta Da Varanda da Luz o local ideal para uma competente dissertação.

    Sabemos que o prazer para os antigos gregos, mesmo sem saberem nada das artes da ludopédia, não era apenas uma questão de experiência, mas de equilíbrio e significado. Epicuro, frequentemente mal compreendido como hedonista, defendia que o verdadeiro prazer residia na ausência de dor, tanto no corpo quanto na alma. Para ele, a gratificação era maior quando obtida com moderação, ponderação e, sobretudo, depois de se ultrapassarem grandes dificuldades.

    (e recomeça o jogo; força Benfica!)

    Por outro lado, Aristóteles via o prazer como um complemento da virtude; era bom, mas nunca deveria ser o objectivo em si. Para ele, o esforço e a excelência eram a chave para uma vida bem vivida, e o prazer surgia como uma consequência natural desse caminho. Talvez devessem mesmo experenciar a dor de ter um treinador como o Roger Schmidt no início da temporada… – ou, para quem é do sportinguista, ver o João Pereira a desbaratar um início perfeito do Ruben Amorim, que, aliás, quis ir sofrer para Manchester.

    Passando agora dos antigos para os modernos. Sobre o prazer, podemos sempre recorrer ao útil Nietzsche, que desafiou o ideal da busca pelo conforto. A sua ideia de amor fati, ou o amor ao destino, sublinha que é no confronto com as adversidades que se encontra o verdadeiro sentido da existência. Não sei ainda bem se isto se aplica ao futebol. Aplica-se?

    (ai ai ai!, desgraça! Penalti contra o Benfica. Grande porcaria… espera… espera… o VAR ‘anulou’, ou melhor, o árbitro reverteu a decisão depois de ir ver o VAR. Alivio! Depois da dor pela antecipação de uma desfeita, foi como se viesse o prazer depois de uma dor percebida)

    Suspiro, aliviado. Tréguas para continuar a filosofar nesta Varanda da Luz. E respondo à pergunta. Claro que sim. Se o amor fati nos ensina a abraçar o destino, com todas as suas adversidades, então aplica-se, sim, ao futebol. E porquê? Porque o futebol, como a vida, não é uma sucessão de vitórias fáceis e momentos perfeitos; antes sim, é feito de frustrações, de reviravoltas, de lesões inesperadas, de golos sofridos no último minuto – como aquele contra o AVS, que ainda me dói só de lembrar. O amor fati é isso: aceitar que a dor faz parte do jogo da vida, e é precisamente essa dor que torna as vitórias mais doces.

    Quando pensamos na travessia inicial desta época, com Roger Schmidt a transformar-se numa fonte de frustração, ou quando olhamos para o Sporting – cujo início parecia prometer glórias, apenas para que o João Pereira desmoronasse tudo como um castelo de cartas –, percebemos que o futebol é um microcosmo da existência humana. É a luta contra as probabilidades, o confronto com a imperfeição, que dá significado ao jogo. Nietzsche diria, se vivesse agora, que, ao amar essas adversidades, ao encontrar beleza nas derrotas e nos momentos de dúvida, crescemos enquanto adeptos – e enquanto seres humanos.

    (goloooooooooo!!!! Benfica! Zeki Amdouni, acabadinho de entrar, e logo a marcar. Alívio. E o Natal está a 17 minutos de chegar, mais os descontos)

    E veja-se: se não fosse pelo sofrimento inicial, e até o sofrimento deste jogo, que houve, onde encontraria eu o sabor pleno do momento actual? O Benfica em primeiro lugar antes do Natal é um presente que só faz sentido porque passámos por altos e baixos. Se a vitória fosse certa, constante, garantida, perderia o seu valor. O futebol seria uma monotonia, sem emoção, sem intensidade. A glória de PAVlidis a marcar hoje, como se fosse o outro Vangelis a compor uma sinfonia em campo, mostra-se arrebatadora porque é fruto de esforço, de trabalho, e, sim, de dor superada… Acho que estou a exagerar, mas, enfim, quem não…

    Talvez seja isso que Nietzsche, mesmo antes do futebol ser inventado como o conhecemos, nos ensina: não há prazer genuíno sem luta, não há glória sem adversidade. Por isso, amar o destino, com as suas curvas e tropeços, constitui uma declaração de amor ao futebol em toda a sua imprevisibilidade. Por isso, sim, o amor fati aplica-se ao futebol – e talvez o futebol, no fundo, seja um dos maiores exercícios de amor fati na vida moderna. Afinal, que outra paixão nos leva a sofrer tanto e, ainda assim, a amar cada instante?

    No coração de cada adepto, sinto agora nestes benfiquistas, um pouco mais de 60 mil aqui no estádio, reside um ethos semelhante ao dos filósofos: o prazer supremo destas últimas semanas, e de hoje em particular, esteve inextricavelmente ligado à paciência, sobretudo com o alemão, ao esforço, à espera e, muitas vezes, à dor de suportar derrotas e empates. Não é o sabor mais ou menos fácil das vitórias sucessivas com o Bruno Lage que agora cativa; é o momento glorioso que chega após uma sequência de desafios superados.

    (e golooooooooooo… 3-0; novamente o suíço com o nome esquisito, que me parece que está a ficar melhor do que o Seferovic)

    Termino, como termina o jogo, em glória, afirmando que o Gloriosa, nesta temporada, será é o exemplo perfeito desta Filosofia da Ludopédia aplicada à vida. Qualquer adepto já saberia que as conquistas mais satisfatrórias são aquelas que surgem depois de períodos de frustração. E agora, basta seguir o caminho. Alvalade será o próximo bastião a quebrar: dizem-me que já sem o João Pereira… Agora, até podiam contratar o Pep Guardiola…


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  • Brasil: Parlamentarismo bastardo, ou o sequestro do orçamento

    Brasil: Parlamentarismo bastardo, ou o sequestro do orçamento


    Promovida a redemocratização, o Brasil transformou-se numa república sui generis. Quem lê com atenção a Constituição de 1988, enxerga em seu texto coisas assaz curiosas. Embora o sistema de governo esteja definido com um representante eleito por voto maioritário para exercer a chefia de Estado e de Governo (o Presidente da República), quase nada se faz sem que o Congresso dê o seu aval. Não só isso. Em muitos casos, o Congresso pode literalmente decidir sozinho. Ainda que reste ao Presidente o direito de vetar certas proposições, o Congresso pode simplesmente derrubar o veto e fazer valer sua vontade à força. No caso de emendas à Constituição, nem direito a veto existe. Os parlamentares aprovam a alteração no texto constitucional, promulgam a emenda e fim de papo. Quando muito, restará ao Governo tentar recorrer ao Supremo caso haja alguma inconstitucionalidade na iniciativa. Por mais que não se queira admitir, a prevalência política – no sentido de “poder para fazer as coisas” – no nosso sistema constitucional está estruturada em torno do Congresso, à semelhança do que ocorre no parlamentarismo.

    Ainda que a Constituição claramente tenha sido desenhada para operar sob um sistema parlamentarista, optou-se por estabelecer um sistema presidencialista, de modo a não confrontar a tradição política instituída desde a Proclamação da República. Para além disso, ainda estava muito viva na memória a campanha das “Diretas Já!”, na qual a imensa maioria da população foi às ruas pedir a volta da democracia com o lema: “Quero votar para presidente!”. Saindo de uma ditadura de 21 anos, os constituintes não tiveram muita margem de manobra para dizer que, agora com a democracia restabelecida, o povo seguiria sem escolher o mandatário máximo da Nação.

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    Os defensores do parlamentarismo, contudo, estabeleceram um artifício constitucionalmente engenhoso. A despeito de manterem o sistema presidencialista, fizeram incluir no art. 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias a obrigatoriedade da realização de um plebiscito contados cinco anos da promulgação da Constituição de 1988. Nessa consulta popular, o povo escolheria tanto o regime (monarquia ou república), quanto o sistema de governo (presidencialismo ou parlamentarismo). A idéia era a de que nesses cinco anos após a promulgação do texto constitucional ficassem claros os inconvenientes do sistema presidencialista, fazendo com que a própria população optasse pela mudança de sistema. Quando isso acontecesse, tudo se encaixaria. A Constituição parlamentarista seria doravante seguida por um governo parlamentarista.

    Faltou, contudo, combinar com o povo. Realizado a 21 de Abril de 1993, os parlamentaristas conseguiriam reunir pouco mais de ¼ do eleitorado, com direito a 10% de monarquistas que pretendiam abolir a República (embora não estivesse claro no plebiscito se o país seria devolvido à dinastia dos Orleans e Bragança). Ficámos, pois, condenados a um modelo político esquizofrénico, em que a maior parte do poder estava reservada ao Congresso, mas o Poder Executivo ficava a cargo do Chefe de Estado, que detinha a chave do cofre.

    Como se isso não bastasse, as excentricidades do nosso sistema eleitoral acrescentaram diversas incongruências práticas ao bom funcionamento desse modelo. Enquanto Presidente da República e os senadores são eleitos em sistema maioritário (quem tiver mais votos, leva), os deputados federais são eleitos seguindo o voto proporcional em lista aberta. Contam-se os votos e distribuem-se as cadeiras da Câmara de acordo com os votos obtidos por cada partido. E, dentro de cada partido, são escolhidos os candidatos que foram mais votados. Com mais de 30 partidos registados no Tribunal Superior Eleitoral, disso resulta que, em todos os casos desde a redemocratização, nenhum Presidente eleito pelo povo contava com maioria absoluta no Congresso.

    Para contornar a circunstância de chefes de governo minoritários no Parlamento, desenvolveu-se uma espécie de “modelo de coabitação”, no qual os parlamentares faziam emendas ao orçamento da União. Indicadas como prerrogativa sua, as emendas nasceram com o propósito de destinar verbas a pequenas obras ou instituições nos seus redutos eleitorais. A intenção, por óbvio, era transformar dinheiro em votos. No ano seguinte, o Executivo – senhor dos recursos federais – decidia quais e quando as emendas seriam pagas. Foi através desse sistema que os sucessivos presidentes, de Fernando Collor a Lula III, conseguiriam formar suas bases de apoio, naquilo que o sociólogo Sérgio Abranches viria a definir como “presidencialismo de coalizão”. Até aí, nada de mais. Politics is politics.

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    O problema, como o leitor amigo pode imaginar, é que esse “arranjo” somente funcionaria enquanto o Presidente da República se mantivesse politicamente forte. Na hora em que ele ficasse fraco, seria apenas questão de tempo até que o Congresso “descobrisse” que era ele quem de facto mandava. Bastaria aumentar a quantidade de emendas no orçamento ou, pior, torná-las de execução obrigatória, para que o Executivo perdesse seu principal instrumento de barganha política.

    E foi justamente isso o que aconteceu a partir de 2015. Primeiro, Dilma Rousseff resolveu enfrentar Eduardo Cunha, sendo derrubada por impeachment em seguida. Depois, seu vice, Michel Temer, caiu em desgraça após a delação dos notórios irmãos Batista, tornando-se politicamente zombie até o fim de seu mandato. Por fim, tivemos a “terceirização” do governo promovida por Jair Bolsonaro, preocupado apenas em formas de organizar uma ditadura que lhe permitisse governar como autocrata. Numa sequência cada vez mais voraz, os deputados e senadores resolveram assenhorar-se de parcela cada vez maior dos recursos arrecadados da população, relegando o Governo Federal praticamente à condição de pedinte para seus próprios programas. Estabeleceu-se, portanto, de forma completamente anómala, um “parlamentarismo bastardo”, cevado por verbas sequestradas ao orçamento da República.

    A coisa atingiu tal nível de selvageria que, entre 2019 e 2024, nada menos do que R$ 186 mil milhões (cerca de EU$ 30 mil milhões) esvaíram-se pelos desvãos do orçamento em emendas parlamentares. Pior. Com a lógica do “orçamento secreto”, manufacturada no governo Bolsonaro, não se sabe sequer: 1) quem foram os parlamentares responsáveis por essas indicações; 2) quanto foi gasto em cada emenda.

    É bem verdade que Lula da Silva já pegou o bonde a andar, com a casa desarranjada pelo que (não) fizeram seus predecessores. Mesmo assim, o atual mandatário tem feito pouco ou quase nada para mudar esse estado de coisas. Parte dessa inação deriva do fato de que boa parte do PT abraçou-se gostosamente ao Centrão, funcionando como linha auxiliar de Arthur Lira, o todo-poderoso Presidente da Câmara e responsável directo pela criação do “orçamento secreto”. Não por acaso, o Presidente da Câmara mantém alguns dos principais próceres do partido da estrela vermelha como seus fiéis escudeiros.

    Quem sabe movido pela esperança de que o tempo acabe por resolver essa questão de uma forma ou de outra, Lula talvez tenha achado que pudesse empurrar a situação com a barriga até a eleição da nova mesa diretora da Câmara no ano que vem, quando Lira forçosamente deixará o terceiro posto mais importante da República. O problema é que a barriga do Planalto não está suficientemente sarada para empurrar o Presidente da Câmara e o Centrão até 2025. Maior prova disso foi o que ocorreu nesta última semana.

    Como o Planalto não fizesse nada para restaurar o mínimo de moralidade na distribuição das emendas, coube ao Supremo Tribunal Federal tentar colocar alguma ordem nessa zona. Com o voto condutor do Ministro Flávio Dino, o Supremo determinou que, doravante, os recursos para emendas somente poderiam ser liberados caso fosse apresentado um plano de trabalho previamente aprovado pelo ministério responsável pela obra. Mais: toda e qualquer emenda deveria indicar precisamente o parlamentar responsável por sua indicação. Para além disso, o STF ainda determinou que o valor total das emendas não poderia crescer além dos limites estabelecidos pelo arcabouço fiscal. Foi o que bastou para detonar uma revolta congressual.

    Acreditando que a decisão do Supremo fora combinada com o Planalto, os parlamentares interditaram a agenda legislativa, a ameaçar deixar de votar um pacote de corte de gastos enviado pelo Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para fazer frente à descrença com o compromisso fiscal do Governo. Emparedado pelo Congresso, Lula da Silva chamou ao Planalto os presidentes da Câmara e do Senado, que de lá saíram com a promessa de que, independentemente do que decidira o STF, a verba das emendas será liberada.

    Ainda que o dinheiro venha a ser liberado, o refrigério obtido pelo vendaval de emendas será apenas temporário. Mais hora, menos hora, Lula vai ter que encampar a discussão sobre a função e os limites das emendas parlamentares. A melhor forma de fazer isso é abrir o jogo e trazer a luz do Sol para dentro dessa contenda. Um debate honesto, a mostrar para onde está sendo direcionada a verba das emendas e o que se está a deixar de fazer para manter esse mimo do Parlamento, certamente faria acordar o “monstro da opinião pública”. Sem ter como defender o indefensável, nem Arthur Lira teria forças para barrar a pressão que viria de fora pra dentro do Congresso.

    Se até o momento não se fez a luz sobre essa discussão, parte disso deriva do facto de que Lula não quer confrontar o Congresso (e, dentro dele, o PT) com seus próprios demónios. É um erro, porém, apostar na inércia, acreditando que é melhor deixar tudo como está, para ver como é que fica. Em 2014, Dilma Rousseff foi avisada de que havia algo de errado na Petrobras. A “gerentona”, contudo, achava que Paulo Roberto Costa era apenas mais um diretor da estatal e que Sérgio Moro era apenas um juiz de Curitiba.

    Deu no que deu.

    Arthur Maximus é advogado no Brasil e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


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  • O ‘Muskito’ na sopa dos jornalistas ‘mainstream’

    O ‘Muskito’ na sopa dos jornalistas ‘mainstream’


    Alterações Mediáticas, podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como Jornalismo. No 14º episódio, analisa-se o fenómeno bizarro que levou os media a politizar o trágico e mortífero ataque num mercado de Natal na Alemanha. Também se analisa a mais recente propaganda do DN sobre Gouveia e Melo e a participação de duas jornalistas e uma ex-jornalista num processo de perseguição judicial ao director do PÁGINA UM por ter denunciado promiscuidade entre médicos e farmacêuticas. Por fim, em análise, mais um caso que leva a imprensa a repetir o mantra ‘Elon Musk bad’.

    Acesso: LIVRE, mas subscreva o P1 PODCAST com um donativo mensal de 2,99 euros. Ajude o PÁGINA UM a amplificar o seu trabalho.

  • Gouveia e Melo: como um acórdão e um comunicado mostram um homem sem qualidades

    Gouveia e Melo: como um acórdão e um comunicado mostram um homem sem qualidades


    Esta semana, Gouveia e Melo – que em três anos de liderança como Chefe do Estado-Maior da Armada nada fez do que se pavonear, aproveitando um passado de seis meses como mestre de logística em 2021 – anunciou a passagem à reserva porque, palavras suas, “não faz sentido, depois de sair da Marinha, continuar como uma sombra relativamente à Marinha”.

    Pessoalmente, nunca tendo eu sequer passado pela ‘tropa’ por razões oculares, entra-me pelos olhos uma evidência: Gouveia e Melo nunca será uma sombra para a Marinha; será sim uma lamentável e indelével nódoa.

    Mesmo não comungando do militarismo, considero inegável o papel fundamental dos militares, tanto em tempos de paz como de guerra. Na verdade, é em paz que os militares exercem melhor o seu múnus, porque são eles que melhor percebem os horrores da guerra, assim melhor intercedem para um equilíbrio dos humores dos políticos. E é nessa linha que se espera dos militares, sobretudo daqueles que assumem especiais responsabilidades de topo, um código de honra e de compromisso com a instituição que servem, colocando o dever acima de vaidades ou ambições pessoais. Esse código de honra deveria traduzir-se em liderança pelo exemplo, em discrição e em resultados concretos, e não em protagonismos oportunistas que, longe de fortalecerem a instituição, a desgastam e a fragilizam. Gouveia e Melo personifica a falta de honra e a abundância de oportunismo.

    O mais recente caso da anulação dos castigos a militares do NRP Mondego, decretado por um acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul (TCAS), é porventura o melhor exemplo para caracterizar um homem sem qualidades que chegou a um lugar que jamais deveria ter ocupado, mas que, hélas, o Princípio de Peter o estimula a seguir em frente, agora para Belém.

    E a cereja no cimo deste nauseante ‘bolo’ é um comunicado de ontem à noite do gabinete de comunicação da Marinha, que foi, certamente, obrigada a emitir. E que deve ser confrontado com outro comunicado de Maio passado – citado pela imprensa, embora sem estar agora no seu site – de que fora “afastada, pelos tribunais administrativos, a suspeição sobre imparcialidade levantada pelos militares relativamente ao comandante da Zona Marítima da Madeira, na qualidade de oficial instrutor do processo, e ao comandante naval, na qualidade de entidade com competência disciplinar”.

    Diz o seguinte este lamentável comunicado ao melhor estilo do ‘sacode a chuva do capote’:

    Relativamente à notícia divulgada esta noite sobre o anulamento de castigos pelo Tribunal no âmbito do processo relacionado com o Navio Mondego, importa esclarecer que o processo em questão diz respeito ao castigo aplicado pelo Comandante Naval, e não pelo Chefe do Estado-Maior da Armada, como está a ser referido.

    Há neste comunicado, desde logo, uma postura inqualificável. Gouveia e Melo, desde o início deste incidente em Março do ano passado – quando 13 militares recusaram cumprir uma missão de acompanhamento de um navio russo ao largo da Madeira por falta de condições de navegabilidade do navio de patrulha –, quis aplicar logo castigos públicos, escondendo fragilidades e assim aumentar a sua aura de homem providencial – o homem providencial e populista que, ainda há pouco tempo, no passado mês de Maio, garantia que se “a NATO nos exigir, vamos morrer onde tivermos de morrer para a defender”. Deve ter falado por todos, menos por ele.

    Recordemos que Gouveia e Melo, violando a decência e estuprando a honra militar, foi célere a ir à Madeira dar uma reprimenda aos militares do NRP Mondego em praça pública, em púlpito virado para as câmaras de televisão, logo no dia seguinte. Não foi só humilhante; foi um claro sinal de justiceirismo. Gouveia e Melo empenhou os meios da Marinha para aplacar a sua fúria sobre os militares que mostraram a vergonhosa situação de um país com uma quase inigualável História Naval, em vez de assumir falhas estruturais. Depois daquela aparição, e de notícias nunca desmentidas de que penas dos sargentos seriam agravadas para “sublinhar o grau de responsabilidade“, só se poderia esperar um julgamento militar justo sob uma condição: sem Gouveia e Melo como Chefe do Estado-Maior da Armada.

    NRP Mondego

    Por esse motivo, quando o comunicado de ontem da Marinha – que, obviamente, ainda tem o dedo de Gouveia e Melo, pois somente deixará as suas funções no próximo dia 27 – diz que o acórdão do TCAS, iniciado com uma feliz formulação (“Em Nome do Povo”), se refere ao “castigo aplicado pelo Comandante Naval, e não pelo Chefe do Estado-Maior da Armada, como está a ser referido”, não entramos somente num jogo de semântica e de manipulação. Estamos perante uma descarada tentativa de desresponsabilização e de falsificação moral da realidade. Não é um mero jogo de palavras; é uma demonstração inequívoca de subversão dos factos para proteger a vaidade e o ego de quem prefere escapar ileso ao peso das suas acções. Isto não é liderança; é um exercício de mesquinhez que deixa, não uma sombra, mas uma nódoa de oportunismo e ausência de carácter.

    Senão vejamos, e até ‘descontando’ o manifesto interesse de Gouveia e Melo, logo em Março do ano passado, de castigar os alegados insubordinados, descartando responsabilidades atribuídas a si, como líder da Marinha.

    Com efeito, o acto considerado nulo pela TCAS não é um processo que “diz respeito ao castigo aplicado pelo Comandante Naval”. Aquilo que foi considerado nulo foi, objectiva e juridicamente, o acto de 1 de Julho de 2024. citado logo na primeira página do acórdão, “proferido pelo CHEFE DO ESTADO MAIOR DA ARMADA – CEMA, que indeferiu o recurso hierárquico interposto” pelos militares. Ou seja, o acto de Gouveia e Melo.

    E esse acto de Gouveia e Melo não é um acto de somenos importância, uma assinatura de cruz, a concordar com os castigos aplicados pelo Comandante Naval; é sim um longo despacho que o acórdão do TCAS transcreve ao longo de 13 páginas. Repito: 13 páginas, o que significa que houve uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze páginas, onde Gouveia e Melo – mesmo não as tendo escrito – concordou com todos os procedimentos seguidos pelos subordinados (e controlados) que conduziram o processo disciplinar aos militares que ele queria ver castigados.

    Jamais pode Gouveia e Melo, com um pingo de decência, tentar passar pelos pingos da chuva e achar que nos consegue convencer que não foi conivente com a nomeação como instrutor de um oficial que foi envolvido nos factos que resultaram em responsabilidade disciplinar, que houve limitações na defesa dos militares e alegados atropelos na produção de prova e à pronúncia sobre a prova carreada para os autos.

    Início do acórdão do TCAS, “em nome do Povo”, que identifica o acto que foi sujeito à providência cautelar.

    Aliás, basta verificar a forma como o despacho – considerado cheio de nulidades pelo acórdão do TCAS – expressa a opinião de Gouveia e Melo face aos argumentos da defesa dos militares.

    Vejamos no caso de ter sido nomeado um instrutor que esteve directamente envolvido nos acontecimentos – uma falha grave detectada pelo TCAS –, Gouveia e Melo escreve no despacho:

    Como tal, no meu despacho de 10.07.2023, para o qual remeto no aplicável, indefiro o incidente de suspeição do VALM CN [Vice-Almirante Comandante Naval], por não resultar dos autos qualquer evidência de um eventual preconceito ou interesse pessoal deste contra os Recorrentes, que possam indiciar, com o mínimo de objetividade, uma violação dos princípios de isenção e de imparcialidade, ao ponto de comprimir ou sonegar as suas garantias de defesa. Do supra exposto, resulta, então, inequivocamente, que o oficial instrutor e o VALM CN se encontravam plenamente legitimados para intervir no processo disciplinar, improcedendo, sem mais considerações, o que foi propugnado pelos Recorrentes sobre a falta de imparcialidade ou de isenção destes.

    Ou seja, Gouveia e Melo tinha obrigação de saber que havia uma ilegalidade, e fazer justiça – recusou e foi, assim, o responsável máximo pela concretização dos castigos, que se consumam apenas depois do recurso hierárquico.

    Sobre a situação de não terem sido concedidos os direitos aos militares durante o processo disciplinar – outra grave falha detectada pelo TCAS –, Gouveia e Melo escreve no seu despacho:

    Acresce também referir que, no âmbito do seu processo formativo, os militares são elucidados sobre os diplomas regulamentares fundamentais da Marinha, entre eles, o RDM [Regulamento de Disciplina Militar], pelo que não colhe invocar a ignorância sobre os conceitos legais aí prescritos, nomeadamente do direito ao silêncio e da constituição de defensor, para o efeito previstos no artigo 77.º e no n.º 3 do artigo 94.º, para arguirem, sem mais, a nulidade da prova produzida.

    Sobre o direito de os militares poderem requerer diligências, até para se provar que o NRP Mondego não reunia mesmo as condições de navegabilidade em 11 de Março – tanto mais que foram levantadas suspeitas de eliminação de provas sobre o estado do navio –, Gouveia e Melo mostrou-se extremamente claro em concordar com o instrutor. Vale a pena citar esta parte do seu despacho:

    Idêntico raciocínio e linha orientadora se aplica, aliás, à restante prova requerida, como o pedido de reconstituição dos factos ocorridos no dia 11.03.2023 no NRP Mondego com a presença de toda a guarnição, incluindo os arguidos, e submetidos às condições meteorológicas existentes à data. É que tal reconstituição, além de impertinente e dilatória, afigurava-se objetivamente inexequível, não só pela impossibilidade de se garantir o exato estado operacional do navio à data dos factos, como a questão das condições meteorológicas e da missão que lhe fora atribuída, neste caso, por ser impossível posicionar o navio russo no local e nas coordenadas em que se encontrava.

    Concomitantemente, não se podia também deixar de atender aos elevados encargos financeiros que uma operação com essa envergadura acarretaria, para não mencionar os prejuízos para a atividade operacional e, por conseguinte, para o interesse público prosseguido pela Marinha.

    Quanto à recusa do pedido de prova pericial, concretizado pela inclusão de um perito designado pela defesa para inspecionar o navio, deveu-se, essencialmente, ao facto de já ter sido efetuada uma inspeção técnica ordenada pela Superintendência do Material, do qual emergiu o devido relatório, traduzindo-se numa produção antecipada de prova, cf. artigo 419.º do CPP, subsidiariamente aplicável, justificada com o receio de vir a tornar-se difícil, senão impossível, a sua realização a posteriori e nas mesmas condições. E acresce que, ao contrário do pretendido pelos Recorrentes, sempre seria inadmissível a inclusão de peritos externos à Marinha, pois, tratando-se de um ramo das Forças Armadas, e ante as missões que lhes são cometidas, acarretaria riscos para a segurança nacional, que sempre se impõem salvaguardar.

    Também não se mostra atendível o facto de terem suscitado a falta de imparcialidade do relatório junto do processo de inquérito que corre termos no DIAP de Lisboa sob o Proc. n.º 43/23.6NJLSB, pois, além da jurisdição disciplinar se distinguir da jurisdição penal, enquanto decorrência do princípio da independência previsto no n.º 1 do artigo 9.º do RDM, facilmente se infere que o simples facto de terem peticionado uma nova peritagem na instância criminal, não afasta nem sonega a prova pericial que foi admitida no processo disciplinar.

    Este tipo de argumento é extraordinário. Como pode o líder da Armada – com sonhos de ser um Presidente da República – blindar decisões questionáveis sob o manto da autoridade e do interesse público, sacrificando a justiça e os direitos dos seus militares? Argumentar que uma reconstituição dos factos seria “impertinente e dilatória” porque não se poderia recriar o “exato estado operacional do navio” ou as “condições meteorológicas” é desviar o foco do essencial: a busca pela verdade.

    Em 16 de Março, poucos dias depois do incidente, Gouveia e Melo foi pessoalmente dar uma repreensão, em palanque…

    Como Presidente da República, irá também relativizar ou ignorar a lei sempre que considerar que o seu conceito de ‘interesse público’ é mais relevante? Esse padrão de comportamento não é apenas perigoso, mas profundamente incompatível com a dignidade do cargo que aspira ocupar.

    Mais extraordinário ainda é Gouveia e Melo considerar inadmissível a inclusão de peritos externos à Marinha, sob o pretexto de riscos para a Segurança Nacional. Esta linha de raciocínio revela uma recusa em aceitar escrutínio independente, essencial para garantir a transparência e a credibilidade de qualquer investigação. A Segurança Nacional é uma preocupação legítima, mas invocá-la como obstáculo absoluto apenas levanta mais dúvidas sobre a lisura do processo.

    Por fim, a rejeição da imparcialidade do relatório técnico, escudando-se numa suposta independência entre jurisdição disciplinar e penal, é um malabarismo argumentativo. É como se a existência de uma verdade objectiva fosse irrelevante, desde que os processos internos possam ser conduzidos sem questionamentos externos.

    Por tudo isto, o comunicado da Marinha não faz mais do que reforçar a impressão de que há algo a esconder. Quando a lógica se torna um exercício de obstrução, em vez de um caminho para esclarecer os factos, o verdadeiro interesse público é o primeiro a ser traído.

    … e na presença da comunicação social.

    Pessoalmente, até aceito que um cidadão queira salvar o coiro quando é apanhado com as calças na mão depois de uma patifaria. Mas, caramba, Gouveia e Melo é ainda um militar, líder da Armada e putativo candidato a Presidente da República, levado aos ombros por certa imprensa. Deveria, pelo menos, comportar-se como um adulto mediano, e assumir as suas responsabilidades no decurso de um processo disciplinar iníquo.

    Quando um líder da Armada, com ambições presidenciais, opta por usar o peso da sua posição para esconder fragilidades e desviar responsabilidades, e ainda usa os recursos de comunicação para manipular a realidade, a mensagem que transmite não é apenas de fraqueza, mas de indignidade. Por isso, Gouveia e Melo mostra ser um homem sem qualidade – ou, pelo menos, um homem com uma única má qualidade: a mesquinhez.


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  • Governo Montenegro: o carrasco do planeamento, o vendilhão da especulação

    Governo Montenegro: o carrasco do planeamento, o vendilhão da especulação


    Como se pode constar numa das notícias da edição desta semana do PÁGINA UM, portugal parece viver, com trágica naturalidade, imbuído num estranho torpor, uma espiral de decisões políticas que corroem décadas de princípios de ordenamento do território, num processo que não só despreza os fundamentos ambientais como abre portas a um verdadeiro carnaval de especulação e corrupção. A recente flexibilização da lei dos solos, que permite urbanizar terrenos rústicos para habitação “acessível”, é um dos mais perigosos capítulos desta história. Onde está a esquerda que apregoa a sustentabilidade? E onde está a imprensa para denunciar este atentado ao planeamento?

    A medida, apresentada como resposta à crise habitacional, é na verdade uma machadada sem precedentes na coerência do ordenamento do território. Em vez de resolver problemas estruturais de habitação, lança uma rede de oportunidades para negociatas municipais, especulação de terrenos e cedências à ganância imobiliária. Quem quiser agora urbanizar, não vai aceder sequer a terrenos urbanizáveis; procura comprar terrenos rústicos, mais baratos, e depois tentará obter autorizações camarárias. Aquilo que antes eram negociatas criminosas antes das aprovações dos planos directores municipais (PDM) será agora ‘legalizado’ em três tempos.

    Mais grave, tudo isto sob o beneplácito de partidos políticos que, com a mão no ‘coração ambiental’, têm apregoado uma fé tardia sobre os perigos das alterações climáticas, mas calam perante questões essenciais, passivamente assistindo à destruição dos pilares do planeamento sustentável.

    A urbanização de terrenos rústicos não é apenas uma ameaça à biodiversidade ou à proteção de solos agrícolas e florestais – que já são recursos escassos e essenciais num país vulnerável à desertificação. É um ataque frontal à lógica do planeamento urbano. Sem critérios claros, esta medida abre espaço para uma expansão urbana descontrolada, criando periferias desordenadas, dependentes de transporte automóvel, com infraestruturas precárias e uma qualidade de vida degradada.

    Além disso, como serão definidos os terrenos rústicos a urbanizar? Que garantias existem de que as áreas críticas para agricultura ou ecossistemas valiosos serão preservados? A resposta parece óbvia: nenhuma. Este diploma cria uma abertura tão ampla que entrega aos autarcas – frequentemente permeáveis à pressão económica e política – o poder de decidir o destino de terrenos cujo valor pode disparar com uma simples canetada.

    Os partidos que se dizem preocupados com o ambiente – especialmente os da dita esquerda – deveriam estar na linha da frente a criticar esta medida. Mas não. Permanecem num silêncio cúmplice, reféns de narrativas fáceis que confundem flexibilização com progresso. Mostra-se mais conveniente alinhar com soluções populistas que prometem resolver a crise habitacional do que enfrentar a complexidade do problema e sugerir alternativas sustentáveis.

    A imprensa mainstream, por sua vez, mostra uma passividade desoladora. Aliás, onde estão as notícias ou opiniões sobre os riscos de corrupção e especulação associados a esta medida? Onde estão os alertas para os impactes ambientais e sociais de urbanizar à pressa zonas não infra-estruturadas e protegidas da ânsia do betão fácil? A narrativa dominante centra-se na “necessidade de habitação”, sem escrutinar os efeitos desastrosos que esta decisão pode ter no longo prazo.

    Há formas eficazes e sustentáveis de responder à crise habitacional sem abrir mão de terrenos rústicos e sem comprometer décadas de planeamento. Algumas das alternativas são óbvias, mas ignoradas em nome de soluções fáceis. Vejamos, rapidamente, algumas, que estão nos compêndios:

        1.    Requalificação urbana: Portugal está repleto de edifícios abandonados ou subaproveitados em áreas urbanas. Por que não canalizar esforços para a sua recuperação e adaptação para habitação acessível?

        2.    Revitalização de zonas urbanas degradadas: Melhorar a qualidade de vida em áreas urbanas subaproveitadas poderia evitar a pressão para expandir para terrenos rurais.

      3.    Densificação inteligente: Embora esta solução tenha de avançar com uma política de mobilidade forte e coerente em zonas urbanas, a construção em altura pode ser uma solução interessante em zonas de urbanização mais recentes. Cidades como Amsterdão ou Copenhaga são exemplos de como a densificação, acompanhada de espaços verdes e uma boa e funcional rede de transportes públicos, pode oferecer soluções habitacionais sem sacrificar terrenos agrícolas ou florestais.

        4.    Mapas de aptidão do solo: É urgente identificar e proteger áreas críticas para conservação, agricultura e biodiversidade, evitando que a “flexibilização” se transforme numa licença para destruir. A Reserva Ecológica Nacional e a Reserva Agrícola Nacional (que está anacrónica por se basear sobretudo na aptidão para cereais) são instrumentos jurídicos que não podem estar sempre a ser sacrificados por simples despacho ministerial ao sabor das conveniências.

    Por tudo isto, a flexibilização da Lei dos Solos é, na verdade, um presente envenenado de efeitos futuris inqualificáveis, que somente poderia sair da cabeça de um primeiro-ministro que também ‘flexibilizou’ em seu benefício uma construção nova ‘travestida’ de reabilitação para poupar 100 mil euros. Em vez de resolver a crise habitacional, esta medida do Governo Montenegro, a avançar, exacerba a especulação imobiliária, aumenta a corrupção e compromete recursos fundamentais para as gerações futuras. O silêncio da esquerda ambientalista e a passividade da imprensa, a mante-se, serão cúmplices neste desastre anunciado.

    Se queremos verdadeiramente um país sustentável e justo, não podemos permitir que decisões tão graves passem sem escrutínio. Este diploma não é progresso. É um convite à destruição.


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  • AMI, 40 anos: da Utopia à Distopia

    AMI, 40 anos: da Utopia à Distopia

    É-me de todo impossível falar da AMI – Assistência Médica Internacional sem pensar no sonho/utopia (“Deus quer, o homem sonha e a obra nasce!”) que eu me lembro de ter tido desde a minha tenra meninice por terras de África (nasci em Angola/Luanda, há 73 anos ainda então província ultramarina portuguesa): um dia ser médico, o primeiro da minha família, e ter um hospital no mato para tratar das pessoas mais desvalidas, isoladas e esquecidas.

    Filho de miscigenações e multiculturalismos muito alargados, como genuíno português que sou, sempre olhei para o nosso Planeta como sendo uno e, já na adolescência, no Congo ex-Belga, ansiava por um mundo sem fronteiras e governado por um conjunto de sábios, éticos, altruístas e com vastíssima cultura humanista e espiritual e simultaneamente com uma enorme mundividência e multividência.

    Sim, sonhava com o surgimento de um Mundo ““Justo” e “Bom” onde todos colaborassem, cada um pondo à disposição dos outros, gratuitamente, os seus conhecimentos e saberes…

    Foto: PÁGINA UM

    De Luanda, aos 12 anos, findo o 2º ano no Liceu Salvador Correia de Sá e Benevides, fui com os meus pais para Leopoldville, República Democrática do Congo, e aos 15 anos fui enviado pelos meus pais para Bruxelas para continuar os meus estudos liceais já que o Ateneu Belga que frequentava tinha fechado, devido a uma guerra fratricida com mercenários à mistura no Verão de 1967.

    Foi o segundo choque violento na minha curta vida, já que no período da Páscoa de 1961 tinha sofrido a perda do meu melhor amigo e condiscípulo da 4ª classe em Luanda, filho único, o Janeiro; tinha sido morto à catanada numa fazenda de uns tios no norte de Angola… Com 15 anos percebi que o meu sonho/utopia de um Mundo de fraternidade e ético não iria ser fácil de concretizar. Não sabia é que o pior, o muitíssimo pior, estaria para vir e que eu estaria nas primeiras filas para assistir ao impensável!

    Dos 15 aos 34 anos (final de 1985) vivi em Bruxelas.

    Fernando Nobre, presidente e fundador da Fundação AMI, na sede da instituição, em Lisboa. (2024) / Foto: PÁGINA UM

    Aí acabei o liceu, fiz o curso de Medicina na Universidade Livre de Bruxelas, com professores de excelência, assistindo a aulas de Ilya Prigogine, Prémio Nobel da Física, Albert Claude, Prémio Nobel da Medicina. Especializei-me depois em Cirurgia Geral e em Urologia, esta última com o melhor mestre europeu, e um dos melhores do mundo, Willy Gregoir, que dá o nome ao maior prémio, a medalha com o seu nome, da Associação Europeia de Urologia. (Tinha aliás pensado antes em Cirurgia Cardíaca, mas nessa altura seria impossível exercer no mato…)

    Em 1984 com o Dr. Frank Collier, também do serviço do Prof. W. Gregoir, ganhei o melhor prémio no Congresso Europeu de Urologia em Copenhaga.

    Durante esse longo período em Bruxelas, nunca abandonei o meu sonho primeiro: fazer como o meu herói e colega, Albert Schweitzer, que morreu quando eu tinha 15 /16 anos, e que desenvolveu uma obra notável, que conheci, no atual Gabão em Lambarené e que lhe valeu, e muito bem, o Prémio Nobel da Paz.

    Foto: D.R.

    Com um fortíssimo sentido de humanismo e de solidariedade, empenho-me desde há 50 anos na cidadania ativa.

    Comecei, ainda jovem estudante de medicina, como voluntário numa associação de apoio a crianças autistas (hoje sabe-se que a multiplicidade de vacinas, com excipiente de alumínio, dadas na infância estão na origem do crescimento exponencial do autismo, e não só, como clama Robert Kennedy Jr., futuro Ministro da Saúde do recém eleito Presidente dos EUA!

    Depois, já jovem médico, com a Amnesty Internacional na Bélgica, enviei múltiplas cartas de apoio a colegas presos em hospitais/prisões psiquiátricas na então URSS.

    De seguida participei em missões de emergência cirúrgicas (guerras) com os MSF França e depois MSF Bélgica de que fui Administrador! Estive nas guerras Irão/Iraque, Chade/Líbia duas vezes, Beirute…

    Foto: D.R.

    No final dessa fase da minha vida, já casado e com dois filhos nascidos em Bruxelas, percebi que o meu sonho de ter o meu hospital no mato em África era de todo impossível.

    E foi então em 1983 que uma grande reportagem no Chade com o meu, desde então, querido amigo José Manuel Barata Feyo, o destino me desviou para Portugal quando andava a pensar instalar-me na Costa do Marfim.

    Fundei a AMI com 32 anos, a residir ainda em Bruxelas, e decidi mudar-me para Portugal continental, onde nunca tinha vivido, e recomeçar uma nova vida…

    Há 40 anos, quando embarquei nesta Missão, não sabia quanto tempo duraria a viagem, mas o propósito era muito claro: lutar contra a intolerância e a indiferença e contribuir para um mundo mais justo.

    Foto: D.R.

    Parecia-me inconcebível ficar impávido e sereno perante tanta desumanidade que grassa no Mundo e tinha a certeza que era possível tentar construir um futuro melhor, alicerçado em bondade, equidade e respeito pelos Direitos Humanos. Não era simples, mas também não era impossível.

    Arrisquei, dei um salto de fé, sonhei e acreditei. Era jovem, com muito ainda para aprender, e acabava de aterrar num país desconhecido quando decidi regressar de Bruxelas, onde vivia há 20 anos, e criar a AMI em Portugal. Mas o risco faz parte de todos os sonhos e a AMI, que soube sempre reinventar-se, também arriscou quando alargou a sua atuação de África para outros continentes, quando começou a intervir socialmente em Portugal, ou a desenvolver projetos na área do Ambiente.

    Costumo dizer que “não há montanha inacessível, não há obstáculo inultrapassável nem fortaleza inexpugnável …” E com base neste lema, a AMI, uma instituição que se quer de ação e de reflexão, antecipou-se sempre às dificuldades e inovou nas respostas para que a Missão pudesse continuar.

    Foto: D.R.

    Em 40 anos, a AMI desenvolveu a sua intervenção nas áreas da Ação Humanitária e Cooperação para o Desenvolvimento, Ação Social, Ambiente e Alertar Consciências, em 82 países do Mundo (incluindo Portugal), mais precisamente 31 missões em África, 16 na América, 15 na Ásia e Oceania, 10 na Europa e 10 no Médio Oriente, num total de mais de 460 projetos e mais de 780 expatriados enviados para o terreno, tendo sido apoiados mais de 7 milhões de pessoas. A primeira missão arrancou em 1987 na Guiné-Bissau.

    Em Portugal, a AMI começou a atuar em 1994, ano em que abriu o primeiro Centro Porta Amiga localizado nas Olaias, em Lisboa. Desde então, e face às necessidades existentes no país, a AMI abriu vários equipamentos sociais e desenvolveu várias respostas em todo o país, nomeadamente 9 Centros Porta Amiga (Lisboa (2), Porto, Coimbra, Almada, Cascais, Funchal, Vila Nova de Gaia, Angra do Heroísmo), 2 Abrigos Noturnos (Lisboa e Porto), 2 Equipas de Rua (Lisboa e Vila Nova de Gaia/Porto), 1 Equipa de Apoio Domiciliário (Lisboa), e 1 polo de distribuição alimentar (Porto). Desde 1994, já foram apoiadas mais de 80.000 pessoas pela AMI em Portugal, das quais 14.229 em situação de sem-abrigo. E desde 2015, já foram entregues bolsas de estudo a cerca de 500 estudantes universitários.

    E porque a AMI acredita que um futuro mais justo e digno para todos é indissociável de um planeta mais sustentável, desenvolve também vários projetos na área ambiental, designadamente na área da recolha de resíduos para reciclagem e reutilização, reflorestação e energias renováveis. Foram já recolhidas 1.700 toneladas de radiografias, quase 2.000 toneladas de óleo alimentar usado, mais de 400 mil quilos de papel e cartão e mais de 16 mil quilos de resíduos elétricos e eletrónicos; e reflorestados mais de 410 mil metros quadrados) de terreno em Portugal.

    Foto: D.R.

    Falar da AMI é, sem descurar o nosso passado, sobretudo olhar para os desafios (pobreza/exclusão, equilíbrio ambiental, migrações, guerras) que se vislumbram, e para as esperanças (sociedade civil, cidadania) que nos incentivam a continuar. E a verdade é que estes 40 anos não estariam agora a ser celebrados se não tivéssemos podido contar com uma sociedade civil participativa, interessada, empenhada, altruísta e solidária. Por isso, obrigado a cada um de vós, que acompanham e acreditam na Missão da AMI. Estou imensamente grato pelo vosso apoio, carinho e ativismo. Agora mais do que nunca em tempos de Distopia trágica.

    Tenho imenso orgulho na obra da AMI, embora tenha perfeita consciência que mercê de algumas opções que tomei em 2011 (politica) e 2020 (médicas, éticas e de consciência) compliquei a sua missão! Arrependido? Não! Voltaria a fazê-lo para não perder o respeito pelo Ser Humano que sempre procurei ser e o médico que sempre fui! Por isso fui “cancelado”. O futuro julgará!

    Foto: D.R.

    A AMI está preparada para os próximos 40 anos e espero que um dia possamos celebrar o facto da AMI já não ser necessária, porque significará que conseguimos alcançar um mundo justo, empático, digno e feliz para todos. Até lá, continuemos a trabalhar e a sonhar juntos.

    Há 40 anos que fazemos AMIgos junto das pessoas cujas vidas conseguimos transformar, das pessoas que contribuem para esta Missão, sejam colaboradores ou voluntários, das pessoas que ajudam a concretizar esta Missão através de donativos e parcerias, sejam doadores coletivos ou individuais, de todos os que nos acompanham e multiplicam o alcance da nossa mensagem.

    A missão da AMI vai continuar, sim. Contra a Intolerância. Contra a Indiferença. São estas as duas piores
    doenças da humanidade.

    Fernando de La Vieter Nobre é Fundador e Presidente da Fundação AMI


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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