Categoria: Opinião

  • Mais um torpe ataque ao PÁGINA UM

    Mais um torpe ataque ao PÁGINA UM


    O PÁGINA UM nunca fez concessões. Nunca cedeu à promiscuidade que contamina os media tradicionais e compromete a independência jornalística. Na verdade, desde a sua fundação, tem denunciado os abusos, a falta de transparência e a parcialidade de instituições que deveriam zelar pelo rigor da profissão.

    Revelámos jornalistas ‘comerciais’, que apresentavam eventos promocionais, que tinham empresas de comunicação, que fazia media training, que exerciam sem título profissional. Revelámos também a ‘mercantilização’ do jornalismo por empresas de media, através de parcerias comerciais que colocavam em causa a independência editorial, e mesmo ingerências inaceitáveis. Fomos também o primeiro jornal a falar abertamente da crise financeira dos media portugueses (Global Media e Trust in News, por exemplo) e de como minava a credibilidade da imprensa. Fizemo-lo sempre com consciência do nosso dever e respeito pelas normas deontológicas.

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    Mas esta integridade tem um custo, sobretudo dentro da classe. Por exemplo, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas (CCPJ), uma entidade pública mas representada apenas por jornalistas, sob a liderança de Licínia Girão, tem demonstrado uma obsessão persecutória em relação ao PÁGINA UM, sobretudo a partir do momento em que exigimos informação e criticámos a sua acção, chegando a recorrer a expedientes administrativos questionáveis para dificultar a nossa actividade. A mais recente prova desta actuação é o caso da jornalista Elisabete Tavares, que constitui uma das ‘colunas’ do PÁGINA UM, cuja revalidação da carteira profissional foi agora arbitrariamente bloqueada pela CCPJ.

    A pretexto (explícito) de uma moderação realizada num congresso sobre mercados agrícolas no longínquo ano de 2022, uma função que nunca foi considerada incompatível com o exercício do jornalismo, a CCPJ decidiu, a dois dias da expiração do prazo da carteira, levantar uma questiúncila que, a existir em hipótese meramente académica, deveria ter sido tratada em processo autónomo. Ou seja, uma hipotética incompatibilidade que pode levar à cassação da carteira profissional jamais pode ser feita em sede de revalidação, mas sim através de um procedimento autónomo, como está a ser feito. O prazo de validação da carteira que, em profissionais com mais de 10 anos, demora menos de duas semanas, só poderia ser cumprido por ser um mero acto administrativo. Mas no ‘mandato’ de Licínia Girão as leis são coisas abstractas.

    A consequência deste absolutamente ridículo ‘não-caso’ foi a caducidade do registo profissional de Elisabete Tavares. Ontem, dia 31 de Janeiro era o último dia de vigência do antigo título, e o nome da Elisabete Tavares estava na base de dados da CCPJ. Hoje, dia 1 de Fevereiro, num sábado, o nome da Elisabete Tavares deixou de constar na base de dados de jornalistas, colocando-a numa situação de irregularidade e criando um constrangimento operacional ao PÁGINA UM. Vejam a celeridade.

    Note-se, aliás, que estar a CCPJ a suscitar a eventual incompatibilidade da Elisabete Tavares por exercer a função jornalística de moderadora num congresso não é apenas absurdo – até face às promiscuidades reinantes na imprensa -, é estúpido. E isto porque, nesse mesmo congresso, estiveram também presentes, como moderadoras de debates, outras duas jornalistas: Teresa Silveira, do jornal Público, e Isabel Martins, directora da revista Mundo Rural. Ambas continuam, em 2025, justamente com a carteira profissional activa.

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    Esta decisão, tomada sem precedentes conhecidos, levanta sérias dúvidas sobre a isenção e os critérios da CCPJ. A mesma entidade que nunca levantou problemas em relação a figuras como Francisco Pinto Balsemão, que manteve a carteira profissional apesar de funções empresariais incompatíveis, ou a jornalistas que exerceram actividades paralelas sem questionamento, opta agora por aplicar um duplo critério para atingir o PÁGINA UM.

    A perseguição não é nova. E desconfia-se que não terminará se não lhe puserem cobro por força da lei. A CCPJ já recorreu a processos disciplinares contra mim e pareceres dúbios para tentar descredibilizar este jornal. A própria Licínia Girão gastou mesmo 6.000 euros da CCPJ em serviços jurídicos para me processar, porque não apreciei notícias verdadeiras. Teve de desistir do processo por pressão dos seus colegas, mas o gasto foi assumido ilegitimamente pela CCPJ. Em tudo, o objectivo é evidente: criar dificuldades, desacreditar e condicionar a nossa actuação. Mas se a estratégia passa pela intimidação, a resposta será a mesma de sempre: resistência e transparência.

    Este caso, porém, ultrapassa as marcas, por ser uma descarada tentativa de nos puxar para o seu ‘chiqueiro’. A CCPJ quer, por certo, que o PÁGINA UM tenha notícias de uma jornalista sem carteira profissional válida – mesmo se por uma estrategia ínvia e maldosa -, de modo a que possa apontar-nos ‘telhados de vidro’ e, no limite, poder até aplicar-nos uma coima, porque aquilo que a outros é permitido, ao PÁGINA UM seria penzalizado. Não sou ingénuo a esse ponto.

    Por isso, já solicitámos intervenção jurídica para exigir a imediata revalidação da carteira profissional de Elisabete Tavares e eventualmente apresentar queixa por abuso de poder e atentado à liberdade de imprensa. Enquanto esta situação persistir, e porque o Estatuto do Jornalista não permite,e é uma lei, o PÁGINA UM fica impedido de publicar artigos e trabalhos jornalísticos da jornalista Elisabete Tavares, condicionando assim a edição do jornal. Podíamos ignorar esta sacanice da CCPJ, mas isso seria um ‘convite’ a que pudessem fazer mais e acusarem-nos, usando até outra imprensa, de estarmos a ser incoerentes, usando uma jornalista sem carteira válida, independentemente da forma como tal sucedeu.

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    Assim, diariamente, e em substituição de uma eventual notícia que seria publicada pela Elisabete Tavares publicaremos uma manchete negra em protesto contra esta afronta à liberdade de imprensa. Até porque não se trata apenas de um caso isolado, mas de um sinal preocupante do estado da regulação jornalística em Portugal. Pedimos, assim, a compreensão dos nossos leitores para eventuais constrangimentos na edição do PÁGINA UM, dado que somos apenas dois jornalistas a tempo inteiro, agora reduzidos a um. Esperamos também a solidariedade.

    E há um aviso: a CCPJ, e a sua ainda presidente, Licínia Girão, pode continuar a recorrer a torpes e mesquinhos subterfúgios administrativos, mas não conseguirá desviar-nos do nosso compromisso com um jornalismo independente. E se continuar, terá de ser responsabilizada pelos seus actos. O PÁGINA UM continuará a denunciar estas práticas e a expor os mecanismos que tentam condicionar a imprensa livre. É por isso que nascemos. E é isso que continuaremos a fazer.

  • É a Justiça portuguesa, estúpido!

    É a Justiça portuguesa, estúpido!


    Vivemos em Portugal há quase meio século num regime democrático, que gostamos de abrilhantar com descidas pela Avenida da Liberdade, que nos prometeu liberdade e igualdade e, pensava eu, transparência. Contudo, o cravo na lapela tornou-se mais símbolo do que substância.

    O peito de muitos continua a encher-se de orgulho com discursos comemorativos e celebrações públicas, brandindo a ameaça de tempos sombrios se os partidos populistas ascenderem ao poder, mas por baixo da retórica subsiste um sistema cada vez mais corrompido, corrompendo valores e princípios, alimentado por compadrios, nepotismos e uma cultura de opacidade que mina os fundamentos da democracia. É aqui que reside a grande tragédia do nosso país: instituições que deveriam ser o pilar de uma sociedade justa tornaram-se cúmplices da perpetuação de um poder corrupto e ineficaz. E no epicentro dessa disfunção encontra-se a Justiça.

    A democracia portuguesa gosta de se apresentar como uma das mais consolidadas da Europa – e olhe-se o desdém como se olha para os Estados Unidos, o que se torna risível –, mas na prática temos uma democracia em ponto pequeno. Não por falta de votos ou alternância política, mas pela ausência de maturidade institucional que distingue as democracias verdadeiramente funcionais das pseudo-democracias que proliferam pelo Mundo.

    Em Portugal, a transparência é uma palavra oca, usada em discursos institucionais como adorno, mas raramente praticada. A Administração Pública, politizada até à medula, opera sob a égide da “lei da rolha”, protegendo os seus interesses de grupo e bloqueando, por todos os meios possíveis, o exercício de direitos fundamentais como o acesso à informação.

    Ora, sem transparência, não há democracia. E sem uma Justiça célere e imparcial que garanta esse princípio, aquilo que temos não é um Estado de Direito, mas um estado de arbítrio. O recente episódio envolvendo o Conselho Superior da Magistratura (CSM) – numa ‘guerra jurídica’ de mais de três anos – é sintomático de uma cultura de opacidade institucional que degrada a confiança dos cidadãos nos órgãos que deveriam zelar pelo bem público.

    Quando uma entidade como o CSM recusa sistematicamente o acesso a documentos administrativos, não estamos apenas perante um problema de ineficiência ou burocracia; estamos perante um atentado ao direito à informação, ainda mais perpetrado contra jornalistas. E o cúmulo da indignidade acontece quando a mesma entidade cede apenas após uma ordem judicial, não por respeito à transparência, mas porque o tribunal ameaça tocar no bolso do próprio presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Suprema indignidade ter de se chegar a esse ponto.

    Pior é que este não é um caso isolado. No PÁGINA UM, temos acumulado, ao longo dos nossos três anos de existência, um conjunto de experiências que ilustram a sistemática recusa do Estado e Administração Pública em partilhar informações de interesse público. Desde contratos de aquisição de vacinas até processos administrativos que envolvem decisões políticas, o padrão é sempre o mesmo: a Administração Pública – que até inclui, hélas, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e a Entidade Reguladora para a Comunicação Social – utiliza todas as manhas e artimanhas legais para evitar a divulgação de documentos.

    Na maioria das vezes, somos forçados a recorrer à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) ou, mais frequentemente, aos tribunais administrativos. Estes processos, que deveriam ser céleres, tornam-se numa travessia penosa. Temos casos que se arrastam por anos a fio, como o dos contratos de aquisição das vacinas, que está há mais de dois anos em análise num tribunal administrativo. Sim, um processo de intimação, que por definição deveria ser urgente, torna-se um exercício de resistência.

    Os custos desta batalha são elevados, e não apenas no plano financeiro. Até agora, gastámos mais de 20 mil euros em batalhas judiciais, um valor diminuto mesmo assim porque contamos com o apoio generoso de advogados que praticamente trabalham pro bono. Mas pagámos já milhares e milhares de euros em taxas de justiça – supremo deboche de um Estado que beneficia da sua falta de cultura democrática.

    O desgaste emocional e o tempo consumido são incalculáveis. Entre a vontade de meter mais casos nos tribunais administrativos e a convicção de que haverá uma luta titânica de meses e anos, fico sempre com a sensação que, mesmo quando ganhamos, perdemos. Na verdade, a sociedade perde sempre.

    Aliás, no recente caso contra o CSM, é certo que conseguiremos finalmente o acesso integral aos documentos, incluindo a possibilidade de os fotografar – é uma vitória, que se aplicará a outros casos. Contudo, como reagir quando, nesta luta de três anos, de prepotências dos magistrados do CSM, mesmo ganhando acabamos “condenados” a pagar custas porque, segundo o tribunal, não se provou má-fé da parte do CSM nem havia lugar a pagamento de indemnização por um processo que durava há três anos. Que lógica perversa é esta, em que o ónus da transparência recai sobre quem a exige e não sobre quem a nega?

    A pergunta que se impõe é esta: que Justiça é esta? Uma Justiça que deveria ser o garante da equidade transforma-se num instrumento de protecção do status quo do Estado e da Administração Pública. Uma Justiça que deveria punir abusos de poder torna-se cúmplice dos mesmos. Quando os cidadãos olham para o sistema judicial e veem lentidão, opacidade e decisões que parecem proteger os mais poderosos, a democracia não resistirá.

    Se esta postura institucional não mudar, a começar pelas cúpulas da Justiça, resta-me a amarga conclusão de que o estúpido, nesta história toda, sou eu, por acreditar que, neste país, a transparência é algo que se pode alcançar sem ser necessário anos de luta nos tribunais. 

    N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artifIcial.

  • A Economia é uma ciência exacta?

    A Economia é uma ciência exacta?


    Há uma mania persistente, quase obstinada, que recusa morrer mesmo diante da lógica mais evidente: tratar o valor económico como uma entidade objectiva, rigorosa, como se fosse uma equação da física newtoniana. Uma ideia quase patológica, que permite ao planeador central brincar com a economia como se fosse uma roldana presa às regras da física quântica.

    O mais curioso, contudo, é como esta tentativa delirante de matematizar a acção humana encontra raízes profundas numa mentalidade religiosa muito específica. Sim, o protestantismo, especialmente na sua variante calvinista.

    Acreditam que o homem nunca poderá livrar-se do pecado original. O destino da sua alma está determinado por Deus antes mesmo de nascer. De nada valem as boas obras, as confissões ou as tentativas de redenção. Essa visão trouxe consigo duas consequências profundamente nefastas para a economia e para a sociedade.

    Primeiro, a crença de que o homem é mau por natureza e, por isso, precisa de ser regulado até ao último suspiro; segundo, uma obsessão patológica com sinais exteriores de riqueza, pois, na lógica calvinista, a prosperidade material é um sinal de que a pessoa foi eleita por Deus para a salvação. O trabalho, portanto, tornou-se o altar desse culto terreno, e a riqueza, o ícone sagrado.

    Ao considerar o trabalho como a medida de todas as coisas, Adam Smith, esse suposto “pai da economia”, perpetuou um erro monumental. A sua teoria do valor-trabalho, fruto do seu pensamento calvinista, refinada depois por David Ricardo, afirmava que o valor de um bem dependia das horas despendidas na sua produção.

    Karl Marx levou esta ideia ao extremo ridículo, sugerindo que o capitalista roubava o valor produzido exclusivamente pelos trabalhadores. Ora, para refutar esta tolice, basta imaginar duas senhoras: uma, passa cinco horas a fazer pastéis de nata; a outra, durante o mesmo tempo, faz bolinhos de areia. Quem irá vender o seu produto? A resposta não exige grande esforço intelectual, mas parece ter escapado a Marx.

    A utilidade de um bem reside na sua capacidade de satisfazer uma necessidade humana, sendo, portanto, uma característica que não é intrínseca ao bem em si, mas antes definida pela relação entre o bem e as necessidades específicas do indivíduo. Uma cadeira, por exemplo, pode ter uma essência material – é feita de madeira, com uma estrutura fixa –, mas a sua utilidade prática depende da função que desempenha, como proporcionar descanso ou permitir uma postura confortável. Esta relação dinâmica entre o bem e o utilizador reflecte a natureza subjectiva da utilidade, algo que não pode ser reduzido a métricas absolutas ou universais.

    Além disso, a utilidade de um bem é influenciada pela sua escassez e que determina o seu valor. Se uma pessoa possui três cavalos de características idênticas, a distribuição do uso será hierárquica: o primeiro cavalo será destinado à tarefa mais urgente, como lavrar a terra; o segundo, para puxar uma charrua de carga; o terceiro, a uma necessidade menos premente, como passear. À medida que se aumenta a quantidade de um bem disponível, o valor marginal – ou seja, a utilidade da última unidade – tende a diminuir, pois as necessidades mais urgentes já foram satisfeitas. Este princípio, conhecido como utilidade marginal decrescente, demonstra que a abundância reduz o valor subjectivo de cada unidade adicional.

    O valor, portanto, é inerentemente subjectivo e condicionado pela escassez. Bens como o ar, por exemplo, são de extrema utilidade – afinal, respiramos a cada segundo –, mas não possuem valor económico porque a sua oferta excede infinitamente a procura, sendo virtualmente ilimitados em circunstâncias normais.

    Por outro lado, bens cuja procura supera consistentemente a oferta, como uma casa, possuem um valor económico significativo, pois satisfazem necessidades para as quais os recursos disponíveis são insuficientes. Esta relação entre procura e escassez é o que define a maior parte dos preços no mercado, que são relações de troca entre duas partes com diferentes perspectivas de valor.

    As circunstâncias específicas em que os bens são avaliados também afectam as decisões humanas. Imaginemos um naufrágio em alto-mar, onde quatro tripulantes têm apenas uma quantidade limitada de bolachas para sobreviver 15 dias, o tempo necessário para chegar a terra firme. Mesmo que um deles possua um quilo de ouro, este metal precioso não terá qualquer valor para os restantes tripulantes, pois não satisfaz as necessidades urgentes de sobrevivência em tal contexto. Assim, as bolachas, que em terra poderiam ter um valor marginal reduzido, tornam-se indispensáveis, enquanto o ouro, que simboliza a riqueza noutras condições, perde completamente o seu valor. Tal exemplo evidencia a flexibilidade do valor subjectivo, sempre dependente do contexto e das necessidades concretas de cada indivíduo.

    Muito antes de Adam Smith e Marx, os escolásticos ibéricos do Renascimento lançaram as suas fundações intelectuais, recusando reduzir a acção humana a meros números. O português Pedro da Fonseca, o “Aristóteles português”, afirmou que “a essência é aquilo que a coisa é; a existência, por sua vez, é o ser actual da coisa” (Institutionum Dialecticarum, 1564). Um bem tem uma essência, mas o seu valor reside na existência prática e nas necessidades humanas que pode satisfazer. Este pensamento abriu caminho para uma análise económica que reconhecia o papel central do indivíduo e das suas escolhas.

    Luis de Molina, por exemplo, captou a essência dessa abordagem ao afirmar que “o valor de uma coisa depende da estimação que dela fazem os homens, mesmo que essa coisa não tenha utilidade em si mesma, pois é suficiente que seja útil para alguém ou que seja tida como tal” (De Justitia et Jure, 1593). Molina refutava a ideia de que o valor era intrínseco aos bens ou determinado pelos custos de produção, apontando directamente para a subjectividade que molda o mercado.

    Francisco Suárez complementou essa visão ao afirmar que “o preço de mercado de uma mercadoria não depende apenas da sua utilidade ou dos custos de produção, mas também da estimação comum e da abundância ou escassez da mesma em relação à procura” (De Legibus ac Deo Legislatore, 1612). Estes escolásticos já anteviam os princípios de equilíbrio de mercado e utilidade marginal que, mais tarde, seriam formalizados.

    Os escolásticos também compreenderam o papel determinante da escassez. Martín de Azpilcueta, no seu tratado Comentario Resolutorio de Cambios (1556), afirmou: “O dinheiro vale mais onde é mais escasso do que onde é mais abundante, mesmo que o material seja o mesmo.” Este raciocínio antecipou os fundamentos da teoria monetária moderna, demonstrando como a oferta influencia o poder de compra.

    Domingo de Soto, por sua vez, afirmou que “os preços justos de uma mercadoria não são fixos e objectivos, mas dependem das circunstâncias do mercado e da necessidade dos indivíduos em determinado momento” (De Justitia et Jure, 1553). Soto reconhecia que o valor é dinâmico, moldado pelas condições de mercado e pelas percepções individuais, rejeitando qualquer tentativa de fixar uma métrica universal.

    Ainda mais eloquente foi Juan de Mariana, que em De Monetae Mutatione (1609) afirmou: “O valor das coisas não é determinado pela natureza delas, mas pela estimativa humana e pela utilidade que delas se pode extrair.” A clareza com que Mariana aborda a subjectividade do valor é notável.

    Mas a teoria do valor subjectivo foi verdadeiramente formulada por Carl Menger no século XIX– um católico que nasceu no Império Austro-Húngaro. O valor não é algo objectivo, medido em “utils”, como sugeriu Jevons. É subjectivo, ordinal e não cardinal, nem tão pouco pode ser comparado entre indivíduos.

    Assim, por que razão a economia, dominada por ideias protestantes, insiste em reduzir tudo a números, fórmulas e supostas verdades universais? A ciência económica moderna adoptou o método das ciências exactas, em que hipóteses são testadas e, a partir daí, verdades universais são estabelecidas. No entanto, quando se trata da acção humana, esse método falha rotundamente. A praxeologia de Ludwig von Mises, por outro lado, segue o método escolástico: parte-se de axiomas evidentes e deduzem-se verdades universais sobre a acção humana.

    O protestantismo, infelizmente, derivou para o utilitarismo, uma filosofia que maximiza o bem comum em detrimento dos direitos individuais, dominando desde o século XIX por completo a economia. Veja-se o exemplo das políticas de confinamento, justificadas pela suposta maximização da segurança colectiva, ignorando por completo os direitos naturais dos indivíduos. Milton Friedman, no seu livro “A Monetary History of the United States, 1867-1960”, chega a justificar a impressão de dinheiro como meio de evitar uma recessão. Ora, diluir o valor da moeda para “estimular” a economia não é mais do que uma forma sofisticada de confiscar a propriedade privada.

    Hoje, a falácia do bem comum tudo justifica: impostos extorsivos e regulações asfixiantes para regular o mercado; ou licenças para impedir a entrada de concorrentes em nome da protecção do consumidor, é a prova de que vivemos sob o jugo de burocratas e parasitas que dizem agir pelo bem comum, mas que, na verdade, não têm qualquer capacidade de medir a acção humana. São os herdeiros de uma tradição protestante que se perdeu na loucura de tentar quantificar o incalculável.

    As instituições protestantes, alimentadas pela pseudociência económica que produzem, são, de facto, a nossa maior desgraça. Enquanto continuarmos a acreditar que o valor é uma entidade objectiva, e que o planeador central consegue manipular as nossas vidas com a precisão de um físico, estaremos condenados a este ciclo de loucura. A solução, talvez, seja redescobrir o valor da liberdade e da subjectividade, algo que os escolásticos católicos sabiam muito bem.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário

    Nota: Ilustrações produzidas com recurso a inteligência artificial


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A memória curta de António Costa (e dos media)

    A memória curta de António Costa (e dos media)


    Alterações Mediáticas, podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como Jornalismo. No 15º episódio, analisa-se o fenómeno bizarro  que levou os media a omitirem contexto numa notícia com declarações de António Costa. Também se analisa o caso estranho em torno da cobertura do perdão preventivo concedido por Biden a Anthony Fauci, ‘guru’ da pandemia envolto em suspeitas graves. Por fim, comenta-se uma notícia aberrante sobre a violação de uma estudante em Lisboa.

    Acesso: LIVRE, mas subscreva o P1 PODCAST com um donativo mensal de 2,99 euros. Ajude o PÁGINA UM a amplificar o seu trabalho.

  • Presuntos ou torresmos: para um debate essencial sobre a imigração

    Presuntos ou torresmos: para um debate essencial sobre a imigração


    Ontem, antecipámos uma notícia desta edição do PÁGINA UM com uma análise económica e financeira ao restaurante Solar dos Presuntos, que decidimos elaborar depois de o seu proprietário, Pedro Cardoso, se ter regozijado por um quarto dos seus empregados ser de origem nepalesa e de estar muito satisfeito. Chegámos à conclusão de que a empresa deste icónico restaurante lisboeta facturou cerca de 9,5 milhões de euros em 2023, contabilizou um lucro de 2,01 milhões de euros, dando, por isso, uma margem líquida de 21% – mais de sete vezes a média do sector –, mas, apesar disso, o salário líquido médio real diminuiu 24%.

    Nas redes sociais, muitas críticas surgiram contra o PÁGINA UM, questionando o interesse, o rigor e a justeza da abordagem do jornal, defendendo o direito legítimo do empresário em investir e lucrar. Nada contra. A questão que procurámos intencionalmente levantar com este caso isolado – e o jornalismo também se faz de casos, quando estes representam uma tendência – não foi de legalidade, mas de ética. E a obrigação da imprensa é também questionar, incomodar, abalar, fazer reflectir, mesmo quando alguns leitores não concordam com a perspectiva do jornalista.

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    De facto, falar em ética salarial é no contexto da imigração um ponto essencial, porque isso é reflexo da forma como acolhemos os imigrantes, essencial para que não sejam um grupo a quem possamos “entregar” condições degradantes, mas também fundamental porque, directa e indirectamente, afecta o próprio rendimento dos portugueses e do próprio país.

    Infelizmente, a discussão sobre imigração em Portugal tem-se restringido a quatro aspectos: a justeza humanitária em aceitar estrangeiros que lutam por uma vida mais digna; a necessidade de inverter a estrutura demográfica (com um saldo natural ainda bastante negativo); a importância relevante para a sustentabilidade da Segurança Social; e as questões de segurança, estas frequentemente usadas como bandeira por partidos populistas, como o Chega.

    Contudo, outro debate deveria ser colocado como prioridade, centrado nas consequências económicas e sociais da imigração, sobretudo quando esta não é programada ou controlada também em função das qualificações e das necessidades reais do país. Não podemos salvar todo o mundo se, neste acto, nos matarmos e arrastarmos quem queríamos salvar. O impacto da imigração desregulada, em particular em sectores onde predominam os trabalhadores pouco qualificados, exige uma análise mais profunda e honesta, para além das percepções superficiais.

    Grande parte dos imigrantes em Portugal, muito por via da (baixa) atractibilidade do país, tem poucas qualificações e, por isso, acaba por ocupar funções em sectores como agricultura, restauração, serviços de entregas e transportes. Muitos empregadores defendem que escolhem os imigrantes porque não encontram mão-de-obra portuguesa e que aqueles se mostram mais disponíveis e produtivos. Contudo, esta realidade esconde um problema complexo: a maioria destes trabalhadores é oriunda de países com rendimentos baixos e condições laborais péssimas. São pessoas que, ao chegarem a Portugal, conseguem sobreviver em condições quase desumanas – várias pessoas num quarto ou mais de uma dezena num apartamento. Esta “tropa” de trabalhadores alimenta, assim, sectores que, ao manterem salários baixos, almejam lucros extraordinários, que seriam inferiores se contratassem, a mais elevado custo, mão-de-obra portuguesa. Em muitos sectores, a Economia portuguesa ainda vive à custa de exploração humana.

    Quem tem direito a presunto?

    Se o país considerar que, sendo legal, não há problemas éticos em ter margens líquidas de 21% e, mesmo assim, pagar mal, as consequências desta dinâmica serão preocupantes, a médio e longo prazo. Por um lado, cria-se um grupo de imigrantes preso a um ciclo de baixos salários e sem oportunidades de ascensão social, dificultando a sua integração na sociedade. Por outro lado, para os portugueses, o influxo de mão-de-obra indiferenciada pressiona o mercado de trabalho, reduzindo salários em sectores menos qualificados. A relação entre oferta e procura torna-se desproporcional, afectando, assim, directamente todos os rendimentos, porque a Economia nunca é estanque.

    A influência de pagamentos baixos a imigrantes no salário médio, mediano e modal mostra-se evidente. O salário médio tende a cair com o aumento da oferta de mão-de-obra barata. A mediana, que reflecte o ponto central na distribuição salarial, também é empurrada para baixo, especialmente em sectores onde os imigrantes aceitam remunerações mais baixas. Já a moda, o salário mais comum, aproximar-se-á do salário mínimo, indicando uma precariedade crescente. A segmentação do mercado laboral torna-se, assim, inevitável, com os trabalhadores qualificados protegidos do impacto imediato, enquanto os menos qualificados enfrentam maior insegurança.

    Seria interessante uma actualização – que, a existir, não encontrei – de uma análise feita pelo Instituto Nacional de Estatística na segunda metade de 2023 sobre a distribuição da remuneração bruta mensal por trabalhador em 2021 que, no sector privado, no caso de trabalhadores com até ao terceiro ciclo do ensino básico, era, em média, de 1.114 euros, mas que descia para uma mediana de 933 euros. Ou seja, neste grupo, então formado por mais de 1,5 milhões de trabalhadores, metade ganhava menos do que 933 euros. E apenas 25%, ou seja, pouco mais de 380 mil trabalhadores, ganhavam mais de 1.231 euros. Actualizar estes valores e, sobretudo, aplicá-los à população imigrante seria essencial para um debate social sério e fulcral.

    … e quem só pode comer torresmos?

    Na verdade, Portugal precisa de uma estratégia para a imigração, que deixe de se focar no acolhimento por necessidade ou compaixão, e que reconheça as consequências estruturais deste fenómeno. As políticas públicas devem assegurar condições dignas para os imigrantes, mas, em simultâneo, proteger os trabalhadores nacionais, sem colocar um peso excessivo nos empresários. Aumentar o salário mínimo, regular as condições de trabalho e investir na qualificação e integração dos imigrantes podem ser medidas fundamentais para evitar a perpetuação deste modelo de exploração, mas a intervenção estatal deve ser conduzida com prudência e sem peso ideológico, de esquerda ou de direita, que, amiúde, cria viés e inviabiliza soluções equilibradas.

    Certo é que o futuro de Portugal não pode ser construído à custa da degradação das condições de vida de uns, de baixos salários e da exploração de outros. Este é o verdadeiro debate que devemos ter, porque, no final, decidir entre comer presunto ou apenas torresmos não é somente uma questão de gosto, mas de ética e justiça social. E é a ética e a justiça social que nos faz (mais) humanos. 


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  • Robert F. Kennedy Jr. e a cura para a hesitação vacinal

    Robert F. Kennedy Jr. e a cura para a hesitação vacinal


    A única maneira de restaurar a confiança do público na vacinação – que sofreu um grande abalo por causa das mentiras associadas ao lançamento da vacina contra a covid-19 – é colocar um conhecido céptico no comando da agenda de pesquisa de vacinas. A figura ideal para liderar esse processo é Robert F. Kennedy Jr. (RFK), que foi indicado para dirigir o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos.

    Ao mesmo tempo, temos de encarregar cientistas rigorosos, com um historial comprovado em Medicina Baseada na Evidência, de determinar o tipo de modelos de estudo a adoptar. Dois cientistas ideais para isso são o Dr. Jay Bhattacharya e o Dr. Marty Makary, que foram nomeados para liderar o NIH [National Institutes of Health] e a FDA [Food and Drug Administration], respectivamente.

    white and green ballpoint pen on brown wooden round table

    As vacinas são – juntamente com antibióticos, anestesia e saneamento – uma das invenções médicas mais relevantes da História. Concebida pela primeira vez em 1774 por Benjamin Jesty, um agricultor em Dorsetshire, Inglaterra, só a vacina contra a varíola salvou milhões de vidas. A Operação Warp Speed, que rapidamente desenvolveu as vacinas contra a covid-19, salvou muitos americanos mais velhos. Apesar disso, assistimos a um aumento marcante da hesitação vacinal. Cientistas de vacinas e autoridades de saúde pública que não conduziram testes devidamente randomizados fizeram alegações falsas sobre a eficácia e segurança da vacina e estabeleceram mandados para pessoas que não precisavam das vacinas, semeando suspeitas e prejudicando a confiança do público na vacinação.

    O que correu mal? O objectivo das vacinas contra a covid-19 era reduzir a mortalidade e hospitalização, mas os ensaios  randomizados foram projectados apenas para demonstrar a redução a curto prazo nos sintomas de covid-19, o que não é de grande importância para a Saúde Pública. Uma vez que os grupos placebo foram prontamente vacinados após a aprovação de emergência, eles também não forneceram informações confiáveis sobre reacções adversas. Apesar dessas falhas, foi falsamente alegado que a imunidade conferida pela vacina é superior à imunidade natural adquirida pela infecção e que as vacinas evitariam a infecção e a transmissão.

    Governos e universidades então obrigariam a vacinação de indivíduos já imunizados naturalmente [por terem tido a doença], que era superior [à da vacina], e para jovens com risco de mortalidade muito baixo. Esses mandados não eram apenas anticientíficos; com um fornecimento limitado de vacinas, era anti-ético vacinar pessoas de baixo risco de mortalidade quando as vacinas eram necessárias para pessoas mais velhas de alto risco em todo o Mundo.

    Como os Governos e as empresas farmacêuticas mentiram sobre a vacina contra a covid-19, também estão a mentir sobre outras vacinas? O cepticismo agora espalhou-se para vacinas testadas e verdadeiras, que comprovadamente funcionam.

    E há questões genuínas ainda não respondidas sobre a segurança das vacinas em geral. Um estudo pioneiro realizado na Dinamarca mostrou que as vacinas podem ter efeitos inespecíficos positivos e negativos  em doenças não-alvo, e isso é algo que deve ser explorado com maior profundidade. Os cientistas do Vaccine Safety Datalink (VSD) que estudam vacinas contra asma e alumínio  concluíram que, embora as suas “descobertas não constituam fortes evidências para questionar a segurança do alumínio em vacinas (…) um exame adicional desta hipótese parece justificado.”

    Enquanto o VSD e outros cientistas devem continuar a fazer estudos observacionais, também devemos conduzir ensaios randomizados de vacinas controlados por placebo, como RFK tem defendido. Uma vez que temos imunidade de grupo para muitas doenças, como o sarampo, os ensaios podem ser conduzidos eticamente aleatorizando a idade de vacinação para, por exemplo, um ano versus três anos de idade, enquanto distribuímos o ensaio por uma grande área geográfica para que os não-vacinados não vivam todos perto uns dos outros.

    Estou confiante de que a maioria das vacinas continuará a ser considerada segura e eficaz. Embora alguns problemas possam ser encontrados, é mais provável que isso aumente em vez de diminuir a confiança na vacina. Por exemplo, verificou-se que a vacina contra o sarampo-papeira-rubéola-varicela [N.D. denominada MMRV ou tetraviral, sendo que em Portugal geralmente se exclui a varicela] causa convulsões febris em excesso em crianças dos 12 aos 23 meses de idade. A MMRV agora é administrada apenas como uma segunda dose para crianças mais velhas, enquanto as crianças mais novas recebem vacinas separadas contra a tríplice viral e varicela, resultando em menos convulsões induzidas pela vacina que assustavam os pais. Embora os estudos de segurança tenham sido inconclusivos, também foi sensato remover o mercúrio das vacinas. Mesmo que acabemos com menos vacinas no esquema vacinal recomendado, isso não é necessariamente uma coisa terrível. A Escandinâvia [N.D. Kulldorf é sueco] tem uma população muito saudável, com menos vacinas nos seus programas de vacinação.

    a couple of people wearing gloves and masks and gloves

    Não vamos restaurar a confiança na vacina pregando ao coro. Após o desastre da covid-19, o objectivo declarado de Kennedy é retornar à Medicina Baseada na Evidências livre de conflitos de interesse. Deixá-lo fazer isso é a única maneira de os cépticos voltarem a confiar nas vacinas, e aqueles que confiam nas vacinas não têm motivos para ter medo disso.

    As tentativas das instituições de saúde pública e farmacêuticas de inviabilizar as nomeações de RFK, Bhattacharya e Makary são a maneira mais segura de agravar ainda mais a hesitação vacinal nos Estados Unidos. A escolha é gritante. Não podemos deixar que os “cientistas pró-vacinas” desequilibrados, que apertam as mãos sobre as orelhas nas perguntas mais brandas, causem mais danos à confiança nas vacinas. Como cientista pró-vacina e, na verdade, a única pessoa a ser demitida pelo CDC por ser muito pró-vacina, a escolha é clara. Para restaurar a confiança nas vacinas para os níveis anteriores [à pandemia da covid-19], devemos apoiar as nomeações de Kennedy, Bhattacharya e Makary.

    Martin Kulldorff é membro fundador da Academia para a Ciência e a Liberdade. Foi professor na Harvard Medical School até ser demitido por não tomar a vacina contra a covid-19, apesar de ter imunidade natural superior. Ele estuda vacinas há mais de duas décadas, ajudando a desenvolver partes dos sistemas de vigilância de segurança de vacinas do CDC e da FDA. Tem um h-index de 67 no Scopus, um valor bem acima dos requisitos de investigadores seniores.

    Este texto foi originalmente publicado no site RealClear Politics sob o título The Cure for Vaccine Skepticism. O PÁGINA UM agradece a Martin Kulldorff a permissão para a sua tradução e publicação em português.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O ocaso de Fábio Fausto

    O ocaso de Fábio Fausto


    Fábio Fausto não criava nada havia anos. Durante bastante tempo, para não ficar ancorado no vácuo, dedicou-se à contemplação do êxito pretérito, e isso funcionara como uma poderosíssima droga — passara dois terços do tempo a escutar a sua voz e a examinar-se em vídeos, e o outro terço a esquadrinhar o que haviam dito sobre Fábio Fausto e a sua obra: quilómetros e quilómetros e quilómetros de elogios que não conseguira ler e ouvir no pináculo da fama. Talvez tivesse ouvido mil e quinhentas vezes (mil?, duas mil?) os segundos em que um excelso crítico estrangeiro declarara ter Fábio Fausto «expandido e redefinido os limites da arte como ninguém», e lido cerca de quatrocentas vezes o influenciador que sentenciara: «A sua persona reinventou a própria ideia de carisma.» 

    Triturado sob a pletora de novos artistas de pechisbeque, sentia-se, dia após dia, crescentemente apartado do mundo. A revolta e a solidão ardiam dentro de si — o paladar amestrado pela tirania do oco evanescente perdera a capacidade de distinguir a futilidade mais óbvia da genialidade que ocorria duas ou três vezes num século.

                                               

    Procurava acreditar que o tempo depuraria tudo, mas a glória póstuma não o sossegava, e nem dela estava seguro. A própria ideia de o tempo ser o grande juiz da arte assentava no dogma de que, no futuro longínquo, continuaria sempre a haver respeitáveis criaturas que fossem escutadas por outras em número suficiente — algo de que já tinha muitas dúvidas.

    Fábio Fausto não queria apenas cravar uma faca no futuro longínquo. Almejava a eternidade. Sabia, sem grânulo de dúvida, que a merecia.

    O tempo movia-se, e a obra de Fábio Fausto crescia em esquecimento e indiferença. A ansiedade deslizava para a angústia: estaria o Sol eternamente condenado a viver escondido nas trevas?

    As suas últimas criações, que tinha a certeza de serem as melhores, não haviam comovido o público nem a crítica.

    Fábio Fausto temia ainda que não sobreviesse nenhum resplendor ao que já apresentara ao mundo — muito provavelmente, nunca faria nada tão bom como outrora, pelo que preferia não fazer nada. Os concertos e pedidos de entrevistas eram cada vez mais esparsos. A crítica de «servir sempre o mesmo prato requentado» era um pedregulho no esófago quando estava no palco.

    Não tinha luxos nem singulares ambições materiais — o dinheiro que acumulara chegava para muito mais vidas. O seu maior lucro era a vaidade. O terror de o seu génio não ter por onde se manifestar, o horrífico medo de que não se lembrassem dele com a intensidade exclusiva que desejava e merecia, o vazio de não ter espelhos que lhe mostrassem a glória reflectida… tudo isso era algo que não conseguia suportar.

    Precisava de ter uma razão para acordar, tomar banho e calçar os sapatos. Num período de noites insones, descobriu um canal no mundo digital e começou a retrabalhar a sua persona de outrora, ainda que já não produzisse quase nada no domínio da música.

    Ao fim de pouco tempo, publicava algo todos os dias. Não tardou a que publicasse uma dúzia de vezes por dia. Sentindo a temperatura, foi-se moldando em busca do maior número de seguidores. Antes, na música, dava o melhor de si sem contorcionismos mercantis (pelo menos, acreditava nisso), sem pensar nos outros, e conseguira reunir qualidade e êxito comercial apenas com base no seu estro. Agora, na persona digital, não dava um passo sem calcular o que colheria maior aceitação. Talvez não fosse tão sincero, mas não era certamente um exercício menos fechado ao Outro, pensava: era preciso farejar bem o Outro e pressentir as tendências no éter.

    Certas práticas provocavam amolgadelas e fissuras dentro de Fábio Fausto, mas a busca do cintilante número um era mais forte. O vício foi aumentando, até que todo o tempo de que dispunha era para acompanhar o canal. Era um espaço malsão, pensava nos interstícios. E daí? Que espaço concorrencial não produzia aberrações?

    Havia um urso imobilizado em que pugilistas davam socos, numa competição com muitos adeptos, havia um homem muito rico que dava gorjetas no valor de muitos salários e que testava os empregados atirando a comida para o chão e obrigando-os a apanhá-la — «Se queres a gorjeta, apanha!», «Agora, rebola no chão… Não rebolas, não tens gorjeta», «Faz o som de um porco a guinchar», tudo acompanhado das mais fortes gargalhadas e da mensagem final: «E mais uma vez… VENCEU O DINHEIRO!»

    E quando, volvidos poucos meses, era o número um do canal, todas as suas reflexões se extinguiram. Voltara a ser grande, e o labor da manutenção do número um não dava espaço para interrogações de espécie alguma.

    Deixara de sair de casa, estando sempre a alimentar o seu canto concorrido. Ia emagrecendo por não comer, alargando as olheiras, afogando-se no álcool. O Fábio Fausto exibido era, contudo, cada vez mais belo, cada vez mais viajado, cada vez mais dotado de vida singularmente colorida — uma vida que era em si uma obra de arte. O hiato era cada vez maior, exigindo-lhe um esforço sobre-humano para extrair do seu ser mortiço algo vivificante.

    Um dia, caiu inesperadamente para número dois, o mais enervante de todos os números, ultrapassado pelas Tropelias da Girafa Que Lava os Dentes. Estudou bem o inimigo. Pensou em inúmeras tácticas. Fez todo o tipo de concessões. Desatou a criar cenários fictícios, a fazer montagens, a exibir viagens que não realizava.

    Numa noite de álcool e desespero, deixou escapar um desabafo «NA MERDA, FINGINDO ESTAR NO PARAÍSO», que depressa apagou, mas que alguns não deixaram escapar.

    Lutando desesperadamente por ganhar lugares na competição, divulgou pretensos encontros com celebridades de prestígio — ou popularidade, era-lhe indiferente, tão-pouco enxergava diferença entre ambas — mundial. Uma denunciou a fraude. Outras seguiram-lhe os passos. Começou a ser alvo de campanhas de ódio. O seu telefone tocava com pedidos de entrevistas, que recusava. Ao ver a primeira página de um conhecido jornal, viu o seu nome e encharcou-se de álcool e calmantes, o que o convidou a uma estada num hospital. Uma criatura fotografara-o na cama de hospital e vendera a relíquia. Por mais que se tentasse isolar, as notícias entravam-lhe pelas paredes de casa. A conspurcada reputação de Fábio Fausto propagava-se por cada vez mais países, e ninguém, nas esferas privada ou pública, lhe concedia um átomo de solidariedade.

    Fábio Fausto dedicou-se a fazer listas: listas de todos aqueles que lhe deviam fama, dinheiro, contactos e que nunca lhe haviam sequer agradecido, listas de todos os que dera a conhecer ao mundo e que promovera tenazmente a troco de nada senão a crença no seu talento, listas de todos os que entravam em contacto com o celebérrimo artista quando este ganhava um prémio.

    Aqueles que haviam trabalhado com ele, aqueles que o haviam bajulado, aqueles que lhe deviam inúmeros favores: todos se calavam. E os que não se calavam faziam-no para transformar uma nanoagressão numa macroagressão, havendo quem inventasse histórias cruéis que deixavam Fábio Fausto atónito, enquanto os pedidos de cancelamento do seu espaço digital cresciam numa proporção geométrica.      

    Fábio Fausto lembrou-se do único amigo que considerava amigo, mas a chamada desaguou no correio de voz. Levou o carro para muito, muito longe e gaseou-se. Antes disso, activou e programou um mecanismo que continuaria a gerar publicações ad aeternum. No dia a seguir à sua morte, ainda desconhecida do público, subiu dez lugares com a primeira publicação criada pelo programa que comprara pouco antes de morrer. Os Gatinhos Mais Bonitinhos do Mundo caíam de primeiro para quinto, e as recém-chegadas Primeiras Fraldas do Bebé Felipe ocupavam agora o primeiro lugar.

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Brasil: Esquerda, volver ou Os riscos de um ‘cenário Biden’ em 2026

    Brasil: Esquerda, volver ou Os riscos de um ‘cenário Biden’ em 2026


    O ano é 2023. O começo de um sonho.

    Lula da Silva acaba de assumir, pela terceira vez, a Presidência da República. Eleito numa disputa acirradíssima contra o incumbente, Jair Bolsonaro, Lula dá-se conta do recado que as urnas mandaram-lhe. Sem se preocupar com a reeleição e desprezando as picuinhas típicas do ofidiário brasiliense, o babalorixá petista resolve governar com os olhos voltados para a História. Ao invés de promover um “governo do PT”, Lula coordena um governo de união nacional, refletindo a “frente ampla” responsável pela derrota da máquina bolsonarista. O troféu de “Getúlio Vargas do Séc. XXI” encontra-se ao alcance da mão.

    O ano é 2025. Deu tudo errado.

    Ao contrário do que se desenhava, desde quando assumiu, Lula e seu inner circle parecem ter acreditado que a esquerda – mais especificamente, a esquerda representada pelo PT – ganhou sozinha a eleição. Disso resultou um governo mais à sinistra do que os votos que o elegeram. Ao invés de Fernando Haddad e Simone Tebet, Gleisi Hoffman e Lindenberg Farias. Ao invés de moderação, confronto. Ao invés de Henrique Meirelles, sinais inquietantes de que os erros da tal “nova matriz macroeconómica” (que levaram à débâcle econômica de 2015-2016) não foram assimilados. Ao contrário de tornar-se o Vargas do Séc. XXI, Lula arrisca a tornar-se “Dilma II”.

    Lula da Silva

    O que aconteceu nesse intervalo de tempo?

    Vencedor do pleito mais disputado da nossa breve história democrática, Lula estava careca de saber que iria assumir um país fraturado até a medula. Não só porque o antipetismo – presente desde sempre em todas as eleições presidenciais de 1989 até 2022 – estava lá novamente, mas porque o seu antípoda – o bolsonarismo – havia cupinizado as instituições da República, a ponto de tornar possível uma tosca tentativa de golpe no dia 8 de Janeiro de 2023. Lula sabia que precisava de uma “frente ampla” para derrotar Bolsonaro. O que ele parece não ter entendido, contudo, é que ele também precisava de uma frente ampla para governar o país após tomar posse.

    Em 2003, quando assumiu o governo pela primeira vez, a esquerda não era tão minoritária no Congresso como é agora. Além disso, com o centrão da época, espelhado no velho PMDB, era possível negociar em termos razoáveis, na antiga base do “toma-lá, dá-cá” das emendas parlamentares. Hoje, além de a esquerda estar reduzida a menos de 1/3 do parlamento, o centrão de hoje esbaldou-se nos dinheiros do orçamento que foram sequestrados durante o desgoverno Bolsonaro. Como a Jair não interessava outra coisa senão passear de moto, jet ski e tentar organizar um golpe de Estado, o centrão vendeu os seus serviços em troca do assenhoramento de praticamente toda a verba discricionária existente no orçamento da União.

    Sem maioria congressual e com instrumentos reduzidíssimos para cooptar algo que se pudesse assemelhar a uma “base de apoio”, a Lula restava manter os compromissos que firmara durante a eleição, ou seja, trazer para seu barco toda a gente que se dispusesse a reconstruir o país, de modo a garantir a democracia tão duramente conquistada pela geração anterior. Ao invés de fazer isso, Lula loteou os principais centros de distribuição de poder entre petistas e empalhou duas de suas maiores estrelas (Marina Silva e Simone Tebet) em ministérios que, se não se pode dizer que sejam irrelevantes, possuem pouca ou nenhuma expressão real de poder.

    national congress, brasilia, building

    Em um cenário ideal, Lula viajaria o mundo, vendendo o país com a ajuda de sua extraordinária história política, e deixaria a um preposto (Geraldo Alckmin?) o papel de ser o “primeiro-ministro” na sua falta. Desse modo, a roda continuaria a girar por aqui e Lula seguiria a fazer aquilo que mais gosta: posar de líder global frente à mediocridade geral das lideranças dos países ricos. O que ocorreu, ao contrário, foi que Lula continuou a viajar e, na sua ausência, ninguém ficou empoderado para resolver as divergências políticas do dia-a-dia. Resultado: crises e paralisia da máquina, tudo à espera dos retornos do Presidente para arbitrar os conflitos entre os seus ministros.

    Como se isso não bastasse, ao caos administrativo somam-se agora dúvidas quanto à saúde de Lula. Pela segunda vez em dois meses, o Presidente foi internado para tratar de uma lesão sofrida na cabeça. Ninguém até agora entendeu direito como foi a dinâmica do acidente, mas é certo que ele atingiu a região occipital do crânio, mais popularmente conhecida como nuca. Da queda resultaram cinco pontos e uma cicatriz na cabeça.

    Se Lula fosse apenas mais um velhinho de 79 anos, não seria nada de mais. Infelizmente, as quedas em idosos dessa idade são bastante comuns e, tanto quanto problemas respiratórios ou gastrointestinais, são as maiores responsáveis pela morte nessa idade. Quando não matam directamente, por vezes as sequelas acabam resultando em agravamento posterior do quadro. É o que ocorre, por exemplo, com lesões que fraturam a cabeça do fémur, de cujo pós-operatório muitos idosos não retornam.

    Mas Lula não é somente mais um octogenário. Ele é o Presidente da República. E não qualquer Presidente da República, senão um sujeito que foi eleito três vezes para o cargo e encarna como nenhum outro a idéia de esquerda no país. Sabendo disso, parece no mínimo temerário o modo com o qual governo tratou essa segunda internação de Lula. Nesse tipo de situação, jogar aberto é sempre a melhor alternativa. Voluntariamente, escondeu-se o quadro de saúde do Presidente até que vazasse a informação de que ele havia sido transferido para o Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.

    Para piorar, depois de terem avisado que tudo correra bem na cirurgia de emergência, o país descobriu sobressaltado que Lula faria uma nova cirurgia. Dessa vez, para cauterizar uma artéria e impedir a recidiva de sangramento na região em que ocorrera a lesão. Segundo os próprios médicos, tal procedimento já estava previsto e não implica maiores riscos para o paciente.

    Se é assim, por que não foi informado isso logo após a primeira cirurgia? E por que, com o Presidente internado na UTI, o cargo não foi transmitido ao seu vice, Geraldo Alckmin?

    Lula da Silva com Geraldo Alckmin durante a campanha eleitoral de 2022.

    A forma atabalhoada com a qual tudo foi feito dá margem à interpretação de que o governo não confia no seu vice. Isso seria uma rematada tolice. Ainda que possa existir algum trauma pela forma através da qual Michel Temer operou para derrubar Dilma Rousseff, Alckmin definitivamente não é Temer. É um político leal, absolutamente cioso das responsabilidades que lhe incubem como substituto do titular. A última coisa que se esperaria dele seria aproveitar esse episódio para destronar Lula do posto.

    Esse episódio, todavia, força a antecipação do debate sobre o destino do país nas próximas eleições presidenciais. Se no pleito de 2022 a grande briga era garantir que Bolsonaro perdesse e que seu sucessor assumisse o cargo, em 2026 a luta vai ser impedir que vença um candidato apoiado pelos Bolsonaro ou, ainda que não seja apoiado diretamente por eles, esteja disposto a anistiar os golpistas todos em prol de uma suposta “pacificação” do país.

    Nesse sentido, o exemplo que vem dos Estados Unidos não poderia ser mais claro. Joe Biden foi, em 2020, o que Lula foi para nós em 2022. Mesmo assim, quatro anos depois, com um governo impopular e com suas faculdades mentais sob questionamento, Biden foi defenestrado da corrida presidencial na undécima hora. Sua substituta, Kamala Harris, não teve tempo hábil para construir uma plataforma de campanha que impedisse a vitória de Donald Trump.

    Lula não é Biden, nem em termos de popularidade, nem em termos de capacidade mental. Entretanto, não parece ser um risco negligenciável chegarmos a 2026 com uma economia em frangalhos – cortesia da absurda alta dos juros no ano passado -, talvez em recessão, certamente com desemprego em alta. São factores que detonam o potencial eleitoral de qualquer incumbente. Se somarmos a isso eventuais questionamentos sobre a saúde do candidato, teremos uma reprise do “cenário Biden”, por mais que Bolsonaro permaneça inelegível.

    O pior que pode acontecer nesse cenário seria Lula continuar no cargo e começar a experimentar um declínio na sua saúde, tanto física quanto mental. Por mais que se queira esconder essa circunstância, uma hora a verdade vem à tona, como aconteceu após o primeiro debate de Trump contra Biden. E aí poderá ser tarde demais para construir uma alternativa eleitoralmente viável para impedir o retorno da extrema-direita ao Planalto.

    man in black jacket standing in front of glass building

    Sabendo disso, o pessoal da cozinha do Planalto deveria começar a vacinar-se contra essa possibilidade. Caso Lula esteja de facto com a saúde em dia e as consequências da sua queda limitem-se a essa última internação, muito bem; vida que segue. Mas, se houver dúvidas sinceras sobre a evolução do seu estado de saúde daqui até 2026, a hipótese de ele renunciar em prol do seu vice deve começar a ser tomada a sério.

    Um eventual acordo de bastidores poderia girar em torno da promessa de Alckmin cumprir apenas um mandato e apoiar Fernando Haddad em 2030. Saindo de cena, Lula ainda permaneceria como grande “guru” político do seu campo, aquele a quem todos acorrem nas piores crises, mas sem carregar o ónus e o desgaste da labuta presidencial. Em suma, Lula só participaria dos lucros, não dos prejuízos.

    Evidentemente, também esse cenário envolve riscos. Ninguém sabe ao certo como seria um eventual governo Alckmin, nem muito menos como ele iria tourear os diversos interesses em conflito no governo, inclusive dentro do próprio PT. Ainda assim, esse cenário parece menos arriscado do que o cenário Biden, ainda mais se o país chegar em crise económica em 2026, como está a desenhar-se.

    an american flag flying in the wind on a cloudy day

    Seja como for, o que se coloca agora são basicamente três hipóteses:

    1) Fica tudo bem, Lula parte para a reeleição e ganha um quarto mandato do povo. Lula torna-se definitivamente o maior político brasileiro de toda a história republicana;

    2) Bem ou mal, Lula renuncia e deixa Alckmin na linha de frente do governo, passando a atuar nos bastidores pela vitória em 2026. Lula será eternamente lembrado como o sujeito com desprendimento suficiente para colocar o futuro do país acima de seus interesses pessoais;

    ou

    3) Lula permanece no governo, com a saúde física e mental deteriorada. Nessas condições, perde a eleição para um Bolsonaro ou um proxy dele. Nesse caso, Lula ficará para a posteridade como um Biden brasileiro, que permitiu o retorno do neofascismo por ego ou por mero apego ao poder.

    Aconteça o que acontecer, Lula terá garantido seu lugar na História. A questão, agora, é saber qual será esse lugar.

    Arthur Maximus é advogado no Brasil e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


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  • John Locke: o pai do liberalismo?

    John Locke: o pai do liberalismo?


    Na visão de muitos, John Locke é a figura seminal do liberalismo, o pensador que delineou os princípios fundamentais de uma sociedade baseada na liberdade individual, nos direitos naturais e na propriedade privada. A sua filosofia, frequentemente exaltada como a base das democracias modernas, parece estar envolta numa aura de racionalidade inquestionável e virtude universal. No entanto, um exame mais detalhado das suas ideias revela as influências profundas do protestantismo da época, e, com elas, algumas contradições marcantes.

    Para Locke, a propriedade é o ponto de partida da sua filosofia política, começando pelo direito inalienável que cada indivíduo tem sobre o próprio corpo. Este princípio, que ele considerava derivado da lei divina, estendia-se à apropriação dos recursos naturais por meio do trabalho: ao misturar o esforço humano com os bens da terra, o indivíduo conferia legitimidade à propriedade privada.

    John Locke (1632-1704)

    Os direitos naturais, segundo Locke, são inalienáveis e precedem qualquer instituição política. Incluem o direito à vida, protegido contra qualquer interferência – inclusive a própria. Para Locke, a vida é uma dádiva divina, e a liberdade, embora fundamental, deve ser limitada pelo respeito aos direitos dos outros, especialmente no que toca à propriedade.

    Por fim, o contrato social surge como a solução para o dilema do estado de natureza, onde os homens são “livres”, mas vulneráveis à arbitrariedade alheia. A formação de um governo, segundo Locke, é um acto racional e consensual, concebido para proteger os direitos naturais e garantir a ordem.

    Um exame mais atento revela que muitas das suas ideias já tinham sido profundamente exploradas pelos escolásticos católicos, particularmente pelos membros das Universidades de Salamanca, Coimbra e Évora. Estes pensadores, séculos antes de Locke, abordaram questões sobre liberdade, propriedade e organização política de maneira sistemática. Ou seja, o liberalismo nasceu na Igreja Católica.

    A ideia de que cada indivíduo tem soberania sobre o próprio corpo, central no pensamento de Locke, encontra paralelos claros no trabalho de Francisco de Vitoria. Este escolástico afirmou que todos os homens são naturalmente livres e que ninguém pode ser privado dessa liberdade sem uma causa justa. Nas suas palavras: “O direito natural é aquele que procede da dignidade da natureza humana, pelo qual todo o homem possui um domínio pleno da sua liberdade e da sua pessoa” (Relectio de Indis, 1539). Esta formulação, que enraíza a liberdade individual na dignidade intrínseca do ser humano, já contém o germe da concepção lockeana de que o corpo é propriedade do próprio indivíduo, um fundamento inalienável dos direitos naturais.

    black and white fist-printed poster on a metal post

    Outro pilar central do pensamento de Locke, a noção de que o trabalho legitima a apropriação de bens naturais, também foi claramente antecipado pelos escolásticos. Luis de Molina, ao abordar a justiça económica, argumentava que o esforço humano conferia legitimidade à posse: “Quando o homem, com o suor do seu rosto, cultiva o solo ou transforma recursos em algo útil, a propriedade desses bens é sua por direito” (De Iustitia et Iure, 1593). Aqui, Molina não apenas reconhece o trabalho como uma extensão do uso legítimo do corpo, mas também como um mecanismo que transforma recursos comuns em propriedade privada, um princípio que Locke posteriormente sistematizaria como a “mistura do trabalho com os bens naturais”.

    A noção de contrato social, que Locke popularizou como a solução para os desafios do estado de natureza, também tem profundas raízes escolásticas. Domingo de Soto, nas suas reflexões sobre a lei natural, afirmava que os homens, embora livres e iguais por natureza, necessitavam de pactos mútuos para garantir a convivência pacífica e a justiça; escreveu: “O contrato entre os homens nasce da necessidade de garantir a justiça e proteger os direitos que todos possuem por natureza” (De Iustitia et Iure, 1553). Este raciocínio reflecte o mesmo princípio de Locke de que o contrato social é essencial para proteger os direitos naturais e estabelecer uma ordem política legítima.

    Francisco de Vitoria foi ainda mais longe, ao afirmar que o governo deriva do consentimento dos governados, e não de uma imposição divina directa. “O poder político é estabelecido pelo consenso dos homens, para assegurar a justiça e o bem comum” (De Potestate Civili, 1528), estabelecendo uma base teórica que Locke ecoaria nas suas defesas do governo como uma instituição criada para preservar os direitos naturais.

    Luis de Molina complementava essa visão ao argumentar que o pacto social é uma expressão da racionalidade humana, que reconhece a necessidade de acordos para evitar a arbitrariedade do estado de natureza. Para ele, “sem um acordo entre os homens, os direitos e deveres tornam-se incertos” (De Iustitia et Iure, 1593). Esta visão, que coloca a racionalidade e a cooperação humana no centro da organização política, ressoa directamente com o pensamento de Locke, mostrando que o filósofo inglês não estava a inventar conceitos.

    Apesar da obra “De Justitia et Jure“, de Luis de Molina (1535-1600) ter sido escrita no século XVI, somente foi impressa em 1733.

    Assim, o que muitas vezes é celebrado como a originalidade de Locke deve ser entendido, em grande parte, como uma continuação e adaptação das ideias escolásticas. Os pensadores ibéricos, ao articular a soberania individual, a legitimidade da propriedade pelo trabalho e a necessidade de pactos sociais, estabeleceram os alicerces de uma filosofia política que transcendeu as fronteiras do seu tempo.

    Locke, apesar da sua aparente genialidade, fundamentou grande parte do seu pensamento político numa ficção: o estado de natureza. Essa aberração teórica, onde os homens seriam livres, iguais e independentes, ignora a realidade evidente de que os seres humanos vivem em hierarquias naturais desde o início da sua existência – algo inaceitável para os protestantes, que recusavam a autoridade papal. A relação entre pai e filho, general e soldado, ou sábio e aluno ilustra claramente que a liberdade absoluta nunca foi, nem poderia ser, a condição humana. Há sempre relações de autoridade e dependência que moldam a convivência. O próprio Locke, ao tentar escapar ao caos deste estado hipotético, recorreu ao contrato social como uma solução, mas aqui também tropeçou em contradições.

    A ideia de Locke de que o Estado existe para proteger os direitos naturais é um princípio perigoso, que abriu caminho para o que hoje conhecemos como o fascismo estatal. Um governo que se apresenta como guardião da vida, da liberdade e da propriedade não tarda a transformar-se no maior violador desses mesmos direitos. A tributação, elemento central de qualquer Estado, é em si mesma uma violação do direito à propriedade.

    O Estado não produz riqueza; apenas a extrai, usando sempre a força e a coerção, sob o pretexto de proteger os cidadãos. A liberdade defendida por Locke acaba subjugada a um Leviatã moderno, que, sob a capa de justiça e ordem, se torna o maior predador dos recursos individuais.

    Quanto ao contrato social, a maior ironia é que ele nunca existiu de facto. Nenhum cidadão o assinou, nenhum juiz supervisiona a sua aplicação e nenhum mecanismo foi criado para que seja renovado pelas gerações que nascem sob a sua pretensa autoridade. É uma ficção conveniente, usada para legitimar a existência de uma organização parasitária que se impõe aos indivíduos como se fosse um bem universal. Este “contrato” é, na realidade, um instrumento de dominação, uma imposição unilateral que não reflecte a vontade de nenhum indivíduo específico.

    O que Locke nos oferece, portanto, não é a liberdade, mas a legitimação de uma estrutura que mascara o controlo e a exploração com o véu de uma suposta protecção dos direitos naturais. A crítica a Locke é, assim, inevitável. Não nos deu as bases para a liberdade individual, mas sim os fundamentos filosóficos para a aceitação de um poder centralizado, disfarçado de protector dos direitos. A sua filosofia é um exemplo claro de como uma “boa teoria”, construída sobre premissas erradas, pode ser usada para justificar um sistema que perpetua desigualdades e violações em nome da ordem e da justiça.

    Em conclusão, as ideias de Locke não eram inovadoras, pois já os escolásticos católicos as tinham antecipado com profundidade e rigor. No entanto, as suas inovações – nomeadamente a criação do grande Leviatã para nos proteger, legitimado por um contrato social fictício – são um exemplo perverso da mentalidade protestante. Aqueles que abominavam a autoridade da Igreja e clamavam pela liberdade espiritual pareciam não ter qualquer problema em aceitar a expansão de um Estado totalitário, sob o pretexto de proteger os nossos direitos, que se tornou no maior inimigo da liberdade individual dos tempos modernos.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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  • Conto de Natal da Segunda Circular

    Conto de Natal da Segunda Circular


    A esperança da Humanidade concentra-se no bondoso coração dos seres humanos que, apesar das alterações climáticas e do ruído dos aviões, ainda acreditam no Pai Natal.

    Eu acardito! – ensinou o criativo neolinguista Jorge, de apelido Jesus, numa conferência de imprensa bíblica e babilónica, no sentido babado do termo.

    Ainda hoje tal ensinamento guia os espíritos eleitos e escolhidos para enfrentar as agruras diárias do futebol profissional.

    – Acredito que vamos passar o Natal no primeiro lugar! – proclamou “mister” Bruno Lage para reanimar os 26 jogadores do plantel principal, cansados de correr em vão o ano inteiro, fardados de vermelho.

    Eu também acredito! – ecoou a mesma mensagem, num português tão impoluto que até parecia latim, Rui Costa aos ouvidos dos 298.948 sócios que sobreviveram a Roger Schmidt e dos seis milhões de fiéis do Benfica, vivos e mortos, ávidos e desesperados pela luz da boa nova.  

    E assim nasceu um conto de Natal nunca passível de ser sonhado por Shakespeare. O único escritor inglês mais famoso do que José Mourinho era temente a Deus e escrupuloso quanto baste para repudiar o enredo que ora vos venho apresentar. O “Conto de Natal da Segunda Circular” deverá antes ser creditado em desconto dos pecados do velhaco poeta António Ribeiro Chiado, por alguns autores considerado o mais remoto adepto encarnado a passar-se para o glorioso mundo espiritual e das estátuas.

    Acredita, homem mortal:

    Que lês? Que queres saber?

    Aqui jaz quem has de ser.

    No início de Dezembro, um remetente anónimo como os OVNI estrelados que, armados aos cucos, ou em águias, andam a sobrevoar o Pentágono e a Fonte da Telha enviou ao sr. presidente do Benfica um misterioso presente.  Vinha o dito cujo empacotado em papel de prata dourado, atado, de ponta a ponta e de par em par, por duas fitas pretas de licra, presas por colchetes, a recordar os espartilhos que nos velhos tempos decidiam campeonatos.

    Assim que descerrou o embrulho, os olhos de menino da Damaia brilharam como estrelas, só de avaliar os valores, facial e simbólico, da inusitada oferta: uma jarra da Vista Alegre, colecção especial de Natal/2024, assinada pelo promissor designer Inocêncio C. B. O departamento de scouting apurou tratar-se de um atleta já observado num treino de captação, em Évora, e referenciado como sobrinho-neto do lendário artista da inolvidável e quase gloriosa tarde de 22 de Março de 1959, vivida e passada no antigo estádio.

    Qual lâmpada de Aladino, do precioso bibelot vieram à luz um, dois, três, santa vaca do Presépio, um bando! de figurinhas de chocolate, de fabrico Ferrero Rocher: o Malheiro, o Melo, um Manso, outro Nobre, um Narciso, dois Freire, um Ferreira e o Manso repetido, entre outros, mais do que as mães, todos com nomes de reis magos prontos a satisfazer apetites e saciar desejos.

    Estátua do poeta António Ribeiro, conhecido por Chiado, no largo lisboeta com o seu nome.

    O maestro ficou tão comovido! Não logrou, sequer, reprimir lágrimas loucas de felicidade. Enxugou-as no seu lencinho branco de seda, oferecido por uma admiradora nos gloriosos anos de San Siro. Para ter subido aos altares, o santo bispo de Pavia tinha-a porventura mais comprida do que o Sérgio Conceição, que dois mil anos depois lhe vai seguir os passos. Aproxima-os o facto de ambos reverenciarem o Papa. Se o novo treinador do AC Milan lhe ofereceu muitas taças, San Siro é famoso por fornecer pães e peixes ao apóstolo Pedro. 

    Rui Costa sempre olhou para este episódio como a pedra fundadora de uma corrente de virtudes. De lenço encharcado nas mãos e olhos perdidos nas bancadas vazias, deu-se conta do perturbador paralelismo histórico. Pela primeira vez, pôs a hipótese de o mesmo estar na origem do pecado da multiplicação de pontos.

    Com o cuidado de um carregador de andores de relíquias, o menino-presidente pendurou as figurinhas, uma a uma, olhos nos olhos, no pinheirinho do seu espaçoso escritório de vistas amplas para o terceiro anel, com ar condicionado da marca Vitória e casa de banho revestida a mármores Carrara a azulejos grená. E rezou a todos a mesma oração, respeitosamente personalizada pelo evocativo.  

    – São Manso, deposito em ti toda a minha fé, como em todos os árbitros mártires e sacrificados VAR, entrados e saídos desta jarra abençoada. Amém e Aleluia.

    Santinho Malheiro, deposito em ti toda a minha fé, como em todos os árbitros mártires e sacrificados VAR, entrados e saídos desta jarra abençoada. Amém e Aleluia.

    Os VAR, para as leitoras do Benfica que detestam futebol, mas abençoam o entretenimento dos maridos, são uma novel espécie de árbitros, da família dos OVNI, razão para as ostensivas letras maiúsculas. Constituem o produto mal acabado, em permanente evolução, ou degenerescência, de uma inesperada conspiração entre as novas tecnologias e as velhas baixezas da condição humana. Usam muitas ferramentas, como imagens de alta definição, drones, sensores, animações 3D, “câmaras de curtos” (sic) e outras ainda mais esclarecedoras e por isso protegidas do olhar devasso do grande público. Quanto às deficiências físicas, tiveram origem em pandemias investigadas, para arquivamento jurídico-sanitário, nos anos oitenta do século XX: cegueira oblíqua, escoliose vertebral e balanite dos apêndices.

    Quando surgiram, no princípio deste século, os VAR pareceram aos incautos “lufadas de ar fresco”, curiosa expressão de grande riqueza semântica nos balneários e prostíbulos. De auscultadores e microfone, pareciam relatadores de futebol isentos e lavadinhos, imunes a tão decadentes doenças. Desgraçadamente, com o passar do tempo, esse juiz de todos nós, foram superando pruridos e preconceitos. Tal e qual como esperado pelos peritos mais experientes no campeonato nacional, tornaram-se umas verdadeiras máquinas de fazer e desfazer golos, muito jeitosas na violação de campeonatos e no abuso das almas inocentes.

    – Creio nos anjos que andam pelo Mundo – cantou a poeta Natália Correia, que tanta falta nos faz para conhecermos, verdadeiramente, o outro “mundo” que nos rodeia. Em todas as áreas, até no futebol, os mais virtuosos portugueses levam este maravilhoso verso à letra. 

    Eu acredito neste Conselho de Arbitragem! discursouo dr. Varandas, que é maior e vacinado, na consoada do clube.

    E tenho uma grande fezada no João Pereira! – confidenciou, neste caso em privado, a um apreensivo Hugo Viana.

    Esta solene profissão de fé cozinhou o mais generoso bodo aos pobres de que há memória na Segunda Circular. Foram sete jogos e 45 noites a esvaziar a despensa para engorda do adversário, à velocidade do Airton Senna às curvas no Mónaco. Quando se sentiu a bater num muro, o dr. Varandas desligou a Netflix e deixou a orgulhosa devoção masoquista cair morta na cama.

    – Peço muita desculpa pelo presente envenenado.

    Visionário declarado, como o Grande Chefe Passaláqua, num instante lambeu as feridas e no seguinte desembainhou a solução com recurso às mesmas armas.

    Há mais de um ano que Rui Borges estava no meu radar.

    De Carnide a Buenos Aires, os jogadores do Benfica continuaram a passar o Natal felizes e descansados, indiferentes a manobras militares e sem especiais preocupações de organização defensiva. À hora marcada para o jogo, levantaram-se do colchão de neve do primeiro lugar do campeonato e subiram ao relvado de Alvalade como renas da Lapónia, a dar toques de calcanhar com botifarras de marca.

    – Acardita, Ángel!

    Enquanto teve voz, “mister”Lage puxou pelos seus campeões do mundo de garrafinha na mão, a ver se aos golinhos de água lhes mostrava com cristalina transparência o caminho para o golo.

    Atira-te a ele, Nicolás!

    Só parou de gritar quando àqueles dois falharam as pernas e a ele estoirou na garganta a última corda vocal de barítono do Teatro Luísa Todi.

    Do outro lado, um treinador da temperança dos cavalos criados nas fráguas, preparou o jogo com a astúcia dos lobos da serra do Alvão.

    Creide que sodes la meyor equipa del campeonato!

    Disposto a acatar a mensagem, a estrela da equipa passou três dias e três noites a ler um dicionário bilingue sueco-mirandês, entremeado com o bestiário de Miguel Torga. E assim Viktor Gyökeres chegou à brutal iluminação táctica de que representa em campo a força indomável do Gävlebocken, bode com mais de 13 metros de altura, exibido em Dezembro no centro da sua terra Natal.

    Du kan inte stoppa mig så!

    Bem-dito, melhor traduzido em campo. Aos 29 minutos, deixou para trás as oito chuteiras dos defesas e fugiu com as canelas para a linha de fundo. Eles ainda torceram o pescoço para ver, como no cinema, uma bola amarela e redondinha como o milho cruzar a capoeira que juraram defender, de mão no peito e cabeça na conta bancária.

    Génio do Catano treinou nas tradicionais “corridas à galinha” dos natais da sua infância para ser o primeiro a chegar a estes cruzamentos com a história.  

    Cocorococóoo-cóoooohhh! – cantou a bola, ao sentir a pancada viril do atacante moçambicano.

    Estava manifestamente com saudades e desejos daquela inesquecível jogada nocturna que fechou o derby e as contas quanto ao campeão da época passada. A expensas e penas do velho e querido rival, o leão do Delta do Zambeze tornou a abrir a juba para a eternidade.

     – Que seja um bom Natal, para todos vós!

    O Natal de 2024 vestiu-se de vermelho por seis dias e uma solitária jornada. O Chiado passou essa semana a decretar alerta vermelho à saída do metropolitano, mas ninguém o quis ouvir.

    Tudo passa n’um momento,

    como bem se manifesta.

    Tudo não tem fundamento,

    tudo acaba, tudo é vento,

    (…)

    tudo é de pouca dura,

    o tempo tudo despeja.

    Antes de se despedir, o aliviado autor desta crónica agradece as leituras e pede, envergonhado, um desagravo por ter dito nas vésperas do jogo que não acredita no Pai Natal. Felizmente, como merecia, foi desmentido a tempo pelo sr. secretário de Estado das Infraestruturas.

    Vamos inaugurar o Aeroporto Luís de Camões com uma pista para o Pai Natal aterrar e um hangar para as renas – anunciou o dr. Hugo Espírito Santo, na mensagem oficial de boas-festas do ministério, inclusiva de pessoas e animais.

    A julgar pelo nome, este divertido e bem-humorado governante deve ser adepto do Sporting. Depois do derby, ainda na tribuna reservada aos jornalistas, compreendi finalmente os seus planos para a expansão aeroportuária de Lisboa. Não passam, afinal, de um caminho ardiloso para viciar o campeonato.

    – Como poderão Di María e Otamendi, sempre que forem passar o Natal à Argentina, aterrar a cinquenta quilómetros do estádio – e ainda assim chegar a tempo às jogadas?

    Foi pena nenhum deles ter comparecido na sala de imprensa. A pergunta passa a ser retórica e deixo aos leitores a resposta.


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