É preciso reconhecer que a demagogia governamental e as suas capacidades em aldrabar a realidade se tornaram perversas e ilimitadas. Manuel Pizarro é um dos agentes da demagogia mais burilada. Há poucos dias afirmou que a crise da saúde se deve à melhoria do sistema que a política do Partido Socialista (PS) foi construindo.
De facto, esta enormidade contraria os relatórios todos. Os portugueses vivem muito, mas sem saúde. O número daqueles que perderam Medicina Familiar aumentou 30% com o PS. A falta de médicos de família afecta 61% da população de Lisboa. Os médicos dentistas têm também documentos onde se prova a medíocre saúde oral dos portugueses. Os psicólogos têm documentos que comprovam a crescente presença de depressão e ansiedade sobretudo em jovens. Manuel Pizarro mente e não se importa, pois para ele o lugar de Ministro é uma apoteose, um momento de êxtase.
Os médicos estão zangados porque não querem fazer mais horas extraordinárias. Alguém se pode opor a esta reivindicação? Cumprido o meu horário vem o patrão e manda fazer mais horas, pagas, mas acima do meu contrato. Só faz quem quer! A isso se chama trabalho extraordinário. Isto é básico e não carece de bitaites ou opiniões.
Os médicos detestam urgências, sobretudo. Sim porque se transformaram num caos graças à destruição do atendimento primário. Hoje, qualquer pessoa que sente uma maleita por mais pequena que seja só tem uma porta de entrada no Serviço Nacional de Saúde: a urgência.
Imagine que trabalha com fruta e entram no mercado 1.500 pessoas por dia. Ou na loja de roupa com ritmo natalício todos os dias. Não se aguenta psíquica nem fisicamente. E estamos a falar de Saúde, de decidir sobre prioridades em que o tema é vida e falta dela.
Sabia-se que os salários baixos acarretariam fugas dos técnicos para o privado. Sabia-se que estender prazos de atendimento na Medicina Familiar carregava as urgências. Sabia-se que reduzir o número dos que pagam taxas “facilitava” o acesso a urgências.
O PS retirou 6% de proventos do SNS ao acabar com as taxas, deu a informação errada que a Saúde é de graça e não tem limites. O SNS promoveu métodos de medicina defensiva que acarretam protocolos e normas que aumentaram os exames complementares e as incertezas dos profissionais para dar altas.
Não se construíram mecanismos de encaminhamento nem de resposta atempada. Não se promoveu a tecnologia como solução para consultas online. Os computadores hospitalares e a maioria dos programas lá instalados são dinossauros inadaptáveis à Inteligência Artificial.
Deste modo, as Urgências converteram-se na voragem caótica onde se espera e desespera. No final, acabam por cumprir a sua função à custa da exaustão dos funcionários. Um auxiliar com salário mínimo é um recurso que não aumentou nos hospitais. A higiene em outsourcing não é chamada a aumentar a resposta à afluência. O número de camas por metro quadrado não permite retirar os doentes das ambulâncias.
Mas este caos tem alguma coisa a ver com exclusividade? Esta falta de apoio aos médicos e enfermeiros melhora com a alteração do vínculo de trabalho? Claro que não!
A demagogia culpabilizadora atacou a greve dos enfermeiros e silenciou a inédita greve dos farmacêuticos hospitalares. Agora vêm com inúmeras mentiras contra os médicos. Os biltres que o PS tem nas redes sociais a denegrir a cidadania, e a apoucar a opinião contrária, são mestres na ofensa e na propagação de injúrias.
Os médicos estão em luta porque o sistema rebentou pela incúria, incapacidade de previsão, ausência de antecipação aos problemas, falta de soluções credíveis e sobretudo os inúmeros tiros nos pés que estiveram em roda livre.
Retrato do Midjourney imaginando um hospital caótico em Portugal.
O fim das PPP foi uma catástrofe para Loures, Vila Franca de Xira e Braga. Os centros hospitalares reduziram camas, aumentaram listas de espera, afastaram dos cuidados milhares de doentes. A aposta nos cuidados continuados é uma das grandes falácias que empurra os doentes para unidades onde não há qualquer tratamento de situações agudas, retirando o cuidar das famílias, transferindo para “lares caros” internamentos eternos e nas mãos de negócios, esgotando recursos válidos do lugar onde deviam estar.
Continuarei na próxima semana…
Diogo Cabrita é médico
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Quem tem princípios, por se conhecer as suas previsíveis linhas de conduta, geralmente não necessita de proclamar promessas públicas – excepto talvez os políticos, mas esses, sabemos, têm princípios volúveis, como glosou Groucho Marx, no século passado. Mas, tendo eu princípios, e não sendo político, confesso que faço auto-compromissos, não por uma razão de estratégia ou de receio de algo, mas numa base exclusivamente de empatia.
Isto para dizer que, nos últimos meses, deixei de me preocupar com os seus ditos, os seus escritos e o seu folclore nas redes sociais e na coluna do Público, onde os seus pergaminhos de anestesiologista do Hospital Pedro Hispano, a par de umas louváveis campanhas de medicina em terras de guerra, o fizeram convencer que poderia tornar-se o arauto da desgraça e o inquisidor dos “desinformadores”, tudo isto numa linha de auto-beatificação como “Humanitarian Doctor” que já vinha antes de 2020. Eu sei, enfim, num momento criativo (lembre-se que sou também escritor, mas acho até, enfim, de obras de jeito), ajudei à sua fama, quando o rotulei, para a posteridade, de Doutor Full HD, o que nunca me pareceu desadequado, mesmo se jocoso.
Enfim, ao longo dos anos de pandemia (2020-2022), devo ter escrito sobre as suas diatribes umas três dezenas de vezes – e sei disto porque, entretanto meteu-me um processo judicial, sobre o qual decidi não pedir abertura de instrução porque o tribunal parece-me o local adequado para tratarmos destes assuntos.
Aviso já que não o escolhi por uma questão pessoal, nunca sequer me cruzei consigo, mas sim pragmática, por vê-lo como um digno representante daquilo que pior se pode ter num médico ou de alguém que usa a Ciência para salvar vidas, mesmo na hipótese académica de estar bem-intencionado (o Inferno está cheio de bem-aventurados): a promoção do alarmismo, o incitamento à intolerância, a eliminação do debate, a recusa de novas abordagens terapêuticas (como se a Medicina fosse ciência exacta) e a adesão a populismos mediáticos bacocos que encontram na censura e na opressão de ideias diferentes uma punção quase sexual de poder.
Porém, ao longo de 2023, assumi o tal auto-compromisso de evitar falar sobre si, o que não advém absolutamente nada do seu pedido de indemnização de 45.000 euros, que me requere, com “muito amor” (que são sempre palavras que usa e pratica) na barra do tribunal, mas foi mais pelo facto de apresentar, no processo, dois pareceres, um de uma psicóloga e outra de um psiquiatra, onde até consta a medicação, cuja necessidade, assim se explana na acusação, tem única e exclusivamente origem e relação nos meus escritos sobre si. Condoí-me do seu estado, e mesmo desacreditando, como desacreditei da sua “verdade pandémica”, obriguei-me a deixar-me em paz, não querendo saber de tolices.
Acabei, contudo, por ser impelido a me desobrigar do recato auto-imposto depois de me chamarem a atenção para a sua mais recente coluna de opinião no Público, patrocinada pela Fundação Manuel António da Mota, onde cozinhou um “refogado” de temas, com um propósito comum, onde misturou guerra da Ucrânia, vacinas contra a covid-19, alterações climáticas, igualdade de género, nacionalismo, discriminação religiosa e racismo.
Esta mixórdia de temáticas daria para uma enciclopédia de grossos volumes, mas sei de antemão que, para si, é coisa que se despacha, sem mais delongas, em meia dúzia de “sapientíssimas” palavras – bom, neste caso, foram 900 palavras e 4.265 caracteres (eu contei) –, e ainda deu até para, a despropósito, zurzir no Doutor Manuel Pinto Coelho.
Não vou ser eu, ainda mais aqui, a querer defender o Doutor Manuel Pinto Coelho, de quem sou amigo e paciente [disclamer, portanto] nem sequer especular sobre se o “ataque” advém de uma sua eventual insatisfação quanto à estratégia de marketing que a Oficina do Livro decidiu adoptar para o seu próximo livro (Olhem para o Mundo com coração) tendo como comparação o que a mesmíssima editora virá a fazer em relação ao próximo livro do Doutor Manuel Pinto Coelho (Como viver sem diabetes). Como sabemos, ambas as obras serão publicadas este mês. Está feita a publicidade a ambos, o que acaba de ser uma opção salomónica.
Não precisando o Doutor Manuel Pinto Coelho da minha ajuda para se defender, até por ele saber bem aquilo que nas circunstâncias deve fazer, estou já convencido, no caso da vitamina D, que, enfim, devo vir à liça. Para o lidar. Pois bem, doutor, li com assombro que, entre outros “crimes” de que acusa o Doutor Manuel Pinto Coelho de vender “o benefício (inexistente neste caso) da Vitamina D e outras substâncias na prevenção e tratamento desta pandemia que paralisou o mundo”.
Caro doutor, eu já me cansei de argumentar sobre as questões extra-terapêuticas dos fármacos contra a covid-19, que, no auge da pandemia, tiveram menos de Ciência do que seria desejável, e muito mais de interesses em negócio das farmacêuticas do que seria aceitável. A História – com H maiúscula – costuma ser ingrata para o poder do passado, e o tempo costuma ser o carrasco daqueles que quiseram impor à força uma verdade, perseguindo supostos mentirosos, não pela certeza mas pela vileza.
Aliás, a História, que liberta a Justiça e o Conhecimento, está rapidamente a demonstrar que as miraculosas farmacêuticas mais os seus miraculosos novos medicamentos estão sempre pouco interessadas em que se encontrem velhos fármacos para tratar doenças novas, porque, hélas, isso não lhes daria lucros fenomenais. E, portanto, tratou-se, durante a pandemia, com a ajuda de influencers sanitários, como o doutor, de denegrir determinadas terapêuticas (baratas, logo pouco lucrativas) enquanto se endeusavam instantaneamente novos fármacos (caros, logo muito lucrativos) como se estes fossem a quinta-essência, e os outros apenas remédios do demo.
Basta lembrar o recente caso do antiviral Evusheld, retirado do mercado norte-americano por ineficaz, enquanto o Doutor Filipe Froes o promovia por cá, em lançamentos de marketing, ganhando dinheiro. Ou ainda o molvnupiravir, um “embuste” da Merck Sharpe & Dohme, que também já acabou ingloriamente os seus dias, depois da farmacêutica norte-americana ter facturado 6,7 mil milhões de dólares no ano passado.
Basta lembrar também o uso do remdesivir, que apesar de ser um fármaco associado a uma inusitada quantidade de reacções adversas graves elencadas pela própria Agência Europeia do Medicamento, incluindo mais de 900 mortes, continua a ser candidamente comprado pelos hospitais portugueses, sob a “bênção” do Doutor Filipe Froes, que o recomendou à DGS não se sabe se como consultor da Autoridade de Saúde Nacional ou se como consultor da farmacêutica Gilead, porque trabalha para ambas, sendo que para a primeira entidade o faz pro bono e para a segunda pro bolso.
Basta também lembrar que a Ordem dos Médicos nunca divulgou um parecer sobre a ivermectina – ou se calhar nem o quis fazer – que foi pedido pela Direcção-Geral da Saúde, depois de insistência de reputados médicos. Aliás, convém recordar que um ex-bastonário, Germano de Sousa, admitiu que o usou em modo profiláctico.
Mas voltemos à vitamina D, até porque, esta semana, na sua página do Facebook, fez ainda o seguinte comentário a uma leitora, à laia de dogmática sentença, como é seu hábito: “Vitamina D não é eficaz para o tratamento ou prevenção da Covid, isso está mais do q[ue] provado… e é isso q[ue] está no texto… mas tem múltiplas outras indicações médicas comprovadas”.
E, portanto, vamos lá evitar aqui chamar-lhe nomes, para que não haja necessidade de um reforço de medicação, ou de pedido de indemnização, mas pelo menos devo acusá-lo de promover a desinformação, nem que seja por ignorância, que me parece muita.
Depois da “espuma dos dias” da pandemia, em que as farmacêuticas e as agências controlavam os media e até as revistas científicas (que simplesmente recusavam certos estudos), cada vez se mostra mais esclarecedor alguns avanços no conhecimento científico em redor da pandemia e das melhores terapêuticas contra o SARS-CoV-2. Poderia vir aqui com uma vasta listagem, que pode ser consultada aqui, e onde até estão, por exemplo, na The Lancet de Agosto de 2020, ou na Nutrients de Março de 2020 (já citada 2.275 vezes, segundo o Google Scholar), diversas recomendações, no início da pandemia, nunca seguidas (pelo contrário, atacadas), sobre os benefícios da vitamina D3. E não seguidas por culpa de muitos influencers sanitários, não sei se me faço entender….
Mas prefiro salientar, para acabar de vez com o tema, um artigo de sistematização da Current Nutrition Reports, uma revista da conceituada editora científica Springer Nature, porque faz uma análise retrospectiva. E também para acabar de vez com a propagação da desinformação por si propalada, doutor.
Publicado em Maio passado, portanto bem recente, intitula-se este artigo, no original, “A narrative review on the potential role of vitamin D3 in the prevention, protection, and disease mitigation of acute and long covid-19”, podendo ser lido na íntegra. Nem mais, aborda tudo, como se pode melhor confirmar numa tradução: “Uma revisão narrativa sobre o potencial papel da vitamina D3 na prevenção, proteção e mitigação da doença aguda da covid-19 e da long covid”. A vitamina D3 é analisada como terapêutica preventiva e curativa, tanto para a doença aguda como para a tal long covid. Acho que ainda não se estudou os seus efeitos para mitigar efeitos adversos das vacinas, mas chegará o tempo…
Escreve a autora do artigo científico sobre o propósito da análise, traduzindo-se: “A pandemia da covid-19 desafiou os sistemas de saúde e economias globais desde janeiro de 2020. A covid-19, causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, apresenta sintomas agudos respiratórios e cardiometabólicos que podem ser graves e letais. Sintomas fisiológicos e psicológicos a longo prazo, conhecidos como covid-19 de longa duração [long covid], persistem afectando múltiplos sistemas de órgãos. Enquanto as vacinas apoiam a luta contra o SARS-CoV-2, outros mecanismos eficazes de protecção da população devem existir devido à presença de grupos vulneráveis ainda não vacinados, comorbilidades globais da doença e respostas vacinais de curta duração. A revisão propõe a vitamina D3 como uma molécula plausível para a prevenção, proteção e mitigação da doença aguda (covid-19) e de long covid”.
E então, sem mais demoras, doutor, vamos às conclusões deste artigo que se baseia em 61 referências bibliográficas: “Manter a suficiência de vitamina D3 antes da infecção parece ser importante na redução do risco e da gravidade da covid-19 em indivíduos de todas as idades. Além disso, dadas as suas conhecidas propriedades protectoras e regenerativas em diversos sistemas de órgãos, a administração de vitamina D3 em indivíduos infectados com o SARS-CoV-2 pode promover tempos de recuperação mais rápidos e uma melhor sobrevivência. Mecanismos de acção específicos induzidos pela vitamina D3 em indivíduos que sofrem de covid-19 aguda ou de long covid precisam ser claramente elucidados, e estudos de suplementação devem ser consolidados. No entanto, evidências acumulativas cada vez maiores apoiam um possível papel para o uso de vitamina D3 na mitigação dos sintomas e do peso da doença aguda e de longa duração da covid-19, bem como na reparação de danos em órgãos associados à doença. Não foram relatados efeitos colaterais após a ingestão de doses mais elevadas de vitamina D3, conforme observado em estudos epidemiológicos em indivíduos afetados pela covid-19. Portanto, a suplementação de vitamina D3, o desenho de estudos e os regimes de dosagem devem ser revistos para incluir doses mais elevadas de vitamina D3 em estudos futuros, em comparação com as práticas actuais. Isso é especialmente relevante em subgrupos de risco, como idosos e indivíduos com obesidade, que podem se beneficiar de suplementação com doses mais elevadas por várias razões fisiológicas. O potencial da vitamina D3 como um candidato custo-eficaz na gestão e mitigação do peso da covid-19 merece investigação adicional, dada a ação mecanicista diversa e multipotente da vitamina D3 na manutenção da saúde e na prevenção de doenças”.
Isto, meu caro Doutor Full HD, é Ciência do século XXI, enquanto aquilo que andou a fazer ao longo de mais de três anos foi a defender o sequestro e a usurpação dos princípios da Ciência ao estilo da Santa Inquisição de séculos de má memória. Que tome boa nota disto, enquanto prepara a sua estratégia no sentido de convencer a Justiça que eu devo ser extorquido em 45.000 euros para o compensar de eu o tratar como pessoas da sua laia devem ser tratadas…
É tradição, é cultura, é um subsídio ao humor nacional. A longa saga do Novo Aeroporto de Lisboa (NAL) é o nosso próprio “Dallas” encenado no Terreiro do Paço! Há lá rábula melhor do que aquela de que nem o pai morre nem a gente almoça, e já lá vão 50 anos, mas desta é que a Portela satura, ou nós saturamo-nos dela, mas agora fora de brincadeiras que sem NAL não há nação, e que o digam os maldispostos dos nortenhos que vieram cá baixo de trombas e tudo, só porque se lhes cancelou voos longos a partir do Porto, como se fosse mau saturar mais um bocadinho, senão veja-se o milhão de peregrinos que se transportou sem sobressaltos durante as Jornadas Mundiais da Juventude, e se nem isso vos convence então não sei mais que diga!
Que a opinião pública engula esta comédia à colherada atesta bem o poder e a voracidade dos interesses que se perfilam para a manipular. Que de vez em quando se torre uns milhões em estudos infecundos e se agite a especulação imobiliária, é nacional e endireita as costas, mas outra coisa é concretizar a farsa ao fim de meio século e já muito depois das alterações climáticas terem passado da teoria à prática.
Prevê-se que a obra se prolongue por 10 anos portugueses (aproximadamente 15 anos ISO), o que significa que o NAL ficará pronto muito depois de se ter transformado num objecto anacrónico, num monumento aos tempos em que com muita coragem e muita virtude se fechava os olhos ao óbvio, ainda antes do aquecimento global ter transformado o Sul de Portugal num Norte de África mais caro mas com um toque inequivocamente europeu nos MacDonalds. Perguntar-se-á então “Como é que foi possível” e ficaremos a saber que afinal toda gente era contra, e já o era desde 1968.
Contudo, estamos em 2023 e a farsa ainda não saiu de moda. É preciso animar o mercado imobiliário, esse fiel mealheiro dos ricos, estourar milhões num elefante branco camuflado que vai exacerbar a macrocefalia lisboeta fazendo um aeroporto não em Lisboa mas num município vizinho que sirva Lisboa, e daí que nenhum partido ecologista (LIVRE, PAN, e Verdes) se tenha oposto frontalmente ao NAL, pois sede e dirigentes estão em… Lisboa (um município que perdeu moradores, segundo os Censos 2021); e por último é preciso abrir garganta e gargalo ao turismo, tão competente a exportar mão-de-obra como convicto a explorá-la, ou não fosse o turístico Allgarve a região continental mais pobre do país. Pois que interessa o derrapar de todas as metas para reduzir as emissões de CO2, as previsões cada vez mais sombrias, ou os humores das correntes termohalinas? Que interessa o aquecimento global a quem tem ar-condicionado? E se as colheitas não derem para pão, hão-de sempre dar para brioche.
Mas afinal o que propomos nós? Porventura não precisamos do turismo? E não está a Portela de facto saturada?
Reconhecemos que há razões práticas, de saúde e de segurança para tirar o aeroporto da cidade, mas nem por isso deixa de ser má ideia caminhar em direcção ao desastre. A mesma Ciência que nos permite partilhar fotos das nossas cabeças tapando a Torre Eiffel também nos faculta sérios avisos sobre o futuro imediato — a prudência atempada sempre será melhor conselheira do que o pânico.
Propomos que se distribua melhor o tráfego aéreo, que se encarregue especialistas e responsáveis de encontrar soluções com os meios que já existem, ou que sejam substituídos por especialistas e responsáveis competentes. Poupemo-nos ao enorme esforço financeiro que o NAL exige, e consequente favorecimento de uma indústria fortemente subsidiada, que além de não pagar IVA sobre o combustível ainda goza de mais 14 subsídios no espaço europeu, e invistamos desesperadamente na ferrovia, no ordenamento do território, nomeadamente na contenção da malha urbana, na gestão eficiente da água (reserva, distribuição e consumo), e que se prepare o país para o inexorável avanço do mar, que quanto a esse já nada há a fazer. Talvez assim se dê um forte sinal para dentro e para fora, transportando-se o testemunho recebido da França, que recentemente proibiu voos internos com alternativa ferroviária.
O IPCC, o órgão das Nações Unidas que estuda as alterações climáticas, publicou o seu primeiro relatório em 1990, e previsão-após-previsão antecipou a realidade que hoje sentimos na pele; quanto ao futuro próximo, foi compondo pincelada-a-pincelada um quadro simplesmente aterrador. Disso ciente na teoria mas alheio na prática, o nosso Estado mostra-se dúbio nos momentos decisivos, constituindo-se assim num corpo nocivo que serve a interesses que não os nossos, e que continua a meter balas no tambor do revólver.
Este apelo que muitos acolherão como infantil, pueril, irrealista, ou até demagógico, parecerá a cada ano cada vez menos um atrevimento e cada vez mais uma mera constatação da evidência e do óbvio, mas o prazer duvidoso de ter razão não compensa a vida menor que nos espera a todos, primeiro aos pobres e depois aos outros.
Levante-se agora ou arrependa-se depois. Quem diz não ao NAL?
Alberto Bettencourt, Oceanógrafo Filipe Martins, Informático Francisco Martins, Operador de Call-center Joaquim Monteiro, Engenheiro Mecânico Luísa Alvares, Farmacêutica (Saúde pública) Marco Craveiro, Imunologista Marta Setúbal, Arquitecta Paulo Carreira, Comercial Pedro Gomes, Engenheiro Florestal
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Os dicionários ensinam que chalupa é “uma pequena embarcação com um ou dois mastros, usada sobretudo para navegação de cabotagem”.
Depois, acrescentam que a palavra também pode definir “pessoa que perdeu o uso da razão, que não tem sanidade mental, que é demente, doido, maluco”.
Conheço gente, cruzo-me diariamente com muita, a quem o segundo significado fica que nem uma luva.
Não conseguirei distinguir a chalupa/embarcação, de um cacilheiro ou de um barco de pesca.
Preferia que fosse o contrário, mas não sou conhecido pela minha sorte.
Vem isto a propósito de um comentário do nosso Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, aos jornalistas do “Tal & Qual”, quando estes o questionaram sobre o seu equilíbrio mental, devido ao comentário que fez sobre o decote de uma jovem lusodescendente, no Canadá: “Ainda apanha uma gripe, já viu bem, com esse decote?”…
A questão, que tem a sua pertinência porque, a provar-se tal deficiência, seria motivo para a sua destituição do cargo, mereceu a seguinte resposta:
“Não estou maluco, estou igual ao que sempre fui, mas prometo quando tiver o primeiro sinal avalizado por especialistas, ou sentido por mim, telefono ao Tal&Qual e aviso que estou chalupa“.
Foi pouco esclarecedor e confuso.
Em primeiro lugar, o facto de dizer que está “igual ao que sempre foi” tanto pode provar que “ele não está chalupa” como “ele sempre foi chalupa”.
Dúvida que fica mais forte depois do relato do jornal sobre caso idêntico passado em 2005.
“Enquanto estava num jantar-conferência da Universidade de Verão do PSD, uma aluna de 19 anos, disse o seguinte ao então professor e comentador político: “Gostava de dizer que o grupo azul não está hipnotizado, mas ouviu com toda a atenção e todo o prazer”.
Marcelo respondeu na altura: “Começo por dizer que hipnotizado estou eu com o decote da companheira! Obviamente não pelo decote, mas pela beleza da companheira!”.
Em segundo lugar porque admite a hipótese de alertar a população para o facto de estar chalupa no caso de se sentir tal.
Tanto quanto julgo saber, qualquer chalupa negará, sempre, que é chalupa.
Pior, quanto mais chalupa for, mais veementemente se recusará a admitir que o é.
Muitíssimo pior, se chegar ao apogeu da “chalupice” (seja lá isso o que for) até nos especialistas deixar de acreditar.
Sei que o texto a que me estou a referir foi escrito em termos simpáticos, bem-humorados e a tentar tornar inócuos estes episódios.
Comigo resultaria se, ao mesmo tempo, não houvesse outras frases bombásticas do nosso Presidente.
Infelizmente, houve.
O último exemplar da revista “Sábado” traz a seguinte citação de uma frase proferida pelo Presidente, na conferência da Confederação do Turismo:
“Pela primeira vez estou optimista. Temia chegar ao fim do mandato sem sequer ver a primeira pedra do aeroporto.”
A frase é ambígua, outra vez, porque não esclarece de que aeroporto fala e não é óbvio que a primeira pedra que ambiciona ver seja a indicadora da construção de um novo.
Pode, muito bem, estar a falar da primeira pedra, lançada há décadas, no início da construção de um já existente.
Pelo que se conhece de Marcelo Rebelo de Sousa, parece óbvio, todavia, que ele se refere ao sempre anunciado novo aeroporto de Lisboa.
O Aeroporto Santa Engrácia.
E isso é muito preocupante.
Se se confirmar esta última hipótese seria caso para ser “avalizado” pelos especialistas de saúde mental.
O seu segundo mandato – que é, como se sabe, de cinco anos – começou em 2021, pelo que dois desses anos já se passaram, e terminará, se tudo correr normalmente, em 2026.
Marcelo pensará que, durante esse período, vai assistir, quiçá participar, ao lançamento da primeira pedra do novo aeroporto de Lisboa (digamos assim), que ainda ninguém sabe, ao fim de décadas de estudos, propostas e concursos, onde será construído.
E diz isso sem se rir?…
Há quem diga que “muito riso, pouco siso”.
Neste caso, é exactamente o contrário.
Dizer o que disse, sem se rir, é preocupante porque, quem não o conheça bem, vai pensar que falou depois de ponderar.
E até acreditar no que diz.
As suas palavras não serão tão graves como as garantias do seu antecessor sobre a qualidade das contas do BES, há que reconhecer.
Todavia, a simples hipótese de acreditar na possibilidade que anunciou, vai deixar muita gente a pensar que, a qualquer momento, o “Tal & Qual” irá receber uma chamada preocupante de Marcelo Rebelo de Sousa.
Vítor Ilharco é assessor
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
É hoje um dos temas ‘tabu’. Salvo algumas excepções, e descambando sempre numa discussão ideológica e pouco racional, o debate sobre a imigração desenfreada – e repita-se, a imigração desenfreada – não encontra espaço nem tempo na sociedade civil. Tal como sucedeu na pandemia, ou em outras questões “fracturantes”, cria-se aqui um eixo onde apenas um lado é consensualmente aceite e as demais opiniões são proibidas. Não há lugar sequer ao meio-termo: ou se está visceralmente contra, ou incondicionalmente a favor.
Aqueles que divergem, rapidamente são apodados de insensíveis e desumanos vilões que encolhem os ombros perante a desgraça alheia, ou pior – com sorte são xingados simplesmente de fascistas. Por outro lado, quem aceita sem reservas as crescentes remessas de imigrantes são os humanistas, os evoluídos, os solidários e os altruístas; enfim, os cidadãos exemplares com um lugar reservado no céu. Este compasso moral foi, nas últimas décadas, sendo paulatinamente estabelecido, até se cristalizar como uma verdade inquestionável. O problema disto é ser uma dicotomia simplista, e por isso errónea, que ignora a complexidade do tema e rejeita qualquer nuance.
Em Portugal, os imigrantes têm aumentado de uma forma galopante, sobretudo desde que António Costa é primeiro-ministro. Por exemplo, em Setembro noticiou-se que só este ano se passou de 781.915 imigrantes, no final de 2022, para os 980.000. São quase 200 mil. Por ano, nascem apenas cerca de 80 mil crianças e esse número apresenta uma tendência decrescente há décadas também porque muitos jovens portugueses tiveram de emigrar – e nos países onde lhes deram melhores condições lá têm os seus filhos.
Sempre podemos dizer que os imigrantes que escolhem o nosso país procuram o mesmo, mas convém, já agora, ver se a “troca” faz sentido, sobretudo porque os nossos emigrantes, além de portugueses (o que, salvo melhor opinião, não é desonroso), saem agora com um curso superior, que é um investimento também público a ser aproveitado por países terceiros.
Em Março, com as autorizações de residência automáticas para cidadãos da Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP), Portugal passou de uma política de portas abertas para portas “escancaradas”. Atendendo às enormes dificuldades na Habitação e na Saúde, é pertinente interrogarmo-nos sobre o porquê de tal decisão. Qual o intuito? É por pensar que duas ou três dezenas de emigrantes se podem encaixotar num T1 na Mouraria? É mesmo disto que o país precisa? É, sequer, uma medida recíproca e proporcional? Não. Facto é que, em apenas seis meses, mais de 151 mil vistos já foram concedidos.
Bem conhecemos as declarações diárias de personalidades políticas, incluindo membros do Governo , assumindo que tanto a população portuguesa como a europeia estão em queda livre, e apontando a chegada de imigrantes como a única saída para esta crise, para o aumento do PIB e para a sustentabilidade da Segurança Social. Mas esta será sempre uma solução artificial, além de ser um argumento facilmente desconstruído.
Perante um Governo que não só permite, pela inacção, a debandada de portugueses – não criando condições para os jovens se estabelecerem como famílias –, forçoso é concluir que não existe vontade política de assegurar a renovação das gerações com portugueses de origem. Renovar é sempre bom, mas qual seria o mal se fosse sobretudo com portugueses. Ou ser humanista é abrir os braços aos imigrantes e escorraçar os portugueses?
Quem defende uma imigração descontrolada costuma invocar um imperativo moral, que teoricamente faz sentido: gozando de um nível de vida superior, a Europa deve abrigar todos os estrangeiros porque é o “correcto”. Mas onde é que começa, e onde acaba, exactamente, a solidariedade destes bons samaritanos? Quando é que uma “ajuda” deixa de ser razoável e se torna contraproducente? E será que as objecções à imigração não têm legitimidade?
Quem responde “não” a esta questão, por regra faz vista grossa a consequências negativas; a começar pela perda de coesão e da identidade nacionais – Roma e Pavia não se fizeram num dia, e também a ausência de conflitos regionais (vd. Espanha) deve-se ao facto de sermos um país uno há mais de 800 anos. Mas esse nem é o pior mal, e os outros males são pouco humanistas. Receber imigrantes de braços abertos e deixá-los depois amontoarem nas ruas ou em habitações sem condição, atirando-os à pobreza, não é ser humanista. Deixá-los cair em redes de tráfico humano ou de extorsão, não é ser humanista.
Bem sei qual é o outro lado da moeda: se um Estado restringe a entrada de imigrantes, esse Estado é xenófobo e racista. E também sei que se pode ser preso por ter e não ter cão: se aceita, então é-se acusado de não fazer o suficiente na integração. Nada de novo debaixo do sol, ou no “reino de Portugal” (leia-se, Dinamarca) : faça o que fizer, as culpas de todos os males do mundo recaem sobre o Ocidente. Não há avé-marias nem pais-nossos que lhe dêem a Salvação, depois de todos os pecados cometidos.
Contudo, aqueles que fazem escárnio do legítimo direito do Ocidente em preservar o seu património cultural e identidade nacional, defendem-no curiosamente, na maior parte dos casos, esse direito para outros países. Na verdade, não é que desprezem a afirmação da nacionalidade: apenas parecem fazê-lo com aqueles que lhes são culturalmente mais próximos. Não preconizam a abolição de fronteiras ou a diluição de todos os países num mosaico multicultural de cidadãos sem noção de pertença e de raízes históricas, como expatriados dentro dos próprios países. Caso contrário, não poderiam condenar – como condenam – o colonialismo nem defender a soberania das antigas colónias e a sua independência e autonomia.
A sua aversão àquilo que denominam, com desdém, de “nacionalismo”, não se aplica, por exemplo, a nações africanas, árabes, ou aos países que empregam políticas estritas para “proteger” a sua composição demográfica, como a China ou Israel. A “conversa” da inclusão e da diversidade revela-se, assim, pura demagogia, ou uma flagrante hipocrisia. Apregoam o respeito pela singularidade dos diversos países e respectivos povos; mas só para alguns.
Na verdade, e perdoe-se o pleonasmo, a verdadeira diversidade pressupõe a existência de países e culturas fortes, coesas e heterogéneas, que interagem saudavelmente entre si, em vez de um (ou muitos) melting pot (em) que nos querem “cozinhar”, sem se saber se, no fim, ficamos todos fritos, assados ou esturricados.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Tenho, por norma, o hábito de apreciar (quase) todas as manifestações de ideias, convicções e ideais no espaço público. As excepções à regra serão, obviamente, manifestações anti-democráticas, fascistas e outras que tal.
Entendo o grupo de jovens que agora aparece, quase todos os dias, em acções de luta contra as alteracões climáticas mas parece-me que precisam rapidamente de um estratega naquele meio-campo.
A primeira coisa a perceber é quem devem chatear. Em princípio não vão conseguir grande coisa com três almas sentadas numa rua de Lisboa ou uma dúzia a atrapalhar o trânsito na Segunda Circular. E porquê? Porque aqueles desgraçados que andam na Segunda Circular já têm problemas que cheguem na vida, a começar pela própria Segunda Circular, e não podem fazer absolutamente nada pela causa ambiental. Bom… não é bem assim, dizes tu jovem votante do PAN; eles podiam todos largar o carro e ir nos transportes públicos. O que é verdade, mas, para isso, a rede pública de transportes tinha de ser uma verdadeira alternativa, o que nos traz, novamente, para a minha primeira afirmação: os automobilistas da Segunda Circular não decidem nada.
Neste caso não se aplica aquela máxima das greves: “greve boa é aquela que incomoda”. Vejam o caso da CP, por exemplo: não há forma de reivindicar sem atrapalhar a vida de milhares, mas nesse caso faz sentido porque é uma forma directa de pressionar os decisores. Não é o que acontece aqui.
As únicas pessoas que os manifestantes incomodaram, como se percebeu, foram aqueles condutores que os tiraram da estrada como quem puxa um fardo de palha. Apareceram nos noticiários, de facto, mas a discussão sobre o tema foi inexistente, e o incómodo a quem tem que decidir foi nulo. Quanto muito conseguiram virar a opinião pública contra eles.
Não é fácil discutir este tema num país pequeno como Portugal, que se limita a seguir as políticas da União Europeia e a gerir fundos comunitários. Reconheço esse esforço aos activistas. Mas estar a chatear pessoas que andam na luta diária para conseguir pagar taxas de juro e a inflação no supermercado, não os levará a bom porto. Fazem-me lembrar um jornalista que andava a lamber maçanetas de porta, durante os confinamentos, para dizer que a vida continuava apesar da covid-19.
De facto, continuava e continuou mas para isso bastava, por exemplo, fazer o que os suecos faziam nessa altura: uma vida relativamente normal com algum distanciamento e regras básicas de higiene. No fundo aquilo que se deveria fazer sempre. Ninguém lambia maçanetas de portas antes de se ouvir falar na covid-19, portanto, começar essa nobre actividade era só estúpido e não trouxe nada do que se pretendia para a discussão. Hoje, que pagamos a factura dos confinamentos e vivemos na mesma com infecções por covid-19, o tema já não se discute com o fanatismo de então. E ainda bem. Mas as discussões entre dois pólos de radicalismo raramente ajudam seja que causa for.
Portugal tem na pirâmide das necessidades um mundo de prioridades antes de se focar nas alteracões climáticas. Não é que não sejam importantes, entenda-se, mas normalmente quem não sabe se garante o jantar, não está assim tão preocupado com o aquecimento do planeta.
Eu diria para estes activistas, que querem ter o assunto na agenda, se concentrarem em arranjar números e alvos. Números, desde logo, porque três pessoas subnutridas não incomodam ninguém. Alvos porque se querem discutir ideias, têm de ir ao encontro de quem as pode legislar. Vão furar pneus aos ministros, fazer greves de fome em frente à Assembleia da República, mandem um mail à Greta para acções conjuntas, marchem com outros jovens europeus sobre Bruxelas. Mas não vão aborrecer os lisboetas que já andam com a cabeça em papa por aquilo que a realidade lhes traz diariamente e, muito importante, não podem fazer absolutamente nada pelas alterações climáticas.
Como em todos os grandes temas da actualidade, Portugal seguirá o que outros disserem. Não somos líderes e muito menos temos peso político para impôr agendas na União Europeia. Este é um assunto global, que será decidido por políticas comuns, quando e como as potências assim quiserem. Quando os interesses se alinharem, as guerras acalmarem (acabar, nunca) e as trocas comerciais entre produtores e consumidores não estiverem em risco.
Notem, por exemplo, que toda a indústria automóvel, dos países desenvolvidos da Europa, nos vende uma revolução verde com a transicão dos motores a combustão para motores eléctricos. Como se o lítio nascesse nas árvores e o seu ciclo de vida não tivesse um enorme impacto ambiental e na saúde das populações que vivem perto das zonas de extração. Revolução verde, ou lá o que lhe quiserem chamar, é tirar 50 pessoas de 50 carros e colocá-las num autocarro. Todo o resto que se discute são apenas alterações de modelo de negócio para diferentes multinacionais.
Portugal, como todos sabemos, está longíssimo de ter no clima a sua principal preocupacão e, como qualquer país pobre, tratará de sobreviver primeiro aos juros e depois logo verá o que fazer com a subida das águas. Se, entretanto, quem de facto dá as ordens indicar outra direcção qualquer, pois trataremos de a seguir com algumas bazucas pelo meio.
Até lá, recomendo aos activistas, que certamente não quererão deixar o tema arrefecer, que se manifestem junto dos agentes políticos e procurem granjear simpatia e apoiantes para a discussão que, repito, é importante. E pela vossa saúde, arranjem um porta-voz que tenha apanhado sol nos últimos três anos e não coma só rebentos de soja.
Uma pessoa tem mais vontade de ouvir se o interlocutor não for um rapaz que declarou guerra a todo o tipo de vitaminas.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Viste os ecos azuis nos azulejos molhados do corredor que se estendia do balneário, frio, escorregadiço? Chinelos slap slap, cuidadosos, e o aconchego da toalha, a linha do elástico da touca, a repuxar cantos da pele, as coxas arrepiadas, a aproximarem-se de um degrau de chuveiro.
O pudor tímido.
O reverberar de água, motores, chlap, o mergulho daquele homem em braçadas ríspidas. O cheiro.
Cheiro azul de cuspe, desinfectado, e gestos hesitantes (vais cair, vais cair!). Abandonar tudo num canto e chegarmo-nos junto a uma toca aquática, suave, tina de água tépida, e o cloro a entrar pela alma dentro (quando morremos o ar que nos abandona é o nosso espírito?)
Cada pequeno pulinho, bailarinas em pontas, deita-te, que assim já te equilibras. Flutua, que assim já te moves com o movimento dos outros. Que mais fácil, que é assim, deitada, e o mundo navega na mesma.
Claro, alguém passará, salpicando tudo em volta, sem delicadezas, agitando ondas e perturbando o sono leve. Que mais fácil que seria assim, com bolha que protegesse a cara da água fria, que viajou no ar, que pairou um segundo livre antes de se derramar na pálpebra fechada.
Existe uma claraboia que deixa o sol se despejar por ali abaixo. Gaivotas pairando longe, flutuando no céu azul, (e tu a flutuares em azulejo), fazendo de conta que o tempo também flutua, que também balança, como mesa manca, só um bocadinho manca, só o suficiente para estremecer – e te deixar na dúvida se foste tu que vacilaste.
Nadadores que se escondem debaixo de água, a encolher o nariz, ao romper a película transparente, ouvem os brilhos azuis das pessoas que deslizam junto à borda?
Que brilho tens tu quando estás sem roupa e tiritas pelo mundo fora? Sabes que se não tiveres medo das gotas, que fogem livres da dança dos outros, te podes aquecer num abraço, e se chorares ali ninguém vê? Porque é tudo azul. E o tempo flutua.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Independentemente da bondade dos objectivos, a opção por acções menos convencionais tem, na generalidade dos casos, um grande inimigo: o próprio activista que, imbuído de um espírito de missão e alcandorado pelo estímulo do seu grupo, nem sempre se apercebe que pode até estar a agir bem, mas no lugar errado e no momento errado. E isso bota ao fracasso a sua acção, lança a opinião pública contra si e, pior ainda, o alvo da sua “fúria” transforma-se primeiro numa vítima e depois num herói.
Se observarmos a História dos movimentos contestatários em questões ambientais nos países democráticos – nos outros a “coisa” é bem diferente, e geralmente corre mal em perspectivas mais dramáticas –, as acções mais eficazes são sempre envolvidas em muito mediatismo, mas sem afectar o quotidiano da comunidade, antes sim das empresas ou governantes que contribuem para o mal que se ataca.
O Mundo perfeito imaginado pelo Midjourney.
Por exemplo, não se critica a opção pelo uso de SUV furando pneus, como recentemente aconteceu em Lisboa. Talvez seja mais sensato aumentar as pressões políticas para se criarem normas que condicionem esta opção de compra por muitas pessoas, privilegiando os princípios do utilizador-pagador e do poluidor-pagador.
E quando falo em pressão política é mesmo falar em pressão política, mas sobretudo continuada. Não largando o osso, sendo chato e persistente. Demora tempo e paciência. Não é, por certo, furando pneus, atirando sopa em quadros de museus, lançando tinta a um ministro, e outras coisas similares. Tudo isso é não só ridículo como sobretudo contraproducente. Os visados, no caso os políticos ou os empresários, até agradecem.
Ainda há dias, no rescaldo do episódio da tinta na camisa do ministro do Ambiente – em que ele saiu airoso numa conferência de verdadeiro greenwashing mediado pela imprensa mainstream –, pensei no desastre mediático do radicalismo durante a pandemia, sobretudo aquando do processo de vacinação dos menores.
Um ministro do Ambiente imaginado pelo Midjourney.
Hoje, não existem dúvidas sobre a insensatez – ou até crime – da intolerável pressão sustentada pelos media, pela DGS, por políticos, por influencers sanitários para pressionar pais e jovens para a administração de uma vacina (sobre a qual não sabemos tudo) para proteger contra uma doença que, naqueles grupos etários em condições saudáveis, é de risco praticamente nulo.
No entanto, bastou uma acção radical de manifestantes num centro de vacinação em Odivelas em Agosto de 2021, envolvendo o então responsável da task force, para deitar por terra qualquer debate. Gouveia e Melo chamou um figo aos insultos, tornou-se um herói depois daquela noite – e até um putativo candidato a Presidente da República – e os manifestantes nada mais conseguiram, dali em diante, do que o rótulo de negacionistas para si e para aqueles que desejavam debate e maior transparência. Ainda hoje, se sente esse impacte negativo.
Por esse motivo, quer seja na pressão para mais medidas para o combate às alterações climáticas – e, independentemente das origens, elas estão presentes – quer seja para mais acções políticas e empresariais em prol de uma verdadeira mudança de paradigma energético (e não de uma mudança de player no negócio da energia), uma das coisas que os jovens activistas ambientais devem ter consciência é de que precisarão sempre, mais tarde ou mais cedo, da sociedade, das pessoas, para que se aumente a pressão sobre os governos.
Um cenário apocalíptico imaginado pelo Midjourney.
Não se consegue que, por exemplo, haja uma maior aposta no metropolitano ou no caminho de ferro fechando a Segunda Circular através de um espontâneo e pouco resistente cordão humano que tem apenas o condão de irritar condutores, a tal ponto de ser confrangedoramente terminado por um arrasto em maus modos por condutores apressados.
Talvez se conseguisse mais, e melhor – se é que apreciam mesmo fazer cordões humanos –, obstaculizar então a saída dos automóveis dos governantes das respectivas garagens dos ministérios. Para que pensem mais em soluções, e na verdadeira poluição atmosférica, em vez de se pavonearem em inócuas promessas e em vãs declarações de intenções, enquanto ilibam empresas amigas e culpabilizam as pessoas em geral. Nas primeiras vezes, para que pudessem ir para casa, os activistas poderiam até fazer uma vaquinha para lhes oferecer bilhetes para os transportes públicos. Para esse peditório, eu dou…
A primeira pergunta deve ser vista em tom provocatório, porque feita por alguém que assume, desde os idos anos 90, antes do wokismo climático, a existência de alterações climáticas (que não se mede numa perspectiva meteorológica) decorrentes do aquecimento global, mas que rejeita histerismo (colectivos e individuais), hipocrisias (sobretudo políticas) e sensacionalismos (sobretudo de jornalistas) e renega, crítica e abomina toda uma corja de oportunismos ao melhor estilo do greenwashing (sobretudo de certas empresas, mas também de políticos como António Guterres), enquanto se continuam os negócios e as negociatas, e o povo, às tantas, acaba apontado como o culpado a merecer justa punição. E acredita; e cala; até concorda com a perda de direitos; e, às tantas, de liberdades – enquanto os supostos “salvadores do Planeta” viajam, comem e divertem-se para “salvar o Planeta” para aqueles que, acusados, estão “presos” para não “destruírem mais o Planeta”.
Em abono da verdade, independentemente das alterações climáticas decorrerem dos gases com efeito de estufa, o Mundo tem um paradigma energético para resolver, e que passa também por resolver problemas de poluição, de uso ineficiente de recursos. Mas a solução para tudo isto tem de vir de políticos e de diplomatas, porquanto está nas mãos da China, dos Estados Unidos e da Índia (a União Europeia não conta, pelo peso residual). E tem de ser feito sobretudo sem radicalismos e sem tentativas de ressuscitar a energia nuclear. E também passa por assumir que, provavelmente, em muitos casos a solução será a possível: a adaptação, embora com evidentes perdas e com embates geopolíticos e sociais.
Quanto à segunda pergunta, esta faz cada vez mais sentido, sobretudo no mundo ocidental onde o discurso político e mediático em redor do aquecimento global se estafa nas alegadas ondas de calor (por vezes inexistentes) supostamente terríficas e letais, e não em outros problemas decorrentes das alterações climáticas muito mais graves, como seja a redução dos recursos hídricos, o aumento do risco de incêndios (que não significa que haja incêndios e que não se possa fazer nada para evitar que o risco se transforme em dano) e as alterações profundas de habitats.
Mas esta pergunta também faz todo o sentido porque me parece essencial saber se, de facto, se notam efeitos das alterações climáticas – e do aquecimento global, portanto – na mortalidade em Portugal durante o Verão, a grande preocupação política e dos media nacionais.
Ou seja, devemos estar mesmo preocupados com as ondas de calor no Verão do ponto de vista de Saúde Pública? Ou devemos considerar esse um problema mais secundário se comparado com as outras épocas do ano, em especial com o Inverno? Ou seja, devemos repetir o que se fez entre 2020 e 2022: olhar para a covid-19 sem cuidar do resto?
Verão em Portugal em 2023, imaginado pelo Midjourney.
Vamos então por partes. A resposta sobre se o aquecimento global está a causar em Portugal mais mortes, a resposta não pode ser dada com um simples sim, ou um simples não.
Primeiro, porque, na verdade, o matar mais ou menos, quando falamos em efeitos de alterações climáticas, requer um período relativamente longo para análise, de várias décadas. E, nessa linha, entram factores que interferem com análises simples, porque se mostra muito difícil isolar o fenómeno climático dos demais, que numa primeira análise são muito mais relevantes.
Vejamos: em Portugal, a população vulnerável – susceptível de ser afectada mortalmente por eventos associados às variações da temperatura e outras variáveis meteorológicas (chuva, humidade, vento, etc.) – foi modificando-se ao longo dos tempos quer por factores demográficos quer por factores associados à Saúde Pública e às condições sanitárias e médicas.
Apenas a título de exemplo – e é algo que escapa à maioria das análises –, saliente-se que a mortalidade infantil ainda era elevadíssima há algumas décadas, e os óbitos de recém-nascidos tinham um peso imenso. Por exemplo, em 1970, morreram ainda 10.027 bebés com menos de um ano de idade, o que representou 10,8% do total dos óbitos desse ano. Se recuarmos para os anos 50 ou ainda antes, os números são ainda mais pavorosos. No ano de 2022, o número de mortes nesse mesmo grupo etário foi de 233, representando somente 0,02% do total.
Verão em Portugal em 1951, imaginado pelo Midjourney.
Assim, quando observamos, por exemplo, a mortalidade em meses de Verão nas primeiras décadas do século XX, salientam-se alguns picos significativos, mas não se devem a óbitos necessariamente relacionados com temperaturas extremas (letais agora para os idosos), mas mais à proliferação de doenças transmissíveis por água inquinada ou alimentos contaminados, e que causavam elevada mortalidade em bebés e crianças.
Por outro lado, o grupo de idosos foi-se alterando de forma significativa, com todas as vulnerabilidades que tal implica. Além disso, por exemplo, alguém com 65 anos em 1970 já estaria a atingir a sua esperança de vida à nascença, quando agora uma criança que nasce pode ambicionar ultrapassar os 80 anos. Uma pessoa de 65 anos de há 50 anos não apresentava as mesmas condições físicas de uma que agora tenha essa mesma idade. E a ciência médica consegue mantê-la em boas condições por mais tempo.
Acresce ainda que as condições de vida foram registando evoluções muito favoráveis, pelo que muitas doenças crónicas e agudas, antes bastante letais, são hoje raras e perfeitamente controladas.
Inverno em Portugal em 2023, imaginado pelo Midjourney.
Significa isto, de uma forma muito sintética, que a vulnerabilidade é um conceito muito fluído e dinâmico, e por isso devemos ter alguma prudência quando fazemos comparações ao longo do tempo em populações que, embora do mesmo país, não têm uma estrutura demográfica similar e muito menos um “quadro clínico” comparável. A população de Portugal de 2023 não é estruturalmente semelhante à do ano 2000 e muito menos à de 1975 ou de 1950…
Em todo o caso, uma análise para apurar se há mais ou menos mortalidade numa determinada época do ano carece sempre de se saber qual o “comportamento” das outras épocas do ano. No caso concreto de Portugal, desde sempre – e pegando, por agora, nos valores mensais desde 1951 –, o Inverno (considerando os meses de Dezembro, Janeiro e Fevereiro) sempre foi, e continua a ser, muito mais mortífero do que o Verão (considerando os meses de Junho, Julho e Agosto), que, apesar de toda a histeria mediática em redor do aquecimento global, se mantém como a época do ano menos mortífera.
Desde 1951, muito raramente o mês de Janeiro não é o mês mais letal – e se tal sucede, então é “substituído” por Dezembro, seguindo-se, normalmente, Fevereiro como o terceiro pior mês. Em média, o Inverno abrange 29,8% das mortes entre 1951 e 2022, variando dos 28,6% na década de 1950 até aos 30,7% da década de 1970. Na década mais recente (década de 2010), o Inverno englobou 29,6% das mortes.
Inverno em Portugal em 1951, imaginado pelo Midjourney.
Em 2021, por via da pandemia da covid-19 e de outros factores que causaram a ruptura do Sistema Nacional de Saúde, os meses de Inverno representaram 35,1% do total das mortes, sendo que 15,7% foi apenas em Janeiro (o valor mais elevado num mês desde 1951).
No oposto, o Verão sempre tem sido historicamente a época do ano menos mortal, agregando 22,0% do total dos óbitos registados entre 1951 e 2022 – uma diferença, para menos, de 7,8 pontos percentuais, o que é muito significativo. As variações por decénio não são muito relevantes: 21,5% na década de 1950; 21,1% na década de 1960; 21,4% na década de 1970; 22,5% na década de 1980; 22,3% na década de 1990; 22,6% na década de 2000; e 22,3% na década de 2010. Mesmo estando a falar de grupos populacionais distintos entre 1951 e 2020, não se observa qualquer agravamento em termos médios.
Na verdade, o Verão é a época do ano com menor taxa de mortalidade, independentemente de se considerar o período entre o solstício de Junho e o equinócio de Setembro, ou os meses de Julho a Setembro ou os meses de Junho a Agosto. Tem uma mortalidade inferior também significativamente à Primavera e ao Outono.
Peso relativo (% em relação ao total do ano) dos meses de Inverno (Janeiro, Fevereiro e Dezembro) na mortalidade desde 1951 até 2022. Linha branca mostra tendência. Fonte: INE. Análise: PAV.
Numa análise mais fina, pode-se tentar identificar eventuais acréscimos de mortalidade no período do Verão ao longo das últimas décadas, mas aí deparamo-nos com a tal situação de se comparar alhos com bugalhos. Por exemplo, se definirmos que entre Junho e Agosto (que nesta análise se considera a época de Verão) a ocorrência de um mês com mais de 8% das mortes no ano relevante, então contabilizam-se seis casos na década de 1950 (dos quais cinco em Agosto e um em Julho), apenas dois na década de 1960 (ambos em Agosto), nenhum caso na década de 1970, quatro na década de 1980 (um em Junho, dois em Julho e um em Agosto), dois na década de 1990 (um em Julho e outro em Agosto), três na década de 2000 (dois em Julho e um em Agosto), e três na década de 2010 (dois em Julho e um em Agosto).
Na verdade, a maior prevalência de meses de Verão particularmente mortíferos na década de 50 não parece dever-se simplesmente a ondas de calor, mas sim a doenças potenciadas por problemas sanitários associados a temperaturas mais quentes.
Na verdade, fazendo análises estatísticas um pouco mais complexas, até se poderia concluir que existe verdadeiramente um fenómeno de crescimento da mortalidade por causa das alterações climáticas, embora depois, provavelmente, constatar-se-ia que por “troca” de um Outono mais ameno. Aliás, esse fenómeno aparenta ser evidente numa análise estatística simples desde a década de 50: a mortalidade relativa dos meses de Outono (Setembro a Novembro) tem-se tendencialmente aproximado da dos meses de Verão (Junho a Agosto).
Peso relativo (% em relação ao total do ano) dos meses de Primavera (Março, Abril e Maio) na mortalidade desde 1951 até 2022. Linha branca mostra tendência. Fonte: INE. Análise: PAV.
Com efeito, na década de 50, os meses de Outono, com 26,2% do total das mortes, até eram mais mortíferos do que os meses de Primavera (algo que deixou de suceder logo na década seguinte), valor que contrastava com os 21,5% do total associados aos meses de Verão. Essa diferença – então de 4,7 pontos percentuais – foi-se atenuando até à década de 2010, não tanto por um crescimento do peso relativo da mortalidade no Verão (aumento de 0,8 pontos percentuais face à década de 1950), mas sobretudo pela diminuição da letalidade relativa do Outono (descida de 3,2 pontos percentuais face à década de 1950).
É certo que se nota uma tendência de crescimento do peso relativo da mortalidade nos meses de Verão, e com alguns picos, mas não é assim tão relevante que salte à vista – e mereça parangonas constantes –, antes sim exigem medidas preventivas adequadas e oportunas para se reduzir o impacte potencialmente letal dessas ondas de calor.
Aliás, para reforçar a necessidade de intervenção preventiva ou profiláctica – e deixar de considerar que nada se pode fazer –, exemplifiquemos com o relatado sobre os picos de mortalidade em alguns Verões da década de 1950: por certo que, com a situação sanitária e médica do século XXI, aquela mortalidade não teria sido tão elevada com as temperaturas então registadas. Portanto, criem-se condições “sanitárias” para que, independentemente das causas do aquecimento global ou dos seus efeitos, a letalidade não seja elevada quando chegarem ondas de calor.
Peso relativo (% em relação ao total do ano) dos meses de Verão (Junho, Julho e Agosto) na mortalidade desde 1951 até 2022. Linha branca mostra tendência. Fonte: INE. Análise: PAV.
Aliás, é olhando para o perfil da mortalidade interanual (ao longo dos anos) e intranual (ao longo dos meses) que melhor conseguimos apurar o grau de controlo que temos sobre o ambiente que nos rodeia, porque é isso que, ao fim e ao cabo, interessa saber.
E é aqui que quero levar a água ao moinho: é, na verdade, no Inverno, e não propriamente no Verão, que reside o nosso maior problema “sanitário” – e, ironicamente, um aquecimento global pode ajudar-nos indirectamente, por os meses de Dezembro a Fevereiro passarem a ser menos agrestes.
De facto, esperando que a todos seja já evidente – até pelo que acima se referiu – que os meses de Inverno são mais letais do que os de Verão, porque o ambiente nesses meses em Portugal, que aqui deve incluir Setembro (o mês menos mortífero), é mais propício para não se ser afectado por doenças e afecções.
Ora, um objectivo fundamental da Saúde Pública será sobretudo o de evitar que o ambiente externo – que inclui agentes biológicos, químicos e físicos – não constitua um factor agravante da condição e natureza humana, e de cada indivíduo (e das suas opções de vida). Daí que conseguiremos uma vitória absoluta sobre os elementos quando a distribuição do peso da mortalidade padronizada (em função da idade) nos diferentes meses e ao longo dos anos for cada vez mais homogénea. Isso ainda está longe de suceder, mas não é por “culpa do Verão”, mas sobretudo por “culpa” da nossa incapacidade (não apenas portuguesa, mas muito portuguesa) em controlar o que sucede nos Invernos.
Senão vejamos.
Peso relativo (% em relação ao total do ano) dos meses de Outono (Setembro, Outubro e Novembro) na mortalidade desde 1951 até 2022. Linha branca mostra tendência. Fonte: INE. Análise: PAV.
O Inverno não é apenas a época do ano onde mais se morre – é aquela que regista uma maior variabilidade interanual, porque, de quando em vez, os agentes meteorológicos associados aos agentes biológicos e virais se mancomunam ainda mais para causarem maiores mortandades. E isso sucede não apenas pela maior capacidade de destruição dos “inimigos”, do seu “armamento”, ou da “ferocidade” maior ou menor em cada investida, mas sobretudo pela maior ou menor capacidade de defesa do ponto de vista individual e de Saúde Pública. Dir-se-ia que há similitudes com a área militar.
Podendo-se fazer essa análise simples também para Dezembro e Fevereiro, exemplifique-se, por economia de tempo, com a situação do mês de Janeiro, como já dito o mais mortífero do ano. Em termos médios, entre 1951 e 2022, constata-se que 10,8% do total das mortes concentraram-se neste mês (Janeiro tem 8,5% dos dias de um ano). Vistas década a década, as médias não são muito diferentes, variando entre 10,3% na década de 2000 e o0s 11,2% da década de 1970.
Contudo, analisando ano a ano observam-se porém grandes variações, com picos associados sobretudo a período de gripe associados a condições meteorológicas mais agrestes, às quais os mais vulneráveis não ficaram protegidos. E quanto mais idosa se tem tornado a população mais estragos “causam” os Janeiros mais inclementes.
Assim, para Portugal, se consideramos como fasquia definidora de um Janeiro particularmente letal um peso relativo superior a 12%, detecta-se um ligeiro agravamento da mortalidade ao longo das últimas décadas, o que sendo expectável, não é o desejável. Assim, com mais de 12% do total das mortes não encontramos nenhum Janeiro na década de 1950, temos dois na década de 1960 (1965 e 1970), mais três na década de 1970 (1973, 1976 e 1978), mais um na década de 1980 (o Janeiro de 1990), mais dois na década de 1990 (1997 e 1999), nenhum na década de 2000, e dois na década de 2010 (2015 e 2017).
Se acrescentarmos o Janeiro de 2021 (15,7% das mortes, por via da pandemia e ruptura do Serviço Nacional de Saúde, até porque a mortalidade não-covid foi também elevada), verificamos que nos últimos 25 anos contabilizam-se cinco Janeiros registando uma mortalidade com peso superior a 12% do total anual. No período de 1951 a 1975 (também 25 anos), contam-se três Janeiros nestas condições.
É certo que a estrutura etária é bastante distinta, mas aquilo que se pretende mostrar é que os Invernos são tão ou mais agrestes no presente do que no passado, mesmo se temos melhor tecnologia e melhores cuidados médicos e sanitários.
Obviamente, a manutenção da maior vulnerabilidade aos Invernos deve-se, em grande parte, à crescente prevalência de idosos, mas, se assim é, então não se compreende que seja dado um enfoque exclusivo à protecção dos idosos contra as potenciais ondas de calor no Verão. Qual é, afinal, o motivo para se dar tão pouca importância à desprotecção deste grupo etário nos meses de Inverno?
Por isso, esta análise ao aquecimento global, tem como objectivo principal um alerta: para que se cuide melhor da saúde dos vulneráveis no Inverno – é nessa época do ano que há ainda muito a ser feito. Muito mais. E não se tem feito, do ponto de vista político, quase nada.
Durante muitos anos, tive como ideal de vida uma solução que me permitisse trabalhar e, ao mesmo tempo, ir vendo o Mundo em permanência. Imaginava-me a viver num veículo qualquer, a trabalhar de forma remota e, noite após noite, ir avançando na direção desejada.
O melhor que consegui foi fazer isso por períodos curtos de algumas semanas. Nunca descobri a solução mágica de coordenar esta opção com as responsabilidades de manter um ambiente estável e mais convencional para a minha família. Portanto, ser pai e marido ganhou sempre a ser nómada digital sobre rodas. O que também não me aborrece, devo dizer. Voltarei à estrada, ou ao mar, quando as crias estiverem prontas para voarem sozinhas.
Pensava nisto enquanto via uma reportagem sobre o aumento nas vendas de auto-caravanas, procuradas hoje em dia como uma alternativa às crescentes dificuldades com a habitação, em Portugal. Já não achei a solução tão idílica e aventureira como nos meus sonhos originais.
Sabia que algumas famílias se tinham mudado permanentemente para casas pré-fabricadas em parques de campismo, para casas de familiares, para habitações divididas com outras famílias e, nos casos mais graves, para a rua. Mas ainda não tinha visto esta opção de pagar um crédito automóvel para viver nele.
Na reportagem em questão aparecia uma senhora que trabalhava na câmara de Cascais e que ia rodando vários parques de estacionamento, para contornar a proibição das 48 horas para este tipo de veículos. Mostrou-nos o seu dia-a-dia e explicou que parava naquela zona para ficar perto das imediações da escola do filho. O miúdo, como é lógico, não apareceu em frente às câmaras. Ninguém quer que na escola se saiba que a morada real é um parque de estacionamento.
Mas o que me impressionou mesmo foi a família em questão. Tudo normal, tudo dentro do que se imagina ser a contribuição normal para a sociedade. A mãe tem um emprego permanente, um salário e o filho vai para a escola. Nada de estranho aqui. Mas com o fruto do trabalho não conseguem pagar um aluguer ou contrair um empréstimo para compra.
Não estamos a falar de alguém que desistiu, que já nem tenta, que deixou a vida seguir por caminhos mais duvidosos ou que se excluiu da sociedade enquanto membro contributivo. É apenas alguém que vai trabalhar e não consegue pagar uma casa. Não é aqui que percebemos que falhamos enquanto sociedade?
Normalmente, quando vemos um desgraçado a dormir num cartão nas arcadas da Almirante Reis, somos rápidos a julgar. “Foi a droga”, “perdeu tudo no vício”, “não quer trabalhar”. Raramente temos o discernimento de perceber o mundo de razões que atira alguém para o meio da rua. Apontamos o dedo. Logo. É uma forma de dormirmos bem com a nossa consciência. Não há nada a fazer por aquele desgraçado.
Mas…e agora? O que fazer quando os juros das prestações bancárias duplicam ou triplicam? Como é que se aponta o dedo a milhares de famílias que ficam aflitas e sem salários que combatam estes aumentos que ninguém percebe? Foi algo que fizemos? Pagámos poucos impostos? Trabalhámos menos do que devíamos? Qual foi a nossa falha, enquanto sociedade que trabalha 40 horas por semana, para de repente estarmos a viver em caravanas, parques de campismo ou quartos com casa de banho partilhada? Qual é a diferença entre isto e os famosos bairros de “trailers” nos Estados Unidos, para onde vão aqueles a quem a falta de segurança social não permite segurar uma habitação convencional?
Como é que nós, num continente onde o apoio na doença e no desemprego sempre foi o cartão de visita, onde os impostos sempre serviram para garantir o suporte social, de repente estamos a caminhar na mesma direção dos que toda a vida viveram na selva do liberalismo e do individualismo? Como? Não é da liberdade, não se iludam, é do individualismo e da roleta do salve-se quem puder.
Vejo no Instituto Nacional de Estatística que Portugal tem cerca de seis milhões de apartamentos e que 10% da população vive sozinha. O ritmo de construção não é enorme (110.000 edifícios na última década) mas, somando o que existe, ao que se vai erguendo e à quantidade de agregados familiares, é mais ou menos simples de perceber que, em teoria, há tectos para todos. Onde estão as casas, pergunta-se?
Não deixa de ser extraordinário que, em todas as ações do Estado para combater os problemas na habitação, ainda ninguém lhes tenha exigido (a começar pela oposição) que entreguem um estudo com todos os imóveis públicos disponíveis para reabilitação ou ocupação, por parte destas famílias que simplesmente já não conseguem pagar as prestações.
Se pensarmos um pouco nisto, não é assim tão complicado chegar a uma solução. Ou a várias. Até porque o problema é perceptível para todos. Uma hipótese é os governos obrigarem a banca a ignorar a Lagarde e a arcar com o prejuízo, deixando as prestações como estavam. Outra é, eles próprios, usarem o dinheiro dos impostos para pagar os aumentos (como ao que parece o Governo de António Costa se propõe a fazer até 2024). Não deixa de ser uma opção política.
Se acharam uma boa ideia desviar o erário público para manter pessoas saudáveis em casa, certamente não se importarão de o fazer agora para lhes assegurar a dita casa. Até porque, com as notícias que já se vão ouvindo dos vendedores de máscaras, não tarda estão a pedir novos confinamentos. Não dá para confinar sem casa, não é? Pensem lá nisso.
Há ainda aquela hipótese mais rebuscada de se tentar o aumento de salários, a comelar pelo mínimo. É que isto de ver a inflação como indexante e justificação de todos os aumentos, menos dos salários, deixa quem trabalha numa situação de prisão e desespero permanente. No fim de tudo isto, também não seria mal pensado, enquanto se ataca a vertente financeira da coisa, que o Estado começasse a abrir as portas dos seus imóveis, tomando as dores de uma Remax dos pobres.
Das várias soluções possíveis, entre as leis da economia e as puras opções políticas, o que eu vejo são os trabalhadores a serem largados à sua sorte enquanto empobrecem a cada mês. Uma pessoa que trabalhe não deve ser pobre. Ponto final. Este é um princípio basilar de um país que se julga desenvolvido.
Em Portugal já se perdem a conta aos que, trabalhando, já nem pobres conseguem ser. Perder o direito à habitação e ver que o Estado Social, para o qual todos contribuímos, pura e simplesmente não existe, é um desespero total, um atestado de terceiro-mundismo e, pior, terreno fértil para as demagogias da extrema-direita que se aproveita destes problemas para vender um mundo onde a solidariedade social não existe. Podem agradecer aos sucessivos governos do centrão.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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