Categoria: Opinião

  • Santa Maria, a minha (e a vossa) ilha desconhecida

    Santa Maria, a minha (e a vossa) ilha desconhecida


    Olho todos os dias para estas paisagens e penso na sorte que tive. Não nasci aqui, não tinha familiares por perto e vim cá parar nas asas do destino, quando o meu pai aceitou uma vaga de trabalho no aeroporto local, ali a meio da década de 80.

    Falo de Santa Maria, uma das mais pequenas e desconhecidas ilhas dos Açores.

    Bem sei que a vida é uma estrada que se vai definindo a cada nova bifurcação (embrulha Gustavo Santos), mas há claramente escolhas mais felizes do que outras.

    Ter vindo aqui parar, ainda por cima por decisão alheia, foi uma daquelas coincidências do destino que acabou por marcar a minha vida até aos dias de hoje.

    Tornou-se viral um vídeo de um casal na Bolsa de Turismo de Lisboa (BTL) deste ano a dizer que dos Açores só conheciam as vacas. Não sabiam quantas ilhas formavam o arquipélago e até o Funchal incluíram na deprimente descrição de localidades a não perder.

    Saltando, por agora, um conceito que o meu avô paterno usava muito quando eu não sabia fazer qualquer coisa numa obra conjunta – “afinal o que foste fazer para a escola?” –, este desconhecimento das ilhas açorianas sempre foi para mim um mistério.

    Portugal tem um dos destinos de Natureza mais bonitos e imaculados do Mundo. Para muitos de nós, os Açores são uma espécie de Triângulo das Bermudas. Passamos lá por cima a caminho da República Dominicana, e das suas águas temperadas, onde nos espera uma semana trancados em resorts, sem saber que ali, em território português e graças ao microclima, temos águas mornas, Verões pouco agressivos e Invernos que não aleijam.

    Quem por norma sabe qualquer coisa do arquipélago fala dos Açores referindo-se à sua maior ilha, São Miguel. Já não é mau.

    A série Rabo de Peixe, transmitida pela Netflix, veio, espero eu, despertar alguma curiosidade pela região. Nunca percebi como é que o turismo por estas paragens se manteve tão modesto ao longo das décadas. Não sei se é a falta de promoção, desconhecimento da população ou simples desinteresse, mas é um mistério, para mim, a razão de tanta beleza natural receber tão pouca atenção.

    Não é que turismo de massas interesse a alguém, mas sempre pensei que se estas ilhas fossem espanholas, italianas ou francesas estariam em todos os roteiros do Planeta. 

    Perdi a conta ao número de vezes que expliquei a portugueses e estrangeiros onde fica Santa Maria. Uma das mais pequenas e, ainda assim, mais completa ilha dos Açores.

    O sítio onde a qualidade de vida é garantida para médicos e engenheiros, padeiros e mecânicos, professores e lavradores. Não é que os salários sejam diferentes do resto do país, entenda-se.

    A vida é que é mais barata. Não há portagens, EMEL ou filas para a ponte. O combustível é mais barato e rende mais quando a maior estrada tem apenas 20 quilómetros.

    Os impostos são mais baixos para compensar a insularidade. A habitação, em muitos casos, passa de geração em geração. Há emprego que chega a quase todos. Leva-se a vida com tranquilidade, vendo uma cara conhecida a cada dois passos.

    Curiosamente, andando por estas estradas nos meses de Verão, identifico mais estrangeiros, daqueles com botas e mochilas, do que propriamente portugueses. Mais depressa um reformado de uma aldeia alemã descobre Santa Maria do que um habitante de Amarante.

    A apenas duas horas de Lisboa está um paraíso onde, no mesmo dia, se pode fazer um trilho pedestre na montanha, tomar banho numa praia deserta, ver jamantas no seu habitat natural e beber uma cerveja de fabrico artesanal local. Nunca percebi, que me perdoem os adeptos do Algarve, como é que passam uma vida a ir para Albufeira sem tentarem, com bilhetes de avião ao preço das portagens, descobrirem o que este arquipélago tem para oferecer.

    A parte que me fascina mesmo em Santa Maria é a excelência das baías. Falamos de uma ilha muito pequena que terá, provavelmente, algumas das melhores praias do país. Em quase toda a parte se avista o mar. Esse luxo, pelo qual lutamos em outras partes do território, aqui é apenas um dado adquirido.

    Até nessa parte dos acasos da vida, acho que tive sorte. Das nove ilhas ter-me calhado na rifa a pequena e peculiar Santa Maria, foi bom. Tudo o que aqui acontece é exactamente o oposto da minha jornada enquanto emigrante e, também por isso, o equilíbrio se tornou perfeito. Há calma, companheirismo, tempo para tudo, braços amigos, gente que faz adeus do outro lado do passeio. 

    Da janela vê-se a montanha e o mar. Em 20 minutos chegamos a quase todo o lado. Come-se bem e barato. O mar e a terra dão quase tudo. As caras com quem corremos no jardim da escola são as mesmas que sorriem, hoje, quando passamos por elas.

    Depois de 17 anos a ver olhos nórdicos que apontavam ao chão, estar em Santa Maria, na pequena e familiar Santa Maria, é um bálsamo para a alma.

    Voos diários ligam o continente português ao arquipélago dos Açores, com encaminhamentos grátis para todas as ilhas. Grátis, meus amigos. Grátis.

    Este Arquipélago e esta ilha, se me é permitido puxar um pouco a brasa, oferecem paisagens e experiências que normalmente só vemos nos documentários da BBC. A minha vida mudou há 39 anos quando aqui pisei pela primeira vez num Verão de boas memórias, a tempo de ver o Carlos Lopes vencer aquela medalha de ouro em Los Angeles. Nem sempre fiquei por cá, é verdade, mas nunca deixei de voltar e de ir, aos poucos, ligando o meu percurso de vida a esta pequena ilha.

    Experimentem. Em princípio vão gostar. E voltar.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Onde está a Oposição no ataque aos jovens e às famílias?

    Onde está a Oposição no ataque aos jovens e às famílias?


    A subida da Euribor é um ataque às famílias e sobretudo ao crédito jovem. A Euribor provocou um cataclismo nas finanças familiares. Os empréstimos tinham uma taxa de esforço bem estudada e equilibrada que agora rompe com um acréscimo de 100%. Onde se pagava 600 euros cabem agora valores de 1150.

    Jovens trabalhadores que decidiram comprar casa, receberam em Abril e Maio a novidade de que o seu salário não chega para cumprir as suas obrigações bancárias. Há milhares de jovens que recebem 900 a 1.200 euros mensais e agora ficam relapsos ou não comem. Trabalham, assumiram compromissos com a cabeça no lugar, sem sobre-endividamento, sem jogadas marotas. De repente, os contratos são unilateralmente alterados, envolvendo a palavra dada e a honorabilidade de quem fez contas e assumiu sem leviandade a compra.

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    Este é o tempo da terceira podridão bancária dos últimos 15 anos. Houve a crise da sobrevalorização de empresas e da colocação em carteiras de valor rentável, o lixo nascido da mentira. A avidez tresloucada levou milhões de pessoas à falência. Depois nasceu a banca que nos põe a trabalhar, a preencher toda a papelada e a usar contacto online e passou a cobrar taxas sobre o que agora fazemos nós.

    A taxação brutal e incompreensível de cada gesto, de cada transação. Funcionários despedidos aos milhões por esse Mundo fora, encerramento de balcões, juros mínimos sobre depósitos a prazo, taxas cada vez maiores sobre os créditos e, abra-se a boca de espanto, com mais lucros e com menos despesas, os bancos passaram a taxar qualquer movimento de capital.

    Agora há um novo filão: o incumprimento dos jovens converte-os em devedores depois de perderem o bem. A valia do imóvel desce e passa para outras mãos por 75% do seu valor. Os 25% que sobram, o jovem continua a dever, e a pagar sem estar a comprar nada.

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    Entretanto, os fundos imobiliários internacionais constroem arranha céus onde existiu a FIL, compram milhares de imóveis do crédito malparado por valores de circunstância. Em tudo isto, há um aparente conluio, pois estas vendas não estão ali à mão de quem as necessita. Disto não se fala em Portugal.

    Andam a brincar connosco na Assembleia da República. Quero lá saber do computador do Francisco, das palmadas na Eugénia, da sexualidade apocalíptica dos “transgénios”, da pouca vergonha do que disse o não-sei-da- quantas. Quero lá saber se o Costa vai à bola com Orban.

    Preocupa-me sim a miséria a ser distribuída sobre a classe média e os seus filhos. Uma inflação que já não tem nada que ver com a Ucrânia nem com a Pandemia. A dimensão vigarista da mobilidade elétrica. A desonra que é a TAP onde injectámos mais de 4 mil milhões. O não julgamento do homem que fez volatilizarem-se doze, ou talvez vinte mil milhões com o Rio Forte, o Rio Tinto, a PT, o Rio de Notas que foi o BES.

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    A Oposição tem de ser melhor do que este lodaçal, este bando de energúmenos que não aporta os nossos problemas e insiste no comezinho e no ridículo. Há portugueses em sofrimento. Há um SNS em parkinsonismo. Há milhares de professores em luta pelo que lhes é de direito absoluto, sem delongas e sem tibiezas. Roubar é roubar e só tem um verbo – roubar! É primo do furto, da mão alheia, do gamanço, da fanação.

    Já chega!

    Roubam nos impostos do rendimento do trabalho – o terceiro lugar da Europa. Roubam em impostos sobre o que já adquirimos – o imposto automóvel e o IMI são criações gatunas. Roubam em valores exorbitantes de IVA nas aquisições. Roubam em obrigações de certificadores e entidades reguladoras de toda a actividade económica. Cobram injustamente a locomoção em pórticos da falta de vergonha. Perto de 70% do que construímos com trabalho vai embora nesta teia de cobranças directas e indirectas. Mas onde está a direita? Mas de que fala a Oposição?

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Uma caricatura de amnistia

    Uma caricatura de amnistia


    Em 2019, a APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso apresentou, na Assembleia da República (com mais de 25.000 assinaturas de apoio) uma Proposta de Amnistia e Perdão de Penas que, ao contrário do propalado por alguns extremistas de direita, não tem, com objectivo, “branquear o crime” mas, tão só, tentar fazer Justiça.

    A explicação é simples:

    Um Juiz, ao condenar um cidadão a uma pena de prisão, com base no Código Penal, fá-lo no cumprimento escrupuloso da Lei mas, também, na convicção de que o condenado irá cumprir a sua pena conforme o estipulado pela mesma Lei.

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    Ora, como é sabido, essa convicção não corresponde à realidade, já que as penas são cumpridas de um modo muito mais gravoso.

    Isto porque, as instalações físicas das nossas prisões, salvo raríssimas excepções, são medievais e impróprias para Seres Humanos. 

    Celas que deveriam ser individuais estão com dois presos, as camaratas superlotadas, a água a escorrer pelas paredes, os fios eléctricos descarnados.

    Ali existe todo o tipo de pragas (pulgas, percevejos, etc.) e, os reclusos têm de tapar, à noite o buraco das sanitas, com garrafas de água, para as ratazanas não invadirem o seu espaço.

    Quanto à alimentação, bastará dizer que o Estado paga, à empresa que as fornece, 0,80 € por cada refeição, para se perceber a sua quantidade e qualidade.

    Os cuidados de saúde são medíocres e as cadeias estão repletas de reclusos doentes, muitos deles gravemente, alguns em estado terminal.

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    A maioria dos presos não consegue trabalho com que ocuparem o tempo, e lhes dê algum dinheiro, para as suas necessidades básicas, e os que o conseguem auferem dois euros por dia, dos quais só um lhes é entregue ficando, o outro, num “fundo de reserva”.

    A possibilidade de estudarem é quase impossível por falta de meios (são proibidos, por exemplo, os computadores) e, até, de espaço apropriado.

    Com base neste cenário, cuja culpa pertence, em exclusivo, ao Estado e aos diversos Governos das últimas décadas, considerou a APAR que seria justo que os deputados aprovassem um perdão que retirasse algum tempo de prisão aos condenados.

    Mais concretamente, um ano de prisão a todas as penas até seis anos e mais dois meses por cada ano além desses seis.

    Deputados extremistas, sem surpresa, ficaram revoltados gritando, a plenos pulmões, que a Justiça só é efectiva se a Lei for cumprida e, logo, as penas deveriam ser cumpridas na íntegra.

    Uma verdade incontestável SE a Lei de Execução de Penas fosse, também ela, integralmente cumprida. 

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    Houve, até, um deputado do partido “Chega” que disse, no Plenário da Assembleia da República, que “os presos deviam apodrecer nas cadeias”.

    Disse isso sem perceber que uma estupidez destas ajudava ao apodrecimento da democracia.

    Principalmente porque a disse na Casa que representa esta.

    O líder deste mesmo partido já tinha dito, num debate eleitoral, “que não haveria mal nenhum se cortassem as mãos aos ladrões”.

    Levassem isto a sério e ele correria o risco de ser o líder de um partido de manetas.

    Enquanto o pedido da APAR continua, sem resposta, a aguardar o apoio dos senhores deputados, o Governo apresentou, na Assembleia da República, uma caricatura de amnistia, para jovens dos 16 aos 30 anos e que, dada a quantidade de restrições aos crimes abrangidos, poderá levar à libertação de umas dezenas deles.

    Esta é decisão tomada pelo Governo que, ao contrário do que se espalha aos quatro ventos, é aquele que mais amnistias concede na Europa.

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    É verdade que o último que abrangeu os presos “comuns” data de 1999, há 24 anos.

    Mas temos de pensar naquelas que se fazem sem publicidade numa tentativa de passarem despercebidas.

    Basta pensar nas amnistias a dívidas fiscais e nos perdões às dívidas à Banca do Estado.

    Mas, aí, não se trata de perdoar “bandidos” que roubam supermercados, ou conduzem sem carta de condução, ou insultam agentes da autoridade quando ébrios.

    Estes, como não têm condições para ajudar alguns partidos nos momentos das campanhas eleitorais, servem para dar razão a quem diz que as autoridades estão atentas.

    Razão tinha Almada Negreiros quando dizia que “Portugal não é um país, mas um sítio. E, ainda por cima, mal frequentado”.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Aguentem o ‘as long as it takes’…

    Aguentem o ‘as long as it takes’…


    Cheguei ao banco na hora marcada. Os horários não são grande coisa, mas, se perco a vaga, tenho de esperar mais um mês. Faz-se tudo online. Hoje em dias, falar com alguém para resolver um problema é um luxo. Parece conversa de velho – eu sei –, e é.

    A rapariga que me atende não terá mais de dois ou três anos de trabalho e aparenta uma indiferença preocupante. Espero que, pelo menos, perceba alguma coisa disto.

    Começa o discurso com a introdução histórica ao tema. Há uma guerra, os custos de produção aumentaram na Europa, a inflação disparou e, em virtude disso, o Banco Central Europeu (BCE) aumentou as taxas de juro, para controlar a coisa e reduzir o consumo na Zona Euro.

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    Espero uma pausa no discurso ensaiado para a informar que não estamos na zona económica do euro. A Suécia tem moeda própria. 

    Ela corrige, e diz que, apesar disso, o Banco Central da Suécia aproveita a boleia e também aumenta as taxas de juro para reduzir a inflação que ainda ronda os 6%. Até chegarmos aos 2%, temos que continuar neste caminho, diz ela. Aqui tive a primeira alucinação com a Christine Lagarde e o mantra dos 2%.

    Como gosto de aprender a magia que rege a Economia, e já que o objectivo era reduzir o consumo, perguntei-lhe se não seria altura de abrandar esse aumento das taxas de juro no momento em que percebem que a luta não é consumir mas manter as habitações?

    Ela disse que sim, teria lógica, mas que os bancos não podiam fazer nada. A decisão era do BCE e os bancos centrais de cada país, quais pedintes numa igreja, tinham a missão de ir recolher o dízimo em forma de prestação a cada cidadão europeu que, um dia, tinha tido a audácia de comprar uma casa.

    Receitada que estava a cantilena, começou a fazer contas, dizendo que tinha uma oferta muito boa a rondar os 5%. Cerca do triplo da taxa de crédito contratada há anos, num regime fixo, que tinha como objectivo proteger-me dos mercados de que nunca confiei. Voltou a dar umas marteladas furiosas na máquina até me dizer que a minha prestação passaria para o dobro. 

    Avisou-me, enquanto observava o meu silêncio, que eu tinha um mês para pensar. Voltou a falar da guerra e dos improváveis que ninguém controla.

    Já não consigo ouvir mais uma pessoa que seja a dizer-me que “temos de aguentar”. “Temos”? Quem? A Lagarde, em princípio, não deve ter problemas destes. A Von der Leyen também não. Certamente que Putin não paga casas a prestações. E Biden muito menos.

    Portanto, quem está englobado no “temos de aguentar?”. Eu respondo: os trabalhadores que ousaram contrair um crédito à habitação. Muito bem. Sigamos então a conversa.

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    Pergunto-lhe quando é que prevê que a coisa volte ao normal ou, vá lá, a algo suportável. Ela diz que espera-se que a Economia deixe de nos esfolar em 2025. 

    “Mas já não há guerra em 2025?” – introduzo eu na conversa. “Não sei, como é que posso saber uma coisa dessas trabalhando num banco?” – responde ela ligeiramente irritada. 

    Ora aí é que está o busílis. Se me diz, primeiro, que estamos neste barco sem rumo por causa da guerra e que prevê chegar a terra firme em 2025, mas não sabe quando acaba a guerra, quer dizer que está a mentir. Ou mente quando diz que a guerra nos colocou aqui, ou mente quando diz que tudo termina em 2025. Agora é escolher.

    O clima ficou um pouco mais tenso e ela sugeriu uma nova reunião em outro dia. Devo aqui introduzir um conceito muito sueco de, em cada reunião, criar temas paralelos que geram novas reuniões. Faz-se uma vida disto – já presenciei. E há quem fique mesmo esgotado mentalmente com a azáfama.

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    Disse-lhe que não precisava de tempo nenhum para pensar e muito menos de nova reunião. Não ia pagar uma exorbitância em juros para suportar uma guerra ou a ganância dos bancos.

    Fosse qual fosse a teoria certa, nenhuma delas merecia o meu apoio e muito menos horas e horas de trabalho para pagar uma prestação completamente desajustada do nível de vida e dos salários médios naquela região. 

    Todos os meses vejo esta realidade em redor. Casas e mais casas a serem vendidas porque, de repente, as prestações ficaram superiores aos valores dos salários.

    Em simultâneo ouço, em Bruxelas, o “as long as it takes” no apoio financeiro à guerra e, em Frankfurt, a cada nova conferência da Lagarde, a certeza de que continuarão a aumentar as taxas de referência até a inflação chegar aos 2% (hoje ronda os 6%) em todos os países da Zona Euro.

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    O problema do empobrecimento, como se percebe, alastra-se do sul ao norte da Europa. Cedo ou tarde, está a chegar a todos e a minar a qualidade de vida do Continente.

    É estranho, pensaria eu, que todas as populações aceitassem isto de ânimo leve. Nós, que começamos batalhas por penáltis mal marcados, aceitamos patrocinar uma das várias guerras do globo, onde três potências decidem quem vai mandar nas próximas décadas, sem barafustar. Sem partir qualquer coisa. Sem nos revoltarmos para lá da angústia individual e da raiva acumulada dentro de nós.

    Levantei-me sem plano B e disse-lhe que iria engrossar a lista de pessoas que, ali no bairro, tentava vender a casa para acalmar o “consumo desenfreado”.

    A rapariga não tem culpa alguma, note-se.  Cumpre apenas as directivas que lhe dão. É como ir a um balcão de reclamações da Ryanair e achar que a pobre desgraçada que nos atende é aquele insuportável do O’Leary.

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    Uma pessoa, por vezes, perde a paciência, mas como o leitor compreenderá, estamos todos a fazer a nossa parte. Os bancos a tentar aumentar os lucros e nós, os trabalhadores, a tentar não empobrecer mais. Foi apenas isso que ali aconteceu.

    Ela disse que me ia assaltar de forma legal e eu, que fiquei um pouco chateado, não parti nada porque – lá está – são estas as regras do capitalismo, e não há muito que um peão isolado possa fazer.

    Já perto da porta, e ainda sem um plano B para tapar aquele novo buraco, sorri e despedi-me com um: “agora é ver se recuperamos a Crimeia para a casa não ser perdida em vão”.

    Ela sorriu e disse: “espero que sim, temos de ganhar!”. Quando a porta já batia, ainda ouvi um: “em 2025, falamos para comprar outra!”

    Por mais montanhas que uma pessoa tenha de atravessar, ainda é o humor que nos safa. E a ironia –sobretudo a ironia. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O PÁGINA UM: um ano e meio de vida em prol do verdadeiro jornalismo

    O PÁGINA UM: um ano e meio de vida em prol do verdadeiro jornalismo


    Nascemos há um ano e meio, era o dia 21 de Dezembro de 2021.

    Nascemos para mostrar que pode haver jornalismo independente, com princípios e incómodo, e por isso mesmo perseguido.

    Em 18 meses fizemos o que todos não fizeram em 18 anos: exigir em tribunais administrativos o acesso à informação.

    Denunciámos as promiscuidades da imprensa mainstream, que está a aniquilar os princípios do jornalismo, e por isso tenho à perna três “reguladores”; e pelo menos dois processos judiciais em que sou arguido (e ainda sem acusação).

    Com uma pequena redacção, publicámos já 1.444 textos, entre artigos de investigação jornalística, entrevistas, opinião e recensões.

    Somos o único jornal que tem como único activo a sua credibilidade, que a expõe apenas ao leitores, que são a nossa única fonte de financiamento. Não escrevemos para agradar aos nossos anunciantes, porque não os temos; nem para agradar aos nossos potenciais parceiros comerciais, porque não os queremos; nem para agradar ao poder, porque só os queremos sindicar.

    Em 18 meses, continuamos e continuaremos sem publicidade nem parcerias comerciais. Pelos nossos leitores. Para os nossos leitores. Obrigado pelo vosso apoio.

  • O Mediterrâneo que acolha os migrantes

    O Mediterrâneo que acolha os migrantes


    Passava por Lisboa, em trânsito, a caminho dos Açores. O habitual atraso no voo para as ilhas permitiu-me um salto à baixa pombalina para matar saudades.

    Não sou um saudosista da Lisboa antiga e abandonada e gosto, gosto mesmo, da mudança que a cidade sofreu neste século. Tropeçava em turistas que tentavam arranhar umas palavras em português para pedir uma bica ou aquele horrível galão depois do almoço. Pareciam felizes a desbravar a encosta do castelo num dia de sol e céu azul.

    Uma guia, de bandeira no ar, dizia a um grupo de asiáticos que tinham tido sorte com o tempo… e, por aí, se percebeu que não era destas paragens. Lisboa não tem sorte com o tempo, o tempo é que tem sorte com Lisboa. Céu azul é a prata da casa e o sol esbanja sorrisos em cada mês do ano. Há falta de salário, de consultas, de trânsito fluído. Nunca de sol, céu azul e sorrisos.

    a fountain in front of a row of buildings

    Na ginja do Rossio há um ajuntamento que me agrada. Novos e velhos, ricos e pobres, portugueses e estrangeiros. Todos bebericam com ou sem elas, sempre em animada cavaqueira. Eu observo, como faço sempre que regresso à colina onde nasci, deliciado com o movimento da cidade e na metrópole cosmopolita em que esta se tornou.

    Entre as conversas estridentes, uma chamou-me à atenção. Duas raparigas da minha idade (gosto sempre de achar que são raparigas para não me sentir muito velho) discutiam, com ajuda da terceira ginja, o último naufrágio do mediterrâneo ocorrido na semana passada, junto à costa sul da Grécia, com uma embarcação que se assume ter partido da Líbia, com destino a Itália.

    Este tipo de notícias já nos passa uma pouco ao lado e preenche os rodapés dos jornais, entre renovações de jogadores de futebol ou mais um esquema qualquer do PS.

    Ainda assim, entre as várias tragédias que aconteceram no Mediterrâneo, um autêntico cemitério de migrantes, este foi um dos piores de sempre na chamada “rota central de migração“, a mais longa e perigosa linha marítima de fuga para a Europa, vinda do norte de África. Quase 80 mortos, vários corpos por recuperar e estima-se que, num barco de pesca, sem capacidade para tal, viajariam 750 pessoas.

    calm sea under clear blue sky during sunset

    Elas, claramente animadas pelo debate político e pela ideologia exacerbada, diziam, debaixo do seguro céu azul de Lisboa: “que raio vêm eles fazer para cá? Não sabem que a travessia é perigosa e os barcos estão todos partidos?”

    Ora, esse é um excelente ponto. O que fará o digníssimo habitante do continente mais a Sul, atirar-se para um barco velho sobrelotado, sem colete ou bote salva-vidas e arriscar uma travessia perigosíssima?

    Acrescento ainda, só para aumentar a estupefacção das duas amigas, agora a caminho da quarta ginja: o que fará o migrante atravessar metade do continente a pé, fugir ao controlo dos senhores da guerra e entregar todo o dinheiro que consegue juntar ao longo de anos a quadrilhas que se dedicam ao tráfico de pessoas para… no fim disto, correr o risco de morrer no dito barco?

    Não tenho feito muita praia no Sudão e, em Trípoli, também tenho evitado jantaradas com os amigos, mas arriscava, pelo que vou lendo, que a vida é tão má, tão difícil e tão sem esperança, que até a ideia de arriscar uma morte no Mediterrâneo para entrar na Europa pode ser tentadora. É capaz de ser isso.

    building with refugees welcome signage

    “E mesmo que sobrevivam e que a Meloni não os mande para trás… o que vão eles fazer na Europa?”. Nova interrogação extremamente interessante. O que fará na Europa uma pessoa que a procura para conseguir uma vida melhor? Em princípio… tentar ter uma vida melhor.

    Eu entendo que para cada um de nós que nasce num continente com mais oportunidades, normalmente seguro, e com esperança de média vida longa, não faz grande sentido o sacrifício desumano de quem lá tenta chegar. É até difícil simpatizar com tamanho esforço porque não o compreendemos.

    O nosso campeonato é outro. Na nossa pirâmide das necessidades já não está o acesso a electricidade ou comunicações, lutas para controlar poços de água, saneamento básico ou três refeições por dia. A nossa batalha está na limpeza das ruas norueguesas, na corrupção finlandesa, na produtividade alemã ou nos salários dinamarqueses. É para aí que olhamos, já não conseguimos perceber a barriga vazia de um puto a fugir de uma guerra no Sudão ou um perseguido pelo regime do Assad em fuga da Síria.

    Criticamos o Costa, ficamos irritados com os preços do Pingo Doce, mas jantamos e chamamos nomes a quem queremos enquanto mandamos abaixo nova ginja.

    Uma delas, a mais calada, responde à pergunta da que fala mais alto: “o que vêm fazer para cá? Não é óbvio? Vêm atrás do subsídio, de não fazer nenhum e de viver à nossa custa”.

    A mais espalhafatosa empolga-se com aquele lançamento de alto teor racista e não perde tempo: “passado um ano, o Costa está a fazer-lhes mesquitas e merdas lá para o Alá e não sei quê! Bem faz a Meloni que os manda de volta. Razão tem o Ventura quando diz que estamos a ser invadidos!”

    Dois minutos antes tinha pensado em juntar-me à conversa para perceber a origem das ideias. Gosto de falar com estranhos e discutir ideias pelo simples prazer de aprendermos uns com os outros. Embora o discurso apontasse para aquelas ideias pré-concebidas do mundo cheio de muros, a confirmação surgiu com parangonas de ignorância. Virei a direcção. Não há diálogo possível com quem vê o mundo a duas cores, e fui buscar outra ginja. Desta vez com elas.

    Daquelas duas raparigas, extrapolei para os milhões de habitantes neste continente (as eleições na União Europeia assim o indicam) que concordam com elas. Há milhões de pessoas a fugir da guerra, da fome e da perseguição política, do médio oriente (Palestina, Síria) à África central. Milhares morrem anualmente nas malhas dos gangues do tráfico humano e fazem do mar predilecto dos europeus para férias, um autêntico cemitério, sem que organização alguma consiga sequer estimar o número de migrantes engolidos pelo Mediterrâneo.

    italy, cala gonone, air

    A calamidade é de tal forma grotesca que os governos europeus, líderes de populacões envelhecidas, antes de se preocuparem em salvar esta gente, chutam responsabilidades de um lado para o outro, deixando-os à sua sorte e fazendo o possível para que não entrem.

    Meloni culpa Macron, os gregos culpam os turcos, Malta culpa quem invadiu a Líbia. Os desgraçados continuam a morrer, em barcas velhas, pensando que têm o direito de tentar fugir à morte certa nos países de origem.

    No fundo, é isso: os migrantes acham-se no direito de fugir à morte, arriscando para isso morrer. E nós, por cá, nem a simpatia já temos para dar. O sofrimento alheio é-nos banal, debaixo do nosso céu azul não há espaço para refugiados que não venham do Donbass. O mediterrâneo que os acolha.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Vacinas contra o desleixo

    Vacinas contra o desleixo


    Passou quase despercebida do grande público uma notícia extremamente preocupante: a falta de vacinas em vários centros de saúde do país.

    Aquele que devia ser um caso prioritário nas preocupações da Oposição (já que o Governo se desleixara numa matéria crucial) passou para segundo plano porque, para a maioria dos deputados, ansiosos de chegar ao Poder, o que interesse é que o “povinho” se revolte com as trapalhadas da TAP.

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    A possibilidade de incumprimento do Plano Nacional de Vacinação, incluindo no que respeita a crianças, é, para estes, um caso de somenos importância se houver que descobrir quem chamou o SIS num caso que deveria ter sido resolvido pela polícia.

    Os problemas gravíssimos que esta falha pode causar, e o facto dela só ser possível por uma absoluta incompetência do Ministério da Saúde, não deverão merecer atenção prioritária enquanto não se souber, claramente, se um assessor agrediu, ou não, colegas do gabinete para se apropriar de um computador.

    Deixando de lado a incomensurável estupidez desta Oposição, tentemos analisar o que se passa.   

    Comecemos por uma pergunta simples:

    Como pode o Ministério da Saúde tentar justificar a falta de vacinas em vários centros de saúde do país?

    Manuel Pizarro, ministro da Saúde.

    O comum dos mortais sabe que o Estado tem, ao seu dispor, à distância de um clique, num qualquer computador, o número exacto de vacinas a administrar aos cidadãos.

    O médico Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria, foi claro:

    “A aquisição de vacinas é uma daquelas coisas previsíveis e que se sabe com antecedência, quantas e quais é que vão ser necessárias. Por isso, uma quebra de disponibilidade nos centros de saúde, que não seja por falta de produção, é incompreensível.”

    Qual será, então, a gravidade da situação?

    Para o cidadão comum esta pergunta é de difícil resposta já que, ao contrário do acima dito em relação aos governantes, nesta altura é desconhecido o número de vacinas administradas diariamente.

    Na realidade, desde 2020, e por causa da pandemia, os dados foram retirados do Portal da Transparência e ainda não voltaram a ser disponibilizados.

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    Ainda assim, e graças às informações prestadas pelos responsáveis, sabemos que começaram a faltar, nos Centros de Saúde, doses de vacinas contra a difteria, tétano, tosse convulsa, poliomielite e haemophilus b.

    Mais, sabemos que o Governo ainda não comprou as vacinas do Programa Nacional de Vacinação deste ano e que os Centros de Saúde estão a utilizar doses que sobraram do abastecimento anterior.

    Segundo o jornal Expresso, a vacinação gratuita à população, sobretudo de recém-nascidos e crianças, está a ser feita a “conta-gotas”.

    Em resposta à TSF, Manuel Pizzarro reconhece que “pontualmente, num local ou noutro, podem ocorrer situações de faltas, que são rapidamente resolvidas”, e assegura que, “a nível nacional, não estão vacinas em falta no âmbito do Programa Nacional de Vacinação”.

    Duas frases que entram em contradição nítida e que tentam branquear com a garantia de que “Portugal faz uma gestão criteriosa do stock de vacinas, monitorizando-o em permanência, o que permite assegurar a disponibilidade de vacinas, sem desperdício, e que se continue a vacinar e a cumprir o Programa Nacional de Vacinação”.

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    Esta estranha serenidade, todavia, é arrasada pelos jornalistas do “Expresso”.

    Estes garantem que, apesar das necessidades para o cumprimento do Plano Nacional de Vacinação, para 2023, terem sido enviadas, atempadamente, pela Direção-Geral da Saúde ao Ministério da Saúde, o respetivo procedimento para a aquisição das vacinas ainda não foi iniciado.

    “O Ministério da Saúde foi avisado com dezenas de e-mails a alertar para a urgência em aprovar o plano”, garantiu ao jornal uma fonte próxima do processo.

    Os profissionais ouvidos pelo semanário, mesmo aceitando a garantia, dada pelo Ministério, de que a compra de vacinas ficará concluída na próxima semana, garantem que esta compra não apagará o atraso de seis meses.

    Por sua vez, o Dr. Gustavo Tato Borges, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, garante que, “já em 2022, 12% das crianças foram vacinadas depois da idade ideal. Ou seja, houve uma fragilização”.

    woman getting vaccine

    Os dados disponíveis, citados pelo “Expresso”, revelam que a vacinação fora do tempo certo é mais evidente nas crianças mais pequenas, entre os 12 e os 13 meses de vida.

    Segundo o boletim, a imunização atempada nessa faixa etária fica pelos 85%, portanto muito abaixo dos mais de 95% conseguidos na cobertura global nos restantes grupos vacinados.

    Mas que importância terá tudo isto para os nossos políticos empenhados que estão na luta pelo prémio do mais populista?

    Se, pelo menos, houvesse uma vacina contra o desleixo…

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Ouvir um som e sentir o gosto das coisas

    Ouvir um som e sentir o gosto das coisas


    Ouve.

    Ser o filho do meio de uma sucessão de guerras culturais tem destas coisas. Um karma, talvez, de saber que o irmão mais velho já cá estava e já outro mundo viu, e de reconhecer que o irmão mais novo precisa das atenções especiais de quem ainda não controla o corpo e a mente (e eu controlo?).

    Do fim do século, que já não voltará, ficou o gosto do metal. Doce, áspero. Como se a cada quilómetro de auto-estrada e cheiro quente do asfalto a pressionar o peito tivéssemos a certeza que íamos lambendo postes de alta tensão na busca de um gelado Perna de Pau em cada estação de serviço. Era o progresso que sabia assim: a veneno que o nosso corpo destilava com a facilidade de quem se julga imortal (e imoral).

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    Estamos todos numa bolha, cada um de nós; uma bolha fechada de paranoias e gosto metálico. (E que medo se rebenta a bolha!)

    Carpetes estendidas a acumular o cheiro da pele morta dos outros, feltro vermelho a fingir-se de luxo aristocrata quando as cabeças já rolaram na guilhotina, saltos altos com espigões agressivos a marcar os passos de ídolos anoréticos (e as drogas a fazerem girar o planeta), carnes obesas a rodopiar e a atrair a si o campo gravitacional da queda de uma civilização. Palhaços que de cara borratada avançam de gatas, loucos, desvairados, os únicos que com lucidez inata ilustram o esboroar das ilusões.

    Comboios que passam rápidos debaixo de varandas onde uma senhora estende roupa abnegadamente num espaço exíguo, vertiginoso (não tenho mais molas), salta! E a espuma de um dia que se empurra devagar enquanto outros correm, correm, correm.

    Crianças nascem como brechas de luz nestas cloacas e velhos definham em silêncio e solidão entre paredes quadradas de alvenaria, tijolo vermelho (carpetes e sangue), ossos que quebram como giz (gesso nas paredes que mancha, ressoa, o bolor a trepar até ao tecto).

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    A geração dos eternos adolescentes, filhos de sacrifícios humanos movidos a anfetaminas (e a guerra senhores!), comem, comem, comem tudo e não deixam nada. Sinalizam virtudes, mão no peito (canta o hino), mão no peito (diz amen), mão no peito (declama ciência), mão no peito (não ao nuclear!), mão no peito (vai de bicicleta), mão no peito (e segura o coração para que não saia a fugir, que o frágil órgão não aguenta mais inflamações de mentes que não se encontram e vermes que entram pelos ouvidos e nos dão dores de dentes).

    Demasiado?

    A cada música ouvimos um apelo e sentimos o gosto do ferro na terra. Viajamos. Construímo-nos em cima do que já está feito. Pré-fabricados e opiniões. Opiniões pré-fabricadas e a luz que tremeluz da televisão, do ecrã, de mais um aparelho, pequenino, médio, grande, enorme, ligado por USB às nossas vias respiratórias (compra, compra, compra).

    Ouve.

    Podemos deixar as coisas abrandarem? Se somos nós que corremos, dizem os entendidos que não se pode assim dizer, do pé para a mão, que o planeta tenha desatado a mexer-se mais depressa.

    black and white USB data cables

    Se somos nós, como quando fechamos os olhos para dormir, que desligamos a existência e flutuamos em planos de sabores mais meigos, podemos deixar as coisas abrandarem.

    Podemos ser o russo. Podemos ser o ucraniano. Podemos ser o inglês e o americano.

    Podemos ser o italiano, o espanhol e o português.

    E nada que as torres de alta tensão metálica e doce, ásperas e pesadas, nada que turbinas velozes a rasgar o vento para baterem com a tua mão no peito, nada do que elas te dizem, para que corras, é verdade.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As munições que o Governo dá aos liberais

    As munições que o Governo dá aos liberais


    Quando o sistema de impostos me desagrada evito falar sobre ele. A razão é simples: não dar munições aos liberais e à extrema-direita que vêem na “flat tax” a solução para todos os problemas.

    Sou um defensor acérrimo dos impostos progressivos por achar que é essa a única forma de assegurar serviços públicos de qualidade, pelo menos na saúde, na educação e no apoio ao desemprego.

    Ainda assim, agora vem o “mas”, volto ao tema dos impostos em Portugal por achar que a coisa começa a ultrapassar todos os limites da razoabilidade. E notem que me refiro a Portugal em especial porque no país onde passo metade do ano, a Suécia, ninguém se queixa do elevado valor dos impostos. Apesar da carnificina fiscal, não há que negar essa parte, aparentemente as pessoas identificam-se com a prática e percebem a importância de o fazerem. Deduzo eu pelo que recebem em troca.

    two Euro banknotes

    Esta é a parte importante desta troca comercial entre o contribuinte e o Estado. Nós depositamos um valor mensal e, em troca, o Estado proporciona-nos serviços.

    Se os nossos filhos estudarem sem pagar, se formos assistidos nos hospitais sem grandes custos, se tivermos uma pensão de reforma decente e, no caso de cairmos no desemprego, termos uma qualquer protecção, em princípio a população não se queixará muito. Imagino eu.

    Em Portugal, mesmo para um opositor da selva urbana defendida pelos liberais e do “cada um por si” exigido pela extrema-direita, começam a faltar argumentos para justificar a brutal carga fiscal. 

    Numa semana em que voltei a ouvir falar de Alexandra Reis e devoluções de indemnizações milionárias ou, de desvios do erário público para garantir obras aos amigos de PS e PSD, pergunto-me: até onde é que cada trabalhador tem que ser esfolado para pagar este circo todo?

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    A inflação vai baixando com alguma consistência mas as taxas de juro continuam a aumentar.  Nos bens de consumo também não se nota grande abrandamento na escalada de preços e, segundo alguns economistas, mesmo quando a inflação regressar ao mítico 2%, não se espera que os preços regressem aos valores pré-guerra. O mesmo para os transportes onde uma deslocação na Europa custa hoje três ou quatros vezes mais, se compararmos com os preços praticados antes da pandemia.

    Num destes dias, entrei num café e pedi um iogurte. Um simples iogurte que, desde o dia anterior, tinha subido cerca de 30%. Quando perguntei a razão de tamanha exponencial à funcionária, ela encolheu os ombros e disse: “já sabe, a Ucrânia e tal…”. A Ucrânia está para a escalada de preços como o Aursnes para o onze do Benfica. É pau para toda a obra. 

    O dia até me estava a correr bem quando recebo a carta para pagar o IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis). O IMI é capaz de estar no pódio dos impostos mais estúpidos. Ninguém percebe bem a razão de pagar, anualmente, um imposto por uma coisa que é sua e que, ainda por cima, já foi alvo de carga fiscal a valer na altura da compra.

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    Uma pessoa quando compra uma casa já paga alguns milhares de euros em IMT e Imposto do Selo. Ou seja, o Estado já nos leva uma fatia na compra. Depois leva outra, maior, na venda. Tudo bem, não queremos especulação e tal. Mas depois ainda nos pede uma mesada, anual, pela existência da casa.

    A dada altura uma pessoa paga taxas e taxinhas já sem saber de quê. Mas pior… o que é que recebe pelo que paga? SNS e escola pública destruídos, salários na função pública miseráveis, roubos e mais roubos do erário público descobertos a um ritmo semanal. Fica difícil, muito difícil, para um convicto apoiante do sistema público, defender o assalto fiscal português quando a moeda de troca é uma mão cheia de nada ou uns subsídios mata-fome.

    Também não sou um fã da conversa de emigrante do “lá fora é que é” mas, efectivamente, é possível pagar muitos impostos, ficar com dinheiro no bolso para viver, ter serviços públicos de qualidade e não pagar impostos idiotas que cobram duas e três vezes a mesma coisa. Há décadas que PS e PSD, enquanto dividem autarquias e tachos para os boys, partilham uma única ideia para aumentar receitas: mais impostos.

    wallet, empty, poverty

    E por maior que seja o jackpot, vai sempre parar ao mesmo sítio. Estradas, clientelas, bancos, boys, empresas de amigos, PPPs ruinosas. Já para produção de mais valias, aposta em tecnologia e nos cérebros formados em Portugal, educação universal ou alívio fiscal, preferimos deixar para os países de primeiro mundo que nos vêm roubar os miudos à porta das universidades.

    Parece-me uma estratégia óptima para quem quer continuar a competir entre os mais pobres.

    Pessoalmente sinto-me cercado. Dependo de aviões para me deslocar todos os meses, pago impostos em dois países europeus a braços com a inflação desregulada e manietados por um estúpido apoio eterno a uma guerra entre impérios, disputada em território neutro. Já vamos em 3,5 anos disto.

    Primeiro a pandemia, a loucura das restrições e o aumento das dívidas soberanas. E agora esta crise militar com a fatura da covid-19 lá enfiada, tudo para ser pago pela antiga classe média europeia. É trabalhar até rebentar para pagar custos de vida que há muito deixaram de ser comportáveis. 

    loaf, bread crumbs, crumbs

    Nunca votaria em qualquer partido à direita do PS, incluindo o próprio, mas por esta altura do campeonato, dada a pobreza crescente em Portugal pergunto, qual seria o problema de reduzir os impostos e deixar cada trabalhador com mais dinheiro no bolso?

    Não diria isto se visse uma boa aplicação do dinheiro dos impostos mas convenhamos, enquanto a população empobrece e perde as casas, a classe política e as elites, vão dividindo o bolo e enriquecendo, entre negócios escuros com abutres que voam desde sempre na órbita do Estado. São muitos, são demasiados os exemplos de gestão danosa das nossas contribuições.

    Valerá a pena continuar este modelo onde as pessoas empobrecem, os serviços públicos vão desaparecendo, as contribuições vão aumentando e uma minoria, já não tão silenciosa, vai enriquecendo nas costas da corrupção? 

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    Se não querem construir uma escola universal, se não querem recuperar o SNS, se não querem falar com os professores, se não querem dividir a riqueza colectada por quem trabalha, então colectem menos. É simples. Se vamos continuar a salvar bancos, a pagar PPPs ruinosas, a roubar e a desviar descaradamente o erário público e a “dar salários a boys que se estão a cagar”, então deixem de virar as pessoas ao contrário até que dos bolsos caia a última moeda.

    É imoral e pornográfico. Dividam a riqueza, forneçam serviços públicos de qualidade, tenham vergonha na cara e deixem, os sucessivos governos, de conduzir Portugal a uma república das bananas de terceiro mundo. Se assim não for, baixem pelo menos os impostos e deixem cada um tentar a sua sorte.

    Pior do que está não fica.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A coruja

    A coruja

    Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 2


    “A inteligência é uma coisa que todos nós conhecemos bem, como um livro antigo, ou um amigo de há muito tempo. Mas, e o que será a sabedoria? Se a inteligência é a capacidade de falar, a sabedoria é a capacidade de ouvir. Se a inteligência é a capacidade de ver, a sabedoria é a capacidade de ver longe. Se a inteligência é o olho, a sabedoria é o telescópio. Porque a sabedoria representa a nossa capacidade de sairmos da ilhota de nós próprios para começarmos a grande viagem através do mar.

    Richard Wrangham e Dale Peterson

    DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)


    Aos seis meses, o Sebastião está enorme. Continua a ser um cachorrinho com comportamentos de cachorrinho, mas quando quer brincar com um transeunte incauto as patas dele já chegam aos ombros da pessoa. Em metade das vezes, o visado assusta-se seriamente. Na outra metade, o visado já o conhece e diz-me logo que lhe ponha a trela senão ele foge, ele pode causar um acidente de automóvel[1], e além disso ele é um cão tão bonito e tão esperto que alguém mo rouba de certeza[2]. Para um longo passeio sem trela, em que ele possa pular e espinotear tanto quanto lhe apeteça desde que não faça barulho[3], só mesmo esperando pela noite e tomando a direcção das ruazinhas do Castelo, que são tão estreitas e onde é tão problemático estacionar que quase não há carros, e onde àquela hora já quase não se vê ninguém. O homem que depois do Natal se apaixonou pelo meu cão[4] mora mesmo ao meu lado, é pedreiro, e ganhou ultimamente o hábito de vir passear connosco.


    O Rogério é do Norte, e não é nenhum santinho. Já passou uma boa temporada em Pinheiro da Cruz, e ficamos por aqui. Ele tem pena, porque gostaria muito que eu escrevesse um romance sobre a sua vida, dado que a considera excepcionalmente transbordante de erros[5]. Enfim, essa vida seria não mais que uma réplica de milhares de outras, sempre com os mesmos planos, os mesmos erros, e os mesmos crimes e castigos – qualquer coisa talvez mais útil para o progresso da sociologia[6] do que para o florescimento da literatura.

    Nessas noites, que agora parecem ter ocorrido há milhões de anos-luz, o Rogério usou imensas variações erradas sobre adjectivações muito simples, todas elas tão bizarras e inesperadas que nunca mais conseguem esquecer-se. Ainda por cima, em certas alturas até podem dar vontade de rir, o que é extremamente grave porque perdem logo o peso moral que, de facto, carregam consigo[7]. Às tantas até os meus dois ex-namorados de Estremoz foram corridos a patético, ou mesmo a individual completamente patético, nem me lembro porquê nem agora me interessa. Mas não é todas as noites que uma ouvinte atenta apanha com sequências assim tão brilhantes de palavras e coisas[8]. Mesmo que não queira. Já sei que vou guardá-las comigo para o resto da vida.

    A coruja-das-torres, que como tem um nome feminino não fala. No entanto, ouve tudo com muita atenção.

    Entretanto, em estrita obediência às leis imutáveis da Natureza, eu armava-me na coruja da anedota. Aquela que o outro senhor comprou para fazer dela um papagaio, e a seguir respondia a quem lhe perguntasse “então e a tua coruja, já fala?” com um enfático “não, falar ainda não fala… mas  ouve tudo com muita atenção!”.

    Eu não ouvia o Rogério com muita atenção por ser mulher, e muito menos por ser coruja. Era, apenas, porque sou escritora. Sei que das páginas de um qualquer CV pode saltar subitamente aquela agulha que andou perdida por dentro dos palheiros durante dezenas de anos, e era por causa dessa agulha que eu descobria, por exemplo, quem é que matou o JFK[9]

    À medida que foi criando mais confiança, e como, sendo homem,  gosta muito de falar, o Rogério foi entrando em catarses cada vez piores[10] sobre os seus erros do passado. Eu, como sou mulher e gosto muito de ouvir, ouvia-o com muita atenção. Uma semana depois da conversa que se segue, o Rogério vai usar-me como isco para extorquir quase oitocentos euros às minhas irmãs. Mas, na altura, não existindo qualquer antecedente, ninguém podia adivinhar este desenvolvimento trágico. O Rogério estava a contar-me uma das suas múltiplas separações com uma minúcia tão enorme quanto incompreensível.

    Ó Rogério, tu desculpa, mas não entendo. Que mal é que essa senhora te fez para te vires embora para todo o sempre, sem nunca mais voltares sequer a ver os teus filhos sem ser no telemóvel?” – “UMA SENHORA és tu. A outra BEM QUERIA ser uma senhora, mas era apenas uma grandessíssima preguiçosa. Nem sequer me passajava as meias!” – “Então e tu não sabes passajar as tuas próprias meias, como toda a gente?” – “Clarinha, há uma ordem natural  das coisas para o que fazem as mulheres e o que fazem os homens. Se ela quer ser desnaturada, pois saúde e passe bem, que eu esses desrespeitos patéticos[11] não tolero.”

    (continua…)

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Não se percebe se quem sofre com o acidente é o animal ou é a máquina, mais qu’importe. Um acidente é sempre uma desgraça.

    [2] Não é para me gabar, mas o meu cão é, de facto, particularmente bonito. E incrivelmente esperto. Um dia destes conto-vos a história da banana. Está prometido.

    [3] A palavra de ordem para o cachorrinho enorme não fazer barulho é “Sebastião! Queres ir para a rua?”, mesmo quando estamos no meio da rua. História prometida para o dia em que vier ao caso a história da banana.

    [4] Que é como quem diz, mas se não me chateasse tudo bem, e ele nunca me chateou, mesmo.

    [5] Obviamente, este livro seria uma biografia, e nunca um romance. Mas isso eram detalhes que na altura diziam pouco ao Rogério, que só queria contar-me tudo para expor os erros da sociedade, por forma a tornar a sociedade melhor. Nem que fosse só um bocadinho. Valeria a pena. Na versão dele.

    [6] Ou enfim, talvez para a estatística.

    [7] Como veremos mais tarde.

    [8] Ao menos eu não sou patética: sou tão fina que apenas introduzi veladamente no texto uma alusão ao famoso livro de Michel Foucault AS PALAVRAS E AS COISAS – UMA ARQUEOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS, publicado originalmente em 1966 com um grande impacto quase instantâneo sobre todas as áreas de especialidade relacionadas com a História das Ideias. Em vez de inventar palavras, traduzo-as e copio-as com todo o cuidado, sem não zugeben os mínimos enganos. Es ist ganz anders, como diria o outro antes de se virar para o balcão e pedir à refugiada de qualquer sítio islâmico onde correu tudo mal einem hamburger bitte.

    [9] Uma pessoa nunca sabe quando é que, de repente, sem aviso, uma história vai mudar completamente de rumo, já não ser uma banalidade, e então valer a pena passá-la a romance. Nem vale a pena imaginar o que nos pagariam para “contar tudo”.

    [10] Ou melhores, conforme as preferências literárias do ouvinte que escuta o palrante. O pior é que eu detesto psicopatas e filmes de terror. Mas aguentei firme. Aquilo podia, de facto, ter lá um JFK dentro em qualquer próxima frase.

    [11] O Rogério adorava palavras, e, para falar de forma culta, incorria por vezes, repetidamente, em erros crassos como este famoso “patético”. Eu nunca disse nada. Era um fato grunge de alta costura que lhe ficava a matar.