Categoria: Opinião

  • eNaira: já ouviu falar da moeda digital do Banco Central da Nigéria? Uma asneira

    eNaira: já ouviu falar da moeda digital do Banco Central da Nigéria? Uma asneira


    Desde o início da putativa pandemia, praticamente todos os Bancos Centrais do Mundo têm anunciado o lançamento da sua moeda digital. A burocracia de Bruxelas e de Frankfurt, obviamente, não ficou para trás nesta “corrida”, e já anunciou o lançamento para breve do Euro Digital, apesar das populações nunca se terem pronunciado democraticamente a respeito.

    Neste contexto, lá tivemos os órgãos de propaganda a realizarem “entrevistas“ – neste caso, à comissária europeia Mairead McGuinness, com o pelouro dos serviços financeiros, estabilidade financeira e união do mercado de capitais –, para nos dar conta da “necessidade de lançarmos um Euro Digital”. Como sempre, tudo maravilhas! E respondido ao melhor estilo de uma fábula infantil.

    Currency in Nigeria

    À pergunta “porque é que precisamos de um Euro Digital?”, tivemos a pungente resposta: “Em relação ao dinheiro, as pessoas vêem-no, compreendem, mas eu posso não ter dinheiro no bolso. Por isso, quero ter a alternativa, a opção de ter uma versão digital do dinheiro. As pessoas já não estão a usar tanto o dinheiro como antes e a covid acelerou essa tendência.” Reparem, como às vezes saímos à rua sem dinheiro no bolso, ou anda por aí um bicho, temos de ter o Euro Digital!

    A melhor parte da “entrevista” estava reservada para a questão da privacidade. Após admitir que, numa consulta pública realizada pelo Banco Central Europeu (BCE), essa era a maior preocupação das pessoas, apaziguou-nos com esta candura: “O BCE não está interessado na forma como gasta o seu dinheiro, mas quer dar-lhe a opção de ter uma versão digital do dinheiro.” É uma pena não ter-nos explicado que se trata da ferramenta de sonho de qualquer tirano.

    Enquanto os dirigentes europeus celebravam a vitória antecipada sobre um povo doutrinado, obnóxio, idoso, crente em todas as patranhas estatais, o povo nigeriano demonstrava ser capaz de combater a tentativa de se lhes impor uma tirania digital, fazendo do eNaira, a moeda digital do Banco Central da Nigéria, um completo fracasso. Este falhanço poderá servir de exemplo para os demais países pobres.

    Crowded Street in Nigeria

    Esta história merece ser contada, dado tratar-se de um dos maiores produtores de petróleo de África e o mais populoso deste continente, com uma população acima dos 200 milhões de pessoas. Em consequência, existe um enorme interesse geopolítico na Nigéria e na história do eNaira. Sejam os globalistas do Fórum Económico Mundial, presentes na Nigéria há algum tempo, os russos, aí estabelecidos desde a era soviética, ou os chineses, que também por lá constroem ferrovias, estradas e aeroportos.

    De que forma se lançaram as raposas para o galinheiro? A 26 de Outubro de 2022, a Nigéria lançou oficialmente o eNaira, tornando-se o primeiro país africano a lançar uma moeda digital do Banco Central. Como sempre, o paraíso estava ao virar da esquina: o eNaira ia fazer crescer a Economia em 29 mil milhões de Dólares norte-americanos (USD) ao longo de 10 anos, possibilitar pagamentos directos do Governo às pessoas e, sem surpresa, aumentar a base de impostos – a roubalheira é sempre o propósito final do qualquer Estado.

    No final desse mês, 30 de Outubro de 2022, o Governo, através do seu Banco Central, lançava um ambicioso plano para “combater a inflação” – os criminosos regressavam para investigar e deslindar o crime –, através da reposição das notas de elevado valor (200, 500 e 1000 Nairas), combatendo, desta forma, a contrafacção – quando eles fazem não há problema, agora a populaça é que não! – e retirar a excessiva circulação de notas no país.

    man in white long sleeve shirt and white hat standing in front of fruit stand

    No final desse ano, o Governo lançou um ataque total ao dinheiro físico, retirando o curso legal às notas de 200, 500 e 1000 Nairas. Afinal não era uma entrega de velhas por novas notas, mas apenas a entrega de notas por saldos digitais de eNairas. Segundo o então governador do Banco Central, até ao final de Janeiro de 2023, depois adiado para 10 de Fevereiro, a Nigéria faria a transição completa do dinheiro físico (Naira) para o dinheiro digital.

    Como sempre, os mais pobres e débeis, sem contas bancárias, foram aqueles que mais sofreram com a escassez de notas, gerando o caos e o desespero. As garantias do Banco Central nigeriano de que o dinheiro físico não seria eliminado até que o eNaira estivesse totalmente operacional não foram cumpridas. Assim, muitos ficaram com notas bancárias antigas e sem valor, já que o plano era eliminar as notas de maior valor, como as de 200, 500 e 1000 Nairas.

    A 8 de Fevereiro de 2023, o Tribunal Supremo da Nigéria bloqueou o plano do Banco Central, impedindo a eliminação do curso legal das notas de maior valor.

    Neste contexto, é fácil compreendermos os tumultos que tiveram lugar no dia 16 de Fevereiro. Os manifestantes atacaram caixas multibanco e bloquearam estradas, à medida que a raiva transbordava pelas ruas devido à escassez de dinheiro, apenas a dias de eleições gerais no país. Privadas de toda a sua riqueza, desesperadas e famintas, foram para as ruas, exigir a reinstalação do curso legal das antigas notas.

    a man and a woman looking at a cell phone

    Neste contexto, o Governo de Buhari anunciou que as notas do 200 Nairas teriam novamente curso legal por mais 60 dias. A possibilidade de depositar notas de 500 e 1000 Nairas junto do Banco Central e receber saldos de eNairas teria uma nova data-limite: 10 de Abril de 2023, mas mantendo-se a eliminação do seu curso legal.

    Até o final de Janeiro de 2023, as transações usando o eNaira ocorriam sem problemas, mas eram limitadas aos membros da classe média, com acesso a dispositivos digitais. A grande maioria dos nigerianos desesperavam por trocar o seu dinheiro antigo por qualquer coisa com que pudessem satisfazer a sua fome.

    O problema era que o novo dinheiro não estava em lugar algum. Mesmo os nigerianos mais brilhantes não conseguiram entender como o Governo planeava eliminar o dinheiro existente e emitir novo dinheiro em apenas algumas semanas antes das eleições gerais previstas para 24 de Fevereiro de 2023.

    Como previsto, o novo presidente da Nigéria saiu do partido do Governo – a “democracia” está assim –, o mesmo responsável pelo caos que estava instalado. É importante notar que estamos a falar de um país que lidava com uma crise monetária, inflação descontrolada e escassez de combustíveis, apesar de ser o maior produtor de petróleo da África, onde a falta de dinheiro físico e as filas intermináveis nas caixas multibanco são incessantes.

    girl holding book near blue motorcycle

    A situação de incerteza e perigo persistiu por três meses e meio até à posse do novo presidente, Bola Ahmed Tinubu. A 29 de Maio de 2023, aproximadamente 108 dias após a eliminação efectiva do dinheiro, o Presidente Tinubu restaurou o curso legal das notas antigas, juntamente com o novo Naira e eNaira.

    O que levou Tinubu a fazer tal gesto? Não só teve este gesto, como ordenou uma investigação ao Banco Central da Nigéria, resultando na prisão do seu ex-governador, Godwin Emefiele, a 10 de junho de 2023, algo absolutamente inédito. No final de julho, foi libertado pelo tribunal e novamente detido pelos serviços de segurança.

    No meio de tudo isto, cem milhões de pessoas foram privadas dos seus meios de subsistência por três meses e meio. Como sobreviveram? Os nigerianos, ao contrário da maioria dos habitantes dos países ocidentais, não acreditam numa palavra do que diz a classe política. Sentindo-se enganados novamente, quando ficou claro que nem o Naira antigo nem o novo funcionavam, as pessoas foram para as ruas, dispararam tiros e, infelizmente, pessoas morreram.

    Em resposta às recusas de aceitar o seu dinheiro antigo, invalidado no final de Janeiro de 2023, as pessoas sem contas bancárias, dinheiro legal ou economias recorreram a métodos tradicionais: troca e crédito comercial. A falta natural de fé dos nigerianos no Estado salvou-os de um golpe, do terrorismo estatal.

    people raising green and white flag during daytime

    Esta história, obviamente, não é conhecida pelas pessoas do chamado “mundo livre”. Estas necessitam do Estado para lhes dizer que há uma “pandemia”, bastando-lhes uma recomendação de um qualquer burocrata do Estado para correrem a inocular-se com substâncias experimentais. Bastará um órgão de propaganda dizer-lhes que o Euro Digital é a sétima maravilha do mundo, para correrem de forma desenfreada a trocar notas de Euro por Euro digital.

    Pelas razões apontadas, esta história não é conhecida do mundo ocidental, mas merece ser contada. Um povo que não acredita no Estado logrou derrotar um golpe que pretendia implementar uma ditadura digital. Por aqui, repito, vai ser muito fácil!

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A grande falácia do aquecimento global

    A grande falácia do aquecimento global


    Primeiro, puxo dos galões: tenho formação académica na área do Ambiente, com uma licenciatura e um mestrado; fui dirigente de associações de defesa do ambiente na primeira metade dos anos 90; fui jornalista especializado em temas ambientais em jornais e revistas de âmbito nacional; escrevi três ensaios sobre questões ambientais – um deles que vai este ano fazer duas décadas: O Estrago da Nação –; recebi em 2003 o Prémio Nacional de Ambiente Fernando Pereira.

    Digo isto para poder acrescentar que acompanho este tema do aquecimento global desde os anos 90, incluindo a altura em que Portugal era liderado pelo mesmo homem que fala agora em “ebulição global”, esse então primeiro-ministro que, em 1997, mandou o nosso país negociar na União Europeia a possibilidade de não se ter de cumprir as metas do Protocolo de Quioto – ou seja, que as emissões pudessem aumentar 27% –, porque era preciso desenvolver.

    Posto isto, vamos ao osso: independentemente de considerar serem evidentes os sinais de alterações climáticas, sejam estas ou não de origem antropogénica, acho profundamente lamentável a cobertura sensacionalista e manipuladora da comunicação social sobre este tema.

    Electric Towers during Golden Hour

    E digo isto, não para recusar a relevância de uma mudança de paradigma energético nem para renegar os efeitos do aquecimento global – que são sobretudo mensuráveis e evidentes através de indicadores ecológicos, e não tanto por eventos meteorológicos extremos, e muito menos em mortalidade [explicarei essa questão noutra oportunidade] – , mas sim para acusar os media mainstream (sempre agora muito disponíveis para causas mainstream) de pactuarem e integrarem mais uma campanha de hipocrisia e de greenwashing empresarial e político. O intuito passa por culpabilizar todos em geral, e assim ninguém em particular, colocando ademais os políticos e empresários como nossos salvadores, quando, na verdade, são eles os principais carrascos.

    Este é tema longo – e ao qual regressarei de tempos a tempos aqui no PÁGINA UM, embora, desde já saliente ser, cada vez mais, adepto da necessidade de nos adaptarmos às alterações, e não andarmos quixotescamente em gritos histéricos.

    Para já, e por hoje, desejo dedicar este espaço a zurzir na “esperteza saloia” do Público – que não é somente do Público, mas este jornal é relapso, e pela sua história na cobertura ambiental não tem desculpa – que anda numa lamentável saga manipulatória em redor do aquecimento global. Na sua secção Azul, aquela que tem protocolos de índole financeiro com compromissos editoriais, trata sempre de passar as culpas dos políticos e das políticas para o cidadão comum.

    Que o faça à descarada – eu até compreendo. Mas já me chateia que queira fazer isto ao belo estilo do wokismo e que, por essa bitola enviesada, sentencie ser FALSO que se possa concluir que se “Portugal é um país pequeno, logo a luta climática não depende de nós”.

    Person Holding A Green Plant

    Este foi, com efeito, o veredicto do Público quando se responde à segunda das 10 perguntas de um inquérito para testar, neste caso, os conhecimentos dos leitores sobre a alegada “crise climática”.

    Das 10 perguntas, apenas errei – na concepção do Público – esta pergunta, e o jornal “explica” porquê. Diz que “a ideia de que Portugal é um país demasiado pequeno para ajudar a salvar o planeta ou ter de se preocupar com as suas emissões não corresponde à verdade. Emitimos mais toneladas métricas de dióxido de carbono [tonCO2] do que a média mundial. E o combate à crise ambiental exige um esforço global de mitigação e adaptação”.

    Mais do que tudo o resto, a começar pela visão enviesada do Público, assusta-me o nível de “evangelização” já atingida: segundo os resultados do inquérito, “90% dos leitores acertaram na pergunta”, o que significa, portanto, que eu estarei nos 10% que não viram ainda o “caminho da verdade”.

    Deixando a questão do esforço global de mitigação e adaptação para outras alturas – até porque, pelo que se tem visto, à conta da suposta transição energética quer-se dar cabo da Natureza e da vida de comunidades humanas por supostas boas intenções globais –, vamos falar sobre o rigor do Público.

    Para mim, pior do que um burro é um “professor armado em sabichão” que me quer passar um atestado de burrice quando é ele o burro. E, por isso, decidi escrever o que há muito ando para escrever.

    O Público diz taxativamente que Portugal emite mais tonCO2 do que a média mundial, deduzindo-se que se refira a uma média per capita.

    Primeiro disparate. O mais recente relatório do Joint Research Centre (JRC) aponta que Portugal emitiu, em 2021, cerca de 3,8 tonCO2 por habitante, e a média mundial é de 4,8 tonCO2. Que eu saiba 3,8 é um número menor do que 4,8 – excepto, se calhar, para o Público.

    É certo que já estivemos bem acima, na primeira década deste século, mas foi no “rescaldo” da opção política, hélas, de um ex-primeiro ministro chamado António Guterres: à conta do “direito de crescer” (e economicamente até crescemos pouco), entre os anos de 1990 e 2005 as emissões de dióxido de carbono em Portugal subiram 47%, e ficámos, per capita, 40% acima da média mundial. Mas há muito que se inverteu essa situação, e já antes da pandemia estávamos abaixo do média mundial.

    Segundo disparate, e este muito mais relevante, porque é uma mentira intencional, ideológica mesmo. Achar que Portugal – e até a União Europeia –, num cenário de alterações climáticas associadas às emissões de gases com efeito de estufa, vale alguma coisa, e que se justifica esforços hercúleos e fortes restrições individuais, não passam de absolutas falácias.

    O nosso direito, até constitucional, de se usufruir de um “ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado” não tem de se fazer através de esforços inglórios e muito menos de sacrifícios em vão. Até porque, aí está, sendo inglório e em vão, em nada nos beneficiam, só enganam. Mas é isso que o Público e muitos outros media, seguindo a bitola da hipocrisia política, andam a fazer: querem fazer-nos acreditar que o nosso esforço conta. Não conta nada, atendendo ao contexto do problema.

    Vejamos. Portugal emitiu em 2021 cerca de 39 milhões de tonCO2 [podem ver AQUI em detalhe e também para outros países, incluindo a evolução nas últimas décadas], sabendo-se que se estima que, em todo o Mundo, as actividades humanas expelem 37.858 milhões. Isso representa 0,1% do “problema”. As emissões globais aumentaram 15.140 milhões de tonCO2 nas últimas três décadas, um crescimento de quase 67%.

    Foi, segundo parece indiciar o Público, culpa dos cidadãos do “país pequeno”, que não estão a contribuir o suficiente para o “esforço global de mitigação e adaptação”? É mesmo culpa de Portugal, desse “país pequeno”, que ainda se tem de se sacrificar mais, mesmo se, entre 2005 e 2021, conseguimos uma redução de 57%?

    Ou terão sido mais os rotundos falhanços e a hipocrisia dos políticos internacionais (onde se incluem os de Portugal) entretidos nas suas aventuras diplomáticos e nas “guerras geoestratégicas”, enquanto fazem de conta, ao longo das últimas décadas, que estão preocupados a “salvar o planeta”?

    Car Passing Through Road Beside Building

    Vejamos: é insensato que, em matérias globais desta natureza, que a comunicação social em conluio com políticos e empresas exijam aos cidadãos um conjunto de sacrifícios – e culpem-nos – que, na verdade, serão irrelevantes, e que servem para iludir os fracassos diplomáticos.

    Neste momento, não é só os 0,1% das emissões portuguesas que nada contam. A própria União Europeia tem cada vez menos influência numa mudança, porquanto as suas emissões apenas já representam 7,33% das emissões a nível mundial. Mesmo um colosso como a Alemanha já só pesa 1,76% do total.

    Na verdade, o Público e muitos outros jornais seguidores de um certo wokismo andam a fazer uma coisa muito simples e terrivelmente eficaz na desresponsabilização dos políticos ocidentais por um grande falhanço em matéria ambiental: nas últimas décadas, alhearam-se das estratégias de crescimento da China, sobretudo com o uso da energia. Ao invés, viram que quanto mais obsoleto fosse o uso da energia, menor seria o seu ritmo de crescimento – e isso parecia bom para o Ocidente.

    Assim, em 1990, a China – que detinha cerca de 20% da população mundial – emitia apenas 2.425 MtonCO2, ou seja, pouco mais de 10% do total mundial de gases com efeito de estufa. Com o repentino crescimento económico – mas assente em reduzida eficiência energética, sobretudo por causa da queima de carvão e de alguma tecnologia obsoleta –, a China não cresceu apenas economicamente: as suas emissões de dióxido de carbono mais do que quintuplicaram desde 1990, passando para 12.466 MtonCO2 em 2021. Representam já 32,9% do total mundial; é mais de quatro vezes a quantidade emitida pelos países da União Europeia. E é 329 vezes mais do que as emissões de Portugal.

    red green and blue world map

    Para se ter uma ideia da dimensão deste boom chinês, as emissões de dióxido de carbono no sector energético aumentaram 767% em três décadas, no sector industrial em geral 303% e nos transportes 915%. As emissões per capita subiram de 2.069 tonCO2 em 1990 para 8.727 em 2021. E até podia ter sido mais, caso a eficiência energética não tivesse até uma significativa melhoria: de 1.501 tonC02 por cada 1.000 dólares de PIB em 1990 para 0,501 tonCO2 em 2021.

    Mas é aqui que reside o problema em se “salvar o planeta”, da qual a hipocrisia global, e um certo wokismo, não gosta de falar. Na verdade, conseguir-se-ia uma redução muito significativa nas emissões de dióxido de carbono – que, diga-se, está associado à emissão de outros gases, esses sim verdadeiramente perniciosos para as comunidades humanas, e que devem ser minimizados – se houvesse abertura política e diplomática para melhorar a tecnologia e a eficiência energética da China.

    Veja-se: mesmo havendo melhoria a nível mundial, bastaria que a eficiência energética chinesa fosse idêntica à portuguesa (0,112 tonCO2 por 1.000 dólares de PIB), e aquele país asiático emitiria apenas 2.787 MtonCO2 em vez de 12.466 MtonCO2. Este volume de redução seria equivalente a mais de três vezes as emissões globais de toda a União Europeia. Significaria uma queda nas emissões mundiais de 25,6%. Melhorar a eficiência chinesa, isso sim é de relevo.

    Oriental Pearl Tower in Shanghai during daytime

    E muito mais sensato, e com evidentes resultados, do que exigir que andemos a pé ou de bicicleta, algo que se deve fazer por melhorar a nossa saúde, mas nunca imposto por uma estúpida ideia de contribuir para “salvar o planeta”.

    Mas uma mudança do paradigma energético na China implicaria, em parte, uma transferência de tecnologia do Ocidente, arriscando tornar aquele país asiático um ainda maior colosso económico. Bem sei, e compreendo a realpolitik, que isto não interessará às elites políticas e económicas da Europa e dos Estados Unidos (que aliás também têm muito a fazer ainda para melhorar a sua eficiência energética), mas então assuma-se.

    E, assim, não se use a comunicação social para uma estratégia manipulatória para nos convencer de que as alterações climáticas estão aí apenas por nossa culpa, que só os nossos sacrifícios podem “salvar o planeta” – e que se não fizermos isto a bem, eles (os políticos) então nos impõem tudo a mal, porque de contrário “vamos todos morrer” e não estarmos a fazer a nossa parte é egoísmo… Aliás, onde já vi isto?!

    Se a imprensa mainstream quer mesmo “salvar o planeta” não chateie tanto os cidadãos – nem os manipule –, mas sim pressione mais os políticos e os Governos, porque são estes que efectivamente podem “salvar o planeta”. Ou melhor dizendo, com as suas políticas, deixarem de o destruir; e de prejudicar as nossas vidas e a das gerações futuras. E, nesse aspecto, as emissões de dióxido de carbono são o menos…

  • Há falta de professores? E novidades, há?

    Há falta de professores? E novidades, há?


    Falta de professores afeta 100 000 alunos“, é este o título de uma notícia do Observador de sexta-feira passada, e replicada em outros órgãos de comunicação social, que me prende a atenção e deixa um cheirinho a nostalgia nesta minha memória que já teve melhores dias. Tenho a sensação de que, há uns anos a esta parte, a cada início do ano escolar esta notícia se repete.

    Começamos a ter um ciclo, com as cheias em Janeiro, os fogos em Julho ou Agosto e a falta de professores em Setembro. Longe vão os tempos em que Pedro Passos Coelho sugeria aos professores que emigrassem, nesta Europa livre e sem fronteiras.

    Não é difícil perceber porque faltam professores em 2023. Ou faltavam em 2022 ou em qualquer ano da década anterior. Mas a pergunta que importa é: quem quer ser professor nestes dias que correm?

    Teacher Showing His Class a Human Skull

    Quem quer aturar os filhos dos outros, explicar a quem não deseja aprender, ouvir todos os tipos de falta de educação e ainda ter de aturar, de quando em vez, as frustrações dos pais por causa da incapacidade dos educandos?

    Quem tem paciência para andar de mala às costas, a viver longe da família, ou sem conseguir formar uma, dada a dificuldade em fixar residência?

    Quem sonha com uma carreira que anda há mais de uma década em luta por direitos básicos e cuja progressão é lenta ou nula?

    E finalmente, quem arrisca o seu futuro numa profissão assim, com todas estas condicionantes, por um salário de indigno que se arrasta durante toda a vida? Indigno, não: deixemos as metáforas à porta, é mesmo uma merda.

    A parte curiosa disto é não se ver, para além de declarações vazias do ministro da Educação (este ou outro qualquer) – tais como “as negociações seguem o seu normal percurso” –, qualquer medida verdadeiramente importante para tornar a carreira docente minimamente atractiva.

    Boy Running In The Hallway

    E é disso que se trata: convencer pessoas que ser professor é algo bom e não deixar o destino do país depositado nos heróis que, apesar das condições lamentáveis, ainda têm paixão por ensinar. Sim, leram bem: o destino do país. Ao contrário do que se possa pensar, o sucesso de um país não está no seu exército, nas suas estradas exploradas por privados ou no número de visitantes anuais. O sucesso mede-se pela qualidade da escola pública e da saúde oferecida a troco dos impostos. Uma boa escola pública cria bons trabalhadores, e bons trabalhadores desenvolvem o país e a sua Economia. Não é propriamente um segredo. Todo o norte da Europa já percebeu isto há 100 anos. 

    Na década de 90 entraram para a área de Educação, no ensino superior, uma média aproximada de 30 mil alunos por ano. Entre 2000 e 2005 esse número aumentou para 45 mil e desde então tem vindo a descer, atingindo o mínimos em 2019 com pouco mais de 12 mil alunos.

    Como é que um país cada vez mais pobre se dá ao luxo de afugentar professores, é um mistério que decididamente não consigo compreender. Qual é a visão de longo prazo? Termos cada vez mais empregados de mesa e camareiras de hotel e, os poucos que vão levando a escola até um ponto que interesse, vamos oferecendo aos países desenvolvidos?

    Interior of Abandoned Building

    Eu percebo que o dinheiro não dá para tudo, mas, no fim, estamos sempre entre opções políticas que podem levar ao desenvolvimento ou ao atraso geracional, não é? Não digo que seja necessário algo radical como atenuar um pouco os roubos que a corrupção inflige ao Orçamento do Estado. As negociatas do tutti-frutti, as adjudicações aos amigos, os subsídios de deslocacão para quem está parado, os resgates aos bancos que tinham ministros no bolso e outros quejandos. Não, não digo para pouparem algum dinheiro aí porque se perdia logo a essência da política nacional, assente em compadrios e corrupcão. Temos que ir um pouco mais devagar.

    Mas, por exemplo, parar de fazer auto-estradas por todo o lado e atribuir o lucro da exploração a privados?  Era um princípio. Imaginem o que daria em salários de professor a fortuna que foi gasta para estarem todos confinados. Alguns 10 anos de progressões, paz social e setembros com os putos nas salas de aulas com adultos lá dentro.

    Não sei bem como dizer isto de uma forma mais simples, mas não há país desenvolvido e Economia sustentada sem um ensino público de qualidade. E não há ensino público de qualidade sem professores motivados.

    Portanto, senhores do Centrão, que há umas décadas gerem fundos comunitários, em vez de desenvolverem o país: RESPEITEM OS PROFESSORES. Sem eles, e um ou outro médico para nos desentupir as artérias, não há mais nada. Sobra-nos o estatuto de República Dominicana da União Europeia com 11 gajos com jeito para a bola. Se é esse o desígnio nacional, sigam em frente que estão bem. Se querem deixar de ser o mais pobre entre os pobres da Europa, é bom então que se aproximem dos professores, com algumas flores na mão.

    Nem é preciso ser muito inteligente. É só olhar em volta e fazer o que já foi feito.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Lições à suposta Tecnociência em tempos de pandemia

    Lições à suposta Tecnociência em tempos de pandemia


    – Vou dar-vos uma doença nova – e assim surgiu a covid-19. Uma doença que num quadro exuberante é tremenda. Descobrimos assim que estávamos na Idade Média, e lá saltaram os feiticeiros: os donos de medicação curativa, os teorizadores da calamidade, os defensores de negócios sem moral, os fazedores de tratamentos – as mezinhas, os chás e os fumeiros da peste negra.

    Veio o ostracismo, o evitamento, a culpabilização – somos tão fáceis de perceber, tão repisados. Engraçado como em Setembro de 2023 tudo mudou – “estão-se todos borrifando para a infecção”! Os mesmos que prenderam os idosos, os que obrigaram a escrever morte por covid-19 até em politraumatizados, os que gritavam contra qualquer crítico. 

    person in white and pink striped long sleeve shirt

    Os da Idade Média em 2020, agora, em Setembro de 2023, quando a covid-19 dispara de novo, vivem silenciosos.

    Quando os seres humanos iam aos hospitais há três anos, estavam confiantes na Tecnociência, desconfiados da negligência, incrédulos da incurabilidade. Chegou em Dezembro 2019 um coronavírus, membro de uma enorme família, e disse:

    – Hummm!, vocês sabem pouco!

    Chocado ficou o povo que acreditava que o século XXI é sábio, cientista e cheio de sabedoria. Estávamos perante uma pandemia, uma nova doença, um “micróbio” que nos afrontava com despudor. Afinal, tínhamos serviços de Saúde, especialistas em fármacos, meritórias universidades e dezenas de médicos por mil habitantes. O vírus possivelmente disseminou-se mais depressa do que se pensava e atacou o mundo inteiro viajando em low cost, nos paquetes e aviões. Quando deram por ele confinaram-se as crianças e depois os pais e, por fim, os avós.

    – Boa! Vamos pela mão das crianças infectar os avós.

    E foi e infectou.

    As pessoas com mais de 70 anos, com algumas doenças, foram as mais atacadas, de modo selectivo, com uma demoníaca incidência.

    – Vou matar milhares!

    man in white thobe walking on grey and yellow concrete pavement

    E matou, pelo Mundo todo, como se sabe. Só que não foi nada semelhante à SIDA; nada próximo da Peste; nada comparável à gripe espanhola – e todos sabem, todos têm a certeza disso!, à posteriori. No fim do jogo, há quem já aceite que exagerou, há quem se arrependa do que vociferou.

    Afinal, agora, estamos com a maior taxa de infecção – atenção, taxa de infecção – desde que este vírus apareceu em 2019. São milhares por dia. É um vírus atenuado, mais adaptado aos humanos, como teria de ser, e possivelmente uma estirpe insensível à vacina em uso, mas a dar biliões de lucros.

    Um vírus destes não ataca crianças, nem jovens saudáveis nem adultos com saúde? Ataca, mas unanimemente eles conseguem defender-se com um desconforto maior ou menor. Em Portugal, nenhum jovem de menos de 30 anos morreu de covid-19 – mesmo se teve um teste positivo –, desde que tudo começou. Ninguém sem patologia major de outra espécie morreu de covid-19 com menos de 40 anos. Mas houve alguns gravemente doentes – sim! Mas menos de duzentos em todo o Portugal e PALOP. Tínhamos meios para os salvar e salvaram-se!

    A Medicina Baseada na Evidência não demonstrou nada, não descobriu a razão, a forma, o mecanismo de acção, as taxas de mortalidade e de infecção, não fez grupos controlo, não conseguiu retirar certezas além de que a mortalidade naquela forma clínica major era o quinto dos infernos.

    People Wearing DIY Masks

    Provou-se que a eficácia dos fármacos usados “em desespero” foi de muito baixa eficiência.

    O desespero foi afinal uma taxa de mortalidade de 0,7%, o que em Epidemiologia é uma festa, uma boa nova!

    Sim, talvez 0,7% dos doentes graves vão morrer – este número não está claro. Sim, destes, 80% têm um padrão igual aos nossos avós. Sim, sabemos que 0,7% de milhões são sempre muitos! Sobretudo porque os seres humanos são mesmo muitos.

    Mas esta não é uma Walking Deads, esta não foi a vingança do ambiente contra a demografia. Esta não matou mais que a fome, não aniquilou o mesmo que Staline, ou Pol Pot, ou o Nazismo. As formigas não perderam a termiteira, só viram um desaire num carreiro. E não está provado que antes do confinamento não houvesse já um “espalhamento” global e daí o efeito positivo dos lockdowns não ser ainda claro.

    Sobre a vacina em 2021 – eu fiz! Eu também injectei o receio! Mas esse é outro tema de debate!

    Certo é que os não-vacinados não estão a morrer deste surto de Setembro de 2023! Os não-vacinados estão a apanhar, sem problema de maior, a mesma infecção, pelo mesmo vírus que todos os outros.

    Woman Wearing Mask on Train

    O SARS-CoV-2 é, por tudo isto, uma desilusão completa sobre a Humanidade da Tecnociência. Temos de voltar a estar na rua e a acabar com a ideia de que vamos para a praia de máscara ou nadar de escafandro.

    Resta concluir que os hipocondríacos não podem mandar no Mundo, pois nos conduzem à falta de senso, à ausência de leitura fria dos dados, à gestão das emoções sem utilização dos poderes de raciocínio, justiça e memorização. Temos de rever a nossa interpretação da morte, porque ela faz parte da vida.

    Por fim, não criemos, contudo, um peso de consciência porque deixámos os pais nos lares, e não fomos ver os avós durante meses – e agora morreram. Não me ofereçam falsa moral. Sei que o trabalho não se compadece, a vida é um rolo compressor, a riqueza da Humanidade está mal distribuída e para fazer melhor é preciso o vil metal. A moralidade e a ética de hoje estão encastoadas no dinheiro. Muito grave era morrerem os netos antes dos avós como na gripe espanhola.

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Cavaco Silva: a arte de pavonear

    Cavaco Silva: a arte de pavonear


    A reforma traz destes riscos: Cavaco Silva conseguiu tempo, e disposição, para escrever mais um livro.

    Nada de grave.

    Todos os dias aparecem dezenas de títulos novos e raro será o português que não tenha publicado um livro.

    Ou tenha algum guardado com a esperança de haver uma editora que lhe pegue ou de arranjar dinheiro para uma edição de autor.

    Cavaco Silva não é excepção.

    Para mal dos nossos pecados há o pequeno risco de ele continuar a publicar às quintas feiras e outros dias, como já ameaçou, aliás.

    Sendo assim algo com pouquíssima importância, porque é que eu decidi, então, escrever sobre isto?

    Simplesmente porque, desta vez, Cavaco Silva promete bater todos os recordes no que toca ao seu narcisismo doentio.

    Pelo título podemos prever um texto onde o exibicionismo, imodéstia e cabotinismo atingirão o auge do descaramento.

    “O Primeiro Ministro e a Arte de Governar”, chama-se aquela coisa.

    Conhecendo o personagem, parece óbvio que o tal Primeiro-Ministro de que se propõe falar, com arte para governar, só poderá ser a mesma pessoa que tem, na capa, o nome que o identifica como autor.

    E essa “arte” é conhecida por todos os cidadãos deste país.

    Porque a sofreram na pele.

    Foi Cavaco quem teve a “arte”, enquanto Primeiro-Ministro, de acabar com a pesca e a agricultura em Portugal.

    Graças a ele, o número de pescadores passou de 41 mil para 17 mil e Portugal chegou a um défice anual, nas pescas, de 800 milhões de euros.

    Fernando Nobre garantiu, na altura, e os factos vieram a dar-lhe razão, que “nada tendo contra os nossos irmãos espanhóis” não compreendia que estes conseguissem mais licenças de pesca, e de pescado, nas costas nacionais, do que os pescadores portugueses.

    Também, durante os seus mandatos, defendeu o abandono da agricultura a “troco de indemnizações” que chegavam da Europa.

    Anos mais tarde, um Presidente da República, curiosamente com o mesmo nome, Aníbal Cavaco Silva, arrasou estas medidas num discurso lido no dia de Camões.

    Artur Coimbra, num texto publicado no “Correio do Minho”, dizia não haver ninguém melhor do que “o coveiro da agricultura portuguesa e da actividade pesqueira, enquanto primeiro-ministro, para apelar à necessidade de o país voltar a pegar nas máquinas e nas rabiças do arado de modo a dar a volta à situação calamitosa em que os portugueses se encontram, em resultado de políticas destruidoras do que melhor o país tinha, apenas porque a ganância da União Europeia impunha a lei do mais forte”.

    Para o Presidente da Confederação Nacional da Agricultura, Cavaco, na década em que governou o país, “ora apoiava a plantação de pomares, ora incentivava o arranque das macieiras, ora mandava investir na vinha, ora pagava para erradicar a vinha, em decisões irracionais e criminosas, meramente economicistas, que ainda hoje estamos a pagar e a lamentar”.

    E concluía, “pelo meio, desde o cavaquismo, ficaram os cadáveres de centenas de milhares de pequenas e médias explorações agrícolas familiares, que os programas europeus destruíram, inapelavelmente”.

    Também há “arte” para governar quando, com a maior descontração, se tenta desmentir algo que todos, sem excepção, sabem ser verdade.

    Não há um português que não tenha visto, dezenas de vezes, as imagens de Cavaco a garantir, nas televisões, que “dado que as folgas de capital são mais do que suficientes para cobrir a exposição que o banco tem à parte não financeira, mesmo na situação mais adversa, os portugueses podem confiar no Banco Espírito Santo”.

    Apesar disso não hesitou em garantir, mais tarde, com toda a calma, que não falou do BES antes deste entrar em situação de crise.

    Até Marcelo Rebelo de Sousa veio lembrar que, na realidade, falara.

    “Falou e em termos que levaram a acreditar que o aumento de capital era para levar a sério”, esclareceu.

    Também há alguma “arte” a governar quando se consegue que o Meo Arena fique nas mãos de um empresário capaz de o transformar num local de grandes espectáculos. Mesmo que, este, seja seu genro.

    Juntou-se o útil ao agradável e acabou por ser um bom dote (ou indemnização), há que reconhecer. 

    E os exemplos poderiam suceder-se “ad aeternum”.

    O livro pode, assim, ser uma obra esclarecedora já que escrita por quem sabe da matéria indicada no título.

    Ainda assim, só o comprarei (está em pré-venda a 15,98 €) se a sua lombada tiver, exactamente, três centímetros e vinte e oito milímetros.

    É a altura necessária para servir de calço a uma mesa de cozinha com uma perna mais curta, exactamente com essa medida.

    Pode ser que tenha sorte!

    Vítor Ilharco é assessor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • António Costa, o Bem-Amado

    António Costa, o Bem-Amado

    Esta semana assistimos a mais um “número” protagonizado pelo primeiro-ministro com a mãozinha das suas partenaires – leia-se, uma boa parte da imprensa dita de “referência”. Com o anúncio de um pacote de “medidas de apoio” aos jovens, António Costa afinal passou-nos, na verdade, mais um atestado de incompetência.

    Quis ele mostrar-nos, mais uma vez, que trata os portugueses como crianças; ele julga poder comprar-nos se nos passar umas guloseimas para a mão, na forma de subsídios e ajudinhas, para que permaneçamos pobres, mas um pouco menos, e assim nos lembremos que ele é o nosso bondoso “amigo”; e que nos lembremos do Partido Socialista na hora de irmos às urnas. Infelizmente, este modus operandi tem resultado muito bem: foi (também) assim que ele conseguiu – ou eles, se juntarmos o seu Partido Socialista – a maioria absoluta.

    Há quem gabe a arte, ou a “sorte”, de António Costa, como se o seu sucesso fosse atribuível a uma espécie de graça caída dos céus. Outros, dizem que é um político exímio e tacticista. De facto, há que reconhecer-lhe o mérito de conhecer bem a essência do povo português e de saber exactamente como o manobrar. Mas, note-se, as artimanhas do Partido Socialista não lograriam o mesmo efeito sem a preciosa ajuda (inadvertida ou não) da comunicação social mainstream. Os seus estratagemas, ainda que engenhosos, sairiam furados se não fosse a mediocridade de muita da nossa imprensa, que nos brinda com manchetes e notícias acríticas – umas atrás das outras.

    Feito o anúncio de António Costa na Academia Socialista – com toda a pompa e circunstância, como tem sido dito, para apresentar uma mão cheia de migalhas –, pouco se viu, na imprensa, contraponto jornalístico ou perguntas incómodas. Não se colocou o dedo na ferida, face à lástima em que o país se encontra – e cuja responsabilidade só pode ser assacada a quem nos governa há oito anos, independentemente das suas tentativas de ludibriar o povo com falinhas mansas.

    Mas a comunicação social não se limitou a não cumprir com o seu mais elementar dever, do qual, na verdade, já se demitiu há muito. Foi mais longe, e escrevinhou notícias tais como: “Prendas de Costa aos jovens” – note-se o tom paternalista concedido pelo Público: um governante que gere dinheiro dos nossos impostos, dá depois prendas aos jovens, mas esse dinheiro veio dos pais e demais familiares dos jovens… E isto já sem falar muito em títulos grandiloquentes sobre o nosso  “Costa, o ‘fazedor’ em Évora”, ainda por cima vítima das “mentiras” do Conselho do Estado.

    Por pouco, pensei, a coisa não descambava para títulos como “António Costa, o magnânimo”, “António Costa, o benfazejo”, “António Costa, o clemente”, ou ainda, sugere-me o director do PÁGINA UM (que é desse tempo), “António Costa, o Bem-Amado”.  Quem precisa de uma equipa de comunicação, quando se tem jornalistas encarteirados, e reconhecidos pela CPCJ, que escrevem notícias destas? Nem o veterano do marketing político, Luís Paixão Martins, consegue fazer o primeiro-ministro parecer tão bom – ou, se calhar, ali há dedo dele. Enfim, António Costa pode mesmo demitir o seu excelso técnico de comunicação; os seus serviços são dispensáveis.

    Vamos constatar o óbvio: António Costa não “dá” nada. António Costa, na verdade, tira-nos cada vez mais. António Costa desfere golpes na população através de pesados impostos, que são mal aplicados – veja-se o estado da Saúde e da Educação) –, e depois distribui pensinhos, enquanto alguns “jornalistas” fazem manchetes onde evidenciam a sua generosidade.

    Em paralelo, porque não há heróis sem obstáculos, a comunicação social insiste e persiste na cantiga da alegada “guerra” entre António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa. Mesmo a existir, uma contenda entre o primeiro-ministro e o Presidente da República, questiono-me se será matéria para tanta cobertura noticiosa e destaque de primeira página perante o estado da Nação. Não há outros temas no topo das prioridades?

    Cena de O Bem-Amado, famosa telenovela dos anos 70, sobre os projectos de Odorico Paraguassu na vila baiana de Sucupira.

    Mas a questão é que este suposto combate rasca Costa VS Marcelo, que nos impingem ad nauseam, parece não passar de mais uma história fabricada. Talvez para manter a aparência de uma democracia salutar, em que existe uma separação de poderes eficiente, em vez de uma mera partilha de poderes entre companheiros de longa data. De facto, tudo aponta para que os dois sejam “tu cá, tu lá”, e estejam (demasiado) à vontadinha, mas a nossa imprensa faz o obséquio de engendrar uma realidade alternativa para ir entretendo os portugueses.

    Enfim, o jornalismo mainstream deixou de ser o essencial watchdog do poder; neste momento é uma espécie de companheiro – na verdade, um fiel pet. E dos que vestem floridos laçarotes no pescoço, enquanto solta uns latidos de satisfação.

    Maria Afonso Peixoto é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Entre o certo e o errado, mais 1.000 milhões (de dólares) para mortes em prime-time

    Entre o certo e o errado, mais 1.000 milhões (de dólares) para mortes em prime-time


    Ontem tinha alinhado com os meus botões outro tema para a crónica de hoje, mas a actualidade estragou-me os planos.

    Li que os Estados Unidos tinham disponibilizado mais 1.000 milhões de dólares para a guerra na Ucrânia e comecei a fazer contas à vida. Tenho alguma dificuldade em perceber esta cascata de dinheiro despejado na guerra – e aqui confesso que pode ser um problema herdado da minha profissão.

    Pagam-me para arranjar soluções. Não importa agora para quê. Dão-me problemas e pedem-me soluções. Lógicas, e que nos façam chegar a um produto final que, por sua vez, será vendido a quem o quiser comprar. É na perspectiva desta lógica que olho para o apoio à guerra da Ucrânia. Já passou a fase da emoção, da moralidade, do certo ou errado. Olho para ali e penso: “como é que se resolve isto?”

    Exploded House in Borodyanka

    Para vos ser sincero, a fase da emoção não durou muito. Durante 20 anos andou a União Europeia a branquear o regime russo a troco de gás, e mal meteram os pés no Donbass passaram a ser uma ditadura. Quando cortaram o mapa ali pelos lados da Ossétia, Chechénia ou até Crimeia, ainda eram apenas os nossos fornecedores de energia.

    Lembro-me sempre da frase de Macron, numa reunião de líderes – em 2022, e a memória não me falha –, afirmando que era preciso pedir aos sauditas que aumentassem a produção de petróleo para compensar o boicote à Rússia. Pelo meio, ainda vimos Ursula Von der Leyen a fazer “parcerias estratégicas” com o Azerbaijão para conseguir mais umas botijas de gás.

    Portanto, esta coisa de escolher “democracias amigas” à la carte, e consoante os interesses do momento, é prática que nunca me seduziu.

    A moralidade ainda foi mais constrangedora porque, de repente, a fazer fé na comunicação social portuguesa, o Planeta Terra vivia em paz e todos tínhamos de apoiar a resistência ucraniana: com dinheiro, com soldados, com armas, com as nossas casas. Com o que calhasse.

    Abandoned Battle Tank

    Lembro-me de ter falado nisso ainda o primeiro drone não tinha sido usado e ouvir o novo cognome de “whataboutista”. Ou seja, quem pergunta os porquês de tamanha dedicação à causa ucraniana, em contraponto com a História dos últimos 70 anos, passou a ser uma “whataboutista” – e mais tarde um “putinista”.

    Mas, afinal, o que separa ucranianos de arménios, palestinianos, iemenitas, sérvios, afegãos, curdos, sírios, tibetanos, taiwaneses, georgianos, cubanos, paquistaneses, indianos e tantos outros povos a braços com guerras e ou disputas territoriais? Eu respondo: o interesse, momentâneo, de outros impérios em desgastarem o império invasor. Apenas isso. Algo que muito pouco terá a ver com a defesa territorial ucraniana, e ainda menos com a hipócrita tentativa de salvar vidas.

    É muito difícil, ao fim de ano e meio, continuarmos a discutir a invasão da Ucrânia à luz do certo ou errado. Se assim fosse, teríamos de o fazer para uma enormidade de povos que por isso passam há décadas. E não, não é “whataboutismo”, é apenas não ser idiota e perceber que o Mundo não se divide entre impérios bons e impérios maus. Divide-se entre impérios e seus seguidores. Se é império, não é bom – é tão simples quanto isso.

    black barbwire in close up photography during daytime

    Resta-me, pois, a visão prática que, como expliquei ali em cima, me chega por defeito profissional. Vão os 1.000 milhões de dólares mudar o curso da guerra? Não, não vão.

    Podem os Estados Unidos (e a União Europeia) continuar a despejar dinheiro e a pedir aos ucranianos, àqueles que não vão morrendo, que, em princípio, o resultado final não se altera.  Há algum analista, algum militar, algum comentador, tirando o Zelenski e os seus comandantes mais próximos, que tenha dito que com mais armas e dinheiro a Ucrânia consegue vencer esta guerra? Julgo que não, pelo menos não me lembro de ninguém. Espera…talvez o Isidro da CNN que diz, todas as semanas, que o [inserir aqui nome da arma] vai ser um game changer no curso da operação.

    Mais dinheiro até agora resultou nas mesmíssimas zonas ocupadas pelos russos, em milhares de mortos de parte a parte, na divisão das diplomacias em dois blocos – onde o ucraniano começa a ser minoritário, ao contrário do que a União Europeia nos vai vendendo – e num empobrecimento geral das democracias que são forçadas a enviar dinheiro. Sim, forçadas. Ninguém perguntou aos contribuintes europeus se querem aumentar o investimento na defesa, mas os impostos são canalizados para lá na mesma. Ninguém nos perguntou se concordamos com o ataque cerrado do Banco Central Europeu (BCE) para corrigir o efeito da inflação, mas, a reboque da guerra, tivemos de aceder à duplicação dos custos para a habitação.

    a pile of money sitting on top of a wooden floor

    Se despejar dinheiro não resolve o conflito, qual o motivo de o continuarmos a fazer? Estão a ver o sentido prático da coisa? Se mais uns milhões de pessoas ficarem sem casas, perderem empregos, não aguentarem o custo de vida e rebentarem em dívidas, enquanto enviamos uma ou duas cascatas de dinheiro para a Ucrânia, embrulhadas em tanques e F16… conseguimos, nós, os do império bom, expulsar os russos? Se sim, vamos lá empobrecer um bocado. Se não aparecer um daqueles generais velhotes a dizer que é possível, então se calhar parávamos com isto e tentávamos chegar a um acordo numa mesa qualquer.

    Aquela conversa de apoiar a Ucrânia pelo tempo que for necessário é muito bonita, mas como devem compreender, não é real. Não há apoio eterno a ninguém. Quer dizer, a ninguém que não seja israelita. Ou que não tenha muitos poços de petróleo. Assim é que é.

    Há quase dois anos que andamos a tentar uma só solução que, invariavelmente, produz os mesmos resultados. Não sei como funcionam as reuniões entre Bruxelas e Washington, mas se eu apresentasse estatísticas destas, no meu trabalho, já me tinham despedido.

    Há uma e uma só hipótese que qualquer pessoa de bom senso consegue perceber: negociar. Sem “mas” ou discussões de ética e moralidade. Há um problema real que afecta toda a gente e que não tem solução no campo de batalha. Despejar dinheiro não salva ucranianos e só adia a decisão final. Chegaremos sempre ao mesmo ponto – e com um número de mortos maior.

    oval brown wooden conference table and chairs inside conference room

    Isto, claro, partindo do princípio de que a alucinação que faz os sonhos molhados de alguns (a NATO entrar directamente no conflito de forma oficial – pela outra já lá está) continua a ser colocada de parte, como parece ser o caso. Os Estados Unidos aparentemente estão contentes com o negócio e não parecem dispostos a trocar sangue. Desta vez, ficam-se pela promoção do evento, troca comercial, venda de pipocas no espectáculo e, no fim, tomam o lugar do concorrente mais cotado quando ele estiver cansado.

    Ninguém, na verdade, parece estar muito preocupado com os ucranianos hoje ou o que sobrará da Ucrânia amanhã.

    Enfim, há dias, um leitor deste nosso jornal colocou-me a seguinte pergunta: “não tem a Ucrânia o direito de se defender e não deve ser apoiada nesse esforço?”. Eu disse-lhe que a resposta era tão longa e complexa que daria um texto. E deu.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A corrupção pavoneia-se em Portugal

    A corrupção pavoneia-se em Portugal


    Há uma corrupção entranhada, enraizada na sociedade portuguesa. E mais perniciosa porque feita à descararada, é pública e notória, todos os dias se passeia, se pavoneia, nos registos do Portal Base, defronte dos olhos dos contribuintes, do Tribunal de Contas, do Ministério Público, das pessoas de bem.

    Temos um país supostamente democrático que, com a sua dimensão, com a sua estrutura burocrática, não consegue, ao fim de meio século de democracia, eliminar o obscurantismo e a falta de rigor na aplicação de dinheiros públicos, tendo, ao invés, transformado a contratação pública no mais medonho campo de cultivo da corrupção que se tem metastizado em todos os sectores da res publica.

    euro banknote collection on wooden surface

    Bem sabemos, conhecendo a natureza humana, que nem com os concursos públicos conseguiremos evitar desvios e enviesamentos nas decisões de como gastar melhor os dinheiros públicos, mas a decência democrática não pode suportar que, por dá cá esta palha, se opte pela celebração de contratos por ajuste directo. Não é um, nem dois, nem de vez em quando; está a tornar-se uma anormal normalidade.

    O ajuste directo é, de uma forma simplificada, feito depois de alguém com funções públicas pegar num telefone e, enfim, falar com outro alguém de uma empresa para resolver um alegado problema público, pago exclusivamente com dinheiros públicos, e isto por causa da urgência ou de outras justificações espatafúrdias para que se caia na alçada das excepções muito maleáveis do Código da Contratação Pública.

    Nesse acto não se sabe, na esmagadora maioria das vezes, as razões da escolha (porquê esta e não a outra empresa) nem se o motivo se justifica, até porque, em muitos casos, temos contratos de centenas de milhares de euros – ou até de milhões – para a compra de bens ou serviços que, em abono da verdade, era fácil de prever com muita antecedência que seriam necessários, e então justificar-se-ia lançar um concurso público.

    euro, gift, hand

    Em apenas oito meses, de acordo com uma rápida análise do PÁGINA UM, contratos públicos por ajuste directo acima de 100 mil euros já ultrapassaram os mil milhões de euros. É uma enormidade, e não é preciso especular demasiado para perceber que, em grande parte dos casos, há corrupção pura e dura – que só o desinteresse intencional dos partidos políticos (todos) e a passividade do Ministério Público e do Tribunal de Contas se mantém e prolifera.

    O Boletim diário que o PÁGINA UM decidiu começar a publicar este mês, destacando sobretudo os contratos por ajuste directo, responde a uma necessidade de recordar, em cada dia, esta situação infesta.

    Talvez assim se comece a reparar que os ajustes directos não se fazem apenas na execução de empreitadas de construção civil ou na aquisição de medicamentos – talvez a única situação em que o ajuste directo se poderá justificará em muitos casos, embora a necessitar de outro tipo de controlo sobre os administradores e médicos influenciadores –, mas em muitos outros sectores.

    Cito três, por serem tão evidentes, onde se mostra urgente uma espécie de Operação Mãos Limpas: 1) serviços de segurança e vigilância; 2) limpezas de instalações; e 3) restauração e catering.

    Close-Up Photo Of Person Cleaning The Table

    A quantidade de contratos sucessivos por ajuste directo para estes três tipos de serviços – onde proliferam diversas empresas, onde a concorrência é, por isso, extremamente forte, e as necessidades são contínuas – não é justificável num quadro de transparência. Salta à vista aquilo que se passa. Em alguns casos, estamos a falar de contratos de milhões de euros.

    Mas o problema da corrupção financeira é que também ela é moral. Quando falamos de corrupção, através de contratos por ajuste directo, estamos a tratar também de contratos de poucas dezenas de milhares de euros, que servem para “ajudar” a empresa do “amigo”, ou do “afilhado” ou do “militante”. É para isso também que os ajustes directos servem: através de dinheiros públicos “amigar” gestores públicos e políticos com certos empresários, muitos que criam empresas ao domingo para contratar com entidades públicas no dia seguinte, e não apenas pelos lindos olhos de cada uma das partes.

    Enfim, tudo isto não tem sido nem será jamais bom para o contribuinte; mas é seguramente excelente para as empresas que vão singrando consoante as operações de “relações públicas” e outras mais “privadas) – e muitas que são preteridas em certos contratos por ajustes directos, nem se queixam, esperando que venham a beneficiar de similar esquema através de outras entidades públicas.

    E lamentavelmente, tudo isto também é, acredito, muito benéfico financeiramente para muitos políticos e gestores públicos.

    five red apples on white surface

    Através do PÁGINA UM, e sabendo que este é um caminho solitário na imprensa – até porque, enfim, as próprias empresas de media também assinam contratos por ajuste directo, alguns sem ser sequer reduzido a escrito –, procurarei com a divulgação dos Boletim P1 da Contratação Pública e dos Ajustes Directos – e também com os rankings mensais dos contratos mais chorudos, também com a lista das entidades públicas e das empresas privadas que mais recorrem a expediente – sensibilizar os leitores, os cidadãos e contribuintes, para um problema que mina e continuará a minar a democracia.

    Pode ser apenas uma voz isolada, sem significado, a gritar que o rei vai nu – e pode mesmo, ao contrário do conto de Hans Christian Andersen, isto não servir, por agora, para nada. Porém, pelo menos não participei no deboche à democracia. E isso, como contribuinte, pode não me servir de consolação – porque a corrupção é uma forma de roubo e também de abuso de confiança –, mas como cidadão servirá de consolo: pelo menos, eu tentei.

  • Vencem-nos pelo cansaço

    Vencem-nos pelo cansaço


    A estrutura de atendimento de doentes hoje é uma escada de insatisfação. O primeiro degrau é o das pessoas, elas mesmas, que estão insatisfeitas com a vida, com o custo desta, e com a desesperança de trabalhar e não conseguir sair da cepa torta. Trabalhar não garante Habitação, Educação, Segurança, Justiça e Saúde. Mais grave é que não garante aquecimento ou conforto. É o maior falhanço da governação portuguesa.

    Isto traduz-se em depressões, ansiedades, desespero, relações doentes. Casa onde não há pão…

    O degrau seguinte é buscar soluções gratuitas onde se inclui o recurso a urgências hospitalares. As urgências servem para suprir a falta de Medicina Familiar, a má prestação aos cuidados continuados, a ausência de apoios eficazes nos lares, os constrangimentos criados sobre as consultas privadas.

    Em França, a opção pode ser consultar um clínico, fazer os exames que pede e o dinheiro segue o paciente. Assim se retiram milhares de pessoas de urgências sobrelotadas. É o misto entre público e privado. Aqui a ideologia não quer. Se tenho um problema de pele poderia ir a um atendimento dermatológico. Se a próstata me perturba ia a um urologista.

    Deste modo, o Estado pagava o valor que custam estes atendimentos, directamente aos clínicos nos seus espaços. Mas claro que a ideologia tem destruído, com milhares de regras e certificações, o exercício privado e pessoal da Medicina.

    Os constrangimentos forçaram a encerrar o que nunca causou problemas, para agora produzir monstros empresariais que abrem como cogumelos na voracidade das seguradoras. 

    O degrau seguinte foi encerrar portas de atendimento para barrar o acesso desta vertigem que são as queixas miúdas, as queixas pequenas. Os doentes não sabem se o que agora sentem é grave, mas ouvem esses canais televisivos de estupidez sem fim a lançar o pânico, a conduzir a discursos de medo. Podiam verter a estratégia em ensino, em formação do simples, em atendimentos por Whatsapp filmados em directo. O queixoso adoraria ver-se na TV e a sua questão respondida em directo seria uma aula. Torci o pé, apareceu-me rubor na mama, hoje tenho o rabo quente, sinto este sinal a crescer… Construíamos doutores da mula russa, mas agora com a experiência de terem visto algo semelhante na TV.

    O degrau maior é o espaço de urgências como a do Hospital dos Covões, onde um ou outro médico se atreve a enfrentar a horda de queixosos que não tem outro lugar onde ir. São dezenas de pedintes de clemência e ajuda por aquilo que não sabem se é grave, mas não têm outra porta, ou não a querem usar, ou acham que nas urgências é melhor.

    man in red shirt driving car

    A verdade é que esperam, fazem alguns exames, são vistos de modo indiferenciado entre indigentes mal comportados, loucos sem soluções na actual organização dos serviços públicos psiquiátricos, ansiosos crónicos, superutilizadores de urgências (milhares inscrevem-se mais de 15 vezes por ano em urgências, além de consultas, atendimentos privados), etc.

    Neste processo, a gestão não se preocupa com os tempos de espera, não se preocupa com a falta crónica de agentes de qualidade, com agentes médicos que aportam eficiência. A urgência dos Covões é já uma anedota e um case study do que não devia estar aberto no sistema.

    O problema não são os doentes, nem os serviços, mas a ausência de uma Administração Regional de Saúde (ARS), a ausência de liderança do sistema. Uma ARS ausente, de cabeça enterrada na areia, sem soluções de atendimentos, sem avançar estudos sobre a satisfação dos doentes.

    man in black t-shirt lying on couch

    Hoje, dezenas de doentes abandonam as urgências, vencidos pelo cansaço, tentando soluções que desconheço, fugindo do desespero que é ser pobre apesar de trabalhar.

    A realidade é uma trovoada de desinteresse, um lugar onde o director de urgência do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) nunca aparece, onde o gestor-mor do CHUC nunca se inscreve para perceber aquilo que construiu. Ando tão envergonhado desta peça de teatro em que me colocaram de actor! 

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Vitória de Guimarães 4.0

    Vitória de Guimarães 4.0


    A experiência é um posto – um lugar-comum que, vistas as coisas como são, se usa (o lugar-comum) por isso mesmo: por se aplicar em muitos casos, e ainda melhor no caso em apreço deste cronista, eu, que, ainda esta tarde, munido da experiência, andei à caça dos abusos em ajustes directos em contratos públicos, e agora aqui estou, muito célere na viagem, graças à experiência, de já saber todos os ritos, neste preciso momento, a ver a aquilina Vitória (que já foi buzzard) esvoaçando.

    Sinal, portanto, de chegada bem antes do apito inicial, e sem ter de encetar jornada duas horas antes para compensar percalços e engulhos. Ou seja, já calejado pela experiência anterior, mais lesto e em passo decidido me vi, e mais quem quis ver (que deve ter sido só os seguranças), assomar à tribuna de imprensa, não direi em apoteose, mas já munido do corriqueiro e usual, mas mesmo assim aconchegante, lanchezinho para recuperar as energias derretidas nas escadarias. Não tive de descer para o ir buscar como há duas semanas, que me esquecera de pedir a senha.

    Mas nem me estava muito a lembrar de experiências deste jaez; nesta minha novel e nobre função de cronista da bola tenho ainda muito a aprender, a saber: trazer um casaquinho a partir de Setembro, que aqui na Varanda da Luz, ventando, já faz um fresquinho incómodo…

    (entretanto, começa o jogo; podem ver a concorrência para conhecerem as formações iniciais das equipas…)

    Na verdade, falava mais na “bagagem” que trouxe, na mochila, para tema a propósito, ou ter um tema de propósito: sendo a peleja contra Vitória Sport Clube, achei que poderia haver algum alinhamento favorável, não sei bem a quê, se trouxesse o livro saído do prelo e dado sogrinha mesmo à estampa pela Kathartika, uma editora de Guimarães, sobre um certo espanhol do mundo de futebol vítima de alopecia totalis.

    (ai, ai, ai, ai, que o Vitória quase marcava… bola ao poste; estivesse o Vlachodimos na baliza e com o azar do grego seria golo, e o Roger Schmidt culpá-lo-ia da abébia do defesa benfiquista… e às tantas ainda era golo.

    Entretanto, como não posso estar a interromper a escrita em cada parágrafo, acrescento só agora que, minutos atrás, o Di Maria quis fazer um chapéu ao Bruno Varela, mais outro antigo guarda-redes do Benfica algo maltratado, mas saiu-lhe copa baixa).

    Retomando a meada ao fio. Não, não estou a falar do famigerado ou facinoroso Luis Rubiales, mas sim do mais comedido e discreto Roberto Martínez, o agora seleccionador português de quem sei muito pouco, ou quase nada, a não ser que fora um mediano médio do Wigan, e de outros clubes secundários das Terras de Sua Majestade, antes de enveredar pela carreira de treinador da Bélgica, e nos ter eliminado no Europeu de 2020, que afinal foi no ano seguinte. Enfim, estranho mundo da Ludopédia, onde se contratam os generais que outrora nos derrotaram os sonhos…   

    (Goloooo… caraças, grande trivela do Di Maria, e excelente cabeçada de Jorge Fernandes, cuja folha salarial ainda por cima não é assinada pelo Rui Costa mas sim pelo presidente do Vitória de Guimarães, que não sei quem é [fui ver: chama-se António Miguel Cardoso; eu desde o filósofo Pimenta “o que hoje é verdade, amanhã é mentira” Machado que pouco sei das lideranças vimaranenses)

    Tenho a insuspeita esperança de não ter tempo de dar uma leitura ou folheadela nesta biografia do espanhol, escrita por um jornalista belga (Benoit Delhauteur), mesmo se adianto que, por curiosidade, já vi que tem bonecos (fotos) e que termina na actualidade, porquanto fala no CR7, e garante já que Portugal está apurado e que, por isso, aparentemente o jogo da próxima na Eslováquia será a feijões. “Marquemos então encontro para assistir ao episódio seguinte da saga, na Alemanha, onde terá lugar o próximo Campeonato da Europa, em 2024” – esta é a derradeira frase…

    (tenho um feeling que não vou ter tempo, porque entretanto um [imprudente] golpe de artes marciais do João Mendes sobre o Otamendi, com o competente cartão vermelho subsequente, leva-me a pensar que isto hoje vai ser mais fácil do que as três vitórias do Vitória nas três primeiras jornadas do campeonato poderiam pressagiar)

    Até porque, na verdade, trazia aqui preparado um discurso sobre treinadores espanhóis que, no caso do Benfica, não trazem boas memórias: José António Camacho, que andou por aqui duas épocas há duas décadas, não conseguindo melhor do que o segundo lugar na Liga – o que para um benfiquista que se preze é um rotundo fracasso –, e Quique Flores, que, em 2008-2009, melhor não fez, com um triste terceiro lugar, apesar do então apoio da Orsi Fehér

    (olha, dito e feito: golo do Di Maria. Isto promete ser jogo fácil, até porque, enfim, mesmo em ritmo pouco intenso [isto sou eu aqui a dizer, refastelado numa cadeira], o Benfica está agora a jogar bem, com bom entrosamento [caramba, já escrevo futebolês à segunda crónica] e objectividade)

    Diga-se, também, que o Porto teve os “seus” espanhóis: estava aqui a pesquisar, na memória e na Internet, e apanho o Víctor Fernández, na época de 2004-2005, e sobretudo o Julen Lopetegui, entre 2014 e 2016, que deveria ter ficado mais anos para maior felicidade do Jorge Jesus aqui na Luz.

    Confesso que sou, porém, um optimista, porque, mesmo trazendo algum trabalho feito de casa e alinhavado umas ideias sobre aquilo que seria uma crónica sobre este jogo contra o Vitória, esta se mostra difícil de compor quando se tem de “tener un ojo al gato y otro al garabato” – expressão que melhor fica aqui, não só por andar em castelhanices, mas sobretudo por, desta sorte, evitar o uso do mais problemático “ter um olho no burro e outra no cigano” –, porque as “incidências” até estão a ser agradáveis, e pouco apetece tirar os olhos do relvado.

    (e nem de propósito, o turco Köckü faz um golo de “belo efeito” [estou a ficar lindo, com repetidos idiotismos futebolísticos] ao “fechar do pano” [irra!] já nos descontos, que agora são à meia dúzia, mesmo quando na primeira parte)

    Entretanto, o intervalo sempre serve para ir dando uma mirada no texto já escrito e para sacar incorrecções e gralhas, bem como para complementar um ou outro “apontamento”. E…

    (e… o Aursnes nem me dá tempo para escrever mais um parágrafo para compor melhor a estrutura da crónica, marcando o quarto para o Benfica logo a abrir o segundo tempo. Será hoje o mítico 15 a 0?)

    Isto hoje, de facto, vai ser uma crónica estranha – se é que seria suposto não ser –, o que agrava as expectativas para as seguintes, porque saindo-me mal nesta segunda da presente época, por não conseguir estancar o entusiasmo de lampião por uma noite agradável, acabo por hipotecar as seguintes, porque vou granjear ódios de leitores portistas, sportinguistas – e quiçá, vimaranenses, se forem muitos (acho que não) –, e não demonstro um pingo de equidistância e independência clubística. Ao cuidado da CCPJ e da ERC…

    Que seja! Ganho por 4, ganho por mil.

    Enfim, e logo eu que até estava a pensar, depois de falar mais do livro do Roberto Martínez – ainda por cima com a capa onde se destaca o vermelho e branco, apenas com o dito espanhol com parte da cabeça em perfil –, que ainda teria tempo para abordar a situação financeira do jornal desportivo A Bola, que tem jornalistas e o Sindicato em polvorosa por os novos donos, os suíços da Ringier Sports Media Group, quererem mandar dois terços da força de trabalho para o olho da rua.

    Pudera! A empresa de A Bola está em piores trabalhos do que o Vitória de Guimarães hoje na Luz, e nem sequer vê uma luz salvadora ao fundo do túnel. Pelo que vejo das contas do ano passado (e trouxe os papéis para cotejar o “desastre”), tem um capital próprio negativo de quase 1,7 milhões de euros, contabilizou receitas de 8,6 milhões de euros, e depois gastos de cerca de 3,6 milhões de euros para pessoal e um pouco mais de 3,9 milhões de euros em serviços externos, além de um serviço da dívida (devido ao elevado endividamento) que lhe “comeu” o parco valor positivo dos resultados operacionais. Tem ainda uma dívida ao Estado de 252 mil euros. Já vimos pior, não vimos, Luís Delgado? Já vimos pior, não vimos, Marco Galinha?

    A empresa de A Bola parece uma equipa de futebol português, com a diferença de que a administração de um clube de futebol não despede dois terços dos jogadores esperando que as receitas se mantenham e os lucros venham… Enfim, voltarei ao tema nas páginas normais do PÁGINA UM sobre a situação financeira das empresas de media.

    (depois do quarto golo, tudo mais calmo… vou agora descansar um pouco, e desfrutar da Varanda da Luz, enquanto termino o lanche)

    Entretanto, isto animou aqui para os lados da tribuna da imprensa, ao minuto 76, onde estou rodeado por radialistas, que agora confirmo serem garantidamente de Guimarães, porquanto um atabalhoado golo do Vitória acaba de ser celebrado com um entusiasmo semelhante ao relato de Victor Hugo Morales do “El Gol del Siglo”, com que Maradona sentenciou a vitória da Argentina no Mundial de 1986. Enfim, pena que o resultado já estava no 4 a 0; e 4 a 0 continuará, porque o Nélson da Luz (Luz, caramba!, os astros estão todos ao favor da Luz) meteu mão à bola. Valeu pela foto que tirei ao radialista, que até veste vermelho, e que não parecia tão empenhado a gritar golo quando foram os outros quatro do Benfica. E esses valeram…

    (e, passando o tempo, a acertar mais uns pormenores, um penalti a favor do Benfica; Di Maria já com a bola na mão para facturar o bis… e o VAR anula a decisão. Bolas: era uma mão-cheia hoje)

    Fica para a próxima. E por aqui me fico, que ainda se tem de fazer mais uns acertos e caçar gralhas – e eu nem tenho olhos de águia. E meter isto no site do PÁGINA UM ainda demora uns minutos, e se não me despacho ainda me apagam… a Luz.

    Ah! e a próxima crónica, se não me engano, será com o Futebol Clube do Porto… se me deixarem vir ou se me concederem a devida acreditação.

    As luzes vermelhas, entretanto, ainda continuam acesas, só vejo ali um companheiro em escritas, e eu tenho de regressar a casa para descansar, e estar também com quem desejo estar, que a vida não é só futebol… Digo eu, que não paro de escrever.