Categoria: Opinião

  • Fraude científica: como a Ordem dos Médicos se deixa usar para manter uma narrativa falsa

    Fraude científica: como a Ordem dos Médicos se deixa usar para manter uma narrativa falsa


    Este é um exemplo perfeito — e por isso alarmante — de como a Ciência pode ser instrumentalizada para fins políticos e narrativos, ainda por cima com o selo de uma instituição centenária. Um artigo publicado esta semana na (suposta) revista científica Acta Médica Portuguesa, detida pela Ordem dos Médicos (e dirigida pelo seu bastonário, Carlos Cortes), assinado por Filipe Froes e dois co-autores — um dos quais uma antiga jornalista do Sol , Marta Reis que, durante a pandemia, promoveu ‘médicos influencers‘, incluindo o próprio Froes — constitui um caso acabado de fraude científica por omissão, por manipulação retórica e por abuso da autoridade institucional.

    O seu objectivo é claro: manter viva a ideia de que a pandemia de covid-19 foi, em Portugal, uma tragédia sanitária sem precedentes — mesmo que os dados, se bem analisados, desmintam essa tese. A fraude torna-se ainda mais grave quando se percebe que este texto foi redigido sem qualquer rigor metodológico e com laivos panfletários, sendo usado para alimentar peças na comunicação social, nomeadamente no Expresso, sem qualquer escrutínio jornalístico ou científico. A promiscuidade está à vista.

    Filipe Froes (ao meio) foi mandatário de Carlos Cortes (segundo a contar da direita) nas (duas últimas) eleições para bastonário da Ordem dos Médicos.

    Sob o título “Janeiro de 2021 e a COVID-19 em Portugal: o mês mais mortal desde 1919”, o artigo pretende convencer-nos, numa sucessão de frases vagas e comparações grotescas, de que o impacto da pandemia em Portugal rivaliza com o da gripe espanhola, que teve o seu auge em 1919. A narrativa começa pela cronologia: 1.150 dias de pandemia, de Março de 2020 a Maio de 2023, 26.655 mortos atribuídos à COVID-19, com um pico de 5.805 óbitos em Janeiro de 2021.

    Estes números até poderiam ser discutidos — e devem sê-lo —, mas o problema fundamental reside noutro ponto: o artigo carece por completo de metodologia científica minimamente exigível para uma publicação académica. Não houve análise estatística, não houve padronização etária, não houve controlo por variáveis confundentes, não houve enquadramento comparativo internacional, não houve sequer uma discussão crítica sobre causalidade. Se em Ciência isto não é aceitável, andar ainda com estes simplismos enviesados em 2025 nem sequer é admissível como panfleto.

    Pior ainda: o texto exibe uma retórica inflamada, de tom quase propagandístico, tentando ligar de forma forçada os números de Janeiro de 2021 à “introdução da variante Alfa” e ao “período pós-festas”, numa tentativa artificial de justificar os dados brutos. Mas estes números, mesmo em termos absolutos, não são contextualizados.

    Filipe Froes e António Diniz foram activos médicos influencers durante a pandemia. Marta Reis, licenciada em Comunicação Social, foi jornalista do i e do Sol durante o período pandémico, passando para a assessoria do Ministério da Saúde em Setembro de 2022, antes de passar para a comunicação da ULS de Lisboa Ocidental.

    O país, em 2021, tinha mais do dobro da população de 1918, muitíssimos mais idosos e, como é sabido, uma estrutura etária profundamente envelhecida. Jamais se pode comparar mortalidade total entre dois anos tão longínquos sem o devido enquadramento. Aos autores não lhes interessou analisar as taxas de mortalidade por grupo etário, porque verificariam que mesmo em 2021 — no ano de maior incidência da covid-19 — a taxa de mortalidade até nos maiores de 85 anos foi inferior à que se registava, para o mesmo grupo etário, em 2010. Se a mortalidade absoluta foi elevada, foi porque aumentou a esperança média de vida ao longo das últimas décadas — e tivemos uma nova doença a atingir uma população idosa nunca antes tão numerosa.

    Ainda assim, os autores proclamam e insistem, sem vergonha, que “Janeiro de 2021 foi o mês mais mortal desde 1919”, como se uma contagem absoluta de óbitos, sem qualquer ajustamento demográfico, pudesse ser levada a sério num artigo científico. Num panfleto mediático de 2021, até aceito que sim. Agora, numa revista que se quer científica, em 2025, isto é uma inqualificável vergonha para qualquer bastonário que queira apagar os anos de Inquisição do Miguel “Torquemada” Guimarães. Uma revista científica aceitar um título destes é desprestigiante.

    Note-se, aliás, que a única taxa apresentada no suposto artigo de Froes & Ca. — 1.216 óbitos por 100 mil habitantes em 2021 (e usar essa unidade é descaradamente populista e nada científica, porque a norma é utilizar-se óbitos por mil habitantes, o que daria 12,16) — é, de facto, a mais elevada desde 1957. Mas este valor, sendo relevante, não demonstra qualquer singularidade catastrófica, nem permite associar de forma directa a mortalidade à covid-19. A generalidade da mortalidade de 2021 resulta de múltiplos factores: idade da população, adiamentos de tratamentos, colapsos hospitalares, atrasos em diagnósticos e assistência médica não-covid. Nenhum destes elementos é sequer mencionado no artigo.

    Filipe Froes, um dos médicos portugueses com mais ligações à indústria farmacêutica.

    Além disso, um qualquer epidemiologista decente não trabalha jamais apenas com taxas de mortalidade total, porque sabe, ao contrário do inefável Froes & Ca., que em Epidemiologia facilmente se observa o chamado efeito de Simpson, ou paradoxo de Simpson. Este é um fenómeno estatístico em que uma tendência observada no total de um conjunto contraria as tendências verificadas nas suas partes.

    Em termos simples, pode acontecer que a mortalidade global de uma população aumente, ao longo de um determinado período, mesmo quando as taxas de mortalidade de todos os grupos etários — incluindo os mais vulneráveis — estão a diminuir. Esta inversão aparente resulta de mudanças na composição interna da população: se, por exemplo, aumenta significativamente o número de pessoas idosas, que apresentam naturalmente maior risco de morte, o total de óbitos tenderá a subir (e a taxa global também), mesmo que o risco individual em cada faixa etária esteja a baixar.

    Este fenómeno é particularmente visível em países com envelhecimento demográfico acelerado, como Portugal. Nas últimas décadas, apesar de se registarem reduções consistentes das taxas de mortalidade específicas em todos os grupos etários, incluindo nos maiores de 85 anos, a mortalidade total anual tem vindo a crescer. Assim, sem uma leitura desagregada por idades ou sem o uso de taxas de mortalidade padronizadas, corre-se o risco de interpretar como agravamento aquilo que, na verdade, é um progresso disfarçado por uma ilusão estatística.

    A única virtude do artigo é mostrar a quantidade de conflito de interesses de Filipe Froes e de António Diniz com a indústria farmacêutica da pandemia. Curiosamente, quando esteve nas sucessivas intervenções televisivas, Froes jamais falou destas ligações. Nem ninguém na comunicação social ‘mainstream’ lhe perguntou.

    A manipulação mais grave, no entanto, reside na forma como os autores seleccionam e interpretam os dados de internamento hospitalar. O artigo apresenta longas tabelas com o número diário de camas ocupadas por “internamentos covid”, em enfermaria e em cuidados intensivos, no período entre Dezembro de 2020 e Fevereiro de 2021. Froes & Ca. sugerem que estes dados ilustram uma pressão sem precedentes sobre o Serviço Nacional de Saúde.

    Mas omitiram — de forma deliberada — um dos paradoxos mais reveladores de toda a pandemia: os dados do Instituto Nacional de Estatística mostram que, entre 2020 e 2022, o número total de internamentos hospitalares em Portugal foi inferior ao registado em anos anteriores, bem como o número global de dias de internamento. Ou seja, o sistema hospitalar teve, em termos agregados, menos actividade assistencial do que em anos pré-pandemia.

    Esta contradição factual — que qualquer investigação científica séria teria de abordar — é ignorada sem pudor. Pior ainda, os autores falham também em referir o que é hoje reconhecido até por instituições oficiais: muitos dos internamentos classificados como covid foram internamentos por outras patologias, com teste positivo para SARS-CoV-2. Assim, a classificação “internamento covid” inclui, sem distinção, situações clínicas muito diversas mas com teste positivo ao SARS-CoV, mesmo que assintomático.

    Mas no artigo da Acta Médica Portuguesa, todos estes casos são apresentados como prova de uma alegada “pressão pandémica” — sem qualquer validação clínica ou segmentação por gravidade. Esta é mais uma omissão grave. Na prática, o que se apresenta como “carga pandémica” pode ter sido, em larga medida, uma reclassificação administrativa de internamentos ordinários, inflacionando os números e alimentando o alarme público.

    Carlos Cortes, bastinário da Ordem dos Médicos, é também director da Acta Medica.

    A ausência de dados sobre o número total de camas hospitalares disponíveis no SNS, ou sobre o número de camas convertidas temporariamente em unidades de cuidados intensivos, é assumida no artigo como limitação — mas essa mesma limitação não impede os autores de fazer afirmações categóricas e de grande peso político e mediático. Isto não é ciência, é retórica institucional disfarçada de artigo científico.

    Mais inquietante é a forma como os autores rejeitam todo o escrutínio científico, escudando-se em “dados oficiais” como se isso lhes conferisse imunidade epistemológica.

    Um dos autores, Filipe Froes, conhecido pelo seu papel mediático durante a pandemia, declara — vá lá! — abertamente ter recebido pagamentos, honorários e colaborações com mais de uma dezena de farmacêuticas, incluindo as principais promotoras de vacinas e de antigripais de eficácia questionável. Não é ilegal, mas torna-se eticamente insustentável que um artigo sobre o impacto da pandemia — coincidente com o início da vacinação em massa — seja publicado sem qualquer crítica ao papel da vacinação, sem referência a efeitos adversos ou à mortalidade em vacinados, ou sem cruzamento com dados de cobertura vacinal. A omissão é gritante e reveladora.

    E a quem cabe a responsabilidade por validar este artigo? À Acta Médica Portuguesa, a revista científica da própria Ordem dos Médicos, dirigida por Carlos Cortes que teve Filipe Froes como seu mandatário nas duas eleições. A revista aceita, publica e legitima um texto curto, como se fosse científico, sem qualquer revisão metodológica visível, sem discussão científica substantiva e, pior ainda, com um objectivo claro de reforçar uma narrativa já amplamente desacreditada na literatura internacional.

    woman in black jacket holding white paper

    Trata-se pois de um uso impróprio de uma plataforma institucional, e uma revista científica, para validar politicamente uma leitura histórica enviesada dos anos pandémicos. A revista da Ordem dos Médicos deveria ser um bastião da integridade científica — mas, neste caso, foi cúmplice de (mais) uma operação de propaganda.

    E, mais uma vez, a comunicação social desempenha aqui um papel vergonhoso: o Expresso, jornal generalista e membro activo do circuito mediático da pandemia, noticiou o artigo sem qualquer filtro crítico, transformando-o em mais um tijolo no edifício da desinformação institucional. Não se perguntou pela ausência de revisão estatística. Não se questionou o conflito de interesses. Não se inquiriu a Ordem dos Médicos sobre a razão de aceitar um artigo tão frágil. Ao contrário: publicou-se com o mesmo entusiasmo reverente com que, em tempos, se noticiavam previsões alarmistas do Imperial College ou números de testes da DGS, sem verificação nem contraditório. O jornalismo falhou — de novo. E os “anos loucos da pandemia” já passaram: convém elevar os padrõezinhos!

    Aquilo que este caso demonstra, em toda a sua crueza, é que a pandemia criou um circuito fechado entre Ciência, política e comunicação social, onde os papéis de validação se sobrepõem e confundem. A autoridade da Ordem dos Médicos é usada para garantir o verniz científico; os autores coniventes (por vezes mercantilmente ligados a farmacêuticas) continuam a fornecer uma narrativa conveniente; os media amplificam sem questionar; e a opinião pública é conduzida como gado bem-comportado. Não há Ciência nisto — apenas um simulacro dela.

    Num país sério, este artigo seria motivo de inquérito interno por parte da Ordem dos Médicos, e a revista Acta Médica Portuguesa teria de rever os seus critérios editoriais. Num país sério, jornalistas confrontariam os autores com as omissões metodológicas e os conflitos de interesse. Num país sério, os dados oficiais seriam cruzados com outras fontes, com análises independentes e com dúvidas saudáveis. Mas Portugal, neste campo, não tem sido um país sério.

    Sem análise crítica, o jornal que se arroga de referência publica tudo como se houvesse novidade e sem contexto crítico. Hoje, é fácil meter uma ‘notícia’ no Expresso.

    A fraude científica não se faz apenas com dados falsos. Faz-se também com dados verdadeiros apresentados de forma enviesada, com omissões de outros dados por causas intencionais e estratégicas, com gráficos sugestivos, com títulos sensacionalistas — e, sobretudo, com a complacência das instituições. É este o caso. E é preciso dizê-lo com todas as letras.

    A pandemia acabou, mas a manipulação continua perene. E quem deveria defender a verdade científica, neste caso, quer ainda enterrá-la — de bata branca e logótipo ao peito.

  • Há um juiz que quer saber como um jornalista passa os tempos livres

    Há um juiz que quer saber como um jornalista passa os tempos livres


    Portugal atravessa um momento de inquietante regressão democrática. Meio século depois da Revolução dos Cravos, os mecanismos institucionais que deveriam salvaguardar os direitos fundamentais começam a tornar-se os seus principais agressores – tudo sob o manto morno da normalidade administrativa. Já não se trata de actos excepcionais. Trata-se da institucionalização do abuso sob a forma de rotina. Do automatismo inquisitório que devora, com papéis timbrados e formulários absurdos, o que resta da dignidade dos cidadãos.

    Falo, sim, na primeira pessoa. Não por vaidade – mas porque o que está em causa é mais do que um processo judicial. É o sintoma de um sistema que já não reconhece os seus próprios limites. Em Setembro começa o meu julgamento no Porto, após ter sido acusado pelo médico Gustavo Carona de 31 crimes de difamação. Um processo movido contra mim, por ter exercido a crítica pública, por ter respondido, por ter escrito. Por não me ter calado.

    Editorial

    Gustavo Carona, médico durante a pandemia, protagonizou momentos de exaltação pública, incentivando um clima de alarme e de exclusão dos que divergiam da narrativa oficial. Empurrou o discurso para a hostilidade e mesmo para o ódio. O meu “crime” foi recusar-me a alinhar com essa moral sanitária de palanque, e exercer, como cidadão e depois como jornalista e director do PÁGINA UM, o dever de contraditório e de sátira. A liberdade de expressão, de que tantos gostam de se apropriar quando lhes convém, parece ser, para certos sectores, uma licença condicional: vale para a militância, mas não para a crítica.

    Não solicitei abertura de instrução. Porque, desde o início, vi neste processo não apenas uma tentativa de intimidação, mas também uma oportunidade. Ser julgado – de forma pública e transparente – é o que desejo. Porque a absolvição será o meu selo de razão, de liberdade de expressão e de compromisso com a verdade jornalística.

    Aquilo que nunca esperei, no entanto, foi o que se passou a seguir.

    Sem qualquer condenação prévia, sem cadastro, nem sequer uma multa de trânsito ou uma dívida fiscal ou à Segurança Social de um cêntimo, e tratando-se de um processo por alegada difamação em contexto escrito, fui surpreendido por um despacho judicial que ordena à Direcção-Geral da Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) a realização de um relatório social sobre mim – como se de um recluso em transição penal se tratasse.

    Esse relatório inclui, entre outros pontos, a investigação sobre, “em especial“, conforme despacho do juiz:

    • o ambiente familiar em que se formou a minha personalidade;
    • as minhas habilitações literárias e o nível de aproveitamento;
    • o ambiente social em que me insiro;
    • a minha situação familiar e profissional;
    • a ocupação dos meus tempos livres;
    • e, claro, a minha situação económica.

    Repito: trata-se de um processo por difamação, por palavras escritas. E já me vejo reduzido a objecto de vigilância institucional, como se a Justiça estivesse mais interessada na arquitectura do meu lar do que na substância dos meus argumentos.

    Fui convocado pela DGRSP para uma “entrevista”, precedida da entrega de um inquérito em papel que roça o grotesco. É um formulário que parece saído de uma casa de correção do século XIX, onde se confundem necessidades sociais com devassidão institucional. A técnica que me atendeu – de forma correcta, apesar de tudo – apresentou-se com a naturalidade mecânica de quem cumpre ordens superiores. O problema não era ela. Era o que representava.

    Instalações da DGRSP na Avenida Almirante Reis, em Lisboa: onde a dignidade fica à porta.

    O questionário, com o selo da DGRSP, começa por perguntar se sou solteiro, casado, divorciado ou em união de facto. Quer saber a composição do meu agregado familiar, o nome e a idade de cada elemento, o rendimento de cada um. Pergunta se vivo em moradia ou apartamento, se tenho casa-de-banho com água canalizada, rede de esgotos e electricidade. Quer saber se os vizinhos me respeitam, se tenho desentendimentos, e se me ocupo de “tarefas domésticas”. E quer o meu contrato de trabalho, se o tiver. Sim, em 2025, o Estado português ainda pergunta se os vizinhos respeitam o arguido.

    Pergunta também se tenho médico de família – e se sim, o seu nome –, se estou doente, se frequento algum tratamento médico, se já tive contactos – não explicita de que género – com os tribunais, a polícia, os serviços prisionais e os serviços de reinserção.

    Mas mais escandaloso ainda foi o que a técnica me solicitou na entrevista: que apresentasse, um por um, comprovativos de abertura de actividade nas Finanças, os certificados das minhas três licenciaturas e do meu mestrado, e o diabo a quatro. Como se o meu currículo – público, acessível, auditável – não valesse nada para o Estado. Como se o jornalista, para ser tratado com respeito, tivesse de provar por escrito o que o seu trabalho demonstra há décadas. Quiseram-me ali para um ritual de humilhação burocrática. Não uma avaliação social – mas uma suspeição ontológica.

    Inquérito da DGSRP para elaboração do relatório social para cumprimento do despacho do juiz.

    E quando recusei responder a certas perguntas – como a da composição do meu agregado ou a descrição do meu ambiente familiar –, fui informado de que isso poderia ser entendido como “falta de colaboração”. Ora, isto é precisamente o reverso do Estado de Direito. Porque exercer o direito à reserva da vida privada (artigo 26.º da Constituição), à liberdade de expressão (artigo 37.º) e à presunção de inocência (artigo 32.º) nunca poderá ser considerado um sinal de rebeldia. Pelo contrário: é um acto de resistência legal.

    Aliás, só quase uma hora depois de ‘debate’, acabei por conseguir que aceitassem o documento que previamente tinha redigido sobre esta matéria. Mas até isso foi difícil.

    Hoje, observa-se uma perigosa tendência para a normalização do abuso. Quando um arguido, ainda mais sendo jornalista, acusado de difamação, é escrutinado ao nível da intimidade, como se estivesse já condenado, e fosse por homicídio, por violência doméstica ou por tráfico de droga, é porque os juízes perderam o senso da proporcionalidade.

    Quando um inquérito social nem sequer tem previsto, na parte da Escolaridade / Formação, a inclusão da alternativas sobre a frequência (e conclusão) de ensino superior, mas já questiona as minudências da residência (água canalizada, electricidade, redes de esgotos, conforto e privacidade), demonstra que o modelo subjacente não visa avaliar com rigor o percurso ou a posição social do arguido, mas antes reduzi-lo a um perfil de carência presumida, como se todo e qualquer acusado fosse, à partida, um desadaptado social em vias de reintegração.

    a wooden judge's hammer sitting on top of a table

    É a inversão perversa da lógica do Direito — e a consagração de um estigma institucionalizado —, onde se apaga a fronteira entre a justiça e o assistencialismo punitivo.

    E quando o aparelho do Estado exige provas documentais para tudo – até para diplomas que são do (re)conhecimento público – é porque o sistema deixou de confiar na sua própria transparência.

    O PÁGINA UM, que dirijo, já demonstrou – em tribunal – que o poder judicial, por vezes, se arroga acima da lei. Um dos processos administrativos que movemos contra o Conselho Superior da Magistratura levou o próprio presidente (e simultaneamente presidente do Supremo Tribunal de Justiça) a ser advertido pessoalmente com multa por incumprimento de uma decisão judicial. Se isto sucede ao topo do sistema, o que esperar das suas ramificações?

    Não está aqui apenas em causa a minha defesa pessoal. É a defesa de todos os que ainda acreditam que ser jornalista em Portugal é mais do que ser porta-voz do sistema. Que ainda acreditam que o contraditório, a sátira e a exposição do poder são parte da seiva da liberdade. Que não aceitam ser classificados, anotados e arquivados como potenciais réus morais por opinarem de forma incómoda.

    Aquilo que está em causa não é a minha vida privada. É a nossa liberdade pública. E se a justiça continuar neste caminho, amanhã o formulário será para todos.

    Espero que haja reacções e que não reine um silêncio cúmplice no meio jornalístico como em outras situações. Um silêncio que lembra — com ironia amarga — a antiga fórmula usada nos tribunais portugueses: “aos costumes, disse nada.”

    Dita por réus sem passado criminal, esta frase era um acto de defesa; mas dita hoje por cidadãos e instituições perante o avanço de uma justiça que tudo quer vigiar e tudo quer devassar, transformando uma democracia num simulacro, é um acto de rendição. Tornou-se símbolo de uma sociedade que aceita os atropelos da autoridade com a mesma passividade com que um arguido habituado à sala de audiências responde ao oficial de diligências.

    woman holding sword statue during daytime

    Mas eu, como jornalista, como cidadão e como homem livre, não digo nada aos costumes — por uma razão simples: é precisamente contra esses costumes que levanto a voz. Não se deve aceitar que o silêncio se transforme em regra e a humilhação em norma. Não se deve aceitar que a liberdade de expressão, de crítica e de privacidade seja degradada a favor de um sistema que, disfarçado de legalidade, anda desejoso de reprimeir o espírito livre.

    Se este meu julgamento — e um seguinte, que este ano, ainda me há-de colocar defronte das acusações da Gouveia e Melo, da Ordem dos Médicos, do ex-bastonário Miguel Guimarães e de dois médicos sem coluna’ (Filipe Froes e Luís Varanda)— servir para alguma coisa, que sirva para isto: não disse nada aos costumes. Mas direi tudo contra os abusos que deles derivam — porque é essa, afinal, a função do jornalista numa democracia: falar quando o poder preferia que se calasse.

  • Brazil under attack, ou A blitz de Donald Trump contra as instituições nacionais

    Brazil under attack, ou A blitz de Donald Trump contra as instituições nacionais


    Meteoro trumpista

    O panorama político e económico brasileiro foi sacudido na segunda semana de Julho por um meteoro oriundo directamente de Washington. Numa “carta” publicada em sua própria rede social (a Truth Social), o presidente norte-americano, Donald Trump, impôs, de forma unilateral e indiscriminada, uma tarifa de 50% sobre todo e qualquer produto exportado pelo Brasil aos Estados Unidos.

    Para justificar tão brutal imposição, Trump – cujo bronzeado artificial, associado à pesada maquilhagem, confere à sua pele um curioso aspeto laranja– fez uso de três “argumentos”:

    1 – Existiria uma perseguição política ao ex-presidente Jair Bolsonaro, réu no Supremo Tribunal Federal por tentativa de golpe de Estado. Essa seria uma “caça às bruxas” que deveria parar “IMEDIATAMENTE” (a ênfase da caixa alta é do próprio Trump);

    2 – As redes sociais no país, controladas em sua maior parte por Big Techs norte-americanas, estariam a ser alvo de “censura” por parte do STF, o que violaria o direito à “liberdade de expressão dos americanos”;

    3 – “Défices comerciais insustentáveis” entre os dois países estariam a pôr em causa a “segurança nacional” dos Estados Unidos.

    Autoexilado nos Estados Unidos, o filho mais novo de Bolsonaro, Eduardo, comemorou a medida nas redes sociais. Não satisfeito, o “Filho 03” do ex-presidente chegou a pedir aos brasileiros através de um tweet que “agradecessem” a Trump pelas tarifas impostas aos produtos nacionais.

    “Sanções” é o nome do jogo

    Quando surge um imbróglio qualquer, seja a nível nacional, seja a nível global, o primeiro passo para compreendê-lo é respeitar o bom vernáculo. Chamando as coisas pelos seus próprios nomes, é mais fácil identificar do que se está a tratar e, a partir daí, começar a pensar em soluções. Por isso mesmo, será erro dar o nome de “aumento de tarifas” ao ataque perpetrado por Donald Trump ao maior país ao sul do Equador. O que houve foi a imposição de sanções.

    Para cogitar-se de uma possível guerra comercial, o pressuposto fundamental seria acreditar que verdadeiramente existe uma base factual para as alegações de comércio desigual formuladas pelo Nero dos nossos tempos. É essa disparidade, aliás, que justifica – ao menos em tese – a imposição de tarifas através de ordem executiva do Presidente dos Estados Unidos, de modo a contornar a autoridade constitucional outorgada ao Congresso norte-americano para impor semelhante tributo a importações estrangeiras.

    a crowd of people walking down a street

    O argumento de “segurança nacional” baseado na suposição de um “imenso défice comercial” – de legalidade duvidosa desde sempre – adquire ares de realismo fantástico no caso brasileiro. Sim, pois enquanto os Estados Unidos mantêm uma balança comercial cronicamente deficitária com o resto do mundo, o Brasil é um dos poucos países com os quais os estadunidenses ostentam superávit nas trocas de bens e serviços. De 2009 para cá, não houve um único ano em que os Estados Unidos tivessem défice comercial com o Brasil. Ao contrário. No acumulado, já são quase US$ 90 mil milhões de saldo favorável aos americanos em quinze anos.

    Para além do défice comercial inexistente, o ataque de Trump ao Brasil não pode ser chamado de “guerra comercial” porque ele mesmo enumera dois outros argumentos para justificar a imposição unilateral de tarifas: 1) a suposta “caça às bruxas” contra o ex-presidente Jair Bolsonaro; 2) a “censura” imposta às Big Techs americanas pelo Supremo Tribunal Federal.

    “Caça às bruxas”?

    Réu no STF por tentativa de golpe de Estado, Jair Bolsonaro sempre se prestou, mesmo enquanto presidente, à submissão vassalar frente ao seu “ídolo”. Bolsonaro chegou ao cúmulo de dizer, em 2019, I love you para Trump mesmo depois que o presidente norte-americano impusera uma taxação às exportações de aço brasileiras para a terra do Tio Sam. Tudo para receber em troca apenas um embaraçoso Nice to see you again.

    Bolsonaro não é vítima de perseguição política. É um criminoso que está a ser julgado por tentar impedir a posse de um presidente legitimamente eleito. Trata-se de um julgamento limpo, no qual já se carreou um caminhão de provas, inclusive os depoimentos do ex-comandante do Exército e do ex-comandante da Aeronáutica, a confirmar que o ex-presidente e parte de seus generais pretendiam usar as Forças Armadas para permanecer ilegalmente no poder. Bolsonaro recebe da democracia toda a cortesia que a garantia de um devido processo legal pode conferir. A mesma cortesia que foi negada aos presos políticos da ditadura que ele tanto exaltou durante toda a sua carreira política.

    wide road with vehicle traveling with white dome building

    O nó da questão

    O segundo ponto levantado por Donald Trump diz respeito à suposta “censura” aplicada pelo Supremo Tribunal Federal às redes sociais norte-americanas. Trata-se de assunto já abordado aqui nesta coluna (https://www.paginaum.pt/2024/09/19/elon-musk-vs-alexandre-de-moraes-uma-visao-brasileira). Não existe censura. O que existe é uma tentativa tímida de responsabilizá-las pelo conteúdo que veiculam.

    Fora isso, revela-se formidável hipocrisia ver o Nero Laranja falar em “liberdade de expressão” quando seu governo revogou o visto de 300 estudantes que se manifestaram em universidades a favor da causa palestina; cassou as credenciais da Associated Press por recusar-se a chamar o Golfo do México de “Golfo da América”; e, agora, ameaça tirar a cidadania da jornalista Rosie O’Donnel (nascida em Nova Iorque) por criticar sua agenda ambiental. So much for free speech defense.

    Um ataque sem precedentes

    Do ponto de vista histórico e diplomático, o ataque de Donald Trump às instituições brasileiras é sem precedentes. Nunca houve nada sequer semelhante ao que se está a passar agora. É verdade que, durante o governo do general Ernesto Geisel, o Brasil sofreu pressão do governo Jimmy Carter pela abertura do regime. Já havia mais de dez anos do golpe de 1964 e as denúncias de violações aos direitos humanos tinham atingido patamar insustentável. Tais pressões, porém, deram-se nos bastidores e em momento algum o governo Carter publicou uma nota desaforada para contestar os crimes cometidos pelos agentes da ditadura.

    O máximo de constrangimento imposto por Carter ao governo brasileiro foi obrigar Geisel a receber sua mulher, Rosalynn. Geisel entendia que, como presidente, só lhe competia discutir questões de Estado com seu par americano, não com a primeira-dama, que não fora eleita para coisa alguma. O episódio calou tão fundo na alma do general que, anos depois, já com ambos fora dos respetivos cargos, Geisel negou-se a receber Carter em sua residência. A questão “resolveu-se” depois que o Brasil denunciou o acordo de cooperação técnico-militar com o exército dos Estados Unidos.

    red and blue crane under blue sky during daytime

    O sequestro e o resgate

    Do ponto de vista jurídico e político, a “carta” enviada pelo Nero Laranja não faz o menor sentido. A começar pelo facto de que seu destinatário, o Presidente Luís Inácio Lula da Silva, não dispõe de qualquer autoridade para fazer o que Trump exige. Por mais que o país seja desconhecido em grande parte das redes de poder em Washington – por vezes referenciado de forma jocosa como “México do Sul”, cuja capital é a cidade de Buenos Aires –, mesmo um governo de ignorantes como o de Trump é capaz de saber o Brasil não é uma Banana Republic, onde o Presidente manda suspender um processo da Suprema Corte (contra Bolsonaro) ou desfazer-lhe um julgamento (contra as Big Techs).

    Ao contrário do que Trump expôs em sua missiva, no Brasil não vigora qualquer regime de exceção. Na verdade, pela primeira vez em sua história, o país tem a oportunidade de consolidar à vera a sua democracia, levando ao banco dos réus civis e militares que conspiraram pela derrubada do regime democrático. Bolsonaro não é vítima de uma “caça às bruxas”. É um liberticida mimado, que passou a vida inteira sem responder pelos seus atos. Agora, com a perspetiva de enfim ser preso, resolveu “sequestrar” o país com a ajuda de uma potência estrangeira para tentar livrar-se do cárcere.

    Bolsonaro, de facto, importa?

    Mas até que ponto Bolsonaro, de facto, importa nessa equação?

    Na mesma carta em que ataca as instituições brasileiras, Trump afirma que, caso as empresas brasileiras decidam “construir ou fabricar produtos dentro dos Estados Unidos”, a tarifa não será implementada. O presidente norte-americano dispõe-se até a fazer o serviço de despachante “para aprovar rapidamente” os investimentos brasileiros. A gentileza é tamanha que ele se propõe a aprovar “em questão de semanas” o desembaraço burocrático. É dizer: se os empresários nacionais resolverem investir nos Estados Unidos, dane-se Jair Bolsonaro.

    a person holding a flag

    A ser verdade que Bolsonaro seria elemento-chave dessa medida, por que ele mesmo não veio a público pedir a revogação da medida? Dado o imenso prejuízo causado à economia brasileira, Bolsonaro poderia capitalizar politicamente a questão, “sacrificando-se” pelo bem da Nação e apresentando-se como “salvador da pátria”.

    Das duas, uma: ou Bolsonaro não dispõe qualquer poder de ingerência para pedir a revogação das tarifas a Donald Trump; ou ele não foi o principal motivo para que elas fossem impostas. Não há como entender que ele tenha sido a principal motivação do troço e, ao mesmo tempo, não seja capaz de pelo menos advogar pela revogação da medida.

    Freud explica?

    Há sempre o risco de que tudo isso não tenha passado de um TACO Trade. O acrónimo Trump Always Chickens Out (“Trump sempre amarela”), formulado jocosamente por alguns operadores financeiros de Wall Street, indica uma fórmula através da qual, toda vez que o Nero Laranja apresenta alguma medida estapafúrdia, ele termina por recuar depois de algumas semanas. Seja por conta das pressões dos setores envolvidos, seja por conta da repercussão negativa, Trump acaba por dar o dito pelo não dito e ainda sai por aí a anunciar vitória. Esse, porém, pode não ser o caso das sanções aplicadas ao Brasil.

    Como toda a gente sabe, Donald Trump foi processado por sedição depois do infame episódio do 6 de Janeiro. Uma multidão ensandecida, incensada por um comício incendiário do próprio Nero dos nossos tempos, tentou impedir a certificação da vitória de seu oponente democrata, Joe Biden. A alegação? “Fraude” nas eleições. Graças à incapacidade do sistema judicial norte-americano de levar a cabo a denúncia por golpe de Estado, Donald Trump pôde concorrer e vencer novamente a corrida para a Casa Branca.

    Durante todo o tempo em que foi processado, Trump alegou ser vítima de uma “caça às bruxas”. A mesma “caça às bruxas” que ele agora acusa o governo brasileiro e o STF de praticarem contra Jair Bolsonaro. Ninguém sabe até que ponto o caso de Bolsonaro detona algum “gatilho” mental na cabeça do Nero Laranja. O mais provável, porém, é que a pressão exercida por ele seja motivada não por qualquer espécie de sentimento de solidariedade, mas, sim, para evitar o “exemplo” contra pretendentes a autocratas que a Justiça brasileira está a dar. Não será mera coincidência, portanto, que Trump tenha feito ameaça semelhante a Israel pela “perseguição” a Benjamin Netanyahu, réu em um rumoroso caso de corrupção.

    a flag flying in the air

    Não é por acaso, portanto, que o Brasil foi “premiado” com o maior percentual dessa nova rodada de tarifações imposta por Donald Trump. Há, sem sombra de dúvida, uma componente política nesse ato.

    Isso explica, ademais, por que ambos os argumentos – “perseguição” a Bolsonaro e “censura” às Big Techs – estão situados topograficamente acima do “argumento comercial” na malcriada “carta” enviada pelo Nero da nova Roma. Esse trecho, a propósito, reproduz na base do “Ctrl+C – Ctrl+V” o conteúdo de cartas enviadas a outros países por Trump. Isso indica não só a aparente preguiça dos redatores na revisão do texto, como também a irrelevância do “argumento comercial” para a imposição indiscriminada de uma tarifa de 50% sobre toda a pauta de exportação brasileira ao país.

    E agora?

    Ainda que o Brasil fosse uma República de Bananas, qualquer criatura minimamente familiarizada com relações diplomáticas sabe que um país não pode ceder a tais termos sob chantagem. Seria um desastre político a nível interno e uma humilhação vexatória a nível internacional. Churchill ensinava que não se pode negociar com um tigre quando sua cabeça está dentro da boca dele. O que Trump está a pedir, em suma, é que, para não serem assassinados, Lula e o STF cometam suicídio. Parece óbvio que nenhum dos dois cometerá tal despautério.

    O ataque deliberado do Nero Laranja às instituições brasileiras detonou uma onda de nacionalismo poucas vezes vista no território brasileiro. Mesmo quem não morre de amores pela esquerda sabe identificar quando seu país está a ser injustamente atacado por uma nação estrangeira. Sequestrada pelo bolsonarismo desde 2018, a bandeira do patriotismo foi transferida de mão beijada para Lula. Com a popularidade em baixa e uma gestão questionada até mesmo por aliados, o babalorixá petista conseguiu tirar seu governo das cordas e parece reenergizado para uma disputa presidencial que promete ser renhida ano que vem.

    a long row of flags in front of a building

    Danos colaterais

    Como se isso não bastasse, a tarifação indiscriminada dos produtos brasileiros abortou o projecto de amnistia aos golpistas de 8 de Janeiro. Ambicionado por Bolsonaro e seus generais golpistas, o projecto tramitava na surdina no Congresso Nacional. Embora nada do texto tenha vindo a público, havia lideranças que defendiam até que se votasse a amnistia antes do recesso parlamentar, em 17 de Julho. Agora, toda essa programação foi por água abaixo.

    Para piorar, a péssima repercussão do tarifaço trumpista atingiu a base económica do bolsonarismo, como o agronegócio e alguns setores industriais. Fortemente exportadores, esses setores estão entre os mais prejudicados pelas tarifas de Donald Trump. Sem saber de que lado se posicionar, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas – encarnação daquilo que parte do mainstream mediático alcunha de “bolsonarismo moderado” (como se tal coisa pudesse existir) – ficou na linha de tiro.

    Preferido do chamado “Centrão” e do mercado financeiro para substituir o inelegível Bolsonaro na próxima contenda presidencial, Tarcísio de Freitas deparou-se com uma encruzilhada. Se defendesse os empresários atingidos pela medida, compraria briga com seu padrinho político. Se defendesse Bolsonaro, compraria briga com os potenciais patrocinadores de sua campanha. Resultado: Tarcísio não defendeu nem um nem outro. Acabou, assim, por apanhar dos dois lados.

    silhouette of road signage during golden hour

    Em resumo:

    O episódio das tarifas contra os produtos brasileiros, portanto, é um caso a ser estudado no futuro. Numa só tacada, Donald Trump conseguiu: 1) enterrar o projecto de amnistia aos golpistas de 8 de Janeiro; 2) enfraquecer politicamente seu protégé; 3) alvejar gravemente seu potencial substituto na corrida;e, finalmente, 4) encorajar o atual presidente para as próximas eleições.

    Quanto ao Supremo, a ameaça de Trump de nada adiantará para suspender o processo contra Bolsonaro. Na verdade, deve resultar no exato oposto: seu julgamento deve ser acelerado. Quem não conhecesse as personagens, seria capaz de jurar que Trump é lulista de carteirinha.

    Diante de tudo isso, resta apenas concluir ironicamente: “Parabéns aos envolvidos”.

    Arthur Maximus é advogado no Brasil e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

  • Moderna: o colapso de um Ícaro que tocou o sol pandémico

    Moderna: o colapso de um Ícaro que tocou o sol pandémico


    Durante os anos febris da pandemia, o mundo assistiu a um espectáculo farmacêutico de proporções inéditas. Como na antiga fábula de Ícaro, e aproveitando a ideia de que eram empresas beneméritas e salvadoras, diversas farmacêuticas alçaram voo tão alto que chegaram a roçar o sol — ou, mais propriamente, a embater na razão e na prudência, escudadas numa narrativa de urgência que legitimava tudo, até o inadmissível.

    Entre estas, a norte-americana Moderna destacou-se como símbolo maior da fortuna repentina, empoleirada sobre uma tecnologia experimental — o mRNA — promovida com ares de milagre científico e embalada por contratos estatais que dispensavam responsabilidades e multiplicavam os lucros.

    Os lucros foram, aliás, de uma obscenidade quase teológica. Em 2021 e 2022, sustentada quase exclusivamente pela vacina Spikevax, a Moderna arrecadou lucros de mais de 20,5 mil milhões de dólares, o equivalente a cerca de 18,6 mil milhões de euros — ou 6,7% do PIB português. Antes de 2021, a Moderna apresentava prejuízos sistemáticos.

    Este sucesso com um só produto — e a Moderna nem sequer foi a farmacêutica que mais vendeu vacinas contra a covid-19 — teve como base uma vacina que, apesar de alegadamente segura e eficaz, foi testada a correr, aprovada sob regimes excepcionais e vendida a governos com cláusulas de exclusão de indemnização em caso de efeitos adversos.

    Tratava-se, dizia-se, de uma emergência — e, como em todas as emergências, os que correm depressa e com bons contactos institucionais colhem primeiro. A Ciência — ou o que dela restava, ou pelo menos a parte que preserva os princípios da prudência — foi empurrada para segundo plano, dando lugar à logística, à política e ao marketing biomédico.

    O frenesim chegou também à bolsa. As acções da Moderna, cotadas no índice Nasdaq sob o irónico símbolo MRNA, que antes da pandemia valiam cerca de 25 dólares, atingiram o seu pico histórico a 10 de Setembro de 2021, quando chegaram aos 449,38 dólares — uma subida de cerca de 1.700% num ano e meio. Foi a glória absoluta, o zénite do voo de Ícaro.

    Mas desde então a queda tem sido vertiginosa. A 1 de Agosto de 2025, a cotação era de apenas 27,60 dólares — uma queda de 94% face ao pico —, levando a empresa a perder quase toda a valorização obtida durante a pandemia. A capitalização bolsista, que em 2021 superava os 180 mil milhões de dólares, ronda agora os 10,7 mil milhões. Um desmoronamento de proporções mitológicas.

    Com o fim do entusiasmo pelos reforços — e a crescente ocultação dos efeitos adversos —, as vendas decaíram. E os prejuízos da Moderna regressaram: 4,7 mil milhões de dólares em 2023 e quase 3,6 mil milhões no ano passado, acompanhados por queda de receitas e poucos sucessos noutras terapias de mRNA.

    Evolução da cotação da Moderna com indicação do máximo (449,38 dólares em 10 de Setembro de 2021) e cotação em 1 de Agosto de 2025 (27,60 dólares). Fonte: Google Finance.

    O tempo do marketing biomédico terminou com estrondo. A Moderna, que em tempos não sabia como gastar o dinheiro que entrava em catadupa — investindo em laboratórios, fábricas, campanhas, contratações —, tenta hoje salvar-se de um declínio que é estrutural. No segundo trimestre de 2025, a empresa anunciou receitas de apenas 142 milhões de dólares, uma queda de 41% face ao período homólogo, e um prejuízo ajustado de 2,13 dólares por acção — ainda assim, melhor que os 2,97 dólares de prejuízo esperados pelos analistas.

    Piores, contudo, são as expectativas para o futuro. James Mock, director financeiro da farmacêutica, procurou suavizar a notícia: parte significativa da receita será reconhecida no terceiro e quarto trimestres, disse. Haverá um pico no outono, sugeriu. Mas reconheceu que o impulso recente veio sobretudo dos reforços de primavera nos EUA e dos cortes de 800 milhões de dólares em custos — um sinal claro de emagrecimento forçado.

    Não por acaso, Stéphane Bancel, CEO da Moderna, anunciou na semana passada a dispensa de cerca de 10% da força laboral. A empresa, que no final de 2024 empregava 5.800 trabalhadores, terá menos de cinco mil até ao fim deste ano.

    Não se trata apenas de reduzir gordura: é uma amputação cauterizada. E, tal como nas narrativas mitológicas, depois do voo de glória vem a queda abrupta. Bancel justificou a decisão com a necessidade de “disciplinar financeiramente” a empresa e preparar o caminho até 2027. Certo é que as milagrosas vacinas de mRNA — outrora apresentadas como o futuro inevitável da Medicina — já não se vendem como dantes.

    O novo produto da empresa — a mRESVIA, dirigida ao vírus sincicial respiratório — está longe de fazer grande sucesso. Até a nova versão da vacina contra a COVID-19, a mNEXSPIKE, obteve apenas uma aprovação restrita: nos Estados Unidos, apenas para maiores de 65 anos ou pessoas com comorbilidades, como sucede com as vacinas sazonais contra a gripe ou a pneumonia. Nada que se aproxime do mercado universal que se quis impor durante a pandemia — com fins meramente mercantilistas.

    Perante este cenário, a Moderna volta-se para o futuro — ou melhor, para a promessa do futuro. Fala de vacinas combinadas, de terapias para doenças raras, de oncologia personalizada, de vírus latentes. Projecta investimentos, anuncia regulações em curso, convoca uma visão estratégica. Mas, por mais que se empunhem termos como “disrupção”, “inovação” e “resiliência”, os dados impõem um regresso à realidade: sem uma nova emergência sanitária (fabricada ou não), dificilmente se repetirá o contexto político, mediático e regulatório que permitiu os lucros faraónicos da era pandémica.

    A crise da Moderna é, pois, paradigmática. Mostra que a transição do modelo de vacina de emergência para o mercado endémico — isto é, concorrencial, previsível e regulado — é dolorosa para quem apenas aprendeu a prosperar com o tapete vermelho estendido pelos governos e pelo alarmismo mediático, assessorado por cientistas mercantilistas.

    Hoje, até os governos que outrora assinaram contratos multimilionários sem pestanejar — muitas vezes sob sigilo — mostram-se menos generosos. E os cidadãos, vacinados em série, começam a questionar se não foram enganados e usados por uma hipérbole institucionalizada.

    Na verdade, aquilo que está a suceder à Moderna não é apenas um estrondo económico: é simbólico. Representa a falência de um modelo que confundiu biotecnologia com salvação, urgência com imunidade, marketing com saúde pública. Representa o ocaso de uma época em que os CEOs das farmacêuticas eram tratados como visionários e não como gestores de interesses corporativos. Representa, em última instância, o regresso de Ícaro ao chão — com as asas derretidas pela luz crua do escrutínio.

    Por isso se impõe uma reflexão mais ampla. O episódio da Moderna deve ser lido não como uma simples travessia empresarial num ciclo de mercado, mas como uma lição civilizacional: de que a Ciência, quando subordinada à lógica do lucro e do pânico, torna-se uma caricatura de si própria; de que a Política Pública, quando abdica do escrutínio, alimenta monstros económicos de pés de barro; e de que o jornalismo, quando abdica do contraditório, ajuda a construir mitos que mais tarde se desfazem em silêncio.

    A Moderna foi, como tantas outras, uma das beneficiárias de uma era de excepções. Mas o seu colapso poderá significar que os tempos da prevenção, da proporcionalidade e da transparência estão de regresso. E com eles, o sol da racionalidade — algo a que as asas de cera não resistem.

  • Dois marcos em Julho: 595 donativos e 687.454 leituras

    Dois marcos em Julho: 595 donativos e 687.454 leituras


    Julho foi um mês marcante na história ainda curta, mas já intensa, do PÁGINA UM. Atingimos um novo recorde: 687.454 leituras, o que equivale a uma média superior a 22 mil visitas por dia. Um número que nos enche de alegria – e de responsabilidade. A cada leitura, a cada partilha, a cada comentário, confirmamos que este projecto faz sentido. Que vale a pena. Que há leitores atentos, exigentes e livres.

    Como sabem, não temos publicidade. Não temos patrocínios. Não temos “secções powered by”. E, ao contrário de muitos que se dizem independentes, nós somos verdadeiramente independentes – na origem, na prática e na essência. Essa liberdade absoluta tem um custo, e por isso optámos desde o início por um modelo de acesso aberto a todos, sem barreiras, sem subscrições obrigatórias, sem engodos. Qualquer pessoa pode ler o PÁGINA UM, seja ou não apoiante.

    MacBook Pro near white open book

    É aqui que entram os nossos leitores mais fiéis. Em Julho, 595 pessoas apoiaram o PÁGINA UM – com donativos únicos, regulares ou recorrentes, através das várias plataformas (Steady, Paypal, transferência bancária, e agora uma nova plataforma que criámos no mês passado para facilitar ainda mais este processo). Estes apoios são distintos no valor, mas iguais na importância. São todos eles sinais de confiança e de compromisso.

    O nosso modelo assenta numa lógica de “willingness to pay” – ou seja, de pagar voluntariamente por algo que se considera valioso, mesmo quando esse algo é gratuito. É uma aposta na consciência e na liberdade de quem nos lê. Não impomos nada. Apenas mostramos que, se queremos manter um jornalismo sem amarras, precisamos de uma comunidade de leitores que o sustente com convicção.

    Temos, por isso, motivos para estar gratos. Quase seis centenas de pessoas a apoiar regularmente um jornal digital que recusa concessões, que recusa modas, que recusa a linguagem institucionalizada do politicamente correcto, é um pequeno milagre. Mas queremos mais. O nosso objectivo a curto prazo é alcançar os 1.000 apoiantes. Sabemos que é possível.

    Julho também foi importante porque algumas das nossas reportagens e investigações tiveram impacto real – nos leitores, nos protagonistas e, às vezes, até nas instituições. Mesmo que muitos dos outros órgãos de comunicação social continuem a ignorar ou a fingir que não existimos, os leitores sabem que existimos. E isso basta.

    Por enquanto, a redacção do PÁGINA UM é formada por duas pessoas apenas – eu e a Elisabete Tavares, com o apoio inestimável dos nossos colaboradores. Mas, com o crescimento da base de apoio, esperamos reforçar a equipa em breve. Há novidades a caminho.

    A todos os que estão connosco – diariamente ou pontualmente, com palavras ou com apoio financeiro –, o nosso sincero obrigado. Continuaremos, como sempre, a trabalhar com rigor, com liberdade e sem ideologia. Não podia ser de outra forma. Não há verdadeiro jornalismo de outra forma.

  • Inquisição e redes sociais, ou a estupidez de Rui Moreira

    Inquisição e redes sociais, ou a estupidez de Rui Moreira


    Na pulsação apressada do mundo contemporâneo, onde os fluxos informativos são tão líquidos quanto voláteis, é tentador recorrer a imagens fortes para adquirir uma sensação de domínio explicativo. Rui Moreira, presidente da Câmara do Porto em fim de mandato — e putativo candidato a Presidente da República —, lançou num podcast do jornal Eco uma dessas imagens — poderosa, sim, mas também grosseiramente equívoca.

    Afirmou ele que “Portugal foi o último país a abolir a Inquisição e, portanto, vamos seguramente ser o último a abolir as redes sociais, que hoje são uma forma de inquisição”.

    a woman standing in front of a lighted cross

    Poder-se-ia dispensar o exagero retórico — e a falta de rigor sobre Portugal ter sido, ou não, o último país a extinguir a Inquisição —, não fosse o peso institucional e simbólico da figura que o proferiu. Mas já que a analogia foi feita, convém destroçá-la com o mesmo ou maior vigor com que foi propagada. Não porque as redes sociais sejam oásis de virtude — estão longe disso —, mas porque a comparação com a Inquisição não é apenas lamentavelmente desonesta: é historicamente ignorante, politicamente oportunista e, mais grave, intelectualmente preguiçosa.

    A Inquisição — essa sim — foi um sistema institucional de controlo dogmático, sustentado pelo poder eclesiástico e laico, com tribunais secretos, denúncias anónimas, censura oficial, tortura sancionada, autos-de-fé e penas de morte reais. Funcionou durante três séculos e servia os interesses conjugados do trono e do altar. Era uma máquina silenciosa e implacável de sufocar dissidência, pensamento herético, irreverência científica ou religiosa. As vítimas não escolhiam estar sob o seu escrutínio. Eram silenciadas, não amplificadas. Punidas, não ouvidas. Desaparecidas, não partilhadas.

    Comparar isto — este período sombrio da nossa História — às redes sociais é mais do que um ultraje: é, francamente, uma estupidez.

    As redes sociais, com todos os seus excessos e disfunções, são o oposto dessa lógica. São desordeiras, indomáveis, abertas, imprevisíveis — um espelho ampliado da democracia em estado bruto, com a cacofonia inevitável da liberdade. Permitem o insulto, sim — como qualquer taberna política sempre permitiu. Mas também permitem o contraditório imediato, a exposição de abusos, a mobilização cívica espontânea e a articulação de vozes que os media convencionais tantas vezes filtram ou ignoram.

    É precisamente isso que incomoda certos políticos e elites administrativas: não poderem controlar o discurso, como controlam ou influenciam — directa ou indirectamente — muitos jornais, rádios, televisões ou agências noticiosas. Antes era fácil: onde havia um director de informação, havia um jantar; onde havia um editorial corporativo, havia uma rede de cumplicidades que nem precisava de ser declarada. Nas redes sociais, o “director de informação” somos todos nós — com os nossos vícios, sim, mas também com a nossa insubmissão.

    E essa insubmissão — esse ruído, essa desordem incontrolável — tem sido, em não poucos casos, uma arma de libertação real. Quem não se recorda da Primavera Árabe, quando regimes autoritários do Norte de África foram desafiados e, nalguns casos, derrubados, graças à articulação de protestos através do Facebook e do Twitter?

    Foi pelas redes sociais que se viram, em tempo real, as praças ocupadas, os manifestantes reprimidos, as esperanças acesas por palavras partilhadas. No Irão, em 2009 e em 2022, quando as ruas eram interditadas e os jornalistas impedidos de reportar, foram vídeos de telemóvel — difundidos no Instagram ou Telegram — que mostraram ao mundo as violações dos direitos humanos.

    Em Hong Kong, em 2019, os jovens recorreram às redes para organizar protestos em tempo real, driblando a censura do Partido Comunista Chinês. Mesmo em democracias consolidadas, como os Estados Unidos, foi um vídeo filmado por um cidadão e viralizado no Twitter que denunciou o assassinato de George Floyd, mobilizando milhões contra o abuso policial.

    As redes sociais não são a nova censura. São, em muitos momentos históricos, o único canal de expressão onde o poder não chega primeiro. São desreguladas? Sim. São manipuláveis? Também. Mas são, sobretudo, incontroláveis — e é isso que as torna perigosas para quem se habituou a falar sem ser contestado.

    people using phone while standing

    Não duvido de que haja perseguições morais nas redes, indignações em fúria, cancelamentos momentâneos — por vezes histéricos ou orquestrados. Mas isso não faz das redes um novo Santo Ofício. E para problemas novos, criem-se instrumentos de Justiça; não mecanismos informais que silenciem vozes incómodas, incluindo as de jornalistas.

    As redes sociais serão sempre, em muitos casos, ferramentas espontâneas de denúncia popular que, embora imperfeitas, lançam luz sobre zonas anteriormente protegidas por silêncios convenientes. Quantos escândalos de abuso, corrupção ou hipocrisia política só se tornaram visíveis graças à pressão social do espaço digital? Quantos interesses instalados foram forçados a responder a perguntas que os jornalistas de microfone complacente nunca ousaram formular?

    O incómodo que certas figuras públicas sentem com as redes sociais tem menos a ver com as redes em si do que com a perda do seu monopólio sobre o discurso público. Durante décadas, bastava uma boa relação com um grupo de editores ou com um partido de poder para moldar narrativas, ocultar dissensões ou fabricar consensos. Hoje, esse controlo está fragmentado. A plebe tem voz — e não pede licença para falar. E isso assusta.

    Rui Moreira usa redes sociais para se promover, mas poucos lhe ligam: 13 horas depois de divulgar a sua conversa para a Eco contava apenas com 63 likes, dois comentários e quatro partilhas, Compreende-se porque não as aprecia.

    Seria intelectualmente honesto que Rui Moreira — homem que se diz culto, informado, com vivência do espaço público — reconhecesse que não é a “inquisitorialidade” das redes que o incomoda. Antes, é a impossibilidade de as domesticar. Aquilo que ele diz ser uma “forma de inquisição” é, afinal, uma forma de libertação — com os seus excessos naturais, mas também com virtudes inegáveis. Este é o custo da liberdade — e a liberdade, como sabemos desde os gregos antigos, implica ruído, risco e conflito.

    Mas se os políticos querem abolir as redes sociais, sejam coerentes: comecem por fechar as suas contas institucionais, cancelar as campanhas digitais, recusar os likes e os follows. Mas não venham depois lamentar que ninguém os ouve, porque — gostem ou não — hoje o espaço público já não se limita aos salões de poder nem às colunas de opinião dos jornais amigos. O poder vive — e ferve — nas redes. E é precisamente aí que os cidadãos, com os seus defeitos e contradições, recuperaram uma fatia da soberania que lhes era negada. E a isto chama-se amadurecimento da democracia — acabar com as redes sociais seria apodrecer a democracia.

  • Para onde vais, Lisboa?

    Para onde vais, Lisboa?

    Tirana. Capital da Albânia. Passeando na rua, à noite, bancas de frutas tapadas com lonas permanecem à porta de alguns minimercados e mercearias, sem supervisão. Em alguns cafés, móveis das esplanadas ficam na rua toda a noite, sem correntes nem cadeados.

    Existe criminalidade em Tirana? Sim, como em todas as principais cidades. Mas alguns cenários em Tirana são já impensáveis em Lisboa, onde a real insegurança testemunhada diariamente pelos residentes e turistas contrasta com a quase invisibilidade do patrulhamento policial.

    Na madrugada desta terça-feira, a zona da Graça viveu mais uma noite de assaltos. Este bar na Travessa do Monte teve ‘sorte’. A janela estava fechada no trinco e os ladrões não conseguiram entrar. Mas os prejuízos pelos vidros partidos e cadeados estragados acumulam-se. Na Rua da Graça, a ‘casa dos crepes’ não teve a mesma sorte e foi mesmo assaltada. / Foto: D.R.

    Um exemplo. Na segunda-feira, o PÁGINA UM publicou a sua segunda reportagem sobre os ‘males’ que afligem a capital. Esta reportagem debruçou-se nos casos dos assaltos a casas no centro de Lisboa, perto da Graça, durante a noite, com as famílias a dormir.

    Na madrugada de terça-feira, a zona da Graça acordou e deparou-se com nova ronda de assaltos. A ‘casa dos crepes’, como é conhecida, viu a porta ser arrombada. Os ladrões conseguiram entrar. A manhã de anteontem foi de limpezas e com o proprietário a fazer contas aos estragos.

    Ali perto, na Travessa do Monte, um bar ficou com um vidro partido. Os ladrões não conseguiram entrar porque a janela estava fechada no ‘trinco’. Foi o que valeu. Os agentes da polícia estiveram no local a recolher provas. Mas ninguém tem esperanças de que os ladrões venham a ser apanhados e que tenham de pagar os estragos que deixaram para trás em mais uma noite de roubos na zona.

    Na Rua da Graça, os donos de lojas e cafés na zona já perderam a conta ao número de assaltos ocorridos na zona durante a noite. Além disso, há prejuízos causados por roubos feitos durante o dia.
    / Foto: PÁGINA UM

    “Pensámos que estava melhor, mas não. Os assaltos voltaram”, disse um dos proprietários de um dos estabelecimentos na Rua da Graça. Nem os quiosques de jornais escapam aos roubos. Um deles foi assaltado duas vezes só este ano. Na primeira vez, os ladrões foram bem sucedidos e conseguiram entrar e concretizar o assalto. Da segunda vez, deixaram o cadeado danificado. Para o dono do quiosque, foi mais um prejuízo, a juntar aos anteriores.

    Na movimentada farmácia, no Largo da Graça, junto ao quartel dos bombeiros, foi necessário contratar um segurança privado que agora previne roubos diurnos. Mas, mesmo assim, as funcionárias encontram alarmes no chão frequentemente. Um sinal de que alguns dos produtos expostos nas prateleiras já tinham ‘voado’.

    A esta onda de roubos durante o dia não será alheio o facto, de nas redondezas, se ter normalizado a instalação de tendas de sem-abrigo e toxicodependentes. O caso da degradação do Jardim da Cerca da Graça é testemunha disso.

    Tirana, Albânia. / Foto: PÁGINA UM

    Mas não são apenas os assaltos a casas, estabelecimentos comerciais e pessoas que sinalizam a tendência decadente da capital. Os montes de lixo espalhados por cada esquina e junto a ecopontos multiplicam-se pela cidade. A impunidade instalou-se. Além de lixo doméstico e de lojas e restaurantes, vêem-se sofás, móveis velhos, electrodomésticos, colchões, … Em algumas ruas, há vários ‘montes’ de lixos visíveis. E há a somar os sacos de obras e empreitadas na construção de empreendimentos de luxo e casas para vender a turistas a peso de ouro.

    Testemunhei situações em que funcionários da autarquia passaram para retirar lixos e entulhos a seguir ao almoço e, ao final da tarde, já lá estava mais lixo e entulho nos mesmos locais.

    Mas o maior problema é o tráfico de droga que prospera no centro de Lisboa. Se há tantos toxicodependentes é que por que há droga. Se há tantos consumidores, é porque há vendedores, traficantes. Não é preciso ser polícia para ver o consumo e o tráfico. É feito em plena luz do dia em alguns locais.

    Foto: PÁGINA UM

    Veja-se a tão falada Rua do Benformoso. Não se vê nenhum imigrante hindustânico entre os que estão sentados na escada do costume com cara de poucos amigos. A confusão e os distúrbios ali são diários. Não há vez que lá passe que não assista a confusão. Mas depois vemos o aproveitamento que existe para se atacar imigrantes hindustânicos.

    Tomar um café no Martim Moniz é uma dor de alma. Dá pena até pelos turistas que se acotovelam na longa fila para o eléctrico 28, sob o sol tórrido de Julho. Em 20 minutos, assisti a várias altercações violentas envolvendo pessoas claramente dependentes (drogas, álcool). Os funcionários dos cafés e lojas da zona mereciam uma medalha. Nem imagino o que passam ali, todos os dias.

    Foto: PÁGINA UM

    Jovens lisboetas apontam aquela zona como zona de passagem proibida à noite. E mesmo durante o dia, há ali ruas em que não entram, porque os assaltos são certos.

    Caminhando pela baixa lisboeta, o que ouço é o mesmo: muitos assaltos, muitos roubos. Muitos toxicodependentes. (E crimes violentos. Veja-se o crime hediondo noticiado ontem, sobre o corpo decapitado de um homem que foi encontrado perto do Rossio.)

    Isto são apenas exemplos. Chegam-nos testemunhos ao PÁGINA UM de lisboetas que vivem em diferentes pontos da cidade que relatam os mesmos problemas: assaltos; lixo e sujidade; toxicodependentes a viver nas ruas.

    No Jardim da Cerca da Graça são visíveis seringas em várias zonas do espaço. / Foto: PÁGINA UM

    Não é possível pensar que a Câmara Municipal de Lisboa (CML) e as juntas de freguesia conseguem resolver, por si só, sem apoio de outras entidades, os graves problemas que afligem a capital.

    É urgente um plano para salvar a cidade da crescente degradação. Não pode ser um plano que envolva apenas a autarquia e as juntas de freguesia. Há que envolver as autoridades policiais e outras entidades. Combater o tráfico de droga com mão-pesada. Multar de forma agressiva os que forem apanhados a entupir as ruas de lixo e monos.

    Não é possível que Portugal aceite ter esta Lisboa como cartão de visita para os turistas. E muito menos é aceitável que o país aceite ter esta Lisboa, neste estado decadente, para os seus residentes, imigrantes incluídos.

    Carlos Moedas enfrenta uma cidade com problemas complexos e que incluem evidentes focos de tráfico de droga e criminalidade generalizada. Mas o presidente da Câmara Municipal de Lisboa não vai certamente conseguir resolver este tipo de problemas sozinho. / Foto: D.R.

    Olhando para o estado de algumas zonas da cidade, faz-me lembrar a Lisboa dos anos 80 e 90. E não falo das saudosas salas de cinemas e das maravilhosas piscinas públicas, que tantas alegrias traziam no Verão. Falo dos assaltos nas ruas, falo do Intendente da droga e da prostituição, de zonas como o Casal Ventoso, os bairros de barracas e casas pré-fabricadas. Em alguns aspectos, assistimos hoje a uma espécie de ‘déjà vu‘.

    Ver Lisboa assim causa tristeza. Afinal, o que aconteceu à cidade? Como chegou aqui? O mais fácil será atirar culpas para Carlos Moedas, mas é injusto e redutor. O mesmo vale para os vários presidentes das juntas. Porque quem coloca os monos e os lixos tem responsabilidade. Quem falha no controlo e na prevenção do tráfico de droga e da criminalidade tem responsabilidade. Quem aprovou políticas irresponsáveis que deixaram entrar imigrantes com perigosos e cadastro. Quem aprovou políticas desumanas que atiraram mais portugueses para a pobreza ou para o sobre-endividamento tem responsabilidades. Ou quem criou políticas desastrosas que aumentaram ainda mais a desigualdade.

    E todos nós temos responsabilidade pela cidade em que vivemos. Fazemos parte dela. Esperar que “os outros” resolvam tudo é um absurdo. Despejar os desgostos nas redes sociais pode ser bom, mas só é útil se envolver algum tipo de envolvimento cívico concreto para a resolução dos problemas.

    Os lisboetas não podem estar à espera que a autarquia e as juntas de freguesia resolvam todos os problemas que afligem a cidade. O lixo e ‘monos’ que entopem as esquinas de muitas ruas da capital não aparecem lá sozinhos. / Foto: D.R.

    O que temo é que Lisboa seja, neste momento, apenas um reflexo do país. Um sintoma de uma doença mais vasta que se alimenta, em parte, de políticas irresponsáveis, da falta de escrutínio e fiscalização mas também do conformismo e da falta de cultura cívica de muitos portugueses.

    Em 2025, Lisboa tem tiques de uma cidade dividida. De um lado os hotéis de luxo, os restaurantes ‘gourmet‘, os condomínios novos com vista e piscina. Do outro, o lixo, a insegurança, o tráfico de droga, as tendas dos sem-abrigo nos jardins. Uma cidade de primeiro mundo em que a desigualdade dispara a olhos vistos.

    Esta Lisboa desigual, insegura, decadente e suja normalizou-se. E, sinceramente, não penso que isso seja normal. Pois Lisboa não precisa ser como Tirana e passar a ter as bancas de fruta na rua durante a noite, ou ter os móveis das esplanadas sem correntes e cadeados. Mas isso não seria o ideal? Actualmente, a realidade é bem diferente. Se uma rua da capital não acordar com uma montra partida, já é bom. E isto não é normal.

    Elisabete Tavares é jornalista

  • Ó Mário Centeno, como chega um tipo com média (só) de 16 a governador do Banco de Portugal?

    Ó Mário Centeno, como chega um tipo com média (só) de 16 a governador do Banco de Portugal?


    Deambulando num misto de férias e trabalho pelos países bálticos, apenas ontem me chegaram ecos da entrevista de Mário Centeno, afastado de governador do Banco de Portugal, concedida a Vítor Gonçalves, o novo director da RTP.

    Manifestamente, viu-se um Mário Centeno ferido no orgulho, desiludido pela não recondução, talvez vítima de uma “cabala” para o encostar com o contrato da nova sede desta instituição que mereceria maior escrutínio. Na verdade, com menos competências do que tinha há 20 anos, qual a razão para tamanha megalomania em Entrecampos?

    Porém, o seu acinte — sim, o termo é apropriado — não justifica o ataque rasteiro aos jornalistas que noticiaram a renovação do contrato do seu chefe de gabinete, Álvaro Novo, e a promoção ao cargo de directora-adjunta do Departamento de Estatística de Rita Poiares (casada com Ricardo Mourinho Félix, que foi secretário de Estado quando Centeno era ministro das Finanças). Até porque, essencialmente, estava em causa o timing. Se tais decisões tivessem sido tomadas com recato e distanciamento, talvez não se levantassem sobrancelhas.

    Mas a coincidência entre a véspera da sua saída e os despachos que beneficiam directa ou indirectamente amigos e conhecidos é, no mínimo, questionável. Infelizmente, não fui eu quem deu essa notícia — outros chegaram primeiro. Mas, se tivesse sido — e o PÁGINA UM revelou muitos contratos estranhos no período de Centeno, sobretudo com sociedades de advogados e gastos supérfluos com as instalações provisórias —, as palavras do ainda governador teriam sido ainda mais ofensivas.

    Com efeito, Centeno, em vez de se explicar, disparou — e não argumentos, mas desdém. Duas vezes — e sem que Vítor Gonçalves reagisse, como deveria — passou um atestado de menoridade à classe jornalística, ao afirmar: “As pessoas [jornalistas] que fizeram essas notícias, provavelmente não têm currículo para entrar no Banco de Portugal, porque o Banco de Portugal é muito exigente […]. Para entrar no Banco de Portugal não se pode ter média de 10.” Repare-se: não disse isto num momento de exaltação ou improviso. Foi uma munição preparada de casa, como quem carrega cartucheira para caçar pardais com calibre de javali.

    Ora, eu conheço bem o currículo académico de Mário Centeno. E sei que, por mais doutoramentos em Harvard que se acumulem (o que não é pouca coisa), as skills — perdoe-se-me a anglicização para dar um toque de Management — de um governador do banco central não se medem por médias finais de licenciatura nem por decibéis de vaidade. Um governador mede-se por outras métricas: rigor, isenção, sentido de Estado, independência face ao poder político, ética nas nomeações e contenção na arquitectura das vaidades. Não é por ter média elevada que se está acima da suspeita.

    E também não é por não se trabalhar no Banco de Portugal que se tem, necessariamente, uma média baixa. E mesmo que essa média não seja extraordinária, não é por isso que se deve ser afastado da mesa das decisões públicas ou da observação crítica. A História mostra que alguns dos mais brilhantes jornalistas, escritores, pensadores e reformadores nunca tiveram grande nota nos exames, mas passaram com distinção os testes da lucidez, da coragem e da integridade.

    E aqui entro eu, inevitavelmente, na arena do argumentário ad hominem que Centeno tão habilmente sugeriu. Já que foi ele quem puxou das médias para tourear jornalistas, meto-me na lide. Mário Centeno terminou a sua licenciatura em Economia em 1990 no centenário Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) com uma média de 16. É obra: consta do Quadro de Honra. Já eu, pobre jornalista — sim, dessa classe que ele considera indigna, por demérito, de entrar no Banco de Portugal e de revelar criticamente as suas doutas decisões — sou, salvo erro, o único aluno do ISEG a integrar, ao mesmo tempo, o Quadro de Honra de Economia e de Gestão. E, em ambos os casos, com média final de 17 valores.

    Detalhe do Quadro de Honra do ISEG com os registos relativos a Mário Centeno e a Pedro Almeida Vieira.

    Quer isto dizer que, pela bitola de Centeno, estarei mais qualificado para o Banco de Portugal do que ele próprio? À luz do seu argumento, poderia eu, um simplório jornalista (para ele), perguntar-lhe afinal, com a legitimidade da minha média de 17 na mesma alma mater: “Ó Mário Centeno, como é possível alguém ser governador do Banco de Portugal só com média de 16?” À luz do bom senso, evidentemente, isso não faz sentido — e muito menos fazem sentido as palavras acintosas de Centeno contra os jornalistas.

    Na verdade, esta lógica das médias é, além de pateticamente arrogante, profundamente perigosa — até porque todos sabemos as razões da ida de Centeno para o Banco de Portugal. Em poucos anos, Centeno foi infectado pela lógica da tecnocracia vaidosa: julga-se membro de uma elite que se crê ungida por um destino académico que a legitima para mandar sem prestar contas, sem ser escrutinada.

    Esta é a lógica que confunde mérito com titulatura, inteligência com colecção de diplomas, competência com circuito de nomeações entre amigos. Uma lógica que desumaniza, que reduz as pessoas a números — e que, não por acaso, é a mesma lógica que levou Centeno a defender, com frieza estatística, medidas de austeridade sob o pretexto da consolidação orçamental.

    Centeno, que ascendeu ao topo do Banco de Portugal por ter sido ministro das Finanças de um Governo socialista, veio agora dar-nos lições de mérito por ter sido afastado por um Governo social-democrata, numa zanga de “comadres” da escola do ISEG. E nem disfarça.

    Enfim, se alguma coisa se aprende com este episódio, é isto: o desprezo pelas profissões alheias revela mais sobre o carácter de quem fala do que sobre o mérito de quem é atacado. E se Mário Centeno queria mesmo sair com dignidade, bastava-lhe ter ficado calado. Porque, às vezes, a última nota que se deixa — e não falo da média de licenciatura — é aquela por que verdadeiramente se será lembrado.

  • USD1: A ‘stablecoin’ que estabiliza… os lucros da família Trump

    USD1: A ‘stablecoin’ que estabiliza… os lucros da família Trump


    No passado dia 18 de Julho, consumou-se um monumental golpe do baú — talvez o mais engenhoso desde a criação da Reserva Federal em 1913, quiçá rivalizando com a proeza do maior ilusionista financeiro da história: John Law. Foi ele quem, em 1716, fundou em Paris o Banque Générale, que dois anos depois se tornaria no Banque Royale, com autorização para emitir papel-moeda garantido pelo Estado francês — a grande “inovação” do seu tempo, que acabaria em ruína.

    Agora, nos Estados Unidos, repete-se a façanha, mas, desta vez, com uma roupagem digital: o Congresso aprovou o chamado Genius Act, uma lei que, sob o pretexto de “modernizar o sistema financeiro”, legaliza a emissão de moedas digitais privadas — autorizadas pelo Estado, mas imunes a qualquer escrutínio.

    Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, na assinatura da nova lei ‘Genius Act’. / Foto: Casa Branca | D.R.

    A mais célebre — ou infame — dá pelo nome de USD1, uma stablecoin emitida por uma entidade ligada à família Trump, que passa, assim, a poder fabricar dinheiro digital com lastro em dívida pública dos EUA…sem repartir um cêntimo de juros com os detentores dos tokens.

    Em rigor: os cidadãos financiam, sem saber, a máquina de endividamento estatal — enquanto Trump e os seus parceiros lucram com os juros pagos pelo Tesouro. Tudo legal. Tudo “genial”. Tudo, claro está, aprovado com o aplauso de republicanos e democratas.

    A semelhança com o papel-moeda de John Law não é apenas a história a repetir-se — é a sua mutação digital. Tal como no século XVIII se multiplicaram os meios de pagamento em circulação sem qualquer criação real de riqueza, também agora estas stablecoins privadas operam como duplicadores digitais da base monetária, alimentando o mesmo monstro de sempre: a inflação. Num sistema já fundado sobre uma fraude monumental, junta-se agora mais uma camada de ilusão.

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    Foto: D.R.

    O esquema é triplo, em cascata: primeiro, o Banco Central inventa dinheiro do nada; depois, os bancos comerciais multiplicam esse dinheiro com base em reservas fraccionárias; agora, os emissores de stablecoins privadas quase duplicam os meios de pagamento — também a partir do nada. Uma cascata inflacionária sem precedentes, orquestrada com o selo da legalidade e o silêncio cúmplice de toda a imprensa financeira.

    Estas novas moedas digitais não pagam um cêntimo aos seus detentores — mas rendem juros bem reais aos seus emissores, à custa da dívida pública norte-americana que serve de colateral. O cidadão julga possuir uma moeda estável, mas está afinal a financiar os juros da dívida com os seus impostos futuros. Sem o saber, tornou-se simultaneamente utilizador, financiador e vítima. A quadratura do círculo fiscal está consumada: os plebeus pagam impostos, os privados lucram com os juros — e ninguém reparte um tostão com os detentores do token.

    Ao contrário de John Law, que terminou falido e exilado, ou de Richard Cantillon, assassinado após ter arruinado os seus clientes com manobras de crédito e manipulação bolsista, os novos feiticeiros digitais da dívida pública gozarão os seus milhões, protegidos por exércitos de advogados, grupos de influência e legislação feita à medida. O crime compensa — sobretudo quando é mascarado de inovação e liberdade financeira.

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    Foto: D.R.

    Para compreender esta arquitectura fraudulenta, convém antes perceber o que é, afinal, uma “stablecoin”? O nome diz tudo: uma moeda “estável” — pelo menos na aparência. Trata-se de um activo digital que procura replicar o valor de uma moeda fiduciária, como o dólar norte-americano, através de diferentes mecanismos de “lastro”.

    Para os seus defensores é o melhor dos dois mundos: a estabilidade da moeda tradicional com a eficiência das transacções digitais. Na prática, é uma nova forma de moeda fiduciária — com ainda menos transparência e menos garantias.

    Existem três grandes modelos de stablecoins. O mais comum é o das moedas lastreadas por reservas fiduciárias, como dólares ou títulos do Tesouro norte-americano, supostamente mantidos numa conta bancária ou num fundo segregado.

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    Foto: D.R.

    É neste modelo que se insere a USD1 de Trump, bem como outras como a USDT (Tether) ou a USDC (Circle). Dizem-se “estáveis” porque cada token emitido corresponde, alegadamente, a um dólar custodiado — seja numa conta bancária ou numa conta valores, com títulos de dívida pública, quase sempre obrigações do tesouro norte-americano.

    O segundo modelo baseia-se no lastro em criptoactivos voláteis, como o Bitcoin ou o Ethereum. O exemplo mais conhecido é a DAI, uma stablecoin parcialmente descentralizada. Neste sistema, cada novo token só pode ser emitido com um colateral mínimo de, por exemplo, 140% em activos digitais.

    Ou seja, para criar 100 DAI, é necessário “imobilizar” 140 dólares em Ethereum ou Bitcoin. Se o valor do colateral cair até, digamos, aos 110%, o sistema liquida automaticamente a posição e queima o token — ou exige mais colateral. É um mecanismo que tenta garantir a estabilidade, mas que pode ruir em momentos de forte volatilidade ou corrida aos activos.

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    Por fim, temos as stablecoins algorítmicas, como a falida Luna do protocolo Terra, que tentavam manter a paridade com o dólar através de incentivos automáticos de mercado: se o valor da moeda caía, queimavam-se tokens para induzir escassez; se subia, criavam-se novos para diluir o preço.

    Apesar dos riscos, as stablecoins oferecem vantagens práticas inegáveis — sobretudo quando comparadas com o sistema bancário tradicional, moroso e obsoleto. Ao contrário das transferências internacionais convencionais, que dependem da rede SWIFT, repleta de intermediários e sujeita a sanções políticas — como se viu no caso dos bancos russos —, uma stablecoin pode ser adquirida, enviada e recebida por qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo, com custos reduzidos e em poucos segundos.

    Enquanto uma transferência bancária pode demorar dias, envolver taxas ocultas e depender do humor de burocratas ou reguladores, uma transacção em blockchain faz-se sem passaportes, sem fronteiras e sem autorização prévia. Sobretudo: sem o olhar inquisidor de um funcionário bancário a pedir justificações pela movimentação do dinheiro.

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    O principal risco destas novas moedas digitais não é tecnológico — é político e institucional: o desconhecimento do público quanto ao verdadeiro lastro. É o velho problema do ouro e do papel-moeda, apenas agora reeditado com roupagem digital. No tempo do padrão-ouro, nunca ninguém sabia se as notas em circulação correspondiam, de facto, ao metal guardado nos cofres dos bancos.

    A lógica era simples: os banqueiros, ao perceberem que os depositantes só resgatavam uma pequena parte dos seus depósitos, começaram a emprestá-los a terceiros, cobrando juros, mas sem informar os depositantes, que julgavam ter o dinheiro sempre disponível. Quando muitos tentavam resgatar simultaneamente os seus fundos, a farsa ruía — porque o dinheiro já não estava lá: tinha sido emprestado a prazo, sem liquidez imediata para ser devolvido. Esse modelo, que durante séculos alimentou colapsos bancários e crises financeiras, agora ressurge sob uma nova pele.

    Com esta nova legislação, a situação não desaparece. Embora a nova lei obrigue à existência de reservas 100% líquidas e auditadas, bem como à publicação mensal da composição do lastro, o cidadão comum continua sem meios técnicos para verificar, em tempo real, a correspondência entre tokens emitidos e activos efectivamente detidos.

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    Foto: D.R.

    A confiança permanece cega, baseada em relatórios e fé institucional. Mesmo que exista transparência formal, nada impede que o sistema seja subvertido por criatividade contabilística ou capturado por interesses políticos. A ilusão mantém-se: uma moeda “estável” apoiada por papéis do Tesouro, que por sua vez dependem da confiança no Estado mais endividado da História.

    No fundo, o que o blockchain prometia — transparência radical, rastreabilidade permanente, eliminação de intermediários — acaba diluído num modelo onde a auditoria depende de terceiros, os activos estão sob custódia bancária, e a estabilidade é uma promessa política. O cidadão continua sem saber, com verdadeira certeza, se o token que segura vale aquilo que diz valer.

    Estas stablecoins — apesar de apresentadas como uma grande novidade tecnológica — continuam sujeitas à mesma lógica de censura e controlo que define o sistema financeiro tradicional. A qualquer momento, os “donos” do sistema podem congelar as contas bancárias onde se encontra depositado o lastro, bloquear os pagamentos dos juros das obrigações do Tesouro que servem de colateral, ou simplesmente apagar e congelar endereços no blockchain.

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    Foto: D.R.

    Nada impede que os emissores, sujeitos a supervisores estatais, obedeçam a ordens de bloqueio político, como já sucedeu com a USDC e a USDT — que possuem mecanismos internos para colocar endereços de blockchain em listas negras, ou mesmo a reversão de transacções.

    Os detentores destes tokens, ao contrário do que supõem, não estão protegidos. Continuam presos ao mesmo sistema de sempre — um sistema de repressão das liberdades, vigilância total e controlo arbitrário, tal como acontece com os depósitos bancários.

    A diferença é que agora o poder de censura é instantâneo: basta um clique para congelar, bloquear ou eliminar os fundos — sem explicação, sem aviso, sem recurso. Na essência, estas stablecoins não passam de versões privadas das Moedas Digitais dos Bancos Centrais — como o Euro Digital — com o mesmo nível de submissão, mas publicitadas com a retórica da inovação e da liberdade financeira.

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    Foto: D.R.

    Ao contrário dos bancos tradicionais — que, mesmo a contragosto, ainda remuneram os depósitos para manter os clientes —, os emissores destas stablecoins estão expressamente proibidos de pagar um cêntimo aos seus detentores.

    O dinheiro está sempre “disponível”, mas na prática é imediatamente aplicado em dívida pública norte-americana. Os juros? Revertidos a 100% para os donos da stablecoin — como acontece com o USD1, ligada à família Trump.

    O adquirente do token julga ter um activo estável…mas está, na verdade, a financiar indirectamente o Estado federal norte-americano, sem saber, sem votar, sem o seu consentimento. Foi uma jogada de mestre: o Tesouro substitui os Bancos Centrais — e são agora os privados, em todo o mundo, que financiam a máquina de endividamento dos EUA.

    O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, na Casa Branca. / Foto: Casa Branca | D.R.

    Até um agricultor brasileiro ou um comerciante indonésio, ao comprar uma stablecoin, está a comprar dívida pública norte-americana. O mais perverso: esse mesmo dólar tokenizado serve simultaneamente como meio de pagamento para o cidadão — e como moeda fiscal para o Tesouro, que com ele paga salários, subsídios e contratos. É a cascata inflacionária perfeita: um mesmo dólar convertido em token circula como meio de troca, enquanto serve, em paralelo, para financiar a dívida perpétua do império. Um milagre monetário — para os emissores. Uma armadilha perfeita — para todos os outros.

    Com este golpe legislado, institucionalizou-se uma nova cascata inflacionária — talvez até uma quarta, jamais imaginada nem pelo próprio John Law. Vejamos: o Banco Central norte-americano emite dinheiro do nada para comprar obrigações aos bancos comerciais, creditando as suas reservas. Estes, por sua vez, multiplicam esse dinheiro por dez ou quinze vezes, concedendo crédito ao sector privado.

    De seguida, os emissores de stablecoins recolhem dinheiro fresco dos seus compradores — cidadãos que trocam dólares reais por tokens — e transferem esses fundos para o Tesouro, adquirindo dívida pública. O Tesouro, por seu turno, gasta esse dinheiro em salários, subsídios ou contratos.

    O ciclo não acaba aqui: o detentor da stablecoin pode usá-la como meio de pagamento na Internet, ou melhor ainda, pode emprestá-la em plataformas de finanças descentralizadas, obtendo juros por isso. Um mesmo dólar — digitalizado e reciclado em múltiplos circuitos — torna-se simultaneamente dívida, reserva, meio de pagamento e activo financeiro!

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    Foto: D.R.

    Resultado? A inflação não irá cessar nos próximos anos. As casas e a comida continuarão a dirigir-se para a estratosfera. A massa monetária expande-se em múltiplos estratos, sem que haja criação de riqueza real.

    O sistema financeiro reinventou-se como uma máquina de multiplicação infinita da ilusão — agora com contratos inteligentes, blockchain, logótipos patrióticos e a bênção do Congresso norte-americano. Se John Law visse isto, coraria de inveja. O seu castelo de cartas era rudimentar. O de hoje é global, digital, impune — e legitimado por decreto.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O dogmatismo ‘científico’ e a desinformação: o paradigma David Marçal

    O dogmatismo ‘científico’ e a desinformação: o paradigma David Marçal


    Nos últimos anos, poucos conceitos foram tão martelados no espaço mediático e político como o da “desinformação”. Tornou-se uma espécie de fetiche moral, uma nova lepra simbólica que se cola a tudo o que contraria o consenso hegemónico — ainda que esse consenso seja, com frequência, volátil, interesseiro ou simplesmente errado.

    A palavra “desinformação” passou, aliás, a ter uma dupla função: por um lado, denunciar falsidades objectivas — o que é legítimo e necessário; mas, por outro, tornou-se um instrumento de exclusão retórica, um selo de infâmia aplicado a tudo o que destoa do discurso dominante. Serviu para calar vozes críticas no plano político, silenciar dissidentes no plano social e descredibilizar minorias epistémicas no plano científico. O que antes se combatia com argumentos, combate-se agora com rótulos. E um dos mais eficazes é precisamente este: “desinformador”.

    Curiosamente — ou não —, raramente se discute que a desinformação, em sentido lato, é uma externalidade negativa de algo positivo: a liberdade de expressão e a democracia. Tal como a poluição é uma consequência indesejada da industrialização — cuja mitigação exige tecnologia, investimento e ética —, também a desinformação é um subproduto inevitável da liberdade. Só em ditaduras se impõe uma visão única das coisas. E num regime democrático, a única resposta legítima à mentira é a palavra, não a mordaça.

    Pretender erradicar a desinformação sem pôr em causa a liberdade de expressão é como pretender eliminar o ruído urbano sem tocar no tráfego automóvel: uma ilusão autoritária mascarada de boa intenção.

    Mais grave do que essa simplificação é a tentação crescente — e perigosamente institucionalizada — de se combater a desinformação com censura. Pior ainda: com a Ciência, erigida a nova instância de verdade absoluta. Como se os cientistas fossem missionários, como se os consensos científicos fossem dogmas, como se a discordância fosse uma forma de heresia e os dissidentes, uns leprosos cognitivos.

    Mas a Ciência — e é trágico ter de repetir o óbvio — não é um corpo de verdades eternas: é um método. Ora, esse método vive de questionar, de duvidar, de admitir a possibilidade de estar errado. E também de ser paciente em refutar hipóteses absurdas ou erradas, mas sempre com espírito aberto e tolerante. Não se combate erros ou teorias da conspiração proibindo que sejam faladas — combate-se deixando que sejam faladas, para que caiam em descrédito.

    Não há, na verdade, Ciência sem dissenso, sem controvérsia, sem revisão de pressupostos. A História da Ciência está repleta de consensos quebrados — e foi sempre por aí que ela mais cresceu.

    Por isso, se há figuras públicas que me causam um fastio particular são aquelas que se colocam no pedestal da racionalidade, nos ombros da Ciência, para anatematizar os debates públicos — sejam estes travados por especialistas ou por leigos. Um desses exemplos, que se tornou uma espécie de mascote nacional da “Ciência Certa”, dá pelo nome de David Marçal, conhecido como colunista do Público e autor de vários livros de “divulgação científica”.

    David Marçal

    Essa minha irritação não decorre da falta de inteligência de David Marçal, nem da ausência de capacidade argumentativa. É precisamente o contrário: é por ser tão fluente na retórica falaciosa, tão hábil na omissão do que o incomoda, tão moralista nas suas inferências, que o seu discurso me parece perigosamente eficaz. E, claro, por ser tão ostensivamente aplaudido por aqueles que se julgam mais esclarecidos — os zelotas do racionalismo domesticado.

    No seu mais recente texto, publicado na passada sexta-feira no Público e intitulado As nossas percepções estão quase sempre erradas, David Marçal exemplifica esse seu modus operandi de forma lapidar. De início, parece apenas um ensaio sobre as nossas falhas cognitivas e erros de percepção, com base em autores credíveis como Daniel Kahneman, Bobby Duffy ou Hans Rosling. Nada contra.

    A exposição da dualidade entre pensamento rápido (Sistema 1) e pensamento lento (Sistema 2) é sólida, didáctica e reconhecida no campo da psicologia cognitiva. Também não é falso que, em muitos domínios da vida social, as percepções das pessoas estão erradas — como demonstram inquéritos sobre imigração, sexualidade, religião ou vacinas. Estamos na área da Psicologia, que é uma ciência humana e comportamental, não propriamente uma ciência exacta.

    ‘Ensaio’ desta sexta-feira de David Marçal no Público.

    Mas o problema de Marçal começa na selecção e no tratamento dos exemplos. O texto pratica, com notável perícia, aquilo que em Ciência se designa por cherry picking: seleccionar apenas os casos que confirmam a tese que se pretende sustentar. Aponta com severidade os erros do cidadão comum, mas omite olimpicamente os erros das instituições científicas, dos especialistas mediáticos e dos organismos internacionais — como se estes fossem infalíveis ou, no mínimo, irrelevantes para o debate sobre desinformação. Isso é desonestidade por omissão. E, como se sabe, a meia-verdade é mais perigosa do que a mentira.

    Por exemplo: onde está, no seu ensaio, qualquer referência aos consensos científicos errados da história recente? Onde está a autocrítica às previsões apocalípticas da pandemia da covid-19, em que se comparou a doença à gripe espanhola, se promoveram confinamentos com base em modelizações especulativas, se fecharam escolas sem base empírica sólida e se censuraram vozes discordantes que, com o tempo, se revelaram prudentes e certeiras? Onde está a reflexão sobre o papel das farmacêuticas na produção científica durante a pandemia, ou sobre a falência da revisão por pares como garante de fiabilidade?

    Não está. E não está porque esse tipo de crítica não serve o propósito do texto: reforçar que o problema está nos outros — os desinformados, os ignorantes, os simplórios. Nunca no clero científico.

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    O mais espantoso — e inquietante — é que, no momento em que a Ciência estava mais bem equipada do que nunca para enfrentar uma pandemia, com sistemas de vigilância epidemiológica, ferramentas estatísticas, equipas interdisciplinares e capacidade tecnológica sem precedentes, muitos dos seus representantes se comportaram como profetas do pânico, influenciando péssimas decisões políticas. Num cenário que exigia prudência, proporcionalidade e avaliação de risco baseada em dados desagregados, optou-se por uma retórica apocalíptica, convertendo incertezas legítimas em certezas absolutas e alimentando o medo como instrumento de mobilização social.

    Suspender consultas, diagnósticos e cirurgias; encerrar escolas e confinar crianças à telescola; impedir que se andasse ao ar livre; internar idosos em “covidários”; tudo isto foi sustentado por cientistas que se deslumbraram com o poder de uma distopia.

    E o paradoxo é este: o pico de mortalidade em 2020 e 2021 — não apenas pela covid-19 — deu-se quando havia menos visitas às urgências, menos camas hospitalares ocupadas e menos dias de internamento. E depois a Ciência recusou-se a avaliar seriamente as mortes em excesso em 2022, com temor em descobrir causas politicamente sensíveis. Mas note-se: mesmo entre os grupos mais vulneráveis — os idosos com múltiplas comorbilidades —, as taxas de mortalidade em Portugal durante a pandemia foram, por vezes, inferiores às de há vinte anos. Na primeira década deste século, a mortalidade relativa (taxa) entre maiores de 85 anos foi mais elevada do que nos picos pandémicos de 2020 ou 2021. Isto — goste-se ou não — é uma factualidade científica.

    E, no entanto, a percepção mediática e institucional — alimentada por divulgadores como David Marçal — insistiu na ideia de uma catástrofe sanitária sem paralelo. Não por força dos dados, mas por imposição de uma narrativa.

    Narrativa essa que foi promovida com zelo quase religioso por cientistas e divulgadores que confundiram pedagogia com propaganda, muitas vezes em promiscuidade ideológica, financeira ou simbólica com a indústria farmacêutica e com os centros de decisão político-mediáticos. A “Ciência” — essa entidade abstracta que tantos invocam — serviu de escudo retórico para justificar medidas que, em muitos casos, não resistiram ao escrutínio retrospectivo. E quem ousava colocar perguntas incómodas era imediatamente rotulado como “negacionista”, “desinformador” ou “anticiência”.

    Aliás, a ideia de que se combate a desinformação com “mais Ciência” é, por si só, uma armadilha lógica. Que Ciência? A de que momento? Publicada onde? Financiada por quem? Promovida por que canais? A Ciência não é um bloco monolítico. É feita por humanos, com os seus interesses, limitações, enviesamentos e alinhamentos institucionais. O verdadeiro cientista não teme o dissenso — estimula-o. Não silencia dados desconfortáveis — investiga-os. Não exclui outliers — problematiza-os. Quando um divulgador científico se comporta como censor ou paladino do dogma, deixa de ser defensor da Ciência e passa a ser apóstolo de uma fé travestida de método.

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    O mais irónico — e preocupante — é que essa retórica ilustrada, desse círculo de Marçal, que despreza o senso comum e endeusa a tecnociência, tem efeitos sociais contraproducentes. Em vez de promover confiança na Ciência, fomenta a suspeita. Em vez de combater os extremismos, alimenta-os. Quando o público se apercebe de que há censura de opiniões divergentes, de que só certas narrativas têm direito à luz do dia, de que os consensos mudam ao sabor do vento político, tende a desconfiar de tudo — até do que está bem fundado. A verdade não se impõe com silenciadores. A confiança constrói-se com transparência, humildade epistémica e coragem para admitir os erros do passado.

    Marçal termina o seu ensaio com uma referência ao Brexit como exemplo de erro colectivo baseado em percepções erradas. Pode até ser. Mas pergunto: quantas decisões políticas foram moldadas por dados distorcidos promovidos por instituições ditas credíveis? Onde está a crítica às projecções falhadas do FMI, do BCE ou da OCDE, que erraram sistematicamente durante anos sem qualquer responsabilização? O critério de Marçal é invariável: criticar a irracionalidade das massas, mas nunca a manipulação das elites.

    man in black crew neck shirt wearing black face mask

    Talvez a pergunta que hoje mais importa não seja “como combater a desinformação?”, mas sim “quem define o que é desinformação?”. Porque a História está cheia de ideias que foram rotuladas de perigosas ou absurdas — e que se tornaram, mais tarde, pilares do conhecimento. Galileu, Lavoisier, Semmelweis, Barry Marshall, Alfred Wegener: todos foram dissidentes. Todos foram perseguidos ou ignorados. Todos foram, a seu tempo, justificados pelos dados. Nenhum deles teria tido espaço nos palcos bem-pensantes da “Ciência Oficial” onde hoje David Marçal actua com os favores de uma certa academia e da imprensa.

    Na verdade, ao propor que a Ciência funcione como instrumento de silenciamento — erguendo-a a tribunal moral e a gendarme da verdade —, David Marçal não está a defendê-la: está a traí-la. Porque a Ciência, por definição, só respira em ambientes de liberdade crítica, de permanente revisão, de dúvida metódica. Quando alguém a invoca para calar em vez de para debater, para excluir em vez de para esclarecer, transforma-a numa paródia autoritária do seu próprio ideal.

    E se Marçal ainda acredita que esse é o papel legítimo da Ciência — o de censurar o dissenso e filtrar o que merece ou não ser discutido —, então estará perigosamente próximo de cometer aquilo que mais proclama combater: a desinformação. E mesmo que, em nome da liberdade, lhe reconheça o direito de o fazer, não posso deixar de assinalar a ironia: é que o homem que se arroga paladino da razão parece ter esquecido que a dúvida, e não a certeza, é a verdadeira alma do conhecimento.