Apresentada como uma reportagem de investigação pela jornalista Raquel Matos Cruz (CP 7077), o Repórter TVI do passado dia 21 de Junho, em horário nobre, intitulado “Júnior, o milionário improvável”, da autoria da jornalista Conceição Queiroz (CP 7851), não é apenas uma peça antológica de péssimo jornalismo.
É sobretudo um retrato cruel da imprensa sem ética, sem moral, sem responsabilidade, que deveria envergonhar qualquer jornalista, sobretudo os bons, onde se incluirá os bons que ainda haverá (não sei por quanto tempo) pela TVI. Cada dia que passa sem que ninguém na TVI se pronuncie sobre “aquilo” é um prego no caixão do moribundo jornalismo lusitano.
Raquel Matos Cruz, jornalista e coordenadora do Repórter TVI.
A suposta reportagem, recordemos, começou pela boca de Raquel Matos Cruz, que a apresenta. O texto, também escrito, e ainda agora disponível no site da TVI, e guardado aqui, continua sem qualquer nota ou aviso, e é exemplar:
“Ao longo dos últimos anos as criptomoedas, sobretudo a bitcoin, já fizeram muitas fortunas. Este é também um mercado perigoso por ser extremamente volátil e de risco muito elevado, onde basta um instante para perder tudo. O português Renato Júnior teve a sorte, e naturalmente a sabedoria para sobreviver às oscilações deste mercado e para hoje viver faustosamente às custas da bitcoin.
Tem 29 anos e é um exemplo de quem conseguiu singrar no mercado da moeda virtual. Deixou a escola para trás e aos 17 anos emigrou para o Canadá, onde foi trabalhar nas obras. Com o dinheiro que amealhou investiu num computador e num telemóvel e esta foi a porta de entrada para o mundo do dinheiro digital.
Começou com um investimento de 100 euros. Atualmente, vive no Dubai e é de lá que gere um negócio de milhões. Para trás fica uma infância nem sempre fácil de um rapaz que fintou o destino.
Esta é a história de Renato Júnior: o milionário improvável.”
Toda a peça retrata Renato como um herói, e aquilo que mais salta à vista é a ausência de confirmação sobre tudo aquilo que diz, e sobretudo sobre a empresa e actividade (supostamente legal) que diz desenvolver.
A jornalista Conceição Queirós aparenta não ter procurado saber se a empresa tinha registos, se era credível, se era reconhecida por entidades reguladoras, se havia clientes satisfeitos ou insatisfeitos. Nada.
Aquilo que a jornalista Conceição Queirós, a sua coordenadora, a também jornalista Raquel Matos Cruz, e, enfim, o director da TVI, o também jornalista José Eduardo Moniz – que tem uma das mais antigas carteiras profissionais no activo, a número 71 – permitiriam com a emissão desta reportagem foi promover uma quase certa fraude, a atender pelo que se observa no site do suposto Digital Bank Labs.
Os incautos, que foram no canto da sereia da reportagem da TVI, podem bem cair no logro de investir milhares de euros – aliás, o mínimo do “investimento” é de 10 mil euros, segundo o site da dita Digital Bank Labs – numa suposta empresa de um “herói” (com uma fortuna “avaliada acima de um bilião de dólares americanos”, segundo as palavras do próprio) que, na verdade, nem contacto nem escritório físico possui ou é conhecido.
Ainda se poderia acreditar numa ingenuidade quer da jornalista Conceição Queirós – que mal disfarçou, ao longo da reportagem, a sua alegria pela estada no Dubai no meio daquele suposto luxo adquirido pelas bitcoins, ao ponto de até agradecer e desejar felicidades ao Renato – quer da sua coordenadora quer do director da TVI.
Embora não seja nada agradável, até por se ter sempre responsabilidades nem que seja por negligência, ninguém no jornalismo está livre de ser ludibriado. Mas uma coisa é ser enganado, outra é não admitir erros e manter tudo como se nada se tivesse passado de anormal.
Passou sim, e tudo aquilo é absolutamente anormal.
Aviso actual que surge nos contactos da suposta empresa Digital Bank Labs.
Uma dezena de dias após a emissão de uma vergonhosa reportagem que vergasta a verdadeira investigação jornalística – e sabendo-se o quão improvável é a legalidade dos “negócios” de Renato Duarte Júnior (e do seu obscuro Digital Bank Labs) no mundo dos cripto-activos, e sabendo-se ainda da abertura de um procedimento por parte da ERC, e sobretudo os avisos formais da CMVM e do Banco de Portugal –, o silêncio e a inacção da TVI é intolerável.
Ou talvez não. Afinal, já tudo é tolerável quando o jornalismo se mostra deplorável.
Não creio que haja algo de mais gratificante do que podermos exercer uma profissão de que se goste tanto que nem dê para definir como “trabalho”.
Se a conseguirmos desempenhar, ao longo da vida, sendo ainda principescamente remunerado por tal e, graças a ela, ganharmos o estatuto de “pessoa mediática”, é o cúmulo da felicidade.
Essa será, provavelmente, a principal razão que leva centenas de pais, por todo o mundo, a investir fortunas para que os seus filhos possam tentar vencer nessas carreiras.
Principalmente se considerarem que têm essas vocações.
O futebol será, provavelmente, o exemplo mais forte.
Não deve haver espectáculo, em todo o mundo, com tantos seguidores nem onde se invista mais dinheiro.
A quantidade de jornais, revistas, programas de rádio e televisão que vivem deste fenómeno é caso único.
A ligação dos adeptos às diversas equipas supera, em muito, a que os crentes têm para com as suas igrejas.
Um adepto que se revolta quando se levanta a hipótese de aumento de uns euros aos seus governantes, considera da mais elementar justiça que se assinem contratos, com jovens de dezoito anos, com salários mensais superiores ao de todos os membros do Governo do país durante um ano.
Obviamente que este cenário só poderia levar ao aparecimento de oportunistas querendo facturar com as expectativas das famílias de jovens a quem se aponta talento.
Portugal não é diferente e os casos de exploração sucedem-se.
Nenhum com a gravidade do último caso conhecido.
Gente importante, e com cargos na estrutura futebolística nacional, e na política, criaram uma escola, pomposamente chamada de “Academia”, para jovens a quem se reconhecesse o dom para este desporto.
O presidente da “Academia” era, nem mais nem menos do que, o Presidente da Mesa da Assembleia-Geral da Liga Portugal.
Entre os seus “embaixadores” constava um ex-Secretário de Estado e ex-Presidente da AICEP e TAP cujas funções, segundo o próprio, “consistiam em fazer contactos com vários players nacionais e internacionais, institucionais e empresariais”, estando, entre essas entidades, “Embaixadas de Portugal no estrangeiro, Embaixadas do estrangeiro em Portugal, SEF, Ministérios e Departamentos Governamentais e empresas privadas nacionais e internacionais”.
Estes nomes e cargos, que eram apresentados aos potenciais interessados, levaram a que muitos pais, de países estrangeiros e longínquos, lhes confiassem os filhos, pagando propinas que chegavam aos dois mil euros mensais, para os formarem como futebolistas.
O destino era uma “escola” em Riba de Ave que, veio a saber-se agora, não passava de um esquema, que as autoridades consideram criminoso, com o único intuito de ganhar dinheiro.
Nas buscas ao local as autoridades encontraram mais de cem jovens atletas, estrangeiros, muitos deles menores, que dormiam em camaratas fechadas a cadeado.
Os jovens tinham acesso limitado ao exterior, tinham ficado sem os documentos e eram muitas vezes sujeitos a medidas disciplinares.
Alguns deles, em entrevista à Rádio Renascença denunciaram a prática de retenção de passaportes dos atletas, por parte da direção, e queixaram-se de má alimentação e de restrições de circulação.
Pelo que as autoridades concluíram que eram, alegadamente, vítimas de uma rede de tráfico de seres humanos.
Ao contrário do “Embaixador” distraído, o Presidente do Sindicato dos Futebolistas não se mostrou surpreendido.
Até porque já tinha denunciado estas situações, em 2021, quando alertou o então Secretário de Estado da Juventude e do Desporto para o problema.
Garantiu que, na altura, foram convocadas as organizações, directa ou indirectamente envolvidas neste caso, nomeadamente o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, a Segurança Social e o Ministério dos Negócios Estrangeiros, que “houve uma reunião”, mas que “nada mais foi feito”.
O terminar (ou o adiar) da concretização dos sonhos desta centena de jovens é muito preocupante.
Os prejuízos, que este episódio pode trazer para as Academias dos clubes profissionais, que tanto têm dado ao desporto e a centenas de jovens, são incalculáveis.
Nada que mereça a milésima parte da atenção concedida, quer pelos nossos políticos quer pelas nossas televisões, por exemplo, ao célebre roubo de um computador do gabinete de um ministro.
O Governo, pelo Secretário de Estado da Juventude e Desporto, já veio considerar que “é inaceitável, chocante e condenável a situação que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras nos deu a conhecer, publicamente, através de uma operação de tráfico de seres humanos numa academia”.
Que teste magnífico para a nossa Justiça.
Vai ser curioso conhecermos a decisão, lá para 2040!
Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Não foi a primeira vez que Tedros Adhanom Ghebreyesus, o director-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), recebeu um doutoramento honoris causa. Nem será a última, com a cerimónia hoje na Universidade de Coimbra.
Tudo isto é banal, e não deveria causar-nos assim tanta celeuma ver uns universitários a entreterem-se a atribuir honoris causa a torto e a direito, muitas vezes não por razões científicas ou intelectuais mas mais por causas de índole pessoal ou política que beneficia mais quem entrega do que quem recebe.
Enfim, vanitas vanitatum et omnia vanitas. Já vi bem pior, como, por exemplo, agraciar Gouveia e Melo com um honoris causa pela Universidade Nova de Lisboa apenas pela sua “eficácia” como operador de logística de um fármaco, cuja administração até envolveu crianças e jovens saudáveis que nunca precisariam do dito.
Por isso, debater o polémico passado público e político, como governante etíope, de Tedros Adhanom Ghebreyesus não me interessa demasiado para o caso em apreço. Talvez interessasse mais saber a falta de coragem da OMS em apurar a verdadeira origem do SARS-CoV-2, por exemplo.
Ou a própria gestão caótica e ineficiente da OMS, que jamais teve liderança na pandemia, e ademais mostrou-se incapaz de manter sem constrangimentos os programas de rotina de vacinação para doenças evitáveis e de apoio sanitário em países subdesenvolvidos.
Falhou rotundamente, e em franjas da população mundial com elevadíssimas taxas de mortalidade infantil. Por exemplo, em Julho de 2021, a própria OMS e a UNICEF revelaram que 23 milhões de crianças perderam as vacinas básicas, mais 3,7 milhões do que em 2019. Mais recentemente, a UNICEF relatou que os níveis de vacinação infantil (segura) para doenças evitáveis desceu para níveis de 2008.
Ou também debater a influência das farmacêuticas e de organizações supostamente beneméritas mas com demasiada influência supranacional no seio da OMS, que se prepara para ter a tutela “política” em futuras pandemias.
Mas não. Interessou-me mais, por puro entretenimento de uma hora e meia, assistir à sessão encomiástica ao director-geral da OMS na vetusta Universidade de Coimbra, vestida a rigor, com capelos e verdeais, e música, e toda a parafernália que nos remeteu quase aos tempos do rei D. Dinis.
Nem de propósito, a alusão às Cortes régias faz aqui todo o sentido, porque ali sempre foram apreciadas tanto os bobos como os cortesãos. Os primeiros, com as galhofas, entretinham; os segundos, com as lisonjas, também.
Ora, ambos os papéis ficaram, nesta sessão da Universidade de Coimbra, a cargo do pneumologista Filipe Froes, o médico com mais relações promíscuas com farmacêuticas, que se consegue livrar das consequências de um processo disciplinar da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde com um “veto de gaveta” patrocinado pelo ministro da Saúde, e que tem artes e manhas para continuar a ser ouvido pela comunicação social mainstream. O facto dessa comunicação social ter cada vez mais relações comerciais com as farmacêuticas é apenas uma coincidência…
Mas não fujamos do foco. Filipe Froes foi escolhido para o elogio académico do director-geral da OMS na entrega do doutoramento honoris causa pela Universidade de Coimbra. Aconselho vivamente o visionamento, a partir do minuto 23, porque estamos perante não propriamente um Discurso do Rei mas sim perante um Discurso do Hipócrita. Froes é, de facto, um personagem. Um François Vatel do século XXI, sem a parte do suicídio, que adula e encanta “cozinhando” o seu “peixe”. Se salva vidas como pneumologista, não sei – acredito que sim. Mas ressuscita seguramente mais egos com a sua léria.
A minha passagem predilecta na sua louvaminha ao Tedros é, confesso-vos, aquela em que compara a acção do director-geral da OMS ao Santo António do sermão aos peixes do Padre António Vieira.
Disse ele, sem se rir, que Tedros “não necessitou da alegoria de se dirigir aos peixes para falar aos homens e às mulheres”; falou, actuou e interveio directamente “para enaltecer o valor sagrado da vida humana, de todas as vidas humanas, e para alertar os perigos da corrupção, da vaidade, do egoísmo, da intolerância, da prepotência e sobretudo da ignorância muitas vezes com a ilusão do conhecimento”. Eis um tratado da hipocrisia em poucos segundos.
Depois, elogiando Tedros como “salvador” de milhões de vidas, e investido de engenho camoniano, Flipe Froes amaciou a glande política do Governo, ao glosar que “também aqui Portugal honrou a sua História e o seu passado de glória, e foi pioneiro em mostrar ao Mundo, por mares dantes pouco navegados e tumultuosos, o caminho para a vacinação e para a mitigação de um pandemónio que tanto atormentou o Mundo”.
Mas isto da erudição cansa, e portanto Froes não podia deixar de fazer o papel de truão, concluindo que “numa linguagem mais próxima dos tempos e, sobretudo, dos jovens de hoje, se a OMS foi a Guardiã Planetária e a Estrela da Vida, Tedros Adhanom Ghebreyesus foi o nosso Super-Herói”.
E Filipe Froes foi e será sempre o nosso Super-Onan. O nosso masturbador-mor.
Longa e boa vida terá, que o mundo sempre lhe concederá, portando-se assim, boas prebendas e melhores sinecuras, porque isto anda bem para quem se banqueteia, como já dizia Erasmo de Roterdão.
Esta coisa do viver tem corpo mas também tem tempo. Como esse corpo que vestimos, e que esticamos a pele nos ossos, à medida que nos pomos de pé na vida, à medida que esse vestido fica solto, amarrotado e enrugado, onde antes existiam dobras, e a velhice se instala e nos aninha. A pele transforma-se em peles, todas as que vestimos, remendamos e engomamos ao longo do tempo.
Eventualmente, livres da pintura que pode esconder as brechas de terra seca que se abrem pela nossa cara, livres da roupagem que pode encobrir as manchas que povoam os nossos braços, livres para avistar os derrames que trepam pelas nossas pernas, vemos o tempo e não o corpo. Afinal, a quarta dimensão é visível e real, só que não conseguimos ver num momento só.
(E as curvas, as curvas onde alguém se pode aninhar em nós, onde nos podemos aninhar em alguém. Sento-me no teu colo e encaixo a cabeça na curva do teu pescoço e que descanso posso sentir, que alívio, que até o ar parece correr melhor dentro de nós se podemos repousar no carinho que um corpo encontra com outro corpo.)
A casa que nos embrulha não é diferente. Também se cansa, também se estraga e envelhece. Também decai e morre, também sofre abandono e entranha o cheiro das nossas peles nas paredes. (Será que fico a cheirar à minha casa?)
Tudo precisa de cuidado, de limpeza, de ternura, de um abraço. As coisas também. (As pessoas também.)
Mas os anos passam, e nós não vemos o tempo, a não ser quando ele já passou. Pensamos sempre que é cedo de mais ou tarde de mais. Pensamos sempre que há um ontem, um hoje e um amanhã, e que o hoje é já tão enorme que não dá para olhar para ontem ou imaginar o amanhã.
Não dá para falar mais baixo sem que os sussurros se infiltrem nas portas até enferrujarem as dobradiças que rangem, grasnam em cada vaivém. E não dá para falar mais alto sem que as vibrações sacudam as janelas e lá fora vejam que almas querem fugir a bater as asas e voar. (Longe, longe desta casa vou encontrar a minha casa.)
Cavar a terra para descobrir um projecto é como preparar o terreno para semear fruto desconhecido. Na verdade, não sabemos se estamos a pôr água de mais ou água de menos, não sabemos se quer sombra ou se quer luz. Só sabemos que, entre as ervas daninhas e o mundo a viver em volta, cada vez mais nos pavimentam os espaços vazios para que só passem as rodas, porque se passarem os pés sabemos que nos vamos queimar.
Da folha vazia passamos à folha amarrotada, no fim talvez cheguemos a um origami preciosamente podado, que levou tempo a mimar, aparar e amparar.
O mundo agora é feito de folhas amachucadas numa pressa. Amarfanhadas. Atiradas para o ar como quem tenta acertar no cesto dos papéis. Estas folhas sem desenho sempre existiram, espraiam-se pelas estevas desde sempre, agarradas o mais possível a ribeiros, que alimentavam campos, ou estão encavalitadas em buracos onde se conseguem enfiar nas cidades.
Mas estas folhas de ontem tinham uma coisa que as folhas de hoje não tinham: tempo. Tinham demorado tempo, tinham custado tempo, tinham durado no tempo, tinham materiais feitos com o tempo infindável da natureza que sempre existia e sempre existirá.
E isto, simplesmente isto, tinha uma dignidade que não conseguimos hoje ver nas placas pré-fabricadas empilhadas num armazém enorme, sujo de colas e venenos vários que nos apressamos em assemblar por cima da cabeça e respirar intensamente.
Então, agora passamos por muita construção. Muita mais do que alguma vez a minha avó viu. A terra já não entra dentro da cozinha de casa, o Estado (essa entidade sobrenatural) até já tanto construiu, e tantos de nós saíram das barracas.
Porque estais então tristes? Porque estais então cansados?
Posso ser eu a desenhar o espaço da curva do pescoço onde deveis repousar a cabeça e respirar de alívio?
Digam-lhes, não nos tirem as casas. Sejam elas como forem, não lhes chamem velhas nem tortas. Não nos digam que o nosso corpo polui o tempo, dêem-nos carinho, cuidado e limpeza. Criar demora, digam-lhes, aguardem.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Adeus… No cais, no último dia, crioula e flébil, com a criança ao colo, cujos cabelos louros brilhavam de um navio que viera do Norte, ela dizia-me – … mas leva, leva… – e estendia-me aqueles olhos azuis num corpinho esfarrapado e escuro. Eu perguntei – Mas tu dás-me o teu filho? (como podia eu levá-lo, que loucura a dela). E ela respondeu-me: – Leva… se ele fica aqui, morre de fome.
Jorge de Sena
ANTIGAS E NOVAS ANDANÇAS DO DEMÓNIO (1940)
Um pequeno ensaio sobre as formas tão bem concebidas que se tornam quase invisíveis de continuar, sistematicamente, a empobrecer a população e a fortalecer os infames 1% de quem já não se aguenta nem ouvir falar. O Trump faz parte dos 1%, o Putin faz parte dos 1%, e chega.
A Martina veio da Roménia agarrada às três filhas e com pouco mais, fugida num rompante à violência doméstica[1]. Em Estremoz encontrou um namorado romeno, que se chama Cornel e trabalha nas obras, e que, sobretudo, a trata como uma princesa. Também foi em Estremoz que a Martina descobriu uma casinha para viver, arranjou emprego a servir à mesa num dos restaurantes enormes da Feira, mas – e esta é a parte que eu não sei explicar bem, mas pouco importa[2] – enquanto não começar a receber o apoio da Segurança Social e as Autoridades Competentes não certificarem devidamente que a tal besta violenta não anda por aí, não pode ter as meninas com ela. Estão numa espécie de asilo, ou orfanato, ou lar, ou o que queiram chamar a tudo o que diz respeito a armazenar crianças, onde – diz o namorado[3] – “não lhes falta nada”.
Eu fico calada, mas é evidente que, acima de tudo, lhes falta a Mãe. E há-de faltar-lhes a segurança de saberem que desta vez, no lugar de Pai, está um homem que as estima, que não se mete nos copos, que se farta de trabalhar, e que, com o que ganha e com o pouco tempo que lhe sobra, ajuda a sua nova familiazinha tanto quanto pode.
A Martina não tem dinheiro para visitar as filhas mais do que de quinze em quinze dias. O Cornel é de uma tal dedicação ao seu novo projecto de vida que tira o dia para ir com ela, e ajuda sempre a pagar as viagens.
“Mas são assim tão caras, essas viagens?”
Quer-se dizer, de Évora para Estremoz o bilhete da camioneta custa 4,80 Euros. E, de Évora para Estremoz, a distância é de 46 quilómetros. Tendo em conta que, do Alandroal para Estremoz, a distância é apenas de 24 quilómetros…
“Que raio de transporte é que vocês usam, para tu teres que ajudar a Marina?”
“Oh, você sabe, Dona Clara. Comboio, isso acabou. E camioneta não tem. De maneira que ela vai e vem de taxi, é 60Euros para cada lado, portanto cada viagem é 120Euros. Às vezes ela não tem, mas, como é sempre o mesmo taxista, ele aceita fiado. Só que, depois, ainda fica mais caro.”
Tendo em conta que a bilheteira de Estremoz fica no Bar da Estação da Rodoviária local[4], é inútil ir lá perguntar qualquer coisa a não ser se tem imperial preta ou se só tem branca. Um senhor sempre muito bem posto[5], que é advogado em Lisboa mas foge para a sua terra assim que pode e nessas alturas se cruza frequentemente comigo nos passeios nocturnos do Sebastião[6], indicou-me o Turismo como local onde se pedem informações sobre minudências dessas[7]. E mais acrescentou:
“Não sei se estás bem a ver, mas dantes essas camionetas que fazem a ligação entre as aldeias mais pequenas andavam sempre cheias. Agora, como já não há pobres, toda a gente tem carro, não é? Então claro, cortou-se imenso nesses pequenos trajectos das camionetas.”
Desculpem.
AGORA QUE JÁ NÃO HÁ POBRES?
AGORA???
Mas esta gente vive em que mundo?
Está mais que estudado, mais que provado, mais que galardoado com o Nobel – toda a gente sabe que não há nada mais fácil do que acabar com a miséria. Só requer vontade política para isso.
Pelos vistos, esta é a vontade política de uma maioria absoluta que continua a autoapelidar-se de Socialista.
O raio que os parta.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] O pior, explica ela no seu português ainda muito hesitante, nem sequer era o que o monstro lhe fazia a ela. O pior, mesmo, eram as tareias que dava às filhas quando chegava a casa a meio da noite e podre de bêbado. Chegou a partir a clavícula da mais velha, que aguentou toda a fuga neste estado. Passou um ano e meio. A fractura ainda está a ser tratada no tal depósito de crianças do Alandroal.
[2] Alguém consegue explicar com absoluta coerência os procedimentos da Segurança Social? E, pior um pouco, por alma de quem é que esses procedimentos implicam separar os pais dos filhos? Desculpem a analogia, mas é que parece mesmo uma daquelas medidas estupendas do Trump.
[3] Note-se de passagem que este namorado cheio de dedicação tem um corpanzil que mete respeito, e anda a fazer obras cá em casa. Ou seja, aos olhos da população de Estremoz arranjei finalmente um gajo. E que gajo, caros leitores.
[4] Esse é outro tratamento da população absolutamente indigno. A estação é grande, e costumava ter uma bilheteira, onde uma pessoa podia pedir todas as informações que quisesse. Esta bilheteira fechou durante o primeiro confinamento, e depois nunca mais voltou a abrir. Nem toda a gente tem PCs, nem toda a gente sabe usar a internet, e aliás há imensa gente que nem internet tem. Houve para ali um momento de confusão, em que era frequente as pessoas irem de propósito a Borba, que é uma cidade bastante mais pequena que Estremoz mas ao menos tem bilheteira, para terem a certeza de que estavam a comprar os bilhetes certos. Depois o Bar – que, esse sim, faça chuva ou faça sol, está sempre a abarrotar de convívio com cerveja – viu ali uma óptima oportunidade de facturar mais uns cobres nada desinteressantes, por isso agora a gente compra os bilhetes no mesmo sítio onde compra as empadas e as queijadas. Uma vez a confusão na fila era tal que eu comprei um bilhete para Tavira, e, quando olhei bem para ele, era um bilhete para Lisboa. A senhora da caixa trocou o meu bilhete com o de outra pessoa qualquer. E, para remediar a situação, explicou o caso ao motorista, que se esteve bem nas tintas para a complexidade de tudo aquilo e me levou até Tavira com um bilhete para Lisboa.
[5] Agora que o dia se prolonga até às 22 horas, e levando em linha de conta que às 21.30 o Sebastião já está no seu posto ao cimo das escadas, a olhar para mim com uns olhos muito grandes de pobre cachorrinho abandonado, vê-se ainda melhor que as camisas do senhor são de botões de punho, que os loafers do senhor são da melhor camurça italiana que há, que só usa cintos de cabedal finíssimo e que nunca anda despenteado – ah, mas tudo isto ainda não é nada. O melhor de tudo, mesmo, é a voz do senhor. Uma autêntica voz de locutor de rádio, em baixo profundo e com sotaque de Estremoz. Este senhor ainda nem fez sessenta anos, quase não tem cabelos brancos, há cerca de três anos deixou completamente de beber, e está disponível. Depois não digam que não vos avisei.
[6] E não sei se é after-shave se é perfume, ou mesmo se será do shampô com que a sua dedicada Josefa dá banho ao imponente pastor belga que ele traz à trela – a verdade é que este senhor, além de estar sempre composto, também cheira sempre muito bem.
[7] Estranhei, não é? Uma banalidade como inquirir da camioneta Estremoz-Alandroal no Turismo? E ele, sempre com aquela sua linda voz, todo satisfeito com o nosso bate-papo porque assim podia fumar um cigarro até ao fim: “Então, ó Professora. Francamente. Hoje em dia, quem é que passa horas a fio a cruzar o Alentejo Profundo nessas camionetinhas que não sejam os turistas?”
Não sei bem a que sociedade de consumo imediato se referiam os Táxi, no seu álbum de estreia com o mesmo nome, no longínquo ano de 1981, a década que representou o boom do rock português.
Não tenho assim tantas memórias desses tempos, embora já por cá andasse, mas pergunto-me se não estaria a banda de João Grande a antecipar a mudança de século e a sociedade em que nos tornámos.
Drama, escândalo, miséria e destruição. Tudo consumido ao minuto em doses insuportáveis de sofrimento alheio a que nos tornámos indiferentes.
Pensei nisto a propósito de Luis Aleluia, o eterno menino Tonecas como lhe chamaram os jornais no dia em que se soube da sua morte.
Gosto pouco de abordar dramas alheios sobre os quais, em regra, sabemos ou percebemos uma ínfima parte. Mas parece que Luís Aleluia deixou uma mensagem de despedida, o que me levou a pensar que não tinha mais vontade de andar por cá.
Este caso é notícia de jornal porque o actor era uma cara conhecida dos portugueses, tal como outros actores, jornalistas, músicos e personagens que nos habituámos a ver, e que, por uma ou outra razão, acharam que era chegada a hora de acabar com o sofrimento.
Penso, em alturas semelhantes, quantas vezes deve este homem ter pedido ajuda sem dizer muito. Quantas vezes deve ter dado a entender que precisava de algo mais.
É um traço desta sociedade, a tal de consumo imediato, de já não conseguir ouvir. Não há tempo, não há paciência. Estamos fechados nas nossas rotinas, nos nossos problemas, sem espaço na agenda para quem está ali ao lado.
Os nossos problemas, as lutas diárias, são o nosso grande drama. Pode ser ir buscar o filho à escola no meio do trânsito da tarde ou discutir a vida da amiga que, entretanto, se afastou. A nossa realidade, por muito simples e corriqueira, não nos permite levantar a cabeça do umbigo e olhar um pouco para o lado.
Luís Aleluia disse, numa entrevista há poucos anos, que tinha sofrido maus-tratos e violência em criança. Acrescentou que encontrava amor e felicidade nos amigos e nos palcos. Tal como ele, há um infindável número de anónimos que sofre sem falar, que timidamente assume uma dificuldade, que dá indicações de que o desencanto pela vida vai aumentando.
Mas não ouvimos. Não temos tempo. Passamos o dia a consumir qualquer coisa, sem sabor, muitas vezes sem importância, para no dia seguinte começarmos o processo novamente.
Mascamos. Deitamos fora. E nunca olhamos em redor.
A depressão existe e, tal como a sociedade de consumo imediato, mata.
Sejam simpáticos uns com os outros. Não fechem os olhos aos avisos.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
No livro “Alice no País das Maravilhas”, publicado originalmente em 1865, o escritor britânico Lewis Carroll conta a aventura de uma jovem que cai num buraco de coelho e começa uma viagem num mundo surreal e mágico.
A narrativa começa com a Alice a seguir um coelho branco, apressado, num mundo estranho chamado País das Maravilhas. Lá, ela encontra uma série de personagens peculiares, como o Chapeleiro Maluco, a Lagarta Azul, a Rainha de Copas e o Gato de Cheshire, cada um com características e personalidades únicas.
O Chapeleiro Maluco conta então, se bem me recordo, uma história irreal e fantasiosa sobre o Reino das Maravilhas, que fazia parte de uma confederação de reinos e prestava vassalagem a um Imperador.
Era um dos reinos mais pobres; e, por essa razão, o Rei e os seus ministros imploravam a toda a hora por mais dinheiro junto do Imperador, atendendo que os brutais tributos a que o povo era submetido sempre pareciam insuficientes para cobrir as colossais despesas.
É certo que o Imperador também não possuía quaisquer recursos, mas possuía uma incrível máquina que produzia dinheiro, uma autêntica magia! Sempre que os reis pediam dinheiro, a máquina começava a cuspir notas e moedas sem fim; desta forma, o Imperador mantinha os seus vassalos felizes, apesar do descontentamento dos povos da confederação, pois os preços, à conta disso, estavam sempre a subir.
A Corte tinha assim uma vida sumptuosa, o Rei e os ministros viajavam a toda a hora de avião para outros reinos.
De todos, o Rei era o que gostava mais de viajar. Também gostava muito de ir à praia. Por vezes, até fabricava motivos para viagens oficiais para dar um saltinho a um areal e dar um mergulho em águas quentes.
O Rei e o seu principal ministro adoravam trapacear o povo, contando-lhe histórias incríveis para o ludibriar e fazer-lhe crer que o amavam muito. Sempre que se encontravam, riam-se a bandeiras despregadas das muitas patranhas que contavam ao povo. Uma vez, até lhe fizeram crer que existia uma doença muito maléfica, para assim o prender em casa e obrigá-lo a tomar uma substância que diziam curar e prevenir a maleita e salvar desde velhinhos caquéticos a jovens robustos. Disseram-lhe que só assim lhe devolviam a liberdade.
Para além de viajar de avião, o Rei também gostava muito de futebol. Muitas vezes, até tinha por hábito jantar com os jogadores uns dias antes das pelejas, só com o fito de lhes desejar sempre boa sorte. Acreditava também que era um amuleto mais eficaz do que o artilheiro de pés de ouro nascido numa recôndita ilha do reino. Às vezes, até gostava de discutir a táctica com o treinador, ficando altas horas da noite em amena cavaqueira, enquanto se alambazava a petiscos e beberes.
Certa vez, na véspera de um jogo importante, talvez por estar demasiado concentrado na partida, até se esqueceu de um compromisso: a abertura de um memorial às vítimas de uns incêndios que tinham ocorrido há muitos anos nas florestas do reino e que vitimaram muitas pessoas. Apesar da negligência dos serviços do reino, o Rei e os ministros nunca assumiram as responsabilidades por tal tragédia.
Espantados com tal ausência, os súbditos pediram uma audiência ao Rei para conhecer os motivos. O Rei não se deixou intimidar. Para espanto de muitos, a sua resposta foi simples e directa: apenas tinha tido conhecimento da abertura oficial, marcada para a semana posterior, pelos órgãos de propaganda do reino, por essa razão, nem à abertura lhe seria possível ir.
Neste Reino das Maravilhas, não era apenas o Rei que apreciava muito o futebol. O seu principal ministro também. Por exemplo, certa vez, a meio da viagem de avião ao reino dos moldavos, decidiu fazer uma escala para ir assistir a uma partida de futebol, o que gerou muita indignação, pois estas viagens, para além de serem muito dispendiosas, eram sempre pagas pelo povo.
Mas o Rei tinha sempre uma boa história. Para terminar com aquele burburinho, disse que nada de especial tinha acontecido, apenas a falta de gasolina a meio da viagem; por mera coincidência, ocorrera ali uma partida de futebol e o seu ministro aproveitou para passar o tempo e dar um abraço a um súbdito especial que ali estava, enquanto o avião era reabastecido. Coisa de meia hora.
Mas a revolta não cessava, com muitos a questionarem-se como tal tinha sido possível, pois parecia-lhes improvável um ministro tão experiente não ter instruído correctamente os pilotos no planeamento da dita viagem. Para acalmar os seus súbditos, disse-lhes que afinal não tinha sido falta de gasolina, mas apenas uma decisão de última hora do seu ministro; afinal, tal como o Rei, ele gostava muito de futebol.
A agitação teimava em continuar no Reino das Maravilhas. Tinha sido a falta de gasolina ou uma decisão de última hora? As dúvidas persistiam. O ministro, a pedido do Rei, informou os súbditos que o seu gabinete ia dar uma justificação cabal sobre o assunto. Passados uns dias, ela apareceu: tinha recebido um convite para o jogo de futebol e decidira aceitar, atendendo que apenas obrigava a uma paragem a meio do caminho.
O povo, obnóxio e arruinado por avultados impostos, tinha aprendido uma lição. O Rei e os ministros necessitavam de divertir-se para lhes proporcionarem um bom governo. Tão-só. Não valia a pena levantar dúvidas ou solicitar explicações, no final, era claro que existia sempre um fundo nobre a guiar todas as decisões: o eterno amor ao futebol, essencial ao espírito de uma boa governação.
Para além destes contos mirabolantes do Chapeleiro Maluco, recordo-me que, no livro de Lewis Carroll, a Alice depara-se com mais situações absurdas e ilógicas. Ela encolhe e cresce de tamanho várias vezes, participa de um chá insano com o Chapeleiro Maluco e a Lebre de Março, joga com flamingos e ouriços e testemunha um julgamento maluco conduzido pela Rainha de Copas.
Durante a sua jornada, Alice tenta entender as regras e a lógica desse mundo estranho, mas descobre que tudo parece estar ao contrário daquilo a que está habituada. As conversas com os personagens levam-na a questionar conceitos de identidade, linguagem, realidade e lógica.
Finalmente, Alice acorda e percebe que tudo o que aconteceu foi um sonho: afinal, tinha sido uma visita fantasiosa ao País dos Lusitanos.
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Descobri por acaso a Simonetta Gatto, uma linda criatura nascida no Zimbabwe de pais italianos, nascida em movimento.
Com a Simonetta, que escolho mencionar hoje sem a avisar previamente, descobri, de uma forma doce e singela que Bolonha, a cidade que desenhou novos contornos no mundo académico nas últimas décadas, era a Manhattan da Idade Média, tendo sido alcunhada de “La Turrita” graças a um fantástico skyline de mais de 150 torres, 22 sobreviventes aos nossos dias.
Eram tantas, que o terreno até aluiu. Uma coisa que acontece quando muitos gigantes de egos bicudos se empilham demasiado próximo. Coisas de torres, portanto…
Outras coisas próprias de torres é servirem por exemplo para as treparmos, nem que seja com ideias mais revolucionárias. (Toca o sino!)
Foi o caso de Galileu que subiu uma das torres, ainda hoje viva, para cismar em atirar diferentes objectos de lá de cima e tecer as suas ideias sobre gravidade e velocidade terminal. Assim vemos que, por vezes, até torres que ameaçam a terra podem ter o seu uso no ar, nem que seja para atirar algo de lá de cima. Com diferentes formas, pesos, materiais, lá ia tudo caindo até cá baixo. (Experiências nocturnas claro, para não acertar em ninguém no cocuruto.)
– E como conseguia Galileu rigor científico nas suas experiências? – perguntei eu na minha mente, e Simonetta respondeu-me:
– Um pêndulo construído com toda a precisão, de um tempo que andava devagar, e um pequeno coro de Jesuítas entoando em uníssono um cronómetro musical. Não era perfeito, mas era perfeito para aquele tempo.
Assim se tentava refutar o princípio da equivalência de Aristóteles, que postulava que o mais pesado caíria mais depressa. Começou-se o trabalho. Mas só se concluiu parte dele em 2017.
Mesmo Einstein teorizou em fórmulas, mas não conseguiu verificar; teve de ser um pequeno satélite francês a concluir a experiência de Galileu em órbita (será que também tem coro de Jesuítas?), e assim se vê como a Ciência atravessa séculos para responder a uma singela pergunta, em que na verdade a maioria de nós nem entende o porquê de tal curiosidade.
Ambiciosos e visionários gigantes que dizem para onde devemos ir. Como devemos viver. Que ajardinam o mundo para nos estender a todos na relva (e enterrar). Especialistas em maquinar políticas em corredores escuros e sinistros, globalistas que tecem uma teia e berram ameaças. Se o mar nos engolir, se o sol nos incendiar, se os vírus nos devorarem… eles terão a solução: controlo.
A máscara, a vacina semestral, a moeda digital, o rastreamento do teu movimento, da tua alimentação, dos teus comportamentos. Da queda em velocidade terminal que os aguarda eles movem-se na fé de que se subirem alto o suficiente serão a ave de rapina que paira sobre nós ratinhos, de garras estendidas.
Já se viu em Bolonha, nas torres ou na uniformização do ensino superior disfarçada de liberdade de movimento e garantia de qualidade. Uniformização é a chave, esmagar a anomalia.
Porque este imperador (certamente uma teoria de conspiração) considera as anomalias um risco (para o topo das torres).
E o pêndulo construído com toda a precisão, de um tempo que anda depressa, que nos acerta nas costas e empurra-nos para a esquerda e para a direita. Pensamos nós, ratinhos, que existe diferença, enquanto as torres se empilham nos nossos ombros e nós como terra, aluímos.
Pobre do imperador, todo nu, não sabe ele na sua infinita arrogância, que nós que vivemos em tocas somos a massa que edifica este mundo. Nós que escavamos a terra e abrigamos as nossas crias experimentamos um amor que ele nunca conhecerá.
Nós, que vivemos com medo, quando na verdade temos o poder, nas nossas mãos e nos nossos pés descalços. Porque nós fazemos parte deste Mundo, e eles, lá em cima, vão ficar a pairar no silêncio infinito da nossa órbita.
No fim, todos caímos, à mesma velocidade.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 5
Será que o edifício elaborado, nervoso e ansioso e orgulhoso, e supersticioso e enganoso, do material cerebral que constrói a nossa humanidade, ainda está imbuído da essência profunda daquele cérebro que existiu na floresta tropical?
Richard Wrangham e Dale Peterson
DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)
Até agora aprendemos algumas coisas impossíveis[1] sobre a nossa natureza profunda de Grandes Primatas[2], passe-se a acção no Alto Alentejo ou no Alto Volta[3]. Logo para começar, os dados científicos obrigam-nos a engolir que estamos evolutivamente e socialmente mais próximos dos chimpanzés do que esses mesmos chimpanzés estão próximos dos gorilas. Ainda por cima, isto não é assim tão fácil de disfarçar como isso. Somos as duas únicas espécies com a necessidade compulsiva de conquistar mais territórios para a nossa tribo – e que, para o efeito, travam entre si guerras horríveis e cruéis. Somos as duas únicas espécies que matariam o vizinho do lado mesmo, sem existir uma única razão para isso que não seja o prazer de toda aquela adrenalina das lutas entre gangs. E somos as duas únicas espécies que cultivam a violência doméstica como forma de manter as suas sociedades na ordem.
Mas não somos as únicas duas chavetas de Grandes Primatas[4] a recorrer à brutalidade onde ela lhes parece necessária.
E parece que é sempre no que, de uma forma ou outra, tenha a ver com a reprodução.
Ou seja, parece que não há forma de separar a brutalidade da sexualidade.
Vejam-se, por exemplo, os orangotangos, esses trogloditas ruivos tão ternos e tão comoventes, elas sempre com uns filhotes amorosos às costas[5]. Os orangotangos são os menos sociais de todos os grandes primatas. Às vezes duas ou três fêmeas adolescentes juntam-se por dois ou três dias para passeatas cheias de conversatas, em grupo, no topo das árvores. Às vezes também se junta mais do que um jovem macho, já libertos das Mães, que preguiçam todos juntos entre as lianas ou aproveitam zonas mais escuras para espiarem uma ou outra fêmea.
E é tudo.
Os orangotangos nunca formam tribos, nem famílias, nem casais. Claro que tentam passar muitos genes à progenia, e merecem que se note que são extremamente activos nessas actividades. E fazem-no utilizando sistematicamente o mesmo método: violando tantas fêmeas quantas conseguirem, mesmo que elas ainda andem com um filho e, portanto, não estejam a ovular[6].
E os gorilas? Uns pais de família que, estudados de perto na Natureza, se revelaram tão perfeitos e carinhosos que o pessoal esqueceu completamente o King-Kong e agora tende a chamar-lhes Gentle Giants? Hmm. Giant, certamente. Mas Gentle? Basta serem machos jovens que ainda não têm a sua própria família, e que, por sorte, apanham a mulher do chefe, com um bebé adorável no colo, isolada e distraída: saltam-lhe em cima, roubam-lhe o bebé, matam-no ali mesmo para que ela veja, e logo a seguir arrastam-na atrás de si para começarem a vida familiar do zero depois deste cortejamento auspicioso.
Três espécies de grandes primatas, e sempre o mesmo padrão. Fêmeas? Raptam-se e violam-se. E, seja por ser considerado necessário ou seja apenas por ser muito apetecido, espancam-se. Como é que estes maridos alarves sacaram estas mulheres maternais? Sempre a mesma história. Elas foram completamente parvas e deixaram-se isolar do seu grupo.
Então mas a menina não sabia que não podia andar por aí a passarinhar sozinha, sem a protecção do seu marido?
E eu?
E se eu fosse comprar um marido daqueles que estão sempre em saldo no mercado, e depois o deixasse viver em paz no seu tugúrio porque éramos um casal moderno, mas pronto, o essencial estava garantido porque eu já podia dizer “o meu marido”, não era? E, aos olhos de toda a gente, readquiria a normalidade que perdi a cinco de Janeiro de 2005.
CPC descoberta pelos nossos paparazzi a frequentar um curso de bonobo.
E – melhor ainda, parece-me – se eu passasse, pura e simplesmente, a dizer a toda a gente qualquer coisa como “o meu marido, que é daqueles Sargentos que fazem formação nos Comandos, está a fazer a sua terceira comissão na República Centro-Africana?”
É que uma fêmea farta-se.
A sério.
Comecei a perder a paciência para tanto Desmodus rotundus estremocencii[7] quando o gordo da esplanada lá de cima[8] me tocou à porta a meio da tarde, me obrigou a parar o que estava a fazer para ir abrir, e me apareceu à frente todo suado, a feder àquele fedor específico e enjoativo que se solta em cada respiração da própria pele de quem esteve a beber muito, e começou a dizer, sem o mínimo de discrição, mesmo em frente da porta do dentista, “vá lá, deixa-me entrar… vamos fumar um charro! Vá lá, anda, um charro!”
O Sebastião tinha só cinco meses à data, e levava o gordo em conta de amigo, pois que ele está sempre naquela esplanadinha onde eu vou tomar café e buscar comida – e toda a gente grita, especialmente os meninos, “olha o Sabastião!” – “anda cá, Sabastião!” – “dá a pata, Sabastião!”, e tal e tal. Mas, assim que me viu tentar empurrá-lo para fora de casa enquanto ele ia repetindo “um charro… um charro…” como um disco riscado, e continuava a tentar entrar em casa, todo o seu instinto de cão de guarda veio à superfície. Percebeu logo que com amigos daqueles eu nunca precisaria de inimigos, e saltou-lhe às goelas com um tal rosnar de lobo enfurecido que o gordo desapareceu escada abaixo num instante.
Eh pá, se estas escadas falassem.
Agora tive um daqueles acidentes imprevisíveis que ninguém consegue evitar por completo, e arderam-me duas divisões da casa. O Rogério, que trabalha nas obras, ofereceu-se imediatamente para tratar do restauro. Como eu estava mesmo muito mal de finanças, pediu às minhas irmãs uns oitocentos euros para materiais. E depois foi só assim. Meteu o dinheiro ao bolso, mandou dizer que estava doente, nunca mais me atendeu o telefone ou abriu a porta, às tantas já nem os colegas nem os vizinhos sabiam dele, e três dias mais tarde, faz agora um mês, que desapareceu por completo.
“A menina Clarinha devia ter vindo falar comigo primeiro, que eu arranjava-lhe uns homens de confiança. Agora vai a menina falar sozinha com um pedreiro manhoso, e mais as suas irmãs, todas tão bonitas e tão bem-postas a falar com aquela gente… o que é que achou que um pintas como o Rogério ia pensar? Achou mesmo que ele era seu amigo? Ora adeus, quando vamos a ver aquela gente nunca é amiga de ninguém.”
Já lá iam mais de dois anos desde a minha mudança para o Largo Sem Localização Latente[9], e era cada vez mais evidente para mim o que é que todos aqueles pintas pensavam. Primeiro não me ligaram grande coisa, porque devem ter imaginado que eu só estava ali de passagem. Mas, à medida que o tempo passava e eu me instalava de forma cada vez mais profunda, fazia amigos, enchia o terraço de flores e ervas aromáticas, montava uma gaiola toda elegante para o meu casal lindíssimo de Galinhos da Malásia, e, finalmente, começava a aparecer em toda a cidade com um belíssimo cão à trela[10], tudo isto sem nunca aparecer por ali ninguém com ar de marido, namorado, ou vá, enfim, de amigo colorido – então, à medida que se tornava óbvio que eu tinha mesmo ido para ali viver, e que vivia ali sozinha, começaram a circular toda a sorte de rumores sobre as minhas verdadeiras intenções[11].
No Verão passado, durante a noite, numa daquelas semanas em que a temperatura nunca desceu abaixo dos quarenta graus fosse a que horas fosse, estava eu de janela toda aberta com a torre grande do castelo a brilhar ao fundo, o Júnior deitado ao meu lado sem mexer nem as pálpebras, e já há quase uma hora mergulhada nas delícias do DOCTOR BRODIE’S REPORT, do Jorge Luis Borges, enquanto deitava abaixo uma garrafa de água atrás da outra. Pelo meio disto tudo, com o Júnior já a ressonar no seu sono de cão feliz sem remorsos, começo a ouvir, ainda confusamente, duas vozes de homem que vinham de mesmo debaixo da minha janela.
São duas da manhã e estes homens não são dois bêbedos, são apenas dois alentejanos daqueles dos normais.
Que raio de conversa é que podem estar a ter, assim tão descuidadamente, em voz tão alta, por baixo da minha janela?
Pus-me à escuta.
E aquilo ouvia-se bem.
“Atão mas ela é uma puta?”
“Na senhor, home, ela é mais assim uma artista.”
“Aaaah. Olha-me só qu’intressante.”
E seguiram o seu caminho nas calmas, enquanto eu encerrava mentalmente a minha série dedicada ao masculino estremocence e ao universal, recordando, ainda, outro parágrafo de DEMONIC MALES.
“Para nós, humanos, o maior perigo não é que o macho demoníaco seja a regra na espécie. Vendo bem as coisas, outras espécies que seguem a regra dos machos demoníacos não estão em perigo de extinção quando entregues a si próprias. O verdadeiro perigo é que a nossa espécie combina o demonismo masculino com uma inteligência ardente – e, portanto, possui uma capacidade sem precedentes para criações e destruições. O grande cérebro humano é o produto mais assustador da Natureza.”
(fim)
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Mas, como consta que Galileu terá dito ao abjurar que a Terra rodava em volta do Sol perante o tribunal dos Jesuítas, “E, no entanto, elas movem-se!”. E consta que, ao findar o seu protesto, embateu com o pé e tudo. Claro que toda esta linda história não passa de um mito urbano, e não sou eu quem vai pôr-se a servir gato por lebre aos nossos leitores. Mas enfim, é um mito muito bem esgalhado. Ajuda a enfatizar o que está aqui em causa, ou seja: há muita coisa que pode perfeitamente parecer impossível, mas, quando conseguimos estudá-la melhor, percebemos que é tão possível que se torna tautológica. E, nessa altura, bate-se o pé.
[2] Isto presta-se a debates muito sérios, porque não faltam aí primatologistas, ou pura e simplesmente biólogos tout court, que recusem esta forma de arrumar os nossos grupos. Mas, se o Homo sapiens for o tal Quinto Primata que tanta gente diz que é, então está mesmo na linha divisória entre uma tipologia e outra. Ou seja, de um lado estão o Orangotango, o Gorila, e o Humano; e do outro lado estão o Humano, o Chimpanzé, e o Bonobo. Este último só foi descoberto há setenta anos, é pouco conhecido do Português Comum, mas vale a pena realçar que é uma espécie bué gira, mais pequena e muito menos belicosa do que todas as outras, com uma organização social baseada, sobretudo, na amizade entre as fêmeas.
[3] Ah. Caraças. Olha, o teu problema é teres os ossos todos enferrujados, OK? CLARO QUE EU SEI que desde as minhas aulas de geografia no liceu até hoje o Alto Volta se tornou um país livre e passou a chamar-se Burkina Faso. E mais, gosto tanto de Ouagadoudou que já nem me lembro do nome da capital durante a colonização francesa. Mas, Santo Deus. Nunca brincaste aos jogos de palavras? Tipo Alto Alentejo e Alto Volta? Ele há cada leitor mais perro…
[4] Em termos taxonómicos, isto é bastante mais fácil de entender (e, consequentemente, de organizar) do que parece: os PRIMATAS são os únicos macacos que não têm qualquer espécie ou vestígio de cauda.
[5] As fêmeas do Pongoborneo, e das algumas outras espécies de orangotango igualmente estudadas de perto na Natureza, só têm um filho de cada vez. Como vivem nas camadas mais altas de folhagem da floresta equatorial, e é aqui que os jovens precisam de saber onde é que, em cada noite, devem fazer o seu novo ninho, ou onde é que podem encontrar bons lugares para procurar frutos e nozes que ainda nenhum rival tenha dizimado, precisam de ter todo o seu habitat memorizado para conseguirem sobreviver sozinhos, tal como nós precisamos de aprender a ler, escrever, a declinar a tabuada, a fazer contas, e finalmente a aceitar que a ordem dos factores não altera o produto (ainda por cima, esta última lei é de tal forma um vox populi psicológico que convém, mesmo, nunca nos esquecermos dela), para podermos sair da escola e vir a ter uma vida interessante. No caso dos orangotangos, o professor é a mãe, a escola é a floresta, e o livro de texto contém a viagem por todos os habitats que interessam aos orangotangos em formação. Memorizar este mapa equatorial e saber dar-lhe o seu melhor uso demora oito anos.
[6] A ovulação só recomeça nos últimos dois anos de educação do filho. Os machos sabem perfeitamente que nenhuma fêmea recomeçará a ovular enquanto o filho que transporta consigo não fizer seis anos – e a ausência de ovulação é assaz explícita, uma vez que modifica a cor, a humidade, e o tamanho dos grandes lábios vaginais.
[7] O Desmodus rotundusé o morcego-vampiro da América do Sul, que se alimenta sobretudo do sangue do gado mas pode tornar-se perigoso para as populações nos anos em que, geralmente devido a uma seca violenta, as cabeças de bovino começam a escassear. Quanto ao estremocencii, é o nome dado à subespécie, dado a chupistas desta natureza residentes em Estremoz. Ah, sou boa nisto! Lineu não faria melhor. Estás orgulhoso da minha literatura binária com subespécie aposta, Padrinho?
[8] Este nojento e o seu paradeiro nem nome merecem. E é uma grande pena, porque a cozinha do sítio, saída da obra, da energia, e da coragem de duas mulheres imparáveis, é deliciosa e muito barata.
[9] Este sítio maravilhoso ainda há de ter muitos nomes até a terrível gentrificação desta cidadezinha de província que costumava ser tão genuína me obrigar a ir procurar outro esconderijo, bastante mais esfarrapado e substancialmente mais esconso, onde a própria população local meta tanto medo aos estrangeiros que ainda seja capaz de evitar a sua instalação e a consequente passagem das rendas para o dobro.
[10] Foi o cão que veio antes do Sebastião, e me deu um desgosto tão grande quando morreu aos dez anos que eu percebi logo que sem marido estava-se bem, mas sem cão a vida era uma grande tristeza. Era um Leão da Rodésia perfeito, com os olhos cheios de ternura, que se chamava Júnior e precisou de uma enfermeira particular durante mais de um ano. Tinha sido ferido com uma selvajaria incrível pelos seus dois irmãos mais novos numa disputa renhida pela posição de macho alfa. O que, uma vez mais, confirma que não é só entre todos os Grandes Primatas, mas antes um pouco entre todos os mamíferos, que os machos são capazes de se matarem uns aos outros para ganharem a supremacia total dentro do grupo.
[11] Que, regra geral, não eram boas. O pessoal acha muito estranho eu ter um rafeiro alentejano em casa. Eu nunca digo nada, mas francamente. Porque será que é importante para a minha paz de espírito viver com um dos maiores cães que há, famosamente dedicados aos donos e no cimo da escala enquanto cães de guarda?
As listas de espera têm sido uma das maiores pechas do Serviço Nacional de Saúde (SNS) quase desde a sua instituição, em 1979.
Curiosamente, a maior parte dos “especialistas da saúde” não entende a razão de ser das listas de espera. Razão que é facílima de explicar: o SNS é uma organização estatista, as instituições são públicas, os trabalhadores são funcionários públicos e a administração é centralizada por comando e controle. Ora, neste tipo de organizações sempre surgiram desencontros entre a oferta e a procura, provocando filas de espera, por vezes para bens de primeira necessidade.
Para tentar minorar o impacto das listas de espera, os Governos – dos diferentes partidos e coligações – organizaram programas especiais como o Programa Especial de Recuperação das Listas de Espera (PECLEC), o Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC) e agora o Adicional.
O Adicional, como o nome sugere, começou por oferecer às melhores equipas a possibilidade de preencheram tempos vagos do Bloco Operatório com casos “adicionais”, que eram remunerados extra (à peça). Evoluiu, contudo, para o formato actual em que o hospital designa períodos, que podem ser em qualquer dia da semana (inclusive Domingos), onde os médicos, que assim o pretendam, podem trabalhar à peça, desde que fora do horário de serviço.
Evoluiu para “UM SNS, DOIS SISTEMAS” (parafraseando Deng Xiaoping, “Um país, dois sistemas”). Dentro do horário de serviço, o médico é um funcionário do Estado; e fora do horário de serviço, mas sempre dentro do SNS, é um freelancer pago à peça.
Ora, o que é que pode correr mal neste arranjo, que tem o alto patrocínio do Ministério da Saúde?
E se… os profissionais “travassem a produtividade” nas horas de serviço e “acelerassem a fundo” no adicional?
E se… desnatassem a seleção de casos para o adicional (selecionando os casos mais fáceis)? E se… usassem técnicas diferentes na rotina e no adicional?
Vale a pena fazer este clássico “What If”, quando nos chegam ecos de Domingos de Adicional preenchidos com dezenas de casos e períodos de rotina com o Bloco Operatório meio-vazio. Serão apenas rumores sem fundamento ou haverá algo indecoroso que se está a passar.
Como médico, ficaria surpreendido que um colega fizesse depender a sua praxis da remuneração. Como gestor, ficaria surpreendido que as administrações fechassem os olhos a abusos que defraudassem o SNS, onerando o custo de cada intervenção (não esquecendo que há também a cegueira da corrupção). Como cidadão ficaria escandalizado com os cambalachos a céu aberto.
O meu desejo é que os incentivos perversos inscritos no ADN do Adicional não tenham dado lugar a “What If”. Já há demasiados problemas no País.
Joaquim Sá Couto é médico
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.