Categoria: Opinião

  • AR TV: a melhor plataforma para nosso divertimento… ou não

    AR TV: a melhor plataforma para nosso divertimento… ou não


    Quanto maior é a oferta de canais televisivos, menos televisão eu vejo. Não é por qualquer embirração em particular, apenas constato o facto. Uma das razões que me afasta da “caixa mágica” é a mediocridade reinante. Provavelmente, não temos pessoas em quantidade suficiente para encher tantos canais e tantas horas de emissão. Entre reality shows com debates vazios, programas da manhã com entrevistas inenarráveis ou as intermináveis horas de discussão futebolística, com participantes que não conseguem articular duas frases, dou por mim a fugir para outras plataformas, essencialmente pela vergonha alheia das doses cavalares de lixo que nos entram em casa todos os dias.

    Há no entanto um canal, que também tem alguns tesourinhos deprimentes, é verdade, mas que gosto de acompanhar para sentir o rumo que leva o país. A AR TV, pois claro, onde se assiste aos debates parlamentares ou às tão famosas comissões de inquérito. 

    Ontem, houve por lá um belo debate sobre política fiscal, que recomendo. É um exemplo clássico de como o nosso Parlamento serve para pouco mais do que preparar eleições, e conseguir, agora na era das redes sociais, 30 segundos de frases fortes para o resumo do jornal da noite ou das televisões/ páginas dos partidos no Facebook.

    O PSD agendou esta sessão, onde se discutiria a baixa de impostos, sabendo que faltam 15 dias para se iniciar as conversas em torno do próximo Orçamento do Estado, onde esse tema já seria central. É a hipótese do PSD aparecer numa notícia com o título: “PSD propõe baixa de IRS e apoio às famílias”.

    Não sei que séries vocês seguem no Netflix ou HBO, mas certamente poucas vos oferecem este nível de entretenimento que a AR TV proporciona. O argumento é fraquinho, admito, faz lembrar aqueles filmes da Jennifer Aniston que começam e acabam sempre da mesma maneira, mas pelo menos uma pessoa pode sair a meio, fazer um xixi ou até perder um episódio, sem deixar de perceber a história.

    O PSD fez de bonzinho e preocupado no episódio de ontem. É o herói que vive isolado na cabana em ruínas, numa floresta distante do Alasca, desde que perdeu a última eleição. Não fala com ninguém, não tem telefone, tudo o que recebe no correio são postais de um amigo distante de Boliqueime. Até que, certo dia, um antigo colega aparece, a meio de uma pescaria, para lhes pedir ajuda e, uma vez mais, salvarem o Mundo. Eles dizem que não, que desistiram da sociedade, mas depois percebem que há mais uma hora de filme para encher – e lá vão.

    Tiram o casaco de pele de urso, fazem a barba e apresentam-se na Assembleia da República com a proposta de baixar os impostos. Ora, aqui percebemos que o filme está na categoria de ficção. O PSD nunca baixou impostos quando governou e, mesmo na oposição, vota contra tudo o que são propostas de lei para alívio fiscal dos trabalhadores.   

    Mas como ninguém presta atenção ao que por ali se passou nos episódios anteriores, dá sempre para fazer três ou quatro telejornais a “lutar pelos portugueses”.

    Uma das minhas partes favoritas é quando os amigos do herói se chateiam e seguem caminhos diferentes. Parecem os Avengers. O Thor gosta de resolver tudo à martelada, o Iron Man prefere a tecnologia de ponta. O Hulk acha que o Thor bate pouco e tenta bater ainda mais.

    O Chega faz de Hulk. Não quer saber de pactos de regime ou das propostas em debate. Basta-lhes partir tudo e gritar alguns segundos para o destaque do José Rodrigues dos Santos. É aliás curioso reparar que na altura das intervenções, subiu ao palanque um daqueles rapazes do Chega que ninguém conhece, que discursou longa e penosamente, para mal dos meus ouvidos. Bom… confesso que meti aquela parte para a frente mas isso agora não importa. Pelo discurso usado, parecia estar no intervalo das corridas de táxi que lhe ocupavam o resto do dia. Contudo, na hora do telejornal, lá aparecem os 10 segundos de gritos do Ventura, o homem que aproveita cada episódio para “lutar contra o sistema”.

    Aparece o Tony Stark, interpretado pela Iniciativa Liberal (IL). Mais lavadinhos e engomados que os do Chega, com vocabulário mais cuidado, piadas topo de gama e escolaridade mínima obrigatória concluída. Ah, e mocassins. Gozam com todos e dizem: “bem-vindos à discussão da baixa de impostos que nós andamos a vender há três anos”. Verdade, verdade. Flat rate e dinheiro público transferido para hospitais e escolas privadas. O fim do Estado Social mesmo que não encontrem um país socialmente justo com flat rate, mas, enfim, quem é que se vai perder com detalhes? A IL achava que, mesmo para ficção, a tentativa do PSD pecava por escassa. O corte fiscal devia ser maior e davam exemplos de como os salários de 1.400 euros iriam ser pouco beneficiados. A tal parte da sociedade que eles defendem e os salários que 75% dos portugueses não têm.

    Mas é por isto que os episódios da AR TV são bons. Há alguma emoção, sim, mas as surpresas são mais contidas. Já se sabe o que esperar de cada personagem e isso cria aquela identificação com eles. Os Simpsons não estão no ar há 30 anos só por causa da música inicial, já todos sabemos quem arrota, quem estuda e quem faz asneiras.

    Reparem que chegámos ao fim do debate sem que a direita no Parlamento se tenha sequer conseguido coordenar no ataque à maioria socialista. E aqui vou escrever socialista com “”, isto é, com aspas.  Para quem viu aquilo, a mensagem é clara: o Governo é tenebroso, mas a oposição não existe. São um grupo de rapazes que, antes de mais, procuram garantir o seu emprego na política. Depois, procuram agradar os lobbies que os patrocinam. E, por fim, tentam marcar algumas diferenças no hemiciclo, dizendo um conjunto de banalidades, promessas vazias que, uma vez alcançado o poder, simplesmente não cumprem.

    O PSD teve maiorias numa altura em que o dinheiro caía do céu. O que fez o senhor Aníbal de Boliqueime? Creches? Desenvolvimento industrial ou tecnológico? Ensino universal? Aumentos do salário mínimo? Não. Andou a fazer negócios com a banca privada, a torrar fundos europeus em estradas e parcerias com os abutres que ainda hoje gravitam em torno do erário público. Criou mais impostos e, enquanto Espanha se ia desenvolvendo, nós íamos fazendo investimento público em construtoras.

    Luís Montenegro era o líder parlamentar do PSD aquando do Governo de Passos Coelho, que aumentou, novamente, os impostos sobre o trabalho. Hoje aparece aos gritos a pedir aquilo que nunca fez, na esperança de não desaparecer depois da travessia no deserto. O PSD é Governo numa região autónoma desde que me lembro, e se quer combater as injustiças fiscais, então pode começar por acabar com as offshores da Madeira. Não precisam de pedir a ninguém, é só usar a maioria e votar pelo fim da bandalheira.

    white rice on red tray

    António Costa, que também vai anunciado medidas consoante os gritos populares (agora é o apoio para o crédito à habitação, que espero dê em algo palpável), deve olhar para aquela pobreza franciscana do Parlamento com um enorme sorriso e um balde de pipocas digno de se ver.

    Pobres de nós, povo e contribuintes, quando não querendo o Costa, achamos que a solução pode vir de Ventura, Rocha ou Montenegro. É que não servem, sequer, para figurantes, daqueles que fazem coro lá atrás e mexem a cabeça, quando alguém fala aos jornalistas. Quanto mais para decidir a vida de 10 milhões de pessoas.   

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Lobo rouco, lobo louco

    Lobo rouco, lobo louco

    Os mantras entoam-se no horizonte, como uivos de lobo, e pouco mais nos sobra que agarrar o cestinho e continuar no caminho de cabeça baixa (não te desvies do caminho), segurar o corpo a tremer e manter o medo da floresta longe de nós (não te desvies do caminho).

    Quase todas as verdades que importam estão guardadas em histórias de crianças. Quase tudo o resto está construído em cima disso, com a diferença que uma criança ainda consegue levitar e um adulto é demasiado pesado para o fazer (demasiadas bolas de ferro nos tornozelos).

    Gray Timber Wolf

    Era uma vez.

    (_Estava na floresta um lobo a uivar, por trás duma giesta eu pus-me a
    escutar…_)

    Na História Interminável, um lobo negro é convocado pelo Nada para lhe permitir engolir a terra da Fantasia, obliterando a sua existência contra os esforços de uma criança guerreira e uma criança leitora (e
    durante anos eu tremia com a perspectiva de que o Lobo e o Nada estariam escondidos no piso de cima de casa, pois se o piso era escuro e como um nada, até eu chegar lá acima e acender a luz, certamente viveriam lá, esperando matreiramente para me devorar).

    No Capuchinho Vermelho, o lobo trapaceia até conseguir comer a avozinha e se travestir no seu pijama, de forma a ouvir melhor, a ver melhor e com a boca tão grande comer a indefesa menina.

    Nos Três Porquinhos, o lobo bufa a sua raiva contra as frágeis casas dos três irmãos, esfomeado, raivoso e determinado.

    No Pedro e o Lobo já vemos que, na verdade, o lobo é mais um instrumento, faz parte da composição, e com todos os outros sons conseguimos chegar a uma história, que acaba como tem sempre de terminar. Com um pato que talvez morra, e caçadores que talvez apareçam, pululantes, a terminar a opressão num grande estrondo.

    As histórias de crianças têm lá tudo ou quase tudo. Deixam os avisos que importam e condensam tudo em frasco de doce de conserva. Com princípio, meio e fim.

    A diferença é que, porventura, no frasco de doce o fim da opressão é um estrondo rápido e definitivo. Mas depois do Big Bang a geleia espalhou-se a alta velocidade em todas as direcções e nós não conseguimos ver o açúcar concentrado numa partícula compreensível. Apreensível.

    Por mais que almejemos pelo troar dos caçadores que nos vêm salvar, o mais seguro que devemos contar, é que o fugirmos do lobo ainda só acabou de começar.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Aborto: e que tal pensar em evitar que uma mulher pense nisso?

    Aborto: e que tal pensar em evitar que uma mulher pense nisso?

    Um recente relatório da Entidade Reguladora da Saúde diz que em 2022 realizaram-se 15.616 interrupções voluntárias da gravidez (IGV) em Portugal, um aumento de 15% face ao ano anterior. Soubemos também que, desde 2018, se fizeram 71.651 abortos.
    Perante estes dados, a primeira coisa que se ocorre na cabeça de certas pessoas é apelar ao alargamento do prazo legal para a prática de IGV, ou “repudiar” os profissionais de saúde objectores de consciência – esses malvados que se arrogam “juízes” morais e se recusam a realizar o procedimento.

    Começo por fazer um esclarecimento prévio: defendo a legalização do aborto, e discordo cabalmente de uma parte da direita que, por vezes, produz grande alarido em posições anti-aborto – e que se opõe até mesmo em casos de violação. Porém, também não concordo, e me parece até macabro, que certos grupos – não satisfeitos com o quadro de despenalização do aborto até às 10 semanas (já desde 2007) – façam deste assunto constante cavalo de batalha, e que, de quando em vez, se lembrem de azucrinar a opinião pública com mais reivindicações.

    a group of people holding up signs in front of the capitol building

    Esta obsessão persistente é sintomática e paradigmática não só de uma sociedade que julga apenas ter direitos, e poucos deveres, como do cerne do movimento feminista, que alardeia ter o bem-estar da mulher no topo das suas prioridades, mas que reduz as suas boas intenções a uma luta fetichista pelo “direito” ao aborto.  

    Uma vez legalmente garantida a possibilidade de recorrer à IGV, como sucede há vários anos, uma preocupação genuína com as mulheres deveria manifestar-se em redor da seguinte magna questão: o que pode a sociedade fazer para evitar que uma mulher sinta necessidade de recorrer ao aborto? Não (apenas) por eventuais questões morais ou religiosas, mas por se tratar de um procedimento doloroso a vários níveis e, a todos os títulos, obviamente indesejável.

    A resposta a esta questão passa indubitavelmente pela literacia, pela educação e pela contracepção, mas, deveria também passar por uma reflexão sobre os efeitos colaterais de uma cultura que promove uma sexualidade inconsequente e isenta de responsabilidades. Isto porque, nos últimos anos, estudos apontaram para uma correlação entre sexo casual e impactos negativos na saúde mental entre jovens adultos. Acresce ainda que este parece ser um problema maior para o sexo feminino, com as mulheres a apresentarem uma maior tendência para arrependimentos em encontros sexuais do que os homens.

    Man Holding Baby's-breath Flower in Front of Woman Standing Near Marble Wall

    Tendo em conta estes dados, seria lógico que, antes de colocarmos o aborto no centro da discussão – como o derradeiro recurso para prevenir uma gravidez indesejada – nos questionássemos antes sobre se a banalização da sexualidade não terá como consequência uma “sexualidade indesejada”. Seja na forma de uma vida sexual iniciada prematuramente, ou de comportamentos sexuais nocivos para a própria mulher.

    Por outro lado, num contexto em que cada vez mais mulheres se debatem com o desolador e deveras preocupante problema da infertilidade, e lutam pela possibilidade de engravidar e de levar a termo uma gravidez, não deixa de ser curioso que as brigadas “pró-escolha” não tenham, sobre este assunto, uma palavra de atenção. Ou, como temos visto em Portugal – perante os crescentes casos de mulheres que enfrentam dificuldades para terem os seus partos assegurados pelo Serviço Nacional de Saúde – , os efusivos activistas “pró-escolha” remetam-se ao silêncio.

    De facto, entre uma mulher que deseje abortar, e uma que deseje engravidar, apenas a batalha da primeira “faz as delícias” dos contestatários de serviço. Ao contrário do “direito” ao aborto, o “direito” à maternidade não parece, pois, constar sequer da lista de preocupações dos que se autoproclamam defensores da escolha, nem merecer qualquer resquício de indignação.

    woman wearing gold ring and pink dress

    Hoje, aliás, vemos celebridades internacionais (feministas) que se denominam, com regozijo, de serem child free, como se a escolha de não ter filhos fosse sinónimo de liberdade e empoderamento, e a maternidade não fosse mais do que um pesado fardo a suportar.

    Assim, é evidente que o movimento feminista “pró-escolha” tem, ao fim ao cabo, um inequívoco pendor anti-natalista. Quando o seu interesse na liberdade e no bem-estar das mulheres se resume a um intenso fervor pró-abortista, fica claro que as suas motivações se prendem menos com o superior interesse da mulher, e mais com uma vontade sinistra de assegurar que, paradoxalmente, se incorra em tantos comportamentos de risco quanto possível (instigando a promiscuidade e a irresponsabilidade) e, ao mesmo tempo, se possa, com o maior dos facilitismos, impedir um filho de nascer, invocando a autonomia sobre o próprio corpo.

    Maria Afonso Peixoto é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Gustavo Carona e os meus 31 crimes de difamação (a 5.651,61 euros, cada)

    Gustavo Carona e os meus 31 crimes de difamação (a 5.651,61 euros, cada)


    Durante a pandemia, tanto como o vírus, tivemos de suportar uma chusma de influencers sanitários que, da cátedra dos seus compromissos farmacêuticos ou dos egos de hipócrita bom samaritano, foram vituperando e exprobando todos aqueles que, enfim, consideravam que a gestão de uma pandemia não daria bom resultado com lockdowns restritivos, suspensões de diagnósticos e tratamentos clínicos de outras doenças, restrições anticonstitucionais ineficazes do ponto de vista da Saúde Pública e alarmismos assentados em falta de informação ou manipulação de dados por parte das autoridades governamentais, que se mantém.

    De entre esses, destacou-se um em especial: Gustavo Carona, médico anestesiologista – que se assumia como especialista em Medicina Intensiva, malgrado não estar assim inscrito na Ordem dos Médicos, única entidade que pode reconhecer títulos.

    Black Horse Running on Green Field Surrounded With Trees

    Escuso de rememorar exemplos deste “profeta da desgraça” – que me faz lembrar o bondoso fanatismo religioso fanatismo do Padre Gabriel Malagrida, que tive a oportunidade de retratar no meu romance O Profeta do Castigo Divino.

    Ao longo de mais de dois anos, enquanto era zurzido – e de que maneira – por muitos, também zurzi no Doutor Gustavo Carona, sobretudo no Facebook. Não contei quantas vezes escrevi, mas podem ver aqui. Certo é que ele, ou o advogado por ele, contou e vai daí tenho 31 acusações de outros tantos crimes de difamação.

    Pede o Doutor Gustavo Carona, por todo o sofrimento causado pelos meus escritos, que eu seja condenado a pagar-lhe também uma indemnização de 45.000 euros.

    No processo em que sou por ele acusado – e que seguirá de imediato para julgamento se eu não fizer pedido de abertura de instrução – consta vários casos em que lhe chamei mentiroso e outros adjectivos, para além de o apodar de Doutor Ful HD (acrónimo de Full Humanitarian Doctor, sendo que ele se assumia, usando o inglês, como Humanitarian Doctor), e de outras cómicas alcunhas: Braveheart de Leixões e Cónego Guca Stavorona.

    Pedi ao Midjourney para imaginar o Cónego Guca Stavorona na Inquisição Espanhola.

    Eu não sei o momento em que, nesta geração, se perdeu a capacidade de encaixe para uma linguagem mais viperina, mesmo que sustentada em factos. Mas já acho um absurdo que o Ministério Público concorde com acusações patéticas (no sentido de comiseração) que constituem meros escritos irónicos e sarcásticos às parições literárias do Doutor Gustavo Carona, como esta aqui, ou esta aqui, ou esta aqui, ou esta aqui, ou esta, e sobretudo esta.

    Neste último caso então – onde glosei em reacção a um “apelo” do Doutor Gustavo Carona, em Abril de 2021, a que houvesse “mais amor”, mesmo estando ele a ser supostamente “alvejado por lunáticos”, embora assumindo nada ver e nada ler –, não me importaria de ser “condenado” por difamação: é que, caramba!, neste dia estava mesmo literariamente inspirado.

    DA RECEITA PARA A PUREZA DO CÓNEGO GUCA STAVORONA (27/4/2021)

    Misture-se, primeiro, um parágrafo de dez linhas de presunção beata com uma dose q.b. de superioridade moral, porquanto um médico nunca mente, apenas porque é médico, e um não-médico não pode denunciar as mentiras de um médico apenas por jamais ter enfrentado o desafio de assistir “um doente 2 ou 3 ou 4 semanas ou mais, ventilado nos Cuidados Intensivos”.

    Acrescente-se mais um parágrafo, de igual quantidade de linhas, com ladainhas, ao estilo de um Cristo de ventilador às costas e coroa de ECMO na cabeça, para assim ressurgir em Lázaro pacifista de alvo manto ao peito e máscara FFP2 na fronha, que, perante as ofensivas lanças e as lancinantes ofensas, nunca terá raiva, pois nada vê, e pois nada lê.

    Subtraia-se, porém, dissimulado, que, se não viu, se não leu e se não se enraiveceu, houve então alguém, por ele, avejão por certo, que viu, que leu e que reparou na mentira, e correu a consertar. E só não emendou segunda vez porque, embora a primeira corrigenda somente reentortou o que não nascera direito, já lhe pareceu mal dar depois tanto nas vistas.

    Junte-se, em seguida, e com a delicadeza abençoada de um Pedro Hispano, dez canadas de lamentos pelas atrozes perseguições perpetradas por lunáticos marcianos, terapeutas do reiki da vila da Pocariça, alienígenas de sete dedos, mestres tântricos de Alhos Vedros, hereges de cinco patas, bruxas de vassouras da Vileda, coachs neurolinguísticos de Ouagadougou, tatuadores escanzelados de Rilhafoles e, last but not the least, serôdios de caves do Bairro Alto com a mania de investigar e apanhar aldrabices de médicos humanitários.

    Polvilhe-se, por fim, tudo, com mil perdões aos sandeus, muito amor, e muitos livros para choramingar pedras da calçada. Ah! E não se esqueçam: “Mais amor”.

    Sirva-se abundantemente. A pureza resplandecerá! Milagre!

  • O PÁGINA UM foi à bola… e conta como foi

    O PÁGINA UM foi à bola… e conta como foi


    Por um dia, pelo menos por um dia (vamos ver se não me habituo mal) vale bem a pena ser jornalista desportivo, sabendo-se que, para minha felicidade, sou o director do periódico para onde trabalho (PÁGINA UM), e não me impus nenhum planeamento nem horário de publicação.

    Ademais, sabendo não ser o futebol o nosso core business – por muitas caneladas que ande a apanhar, por muitos golos que marque nas balizas adversárias, por muito que seja o entusiasmo das minhas hostes (leia-se leitores) para enfrentar manobras de bastidores e golpes de secretaria. Tudo isto com um único doping: os apoios dos leitores.

    Enfim, primeira vantagem de se ser jornalista desportivo: não tive de ir apanhar filas nem acordar pela manhã da terça-feira da passada semana para tentar, como sócio, comprar um bilhete no site do clube. Para felicidade, tive a ideia de escrever uma crónica em pleno Estádio da Luz, solicitando acreditação, fazendo assim “passar” por jornalista desportivo – sonho de criança apanhado quando, pela rádio, ouvia os relatos de Artur Agostinho e Ribeiro Cristóvão, para assim imaginar como teriam sido os golos antes de ver, muito mais tarde, os resumos na televisão sob a batuta do Mário Zambujal.

    (onde já vão os tempos do Artur Agostinho, do Ribeiro Cristóvão e do Mário Zambujal [e já agora do saudoso Rui Tovar, que tem um filho que agora ainda é mais refinado no saber, e também do inigualável Gabriel Alves… estou a ficar velho]… ah, e se a memória não me falha, o sonho de relatador desvaneceu-se no tempo das rádios piratas, após testar os meus dotes: um desastre – nunca fixo bem nomes, a voz nunca se mostrou muito sincronizada para as ondas hertzianas radiofónicas e a eloquência ritmada, por força da juvenil timidez, também não serviu de alento)

    Corrijo-me (que não é apenas o António Costa a corrigir-se): é errado, e até deontologicamente censurável, eu dizer que me fiz passar por jornalista desportivo, pois pode soar a (des)qualificativo. Todo o cuidado é pouco, e declaro aqui haver somente dois tipos de jornalistas – os bons e os maus. Além disso, não quero aqui usurpar funções nem escrever nada que possa ser interpretado como depreciativo, e vai daí lá tenho o senhor juiz da ERC a chatear-me, a senhora jurista “de mérito” da CCPJ a azucrinar-me e os anónimos senhores do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas a quererem tramar-me.

    (entretanto, Gonçalo Ramos marca aos 7 minutos, de cabeça, ao segundo poste, num cruzamento clássico de Bah pela direita. Euforia nas bancadas. Não sei se ainda cheguei a levantar o braço esquerdo, como acto involuntário (deontologia obligé); talvez não: estava a escrever esta crónica)

    Enfim, recebida a acreditação, o habitual: apanhar metro na Baixa-Chiado, com as escadas habitualmente avariadas (incrível como a administração do Metropolitano de Lisboa insiste, qualquer que seja a equipa, pensa que nos convence das suas capacidades de gestão de um meio de transporte quando nem o raio de umas escadas rolantes mete a rolar sem interrupções constantes), e sair no Alto dos Moinhos. Um mar de gente – soa a lugar-comum, bem sei. Muito vermelho, como convém e se esperava. Até aqui nada surpreendente para um adepto – pouco assíduo desde os tempos de pandemia.

    Apesar da turba encarnada, mas ordeira por serem do mesmo “rebanho” (que o Estádio da Luz costuma ser um bom redil, este é dos bons, apesar de por cá já terem passado pessoas que bem mereciam estar atrás de grades), atravessar a ponte de acesso ao recinto, através do Alto do Moinhos, deu logo para perceber que seria dramático que houvesse uma surpresa: a derrota do Benfica contra o último (e já condenado à despromoção), o Santa Clara, que também anda de águia no emblema. Alguém perguntar a um daqueles vestidos a rigor (eu não estive assim) se temia alguma surpresa seria, para um jornalista, acto tão ridiculamente idiota como questionar um desafortunado sobre o que sente depois de um tsunami lhe levar a casa.

    Acreditação recolhida, o rookie do jornalismo desportivo andou um pouco às aranhas, e teve de perguntar a um assistente por onde raio andava o elevador para subir do piso -2 para o terceiro na porta 30. Pior ainda quando, já no piso correcto de acesso à bancada central, um steward lhe entrega uma senha de refeição para ir levantar, que a fome pode apertar. Quer dizer, para sacar um pequeno farnel. Não sabia eu que havia e que se recolhia no bar.

    O melhor, nestas coisas, quando se é rookie é ser uma “Maria vai com as outras”: segue-se um tipo com uma acreditação de jornalista e faz-se o que ele faz. Enfim, foi assim que aprendi a ser jornalista nos anos 90, vindo de um curso, Engenharia, onde se fica com a fama, e amiúde o proveito, de escrever mal. Da próxima já sei como se faz e até ajudo quem não saiba.

    Mesmo depois disto, não soube ao certo ainda onde era a tribuna da imprensa. Quem tem boca chega a Roma, e lá cheguei, às tribunas, não a Roma, quase ao nível do Terceiro Anel do antigo estádio, mas neste, mesmo no topo, fica-se com uma visão fenomenal.

    Ainda bem que vim cedo. Aconcheguei-me numa das vastas mesas corridas, muito espaço, puxei computador, e o lanchezinho, a saber: um Compal de laranja do Algarve, uma maçã, uma barrinha de cereais e uma baguete de cereais com paio, queijo cheddar e espinafres; nada mau, embora fosse preferível uma cerveja preta e uns tremoços ali no Café da D. Lina.

    (aos 28 minutos, Rafa marca, em contra-ataque, com a sua habitual mas eficaz sorte; o remate ressalta num defesa; se assim não fosse o guarda-redes do Santa Clara apanharia a bola, pois o chuto saiu atabalhoado).

    Enquanto escrevo a crónica – ou o que se quiser chamar a isto que vos apresento –, fico a pensar que, se calhar, ser jornalista desportivo somente será interessante para quem, na verdade, não o é. Ponho-me aqui a cogitar, em simultâneo a um jogo que ali em baixo decorre molemente, que, de facto, se me enviassem aqui para escrever mesmo sobre as incidências do jogo, eu estava feito. Não conheço nem um dos jogadores do Santa Clara. Não sei sequer o nome do guarda-redes (agora já sei, chama-se Gabriel Batista, brasileiro de 24 anos, fui ali ao site do Record), e além disso, daqui de onde escrevinho, por força (ou impedimento; não no sentido de fora-de-jogo do português do Brasil) da minha miopia e astigmatismo, tenho até dificuldades de reconhecer os números das camisolas dos jogadores.

    (Um relato de futebol feito por um míope arrisca a ser uma ficção… Lá teria eu a CCPJ, a ERC e o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas à perna, ou a morderem-me as canelas)

    Além de todas estas lacunas, físicas e talvez de outra índole, não tenho conhecimentos suficientes da Ciência Ludopédica para dissertar sobre os esquemas tácticos do Roger Schmidt, e já é uma sorte saber pronunciar o nome do Odisseas Vlachodimos (porque já está por aqui há uns anos, embora ainda não saiba falar português, porque parece que, para ele, o português é pior do que grego), e nem sequer sei muito bem soletrar a nominata do Aursnes, compatriota do secretário-geral da NATO, quanto mais opinar sobre a sua polivalência.

    (entretanto, a primeira parte terminou, seguiu-se o intervalo, e já o Grimaldo marcou o seu penalti aos 60 minutos, depois do VAR assinalar mão na bola de um jogador do Santa Clara, não me perguntem quem, pois teria de ir ver. Aviso já que vi o penalti ser concretizado seis segundos antes de vocês verem a bola entrar na baliza, pela televisão; vantagens de se estar no estádio)

    Na segunda parte, não se joga nem nada se vê de bola; só se faz festa rija, com petardos, luzes e cânticos. Talvez desde o primeiro golo do Gonçalo Ramos se sente um clima de festa, eliminados em definitivo os fantasmas que sobrevoaram um campeonato que pareceu, em certa fase da época, um passeio, mas que teve ali umas jornadas em que se andou a chamar pelo tio…

    Na tribuna da imprensa, tudo calmo. Não conheço ninguém, a bem dizer. Há uns que serão de rádio – embora as transmissões e relatos sejam feitas noutro nível. Outros da imprensa, mas alguns não estão a escrever nada. Sinto-me, a bem dizer, um ET, o que acho a melhor forma de se ser jornalista, porque me foco apenas na observação.

    (última substituição, com a entrada de Samuel Soares, um jovem guarda-redes negro de 20 anos; pelas ovações que recebeu, e sempre que tocou na bola, espera-se que seja mais acarinhado do que Neno e sobretudo Bruno Varela)

    Apito final.

    Canta-se e dança-se ao ritmo de música techno, enquanto, em baixo, jogadores, equipa técnica e dirigentes celebram. Posso garantir-vos que a estrutura do Estádio da Luz foi bem pensada, e feita para aguentar um terramoto: abana mas não cai. E “o campeão voltou”, grita-se em uníssono.

    Mais de meia hora depois do apito final, poucos arredaram os pés das bancadas, aguardando ainda pelo regresso dos jogadores para mais festejos. Já passam das 21 horas e prepara-se o relvado para nova recepção depois do banho tomado.

    Estiveram aqui, segundo informações do speaker, 64.012 pessoas. Não sei se contaram comigo; talvez não, porque não sou adepto, porque supostamente estou aqui como jornalista imparcial e independente, bastando-me o disclaimer.

    (se calhar, para demonstrar verdadeira independência, teria de ter conhecimento de algum escândalo do Benfica para depois noticiar… assim é que se prova a independência; não é com declarações e bateres no peito)

    Depois de tudo isto, segue-se o Marquês de Pombal, onde a Feira do Livro teve, enfim, de fechar portas mais cedo por causa dos festejos dos benfiquistas.

    (estou agora a recordar que, em 2010, tive de adiar o lançamento do meu romance “Corja Maldita”, por razões ponderosas: o Benfica jogava o seu derradeiro jogo também no Estádio da Luz contra o Rio Ave; de quando em vez, a Cultura pode esperar, mas não demasiado).

    Por mim, bastou por agora a experiência. Fico-me por casa, a descansar e a divertir-me em família, enquanto também penso como ultimar uma reportagem sobre os meandros da promiscuidade entre a indústria farmacêutica, certas sociedades médicas (e médicos) e a imprensa.

    (às 20h34, o Rui Costa, presidente do Benfica, compromete-me a isenção, enviando-me o seguinte SMS: “Parabéns Pedro! Somos Campeões! Esta conquista é dos Sócios. Obrigado por fazeres parte desta grande família. Parabéns a todos nós! Viva o SL Benfica!”… Ó Rui, ó pá, não me lixes com estas intimidades… olha que já tenho os reguladores à perna por menos)

  • O layoff e o mito da Autoeuropa

    O layoff e o mito da Autoeuropa


    Um destes dias, podíamos começar a descascar a pele de “empresa-modelo” que a Autoeuropa anda a vestir há 30 anos. A conversa em torno do layoff fez-me lembrar a primeira vez que ouvi falar em “down days” como forma de compensar as baixas de produção e os reduzidos aumentos salariais. Aqueles plenários de trabalhadores realizados na cantina que tinha o melhor arroz-doce industrial alguma vez fabricado. Sim, a qualidade do arroz-doce é muito importante na negociação dos meus contratos de trabalho.

    Lembro-me de não ter ficado desagradado com a situação. Era temporário, mais dias de férias não soavam mal, e com vinte e poucos anos ainda havia o sonho de um dia o salário chegar a qualquer coisa que se visse. Era o meu primeiro emprego, não conhecia outra realidade.

    water dew on silver Volkswagen car emblem

    Hoje, quando leio as notícias sobre a Autoeuropa, reparo que os “down days” temporários ainda por lá andam duas décadas depois. O crescimento salarial ainda é uma miragem e, como boa parte das empresas portuguesas, a Autoeuropa baseia o seu lucro em mão-de-obra qualificada e mal paga. Ou como se dizia por lá: “se não fosse para explorar, todas as fábricas do grupo seriam na Alemanha”. 

    É assim que funciona o estilo de vida a que chamamos capitalismo. Produz-se em zonas onde a mão de obra é barata para se vender no Mundo pela maior margem de lucro possível.    

    Este ciclo deixa de funcionar se o país produtor evoluir e a mão-de-obra deixar de ser barata. No final do século passado, a cadeia de produção concentrava-se no leste europeu e na Península Ibérica, por serem essas as zonas mais pobres. Com o crescimento dos salários um pouco por toda a Europa, vimos no século XXI a grande deslocação das fábricas para a Ásia, nomeadamente para a China. Mas também Vietname, Camboja e Laos, entre outros.

    stop signage

    Portugal é, ou devia ser, um caso de estudo neste campo, porque, enquanto boa parte da Europa deixou de ser atrativa para o capital, Portugal conseguiu manter-se ao longo de décadas como um país de mão-de-obra qualificada e baixos salários. O único exemplo que a “empresa-modelo” da Autoeuropa nos dá é o de mostrar como, continuamente, consegue manter os salários baixos e os lucros altos. Isto enquanto vai recebendo apoios fenomenais dos governos portugueses para nos fazerem o favor de continuar por cá. De facto, são um exemplo, mas nem por isso bom.

    Por estes dias discute-se de que forma os trabalhadores e os impostos de todos devem uma vez mais ir em auxílio da Autoeuropa.

    A história é relativamente simples de perceber. Um fornecedor de uma peça do motor, situado na Eslovénia, viu a sua produção e respectivo fornecimento à Autoeuropa serem interrompidos depois das graves cheias que afectaram o país. A Autoeuropa foi obrigada a parar a linha de montagem e mandar os trabalhadores para casa. É aqui que começa o busílis. Como de costume num sistema capitalista, os lucros são divididos por accionistas e as migalhas ficam para os trabalhadores. Mas no momento de dividir o prejuízo, a fatia já deve ser dividida por quem vende a mão de obra e, sempre que possível, pelos governos locais. 

    white and blue stop sign

    Para compensar as perdas originadas pela paragem da linha de montagem, a Autoeuropa usou a ferramenta legal do layoff, ou seja, um apoio público para comparticipar os salários dos seus trabalhadores. Ao mesmo tempo, despediu alguns temporários provando a razão pela qual as empresas gostam deste tipo de contratação. Em momentos de aperto não há direitos sociais que segurem estes trabalhadores. São despedidos com pouquíssimo tempo de aviso e passam a ser um problema da Segurança Social. Portanto, são precários durante anos com o luxo de poderem planear a vida ao sabor do mercado. Ou de catástrofes naturais no centro da Europa. 

    O layoff tem dois problemas logo à partida. Usam dinheiro público para cobrir prejuízos privados e não comparticipam os salários a 100%. Se bem se lembram, durante o regabofe dos confinamentos, várias empresas recorreram a este expediente, receberam as ajudas do Estado e depois despediram os trabalhadores na mesma. 

    Mariana Mortágua disse que o Governo devia comparticipar o layoff a 100% para não prejudicar ainda mais estes trabalhadores. Ora… é aqui que o problema reside, na minha opinião.

    O layoff, como está desenhado, não faz sequer sentido. Os trabalhadores não podem perder salário, isso parece-me óbvio. Especialmente, quando já estão a perder poder de compra por causa da inflação, mas não pode também ser o erário público a cobrir os erros de gestão privados.

    O grupo Volkswagen, a que pertence a Autoeuropa, foi em 2022 o terceiro mais rentável do Mundo. No primeiro trimestre do presente ano apresentou um lucro de 33 mil milhões de euros. Precisa uma empresa destas de usar a Segurança Social portuguesa para acomodar erros próprios de gestão? É culpa do contribuinte português que usem um sistema de logística com stocks pequenos para reduzir custos? Deve o operador de linha, que ganha pouco mais de 1000 euros, doar parte do seu salário para cobrir os prejuízos deste trimestre?

    Não. É exactamente nestas alturas que o tão apregoado mercado deve funcionar. A empresa deve assumir sozinha os riscos da sua gestão e cobrir as despesas. Não pode ser o contribuinte português a pagar e muito menos os trabalhadores da própria Autoeuropa, que já se sacrificam há anos para contribuir para os lucros fabulosos a troco de baixos salários.

    Os accionistas que ficam com a maior fatia do lucro, que dividam entre eles o prejuízo. Não é isso que defendem os amantes da modalidade? O Estado longe dos negócios, é o que nos dizem. Pelo menos até que chegue o momento de pagar os prejuízos.

    Outra coisa que esta crise nos explica é o perigo da contratação de temporários em alternativa aos efectivos, protegidos pelo contracto colectivo de trabalho. Num país com pouco emprego e baixíssimos salários, a contratação de precários é um cancro que não permite estabilidade ou sequer desenvolvimento profissional dos trabalhadores. São descartáveis a cada falha nos lucros, como se percebe.

    lego, toy, construction worker

    Uma coisa é trabalhar nesse regime em países desenvolvidos e com uma oferta de emprego, que permite que um temporário seja, na prática, um efectivo que vai mudando de empregador. É um regime laboral que conheço bem e que tem lógica em zonas de elevada produção e crescimento económico.

    Em Portugal, um país com escassez de emprego e cada vez menos produção, ser temporário é viver o dia-a-dia sem poder planear seja o que for. É como fazer uma pausa no desenvolvimento normal de um adulto e do que se imagina ser uma vida profissional e familiar, enquanto se reza ao São Pedro por chuvas fracas na Eslovénia. É no fundo, sobreviver, em vez de poder viver.

    Não há como uma boa crise para nos explicar que as empresas dependem dos seus trabalhadores e não o contrário. E é escusado repetirem a conversa do “vão-se embora como a Opel da Azambuja”. Se em todos os países pobres lhes disserem o mesmo, eventualmente chegará o dia em que a retribuição justa do trabalho acontecerá, à custa das margens de lucro e não do esforço de quem trabalha.

    A Autoeuropa é um mito. Não é exemplo, muito menos que se recomende, para ninguém.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A ERC a ser ERC: mais uma facada no jornalismo independente

    A ERC a ser ERC: mais uma facada no jornalismo independente


    Os (ainda) membros da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) estão, há quase um ano, para ser substituídos. São agora apenas três – Francisco Azevedo e Silva, Fátima Resende e João Pedro Figueiredo –, depois da resignação do então presidente, Sebastião Póvoas, e da morte de Mário Mesquita.

    Deviam estes membros, por decoro, sair airosamente, tão-só para se limpar os ares de uma instituição nascida por mor da Constituição da República Portuguesa para garantir a liberdade e a pluralidade da imprensa, e evitar ingerências ilegítimas na actividade jornalística.

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    Em menos de dois anos (após o meu regresso às lides jornalísticas), os conflitos criados pelos membros da ERC à acção do PÁGINA UM (e à minha, em particular), têm sido incontáveis, sobretudo desde que, em 21 de Julho do ano passado, pedi, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), “o acesso a cópia digital ou analógica de todos os requerimentos – desde 2017 até à data – das empresas de comunicação social” que tivessem solicitado “confidencialidade dos principais fluxos financeiros e identificação das pessoas singulares ou colectivas que representam mais de 10%  dos rendimentos totais e mais de 10% do montante total de passivos no balanço e dos passivos”, bem como a “análise e decisão para cada um dos referidos pedidos de confidencialidade”. Serão largas dezenas, se não centenas, pelo que me tenha vindo a aperceber dia após dia.

    O “impacte” deste pedido – que viria depois, por recusa tácita, a levar a uma intimação do PÁGINA UM no Tribunal Administrativo de Lisboa –, a par de outras questões incómodas pedidas sobre a acção do regulador, foi quase imediato: em Agosto do ano passado, a pretexto de uma simples consulta de processos para trabalho jornalístico, os membros do Conselho Regulador criaram uma querela, que acabou por envolver até a PSP e um vergonhoso comunicado de imprensa para me difamar. Isto quando estava em causa apenas a legítima obtenção de documentos de técnicos e a captação de imagens fotográficas, conforme acabou por confirmar um parecer de Outubro do ano passado da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos.

    Entretanto, os membros do Conselho Regulador da ERC, como não lhe custam os honorários dos advogados que contratam, apresentaram mesmo, desde o ano passado, duas queixas por difamação contra mim, tendo depois desistido na fase de instrução. Foi uma pena.

    white ceramic toilet bowl

    Também fizeram os membros da ERC o favor de censurarem dois artigos do PÁGINA UM após queixas do presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia e do actual Chefe do Estado-Maior da Armada, almirante Gouveia e Melo. Curiosamente, ou talvez, não, ambos os artigos do PÁGINA UM espoletaram investigações da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS).

    No primeiro caso, a IGAS instaurou um processo de contra-ordenação ao presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia; quanto ao caso do almirante – que envolve o seu comportamento aquando da vacinação de médicos não-prioritários –, a investigação ainda decorre desde o início deste ano. Mas mesmo assim a ERC “condenou-me” alegando falta de rigor. Em curso, neste momento, está outra queixa contra mim, desta vez por obra do inenarrável pneumologista Filipe Froes, pelo “crime” de eu analisar os efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 na base de dados da Agência Europeia do Medicamento.

    Por fim, em Julho passado, no âmbito de um conjunto de deliberações da ERC sobre contratos promíscuos entre empresas de media e entidades públicas, envolvendo “jornalistas comerciais”, o Conselho Regulador da ERC decidiu pespegar nos documentos que a sua acção tinha sido por via de uma minha exposição, quando, na verdade, aquilo que se solicitara ao regulador, cerca de um ano antes, fora tão-só um “pedido de depoimentos e informações para notícia do PÁGINA UM”. Sobre isto, escrevi em Julho, um editorial apropriadamente intitulado “Ao pântano, a ERC adiciona a pulhice”. Talvez me valha mais um processo judicial, talvez mais outro que, depois de fazer ganhar mais uns cobres a advogados, me manda retirar.

    men's playing rugby

    E eis que, agora, em pleno mês de Setembro, e enquanto se agrada, enfim, a escolha do novo presidente da ERC – e a entrada em funções dos novos membros já escolhidos pelo Parlamento em Junho –, os doutores Francisco Azevedo e Silva, Fátima Resende e João Pedro Figueiredo voltam a fazer das suas.

    Não contentes em recusar uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, que os obrigara a conceder acesso aos processos relativos a pedidos de confidencialidade no Portal da Transparência – um contra-senso que promove o obscurantismo –, os ainda membros do Conselho Regulador decidem conceber uma deliberação que é uma vergonha pegada: dizem conceder deferimento parcial a um pedido da IURD, não expondo a fundamentação do pedido, nem identificando em concreto os dados nem tão-pouco a justificação da aceitação. O mais bafiento e bolorento comportamento à la Estado Novo. E pior, quando divulgam a deliberação, mais de duas semanas depois da sua aprovação mantêm todos os dados da IURD confidenciais.

    E para agravar o pivete do que já muito mal cheirava, estes dois senhores mais esta senhora tentaram descredibilizar uma notícia fatual do PÁGINA UM, fazendo alterações no Portal da Transparência à socapa, num sábado à noite, sem nada justificarem através de qualquer comunicado público ou através do seu site.

    person holding stainless steel fork and bread knife slicing grilled meat on white ceramic plate

    Bem sei qual a estratégia: limpando o “crime” – colocando, num sábado, aquilo que não existia na noite de sexta-feira –, sempre se poderia dizer que o PÁGINA UM, “esse jornal chato e já acusado de falta de rigor em duas deliberações da ERC”, tinha inventado tudo.

    Não inventou. E como tudo o que possa sair da cabeça dos ainda membros do Conselho Regulador da ERC me causa desconfiança, tive a feliz lucidez de gravar, em arquivo na internet, as provas do antes e do depois de uma alegada “sincronização”, que, em abono da verdade, se trata de uma manipulação.

    Enfim, estas três pessoas já simplesmente passaram do prazo. Já é de mais; e o que é demasiado, enjoa. Por isso, alguém responsável lhes conceda guia de marcha, o “merecido descanso”, e que se areje assim o ar, até porque, ainda acredito, a ERC pode desempenhar mesmo – e tem técnicos para isso – um papel fundamental para a moralização necessária na imprensa portuguesa. Os 50 anos da democracia, que se avizinham, mereciam.  

  • O ridículo mata

    O ridículo mata


    Um professor de História, nos meus tempos de Liceu, garantiu à sua turma de alunos que Winston Churchill teria afirmado que “Governo que não cai com um Golpe de Estado pode cair pelo ridículo”.

    Não consegui encontrar essa citação em mais lado nenhum, mas acredito que a frase tem lógica.

    Quando um governante, ou um chefe, toma uma atitude ridícula, seja para se promover seja para se justificar, consegue unicamente que se ponha em causa a sua sanidade mental.

    Por alguma razão os políticos actuais contratam assessores com a intenção de que estes os alertem para os riscos que alguns discursos, ou atitudes, possam causar.

    Ainda assim, somos confrontados, diariamente, com situações que nos fazem questionar o bom senso de alguns deles.

    Lembro as inúmeras intervenções dos líderes de todos os partidos da oposição ao Governo sobre o que consideravam ser, na altura, o único problema do País: o caso Galamba!

    Com a ânsia de abrir brechas no Governo, de o enfraquecer, de o derrubar, esmiuçaram uma parvoíce passada no gabinete daquele Ministro.

    Conscientes do baixo nível cultural e político de muitos portugueses apelaram ao populismo e ao ódio para os tentarem arregimentar.

    Semanas seguidas a discutirem todas as nuances de um caso de polícia, como se este fosse o grande problema da Nação.

    white and brown hallway with white columns

    Não devem ter parado um minuto para pensar que, por muito que as suas críticas tivessem algum fundamento, o tom dos seus discursos e a repetição, até à náusea, dos mesmos, fariam com que um cidadão, que vai às cinco da manhã para uma fila num qualquer Posto Médico, na ânsia de conseguir uma consulta, fique com vontade de atirar com o rádio portátil que levou para o ajudar a passar aquelas horas, às trombas do primeiro político que com ele se cruzasse, mesmo que fosse o secretário da sua Junta de Freguesia.

    Meses depois de António Costa decidir não aceitar a demissão que o Ministro lhe pediu (até este, farto de todo aquele Carnaval), confrontando o próprio Presidente da República, mostrando quem era ele, o líder do Governo, quem fala em Galamba que continua no seu posto?

    Este caso serviu de exemplo?

    Nada!

    Os políticos continuam, diariamente, a debitar conselhos, promessas, ameaças, a um Governo que não lhes dá qualquer atenção porque sabe que o Povo já não pode ouvir Montenegro, Mortágua e aqueles novos líderes, do Partido Comunista e da Iniciativa Liberal, cujo nome ninguém conhece.

    Gente que vai cair pelo ridículo.

    O Presidente está seguro no seu lugar. Unicamente porque essa é a regra.

    Mas são tantas as situações caricatas em que tem sido protagonista que o seu capital político acabou por se desvanecer e, hoje, os portugueses olham-no com um misto de desconforto e tristeza.

    Ver o seu modo de cumprimentar as diversas personalidades com quem tem de se cruzar, com um aperto de mão seguido de um movimento de tal modo brusco que lhes provoca desequilíbrio, ouvi-lo a dar opiniões sobre tudo e sobre todos, em qualquer lugar e em todas as circunstâncias, é deprimente.

    Recordar a sua presença, constante e forçada, ao lado do Papa Francisco, não percebendo o desconforto que isso provocava, é angustiante.

    Não há dia em que não fale demais ou não tenha uma atitude deselegante.

    E ainda faltam uns largos meses para a sua rendição, pelo que o nível de ridículo pode vir a atingir proporções alarmantes.

    Na linha do seu antecessor que, agora, conseguiu bater todos os recordes do caricato com a ideia de publicar um livro sobre “A Arte de Governar”!

    Decisão terrível e que pode abrir a porta a outros portugueses com ambições idênticas.

    Imagino a Maria Leal a escrever um livro sobre “A Arte de Cantar” ou o Jorge Jesus um outro, sobre “A Arte da Eloquência”!

    Os exemplos da falta de noção dos perigos de cair no burlesco são inúmeros e continuam a surgir em catadupa.

    O actual Primeiro-Ministro promete ajudar os estudantes a optarem por Portugal, em vez de emigrarem à procura de melhor vida, acenando-lhes com o prémio de quatro viagens na CP (ainda se a promessa fosse só para os que reprovam, e como castigo…)!

    O líder da Oposição jura que, se for eleito, baixará drasticamente os impostos. Terrível ameaça para quem se lembra de Passos Coelho.

    O comentador Marques Mendes promete que se irá candidatar ao lugar de “Mais Alto Magistrado da Nação” sem que um único amigo lhe chame a atenção para a risota que vai pelo país.

    Que Deus me ajude.

    Se tiver que morrer pobre, que seja.

    Mas que não deixe que eu perca o juízo ao ponto de fazer destas figuras. 

    Vítor Ilharco é assessor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os senhorios também gostam da inflação

    Os senhorios também gostam da inflação


    Quando tratamos os senhorios como um todo – uma espécie de perigosos especuladores –, corremos o risco habitual das generalizações. Em princípio, vamos misturar o trigo com o joio, e do mesmo saco tiramos o ganancioso capitalista e o gajo que foi viver para outro país e deixou a casa alugada por um preço decente.

    Devo dizer, para início de conversa, que o argumento de que “cada um mete o preço que quer na sua propriedade”, é algo que me irrita particularmente. Quando a liberdade se confunde com o puro bom senso e toma lugar a procura do lucro fácil à custa da miséria alheia, eu acho muito bem que o Governo tome medidas para beneficiar os mais desprotegidos.

    Colorful Buildings in City Downtown

    Dou-vos dois exemplos que ilustram o que pretendo dizer.

    Se uma pessoa contrai um empréstimo bancário para compra de casa e, passados uns tempos, vai trabalhar para outro país, acho perfeitamente lógico que a alugue por um preço que cubra a prestação ao banco e as despesas inerentes. O mesmo é dizer que se a Lagarde passar os juros para o triplo, também é normal que essa carga acabe no inquilino, uma vez que é ele que lá vive. O senhorio nesse caso continua apenas a cobrir as despesas e os aumentos a que é alheio. Não há qualquer busca  pelo lucro fácil. 

    Já se um apartamento nos cair no colo, por herança ou qualquer outra razão, e o resolvermos alugar, praticamente toda a receita é lucro. Neste caso, admito, já tenho mais algum dificuldade com conversas de inflação e juros que pouco ou nada afectam as despesas da casa. Claro que podemos sempre dizer que cada um pede o que quer e só aceita quem quer. É verdade. Mas não é propriamente um bom princípio de convivência social e muito menos um caminho com grande futuro.

    Se num país com falta de habitação – embora existam mais casas do que pessoas –, especialmente a preços que os baixos salários possam suportar, deixarmos o preço do arrendamento ser decidido, apenas, por quem procura uma mina de ouro no meio do empobrecimento geral, em princípio não vamos muito longe.

    man in yellow shirt and blue denim jeans jumping on brown wooden railings under blue and

    Reparem que nada disto é muito difícil de perceber. Provar as despesas que se tem com uma casa, começando pelo crédito à habitação, é relativamente simples. Portanto, não é uma equação impossível perceber quem é que lucra muito com a especulação imobiliária. 

    Dito isto, o tecto de 2% imposto pelo Governo para o aumento das rendas é mais uma daquelas medidas do governo do PS que servem para muito pouco. Darão eventualmente uma linha no próximo PowerPoint de programa eleitoral mas, para a vida dos inquilinos que sofrem para aguentar as casas, não trará grande protecção.

    Como explica a própria associação nacional de senhorios, num rasgo de inteligência a lembrar um chco-esperto de Alfama: “se o Governo anuncia um aumento máximo de 2% para daqui a não sei quanto tempo, os senhorios aumentam 30% já e ficam garantidos para os próximos anos”. E volta a meter o palito na boca para tirar os último fios do pastel de bacalhau ingerido no jantar do dia anterior.

    Há no entanto um argumento que é válido do lado desta malta. Segundo eles, se todos os outros sectores não são prejudicados pela inflação, leia-se, restaurantes, supermercados, bancos, etc., por que razão não podem os senhorios aumentar os preços de acordo com a inflação? Ou seja, se os outros mamam, por que não podemos nós também?

    A Person Holding a Mango Fruit

    Esta é uma argumentação que me lembra uma conversa, há uns meses, com um senhor que trabalha em jardinagem. Dizia ele: “se o carpinteiro, pintor e canalizador dobraram os preços, sou eu que vou cobrar o mesmo?” Na altura, disse-lhe que se os gastos dele eram exactamente os mesmos, tanto na mão de obra como nos materiais e não perdia dinheiro, qual era a necessidade de dificultar a vida aos clientes cujos salários, esses sim, estavam a perder poder de compra. Ao que ele respondeu, insistindo que, se o pintor podia, ele também.

    Ora o senhor da associacão nacional de senhorios segue este tipo de lógica, e eu percebo-o. Se os bancos ganharam um jackpot com a inflação nas prestacões das casas e o Costa não fez nada, tem agora que vir chatear a cabeca aos senhorios? Visto assim até os compreendo. Se a Lagarde aumenta os juros só porque lhe apetece, não pode o gajo que tem um T0 na Mouraria fazer o mesmo, agora que nenhum russo lhe quer comprar aquilo? Claro que pode. E se o Costa disser que só pode aumentar 2% com a inflacão nos 5%, ele adianta logo um simpático 28% ao inquilino e depois da guerra acabar, olha, paciência. Segue jogo e fica como está.

    Há uma regra na Suécia para casas compradas em regime de cooperativa que me agrada particularmente: ou vives lá ou então vendes. Se estiveres com um pé dentro e outro fora, podes alugar durante dois anos. Findo esse período, tens de decidir. Viver ou vender, não há cá lucro gerado para ninguém com filas enormes para conseguir casa. É a chamada optimização de recursos e o combate possível à especulação imobiliária.

    low angle photo of mirror glass building

    O problema do governo PS é que navega sem rumo há já tempo demasiado, tendo em conta o tempo que ainda falta para as eleições legislativas. Costa anuncia medidas em pacotes cheio de flores e intenções, mas com pouquíssima aplicação prática. Quando vamos a ver, somos um país de paus mandados da União Europeia. Se o Banco Central Europeu aumenta os juros, nós dizemos que sim e os bancos nacionais fazem o que bem entendem.

    O Governo não pensa, por exemplo, em devolver parte desses juros em sede de IRS. Se a Lagarde diz para não pagarmos prestações sociais, nós deixamos as pessoas sem nada. Se os supermercados aumentam os preços até ao limite do insuportável, resistimos a colocar tectos, porque isso é muito Venezuela. Os governos portugueses limitam-se a gerir apoios comunitários e pouco mais. Não conseguem ver para lá do próprio interesse e da próxima eleição.

    Enquanto vivemos este autêntico inferno – onde é suposto acomodarmos a ganância de toda a gente, desde bancos privados a senhorios que aproveitam a oportunidade, passando por cadeias de distribuição que agarraram este momento único –, aceitamos que a única coisa que fica absolutamente fixa, segura e imutável, é o salário. Esse, na melhor das hipóteses, ficou poucos pontos percentuais abaixo da inflação. Andam os sindicatos a fazer greves por todo o país por salários que já andam de braço dado com a Sérvia e a Moldávia.

    A cantina onde de vez em quando compro um iogurte, mudou o seu preço pelo menos três vezes nestes últimos meses. De 3 para 4,5 euros. Sempre, mas sempre, com a justificação da Ucrânia, quando o leite e tudo o que lá está dentro, é produzido aqui na cidade ou arredores. Um simples copo de vinho, num banal restaurante italiano, custa agora quase 8 euros. Também por causa da Ucrânia, essa famosa exportadora de vinho. 

    granola and yoghurt filled mason jar

    Há um conjunto de negócios que aproveitam, sem margem para dúvidas, esta oportunidade de lucrar como nunca.  Senhorios, pelo menos alguns, estão dentro do grupo de pessoas ou entidades que não querem ficar de fora desta autêntica lotaria. A perda do poder de compra dos trabalhadores é real, os salários pouco ou nada mexem, mas, no fim, temos que olhar em volta e aceitar que todo o resto do mundo precisa de vender o seu produto de acordo com a inflação. 

    António Costa, um político hábil, como se sabe, vem desde a pandemia a governar ao sabor do vento e sem um real plano de futuro. Tapa buracos com areia, em estradas ventosas. Pior do que percebermos onde estamos é não vermos grande alternativa. Imagine-se um Governo do PSD com liberais e extrema-direita, num período em que as pessoas precisam de ajuda como nunca.

    Resta-nos continuar a empobrecer e ir distribuindo o pouco que temos por bancos, supermercados e senhorios. Viver, pelo menos como a vida merece ser vivida, isso fica para a próxima geração.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A sociedade do espectáculo e a chata da ética

    A sociedade do espectáculo e a chata da ética

    Se calhar temos mesmo circuitos diferentes, e alguns de nós têm os fios ligados num disjuntor, e não no outro.

    Porque uns de nós olham os spots publicitários da Guerra Fria na SIC Notícias, e vêem mestres de cerimónias, sequências de imagens orquestradas com brilhantismo de Hollywood.

    Mas outros vêem a guerra dos livros de História, a ameaça existencial, a propaganda como um mal necessário para manter a moral nas trincheiras.

    brown CRT TV

    Alguns de nós olham rodapés sobre como Portugal é campeão de concentração de glifosatos, e vêem um esquema de perseguição aos agricultores nas entrelinhas, um polvo monopolista que cresce e engorda a comer o pequeno produtor em resposta a uma agenda globalista, nada tem a ver com o ambiente, nada tem a ver com a saúde. São as mesmas pessoas que acharam boa ideia fabricar munições com urânio empobrecido, matem quem dispara e matem quem é alvejado.

    Outros vêem o apocalipse ambiental, por entre vídeos bombardeados sobre eventos climáticos extremos no mundo inteiro, a necessidade absoluta de sucumbirmos a nossa existência ao bem comum, seguirmos as regras e não questionarmos.

    Alguns de nós vêem máscaras como símbolos, agressões, malefícios à saúde, o reduto final e visível de como fomos todos burlados durante três longos e penosos anos. E alguns de nós até acham que, entre uma máscara e um suposto beijo não consentido, mil vezes o bater de lábios a festejar vitória, porque “o vírus foi derrotado”.

    Outros vêem a prova de que o planeta nos quer assassinar indiscriminadamente e o importante é cumprir as orientações das pessoas que sabem e querem o nosso bem. Entre a natureza de vírus com nomes de letras e números, como um asteróide, e o maldito patriarcado, o melhor… é ficar em casa.

    silhouette photography of person

    Uns vêem um bebé como a alegria que motiva a vida, pequeninas mãos que dormem em suaves espasmos de preguiça a enrolarem as moles mas afiadas unhas junto ao nosso pescoço. Vemos a encarnação de um breve momento. Vemos o sono e sentimos o alívio de quando o bebé se sente seguro e adormece profundamente. Se se sente seguro, quase conseguimos sentir o mesmo. Ou pelo menos o alento de manter o ambiente seguro em volta. Vemos todos os momentos seguintes de uma vida inteira. E vemos o único amor que importa.

    Mas há outros que vêem mera carne. Pratinho de experiências. Não é vida, é biologia. Não é biologia, é laboratório. Não é laboratório, é edifício. E um edifício pode ter pessoas lá dentro vestidas com umas batas brancas todas iguais e óculos e luvas e essas coisas. E ai de quem atente ao progresso das batas brancas!

    Ai de quem levante o fantasma bolorento da ética!

    woman standing in front of the digital machine

    Qual ética, na era em que pessoas se injectam com o que lhes mandam injectar? Qual ética, na era em que as pessoas são presas se lhes dizem para o fazer? Qual ética, se abdicam do seu rosto em nome de uma farsa? Qual ética, se os senhores que mandam, de bata branca e fato e gravata, estão no pináculo da sobranceria moral, se eles tudo sabem e sabem melhor e são melhores do que nós e todos os outros?

    Alguns de nós olham, enfim, moinhos, mesmo deixando o cavalo parar para beber água.

    E outros, talvez, vêem gigantes, vestem uma armadura e preparam-se para cavalgar de frente contra um edifício.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.