Categoria: Opinião

  • Costa e o circuito fechado da democracia portuguesa

    Costa e o circuito fechado da democracia portuguesa


    Não sou um grande fã de julgamentos na praça pública e, por isso, depois de tantas vezes ter criticado António Costa e o seu Governo, queria deixar-lhe agora, nesta altura, algumas palavras mais meigas nesta. Pelo menos para mim, é difícil perceber todos os contornos desta teia que levou à queda do Governo. Aliás, depois de ler o comunicado da Procuradoria-Geral da República, continuo sem entender ao certo qual é a acusação. O nome de Costa é referido nesta parte que aqui transcrevo:

    No decurso das investigações surgiu, além do mais, o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do primeiro-ministro e da sua intervenção para desbloquear procedimentos no contexto suprarreferido [processos do lítio e do hidrogénio]. Tais referências serão autonomamente analisadas no âmbito de inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça, por ser esse o foro competente“.

    Portanto, de acordo com as escutas feitas pelo Ministério Público, alguém usou o nome do primeiro-ministro para desbloquear negociatas. Essa é, até ver, a suspeita que recai sobre António Costa. Tratará agora o Ministério Público de provar a acusação e de nos explicar maiores envolvimentos e compadrios. Voltarei à teia do favorecimento e aos envolvidos quando a clareza for maior. Por enquanto estamos na fase do grito e dos ajustes de contas. De Marcelo a Sandra Felgueiras, o activo tóxico Galamba parece estar a produzir resultados.

    Para já, quero comentar a atitude de António Costa que, naquela conferência de imprensa em que anunciava a demissão, sozinho, me pareceu um homem decente. Bem sei que vivemos tempos de fogueiras e precisamos de sangue a toda a hora, mas, se muitos fazem tábua rasa do direito de presunção de inocência, eu prefiro correr o risco contrário, e assim dizer que António Costa, com todas as divergências das políticas escolhidas – que fui aqui escrevendo desde o primeiro dia no PÁGINA UM –, sempre me pareceu um homem honesto. E assumo esta frase sem certezas, mas também sem grandes problemas.

    Pareceu-me um homem decente porque teve a honestidade de, perante a gravidade da suspeição e a esperada morosidade habitual da Justiça portuguesa, não se agarrar ao poder. Não faço ideia em que resultará mais este mega-processo, mas certamente que o nome de António Costa andará pela lama por uns tempos. E isso, mesmo num país onde a desonestidade faz escola, não pode ser normal para o detentor de um cargo político, em especial da função de primeiro-ministro.

    Mostra-se infindável a quantidade de funcionários públicos – convém não esquecer que um político é um funcionário público ou, pelo menos, alguém em funções públicas – que vemos envolvidos em casos mediáticos. com acusações de corrupção ou abuso de poder. Aliás, é um dos cancros da nossa jovem democracia, a normalização do roubo, da desonestidade e da má gestão de dinheiro público.

    O país empobrece, vários políticos enriquecem, há horas e horas de diretos à porta de cada investigado, mas…. no fim, poucos acabam por pagar seja por que crime for ou ver sequer acusações provadas. Nesse sentido, António Costa marcou alguma diferença e teve a sensatez que a posição exigia.

    O Ministério Público fez em quatro anos de investigações aquilo que a Oposição não fez em oito, mas foi engraçado ver, também em horário nobre, a sede de poder dos líderes de direita, enquanto pediam por eleições antecipadas.

    Uma prenda de Natal antecipada que André Ventura, o principal interessado em eleições, não se coibiu de aproveitar. Até o tom do discurso mudou para algo mais moderado – como diria Passos Coelho –, abrindo portas para conversas com o PSD e percebendo que é agora ou nunca.

    Só de imaginar um Governo português com o Montenegro e o Ventura – e eventualmente o rapaz da Iniciativa Liberal – até me crescem pêlos indesejados no pescoço, mas é de facto uma possibilidade. Escrevi aqui na semana passada que o PSD, com Montenegro na liderança, não ganharia eleições enquanto António Costa por cá andasse. Pois António Costa vai-se embora e arriscamos ver o maior número de medíocres que alguma vez representou a direita portuguesa chegar ao poder.

    Miguel Relvas, esse senador da transparência e da respeitabilidade, dizia que o melhor candidato a primeiro-ministro do PS, na óptica do PSD, seria Pedro Nuno Santos. Eu concordo com ele, embora por razões diferentes.

    Pedro Nuno Santos, ao contrário de Costa, encosta-se mais à esquerda e menos ao centro. Ou seja, em teoria, liberta votos que o PSD tinha perdido para António Costa. Contudo, Pedro Nuno Santos também pode ser um candidato bom para recuperar uma segunda versão da geringonça e unir as esquerdas – portanto, na minha perspectiva, pode de facto ser a melhor solução para o período pós-Costa.

    Assim de repente, e olhando para os anos de governação PS, pior do que uma maioria dos socialistas, só mesmo um Governo de coligação entre liberais, tutti-frutti e racistas assumidos. E Portugal já tem problemas que chegue sem esta gente.

    Também agora é preciso saber se o Orçamento de Estado vai ser aprovado – com tudo o que isso implica nos escalões do IRS e no aumento das pensões –, ou se a crise política também vai afectar, ainda mais, uma população que não sabe fazer outra coisa que não seja empobrecer.

    Adivinham-se tempos complicados para Portugal e para os portugueses. Horas de debate, sangue e especulação nas televisões, sem que venha daí grande informação. Se tudo seguir o seu curso habitual, daqui a uns anos teremos prescrições administrativas e, com algum azar, um Governo por onde passou o Ventura. Mais uns milhões desperdiçados pela corrupção institucional que devora o país. Mais uma hipótese perdida de sermos um país civilizado.

    Quando vejo a dança e a azáfama, na demarcação da corrida ao poder, que se seguiram à declaração de António Costa, percebo que essa é a verdadeira luta. Os actores políticos, aqueles que nos dirigem e em quem votamos, não estão preocupados com a verdade ou com o apuramento de responsabilidades. Ninguém quer tornar a nossa democracia um lugar mais respirável para se viver. Aquilo que querem é, essencialmente, perceber quem será o próximo a tirar vantagem do sistema de Terceiro Mundo em que vivemos.

    Ou, como se diz nos Açores, querem “terminar uma vidinha”. A malta dos 900 euros mensais, os tais 75% que seguram o país, podem ir trocando discussões nas redes, nos cafés, entre um golo falhado do Rafa ou um roubo mais ou menos denunciado de um político. No essencial, receio que vamos mudar para tudo ficar igual. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Uma maçã não é uma pêra

    Uma maçã não é uma pêra

    – Posso pêra?

    Olhei-a com estranheza, enquanto os cabelos negros lhe invadiam a boca e com trejeitos sorridentes de criança balouçava o corpo, com um joelho apenas apoiado na cadeira, brincadeiras inventadas sem fim.

    “Posso pêra?”, repeti eu de olhos arregalados num inevitável zangar despótico, pela aparente insolência de ela combater o uso de verbos ou artigos e desprestigiar assim o bordado da língua materna.

    yellow fruit on white ceramic plate

    Hesitamos as duas. Ela a avaliar se tinha pisado uma risca comigo, ou se eu ia ceder. Eu a avaliar o quão ridícula me sentia por fincar pé, em coisas. Meras coisas, tantas coisas que, na verdade, poderia ceder, poderia deixar ao critério dela seguir ou não, mas avós agarrados aos meus ossos sussurram-me que endireite as costas e vinque a coisa, qualquer coisa, pelo menos uma coisa que a segure à terra quando as ventanias começarem a redemoinhar os cabelos negros e seja obrigada a franzir os olhos para conseguir ver melhor.

    (É para te ver melhor.)

    – Posso comer uma pêra?

    Ah! Podes. Assim está melhor!

    Mas que sei eu, na verdade? Se falantes de outra era, de roupas mais guarnecidas, nos ouvissem hoje a algaraviar, perguntar-se-iam como que raio havia degenerado a tal ponto a língua que, abdicando de rendilhados e vocábulos, se tinha convertido nesta coisa (qualquer coisa, pelo menos uma coisa) e talvez seja orgânico, talvez seja depurar de forma natural, pôr na borda do prato meias luas de cebola que serviram de tempero. Pode ser comido, mas pode ser recusado, porque há pressa, não há tempo, não importa.

    one red apple

    Se tens dois verbos, usa um. Se tens artigos (pronomes) cospe-os entre os dentes, como pevides, estão a mais, cospe! Já agora, aponta apenas. Faz ugh e aguarda a interpretação. Ou que te atirem a pêra à testa a ver se acertam.

    Mas que sei eu na verdade? Só o que vi que ela não viu. Não saberei o que ela verá depois de eu me finar, mas ela poderá sempre reler o passado, reler-me aqui a mim até depois de eu ser apenas um eco. E poderá até contemplar novas reflexões e interpretações deste meu rastro. Não sei. Não sei se é o culto da moda dedicado à adolescência. Dedicado aos meninos que não querem ser adultos

    (e não são)

    e dedicado ao abandono dos velhos, a era dos prazos de validade carimbados em Ver fundo da embalagem (o tempo perguntou ao tempo).

    Que verá ela um dia, ao reler este mundo que viveu, mas não sofreu? Verá que vivíamos a era da feminilidade tóxica? A era onde homens se atreviam a fingir-se mulheres e a cobiçarem-nos o que é só nosso? A era onde os homens se baralhavam se tivessem a voz mais grave, o corpo mais maciço, a barba mais rija, a força mais bruta?

    girl holding white flower during daytime

    Não recordo nem suspiro por uma era em que os homens dominavam. Em que os Kilonewtons associados à força e velocidade do punho anunciavam a sua passagem num troar seco de tenor, em que o mero olhar carregado de testosterona tentava vergar a nossa mais pequenina (insolência) forma de desafiar, de dizer que estamos aqui, somos metade, somos a metade multifunções, somos a metade portal, a metade guardiã, a metade que circunda o fogo em segurança. Não somos só uma coisa, eu, ela, nós todas, meninas e mulheres.

    Como se atrevem a achar que sabem o que somos? Como se atrevem a dizer que a vossa imaginação é superior a nós próprias, inteiras, ao nosso corpo, a como o nosso corpo informa a nossa alma, a como se o sangue que nos corre e alumia fosse igual a qualquer ciência do Dr. Frankenstein.

    E vocês… Meninas “aliadas”, criadas de servir… Feminilidade tóxica que vos emprenha a secura (da alma), estridentes capachos de homens que invadem o nosso sexo em enorme despudor, em enorme desrespeito, a acusar outros de masculinidade tóxica. A ironia. A ironia.

    – Posso pêra?

    brown seeds on brown wooden surface

    Comam, comam. Comam os verbos. Comam as essências. Cuspam as pevides.

    Que sei eu? Não estarei cá para ver o destino, só estou cá para segurar a ponte neste momento. Foi o sussurro que os avós me deram, enquanto se penduraram nas minhas costelas, com peso, um por um, com ternura firme e costas direitas.

    A chuva continuará a cair. Miudinha talvez. Ventanias vão e vêm, só temos de segurar a ponte.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Conflito israelo-árabe: a fórmula perfeita para nos distrair

    Conflito israelo-árabe: a fórmula perfeita para nos distrair


    A batalha da “Ponte de Stirling”, ocorrida a 12 de Setembro de 1297 na Escócia e que colocou em confronto as forças escocesas, lideradas por William Wallace, e as forças inglesas, lideradas por John de Warrenne, teve como desfecho a vitória escocesa. Segundo a crónica de Lanercost, no final da batalha, William Wallace mandou retirar uma tira larga da pele de um inglês chamado Cressingham, da sua cabeça ao calcanhar, para fazer dela um báculo para a sua espada.

    Esta extrema violência não tinha surgido do vácuo!, mas era o resultado da invasão da Escócia pela Inglaterra em 1296, em que o rei inglês Eduardo I forçou o rei escocês John de Balliol a abdicar. Foi seguramente o resultado do tratamento dado pelos ingleses aos escoceses durante esse período.

    aerial view of gray concrete building during daytime

    Assim, não pode constituir surpresa o ataque bárbaro e infame perpetrado pela organização terrorista Hamas no último dia 7 de Outubro, em que foram assassinados mais de mil israelitas e feitas reféns várias pessoas. Olho por olho, dente por dente.

    Como fundamentei em artigo anterior, o Estado foi a instituição mais perversa criada pelo homem: tem o monopólio da violência e de administrar a justiça sobre um dado território, bem como o monopólio de assaltar a população desse território, mais conhecido por tributação. Trata-se de uma organização que necessita de um número crescente de hospedeiros – a razão das guerras – com o propósito de os extorquir, humilhar e roubar em favor de uma minoria privilegiada de parasitas que a controla.

    No final da Primeira Guerra Mundial, com o fim do império Otomano, a Liga das Nações concedeu ao Reino Unido um mandato para o estabelecimento de condições políticas, administrativas e económicas para garantir o estabelecimento do lar nacional judaico e a salvaguarda dos direitos civis e religiosos de todos os habitantes da Palestina, sem distinção de raça e de religião.

    green tree on brown sand during daytime

    Apenas em 1947, após o término da Segunda Guerra Mundial, a substituta da Liga das Nações, as Nações Unidas, propôs a partição da Palestina em dois Estados: um judeu e um árabe – não um, mas dois! –, sem ninguém ter questionado a aquiescência da população a esse respeito.

    Como era natural, o mundo árabe nunca aceitou a presença de tal Estado nem tão pouco do Estado árabe, sucedendo-se os inevitáveis conflitos militares em que o Estado de Israel saiu quase sempre vencedor, permitindo-lhe hoje controlar um território muito superior ao plano inicial das Nações Unidas. Devido a estes conflitos, cerca de 700 mil palestinos foram expulsos ou forçados a fugir das suas terras para o Líbano e Jordânia.

    E quem é que o Estado de Israel efectivamente governa, que território controla? Apesar de toda a propaganda sobre uma solução de dois Estados e dos mapas que mostram a Cisjordânia e a Faixa de Gaza separadas, o facto é que o Estado de Israel governa tudo entre o rio Jordão e o mar, dado que controla a entrada e a saída de pessoas e bens, supervisiona a segurança e tem a capacidade de impor as suas decisões, leis e políticas a milhões de pessoas sem o seu consentimento.

    blue and white flag on pole

    Os palestinianos da Cisjordânia enfrentam severas restrições à sua liberdade de circulação, desde postos de controlo a auto-estradas segregadas! O Estado de Israel dedica-se a destruir frequentemente as suas casas e a fechar empresas por falta de licenças. São vítimas de assédio constante e de actos de vandalismo, de destruição agrícola e de violência, perpetrados por colonos judeus que operam sob a protecção das Forças Armadas de Israel.

    Em bairros de Jerusalém Oriental, os palestinos são frequentemente despejados das suas casas ao abrigo de uma lei que os declara “ausentes”, mesmo que vivam na sua casa há décadas. Num vídeo de um despejo deste tipo, um colono judeu, de forma infame, diz a um proprietário palestino o seguinte: “Se eu não a roubar, alguém a vai roubar”.

    A Faixa de Gaza, conhecida por ser “a maior prisão a céu aberto do mundo” e sem a presença israelita desde 2005, continua na verdade a ser controlada por Israel a partir do exterior, atirando a sua população de dois milhões de pessoas para uma existência miserável.

    Man in Blue and White T-shirt Holding Black Dslr Camera

    Às fronteiras aéreas, marítimas e terrestres de Gaza, o Estado de Israel impõe um bloqueio económico permanente: só são concedidas autorizações de viagem a indivíduos em circunstâncias especiais, nenhum aeroporto ou porto marítimo é permitida a sua construção e as importações e exportações por via rodoviária são fortemente restringidas.

    O Estado do Egipto tem agravado esta situação com as suas próprias restrições e encerramentos periódicos das fronteiras – a parte sul da Faixa de Gaza faz fronteira com o Egipto. É precisamente neste ponto que agora surgem os argumentos mais mirabolantes para justificar esta tragédia: ninguém os quer; até o Estado árabe do Egipto não lhes abre as portas; nenhuma nação árabe os aceita como refugiados.

    Isto faz lembrar os argumentos dos Nacionais Socialistas dos anos 30 do século transacto: ninguém os quer, nenhum estado europeu aceita de bom grado comunidades de judeus. As semelhanças dos argumentos são notáveis!

    three men and one woman soldiers standing on rock during daytime

    Para piorar a situação, em 2006, os palestinos elegeram uma associação criminosa para os governar: o Hamas. Temos então um Estado terrorista, armado até aos dentes e equipado com a melhor tecnologia militar do mundo, em luta com uma organização criminosa, que vive do terror e da violência sobre a população, usando-a muitas vezes como escudos humanos.

    O resultado é a devastação económica: a taxa de desemprego antes de 7 de Outubro era superior a 46%, o rendimento per capita correspondia apenas a 25% do nível da Cisjordânia e 65% dos habitantes de Gaza estavam abaixo do limiar de pobreza.

    O ataque de 7 de Outubro foi apenas mais um episódio desta guerra entre bandidos, assassinos e psicopatas, em que cada um tenta superar em violência e brutalidade o oponente. Recorda-nos a violência entre escoceses e ingleses nos tempos do “lendário” William Wallace.

    O mais ridículo deste trágico conflito são os argumentos daqueles que há uns meses aplaudiam os actos de terrorismo perpetrados pelos “Estados Livres do Ocidente” durante a putativa pandemia: prisões domiciliárias, inoculações forçadas de substâncias experimentais e restrições à liberdade de circulação eram os únicos métodos válidos para “cercar o vírus”. E quem não se recorda dos inaceitáveis mísseis russos sobre as cidades ucranianas? Agora podem voar livremente nos céus de Gaza.

    black barbwire in close up photography during daytime

    Dizem-nos mais: que Israel tem o direito a “defender-se”, dando-nos a entender que é legítimo terraplanar edifícios com mísseis e bombas, assassinando de forma indiscriminada. Aqui, os meios já justificam os fins. Até aprovam a desumanização dos palestinos, nomeadamente as palavras do ministro da defesa do Estado terrorista de Israel: “estamos a combater animais, não pessoas”. Ou que até mesmo a opção nuclear poderá servir para eliminar da face da Terra aquele “curral”.

    Outros chegam a justificar a sua desgraça em resultado da “inferioridade” da sua civilização: o trato miserável dado às mulheres ou a discriminação dos homossexuais; esquecem-se, no entanto, de que a sua “superior civilização”, em nome de um “vírus”, discriminou a população que se recusou a ser inoculada com substâncias experimentais ou impôs um véu em forma de fralda facial.

    Em nenhum momento se lhes ocorreu que toda esta violência resulta da existência de Estados e de bandidos psicopatas que aspiram a sê-lo. Não se trata da velha fórmula maniqueísta: os bons vs. os maus, mas sim de uma violência programada para dividir-nos e manipular-nos, para que nos ataquemos uns aos outros, enquanto a sua agenda progride de forma inexorável.

    bird's eye photography of road on dessert

    E que agenda é essa? Continuarem a fomentar conflitos armados que custam milhares de milhões de dólares norte-americanos, pagos com a impressora de notas de monopólio que vão parar aos bolsos de uma minoria de privilegiados, roubando-nos sem piedade, através da perda de valor do dinheiro que levamos no bolso.

    Gerando-se o ódio entre nós, distraímo-nos do verdadeiro inimigo: o Estado, a entidade parasitária que necessita do nosso consentimento para sobreviver. Manter-nos cheios de medo, distraídos e resignados é a sua fórmula! Este conflito entre bandidos e psicopatas foi o cenário perfeito que se seguiu à farsa pandémica e à guerra na Ucrânia, bastava atiçar aquele vespeiro, onde as únicas vítimas são as populações israelitas e palestinas.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Para variar, recordemos uma mulher ‘antifeminista’

    Para variar, recordemos uma mulher ‘antifeminista’

    Nos dias que correm, não faltam homenagens, odes e aplausos a mulheres feministas que, no passado ou no presente, se destacaram pela sua luta em prol dos “direitos das mulheres”. Há filmes e séries sobre as sufragistas e líderes de movimentos femininos retratadas como heroínas.

    Para uma boa parte das pessoas é um dado adquirido e inquestionável que o movimento feminista – geralmente dividido em três fases –, corresponde ao “lado certo” da História, e que as mulheres a batalhar pela ‘libertação’ feminina são as boas da fita. Eis o resultado da propaganda: revela-se apenas o lado “conveniente” da história, e varre-se para debaixo do tapete outros factos, outros posicionamentos, que têm também a sua legitimidade. Mas a verdade é que o movimento feminista nem sempre gozou de um apoio unânime entre as mulheres, tendo sido até alvo, em vários momentos, de uma energética oposição.

    Actualmente, parece estar a desenhar-se, por parte de algumas mulheres, uma tendência, crescente, de rejeição e questionamento sobre certos pressupostos feministas, mas a cultura mainstream continua a ostracizar por completo ideias “diferentes”, logo ditas “antifeministas”. E a diabolizar as mulheres que as trazem para cima da mesa.

    Este fenómeno não é, contudo, recente. No passado, já houve mulheres que torceram o nariz à propaganda feminista que prometia trazer consigo a “derradeira salvação”, convencendo as mulheres (ocidentais) que eram oprimidas, dizendo-lhes que a felicidade passava por se libertarem das amarras da maternidade e do trabalho doméstico – que algumas feministas tinham até a ousadia de comparar ao trabalho escravo!

    Essas mulheres viram o outro braço de quem lhe acenava com a cenoura da “libertação”. Viram que essa cenoura, na verdade, era como uma espécie de maçã envenenada que parecia apetecível e luzidia, mas poderia ser letal. Viram, de facto, que o feminismo foi, em grande medida, um “Cavalo de Tróia” para incutir aos poucos hábitos e ideias perversas – como a propaganda LGBT que assistimos hoje, cada vez mais agressiva –, e um instrumento para nivelar homens e mulheres de forma a serem mais fáceis de controlar e de “tributar”, educados para serem como hamsters reféns do trabalho e esvaziados do seu poder e influência no seio da família, já que a educação das crianças ficaria a cargo do Estado.

    woman spread hand

    Em resumo, era a fórmula perfeita para criar uma população facilmente manobrada, fragmentando e destruindo a família. E, já agora, vale a pena deixar a nota: o movimento feminista, sempre vendido como uma pedra no sapato do “patriarcado”, foi na verdade financiado e apoiado também por alguns dos homens mais poderosos do mundo, como os membros da família Rockerfeller.

    Uma das mulheres que alcançou maior atenção mediática pelo seu activismo contra o movimento feminista foi Phyllis Schlafly (1924-2016), uma advogada norte-americana conhecida por criar uma enorme onda de contestação à Equal Rights Amendment (ERA) nos anos 1970.

    Esta emenda queria, supostamente, tornar inconstitucional a discriminação com base no sexo, mas Schlafly contrapunha que, na verdade, poderia retirar às mulheres privilégios como o direito a serem financeiramente sustentadas pelos maridos e o costume de ficarem com a custódia dos filhos em caso de divórcio, ou de não poderem ser convocadas em caso de guerra.

    Phyllis Schlafly (1924-2016)

    A activista lançou, na altura, o movimento STOP ERA, com a sigla STOP a significar Stop Taking Away our Privileges [Parem de roubar os nossos privilégios], e conseguiu mesmo impedir que a emenda fosse ratificada. No fundo, Schlafly viu para lá do slogan muito agradável ao ouvido, mas que muitas vezes não passa de uma forma de manipulação dos “direitos iguais entre os sexos”.

    Aqui chegados, com várias décadas de feminismo em cima, é fácil, aos mais atentos, ver quais foram os verdadeiros intentos do movimento. Quando hoje vemos mulheres a serem silenciadas porque se insurgem contra a possibilidade de serem reduzidas a “pessoas com útero”, ou porque explicam que as “pessoas que menstruam” são mulheres, é difícil não acreditar que o feminismo foi apenas o “prefácio” da ideologia de género, ao afirmar taxativamente que “não existem diferenças entre os dois sexos”.

    Mas existem diferenças entre os sexos, e não são poucas. Homens e mulheres são muito diferentes, e ainda bem. A sociedade deve tirar partido dessas diferenças, que os tornam complementares, em vez de tentar aplaná-las de uma forma perversa, reprimindo a sua natureza. E, claro, reconhecer que ambos têm certas tendências naturais distintas não é o mesmo que dizer que as mulheres vão gostar todas de bonecas e os homens de jogar à bola. Só que o principal motivo pelo qual o movimento feminista é nocivo para as mulheres é mesmo esse: diz-lhes que são iguais aos homens e não tem em conta a sua singularidade.

    silhouette of man and woman facing each other during golden hour

    Podemos apontar vários efeitos colaterais do feminismo – elencar e aprofundar cada um deles daria para escrever um livro –, como a banalização da pílula anticoncepcional, que acarreta uma lista infindável de consequências físicas indesejáveis, e a impossibilidade de as mulheres ficarem em casa a cuidar dos filhos se assim o desejarem, porque hoje, à excepção de umas poucas privilegiadas, a maior parte das mães não pode prescindir de um ordenado.

    É, portanto, em defesa das mulheres que se torna imperativo, várias gerações após o início do feminismo, apontar os seus malefícios e as suas falácias. A degeneração parece estar a atingir agora o seu auge, mas foi chegando em pézinhos de lã, sempre travestida de boas intenções, dentro de uma caixinha de eufemismos, mentiras e frases bonitas. Por terem percebido onde iria desembocar a ladainha da “libertação das mulheres”, e terem visto para lá da propaganda, mulheres como Phyllis Schlafly merecem ser relembradas.

    Maria Afonso Peixoto é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Metam a amnistia onde o sol não brilha

    Metam a amnistia onde o sol não brilha


    Em Dezembro do ano passado, após ver-me obrigado a recorrer ao Tribunal Administrativo de Lisboa para aceder a documentos em posse da Ordem dos Médicos, publiquei um artigo de investigação que revelava as negociações, à margem das normas da DGS, entre a Ordem dos Médicos e o almirante Gouveia e Melo para a vacinação de médicos não-prioritários em Fevereiro de 2021. Além de ser ilegal, estávamos perante uma grave falha de ética, até porque, semanas antes, Gouveia e Melo substituíra Francisco Ramos por irregularidades similares no programa de vacinação contra a covid-19, que então se iniciara num (então) cenário de escassez de doses.

    O artigo intitulava-se “Gouveia e Melo ‘mercadejou’ administração de vacinas a médicos não-prioritários uma semana após tomar posse na task force”, tendo como antetítulo “Factura ao Hospital das Forças Armadas associada a donativos não declarados de farmacêuticas à Ordem dos Médicos”. Como baseado em documentos, mostrados à luz das normas em vigor e às competências que então o actual Chefe de Estado-Maior da Armada detinha, se tivéssemos num país decente, aquele conjunto de artigos que então se publicou no PÁGINA UM daria mais do que um (nunca mais concluído) inquérito da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS).

    Mas como estamos num país indecente, o almirante Gouveia e Melo viu na Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) uma excelente guarita para descredibilizar, não apenas o meu trabalho, como também para me punir.

    E assim, munindo-se de recursos humanos da Armada – o Almirante Gouveia e Melo mandatou o seu próprio porta-voz para apresentar uma queixa contra um jornalista sobre um assunto que nada tinha a ver com as suas funções militares –, a sua queixa foi recebida de braços abertos por dois dos membros do Secretariado da CCPJ, que lestos concluíram que eu fizera “acusações sem provas”.

    E foi-me aberta instrução, dirigida por um jornalista do Correio da Manhã com responsabilidades editoriais no CMTV. Instrução à qual, formalmente, me pronunciei em Agosto passado, segundo normas do Direito Administrativo, porque a CCPJ rege-se por normas legais, e não pelas chico-espertices e demais safadezas da quadrilha (N.B.: não é a primeira acepção do termo na Infopédia) que integra o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.

    Artigo de investigação do PÁGINA UM baseou-se em documentos obtidos após uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Andava eu, curioso, em saber que sairia da instrução do meu processo disciplinar, e eis que recebo hoje o seguinte e-mail da CCPJ, que transcrevo na íntegra (com negritos da minha responsabilidade):

    “Incumbe-me a Secção Disciplinar desta CCPJ de informar V. Exas. do despacho emitido por essa Secção e que a seguir se transcreve:

    ‘Encontra-se a decorrer a instrução do processo disciplinar nº 1/2023, sobre possível infração do dever previsto na alínea c) do nº 2 do artigo 14º do Estatuto do Jornalista, punível com uma das sanções disciplinares previstas no artigo 8º do Estatuto Disciplinar dos Jornalistas, contudo, como:

    • Os factos foram praticados em data anterior a 19 de junho de 2023;
    • Os factos imputados não integram a prática de qualquer ilícito penal;
    • As sanções aplicáveis não são superiores a suspensão ou prisão disciplinar.

    (Artigo 6º – amnistia de infrações disciplinares e infrações disciplinares militares)

    Entende-se estarem reunidos todos os requisitos para que o presente processo disciplinar seja abrangido pela amnistia concedida pela Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, publicada no D.R. n.º 149/2023, 1.º suplemento, série I, de 2/8/2023, págs. 2 a 7 (por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude).

    Face ao exposto, e para que o procedimento disciplinar possa ser considerado extinto, vem a Secção Disciplinar perguntar a V. Exa. se não se opõe ao encerramento do processo por aplicação da referida Lei.

    A minha resposta só poderia ser a seguinte:

    Tendo sido informado de que, estando a decorrer a instrução do processo disciplinar nº 1/2023, no decurso de uma queixa do Chefe de Estado-Maior da Armada, Almirante Gouveia e Melo (que os membros do Secretariado da CCPJ, lestos, consideraram ser merecedor de infracção disciplinar, mesmo estando os factos por mim relatados a serem alvo de uma inspecção da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde), sou agora informado de um despacho emitido pela Secção Disciplinar propondo a extinção do processo ao abrigo da amnistia concedida pela Lei nº 38-A/2023.

    closeup photography of plant on ground

    Como não necessito de amnistias para defender, como jornalista, o meu trabalho que, ainda mais neste caso em concreto, reputo de rigoroso e pertinente, não poderia jamais aceitar que a CCPJ pudesse deixar no ar qualquer dúvida sobre essa matéria, pelo que aguardava com interesse a finalização da instrução do processo disciplinar.

    Donde, nem sequer agradecendo a V. “oferta”, como presente envenenado, serve a presente missiva para esclarecer que, OBVIAMENTE, oponho-me à extinção do processo disciplinar, reiterando, contudo, que a instrução não se prolongue ad aeternum. A única decisão que me satisfará é o arquivamento por ausência de quaisquer indícios de violação das normas previstas no Regulamento Disciplinar. Não preciso de outros ‘empenhos’.

    Na verdade, poderia ter sido mais sintético, e respondido com o título deste editorial: “Metam a amnistia onde o sol não brilha”.

  • Agora a sério, Marcelo: ¿Por qué no te callas?

    Agora a sério, Marcelo: ¿Por qué no te callas?


    Marcelo Rebelo de Sousa, o nosso Marcelo, Presidente dos Afectos e das Selfies, disse a um representante palestiniano, no Bazar Diplomático, que, “desta vez, foram vocês que começaram” e “têm que ser mais moderados”. Há muito que deixei de prestar atenção a MRS, não só por ser um presidente no qual não me sinto representado mas, principalmente, pela vergonha alheia que me causa.

    Sempre achei o Marcelo, suposto ‘afilhado’ do outro Marcelo, um excelente actor. Alguém que, lá no íntimo, bebeu os ensinamentos do Estado Novo, maturou aquele conservadorismo ao longo das décadas e deu-lhe uma nova roupagem de modernidade nos comentários da TVI, até se tornar um suportável moderado para ganhar eleições.

    No fundo, no fundo, Marcelo é aquele velhinho hiperactivo que não distingue proximidade da população com demagogia barata. Aquele que não separa a pose de Estado da piada barata. Aquele que pensa que estar à vontade e à vontadinha são a mesma coisa.

    Marcelo é o homem profundamente sensível e preocupado que aparece na capa das revistas agarrado a outro ancião que chora, desesperado, a perda da casa e pertences engolidos pelo fogo de Pedrógão, mas que, depois das luzes das televisões se desligarem, o viu morrer alguns anos depois, ainda sem ter uma casa para viver.

    Marcelo é o presidente que visita a comunidade portuguesa no Canadá e comenta o tamanho dos decotes alheios, ou é aquele que passa pelo Alentejo e faz questão de realçar a obesidade de uma das pessoas com quem tira fotografias. Marcelo é um homem que me envergonha, por estes dias, enquanto primeira figura da Nação.

    Se enquanto o tema são decotes, ainda se pode mudar de canal e procurar temas fracturantes. Mas quando a gaffe acontece dirigida a Gaza, já é mais difícil de tolerar. Essencialmente, por uma questão: não é uma gaffe.

    Não foi um deslize. Não foi uma inconveniência. Foi sim a demonstração de uma ideologia e de um pensamento profundamente enviesado, onde Marcelo não está sozinho neste chamado “Mundo Ocidental”, note-se. Mesmo sabendo ser nula a importância de Portugal nas decisões que contam para a política externa da União Europeia, eu fico, ainda assim, incomodado por ver que um Presidente, o do país onde nasci, dizer a um diplomata palestiniano que, “desta vez, eles é que começaram”.

    De forma educada, o representante da Palestina ainda respondeu: “Senhor. Presidente, nós estamos a ser ocupados há 56 anos… Como é que começámos algo?” E Marcelo, como não é rapaz de se calar perante as asneiras, ainda retorquiu que precisam de mais moderação.

    Faz sentido. De facto, tudo aquilo que precisa um povo a viver há décadas numa prisão, e a ser chacinado perante a aprovação do Ocidente, com uma tenebrosa regularidade, é de mais calma e de mais moderação. Como não pedir a pessoas que andam há 50 anos a retirar os filhos de baixo dos escombros de edifícios, que tenham mais calma e moderação perante o invasor?

    Há uma imagem deste fim-de-semana que me marcou. Um pai, relativamente novo, que gritava desesperado para encontrarem o filho no meio da destruição provocada pelo bombardeamento. Um entre milhares que ficam sem os filhos sem terem feito absolutamente nada que não seja aceitar nascer, viver e morrer numa terra cercada.

    Enquanto vejo o desespero daquele homem, e de imediato penso na dor que deve ser perder um filho, imagino o novo militante do Hamas que ali se criou. Em que Mundo vivemos nós se imaginarmos que, para destruir o Hamas, se torna aceitável arrasar milhares de palestinianos inocentes? A única coisa que Israel conseguirá é, sem a mais pequena dúvida, engrossar as filas dos guerrilheiros que defendem o fim de Israel.

    Entretanto, o ‘nosso’ general-NATO, Isidro Pereira, comentava um destes dias que a Resolução das Nações Unidas sobre alvos permitidos é muito clara. Se por lá anda o inimigo, deixa de ser zona civil e passa a militar. Ou seja, num espaço tão pequeno como Gaza, isto é uma espécie de bar aberto. Se entre túneis, um militante do Hamas passar numa qualquer rua de Gaza, aquela rua passa a ser um alvo possível. E é dessa forma que, ao fim de três semanas, os mortos palestinianos vão a caminho dos 11.000. Mais crianças e adultos civis do que em toda a guerra da Ucrânia.

    Dizia outro diplomata palestiniano em Londres que, desta vez, os olhos do mundo se viraram para Gaza porque há mortos israelitas para lamentar. Esta parte é muito importante, pois também mostra o nosso racismo primário nas décadas deste conflito.

    No dia 7 de Outubro, o Hamas fugiu ao controlo israelita, que por norma controla a prisão onde os palestinianos vivem, e num ataque sem precedentes, matou mais de mil israelitas entre soldados e civis. O mundo condenou (e bem) o Hamas, e o racismo presente em boa parte dos analistas, tratou de sincronizar o relógio do conflito israelo-árabe para a linha temporal definida por Marcelo Rebelo de Sousa.

    Desta vez, “foram vocês que começaram”. Desta vez, foram vocês que não ficaram quietos e moderados, satisfeitos e pacientes, dentro do pátio da prisão. Desta vez, foram vocês que não se deixaram matar, tranquilamente e sem grande barulho do Ocidente, pelos bombardeamentos habituais e rotineiros.

    Hoje, três semanas passadas, cada morto israelita foi honrado e vingado com 11 mortos palestinianos, quatro ou cinco dos quais crianças. Mais de um milhão de pessoas deslocadas. Um genocídio em curso perante a protecção norte-americana e, parcialmente, europeia.

    Há 50 anos que estamos habituados aos rodapés de Gaza e da Cisjordânia. Mais uma bomba, mais 50 mortos; mais uma retaliação, mais 100 presos como resposta à morte de um rabino; mais quatro prédios no chão por causa do rocket que ficou no Iron Dome.

    A moderação dos palestinianos levou-os a aguentar uma ocupação durante 75 anos, a ver mais de 30.000 pessoas morrerem em bombardeamentos indiscriminados de Israel e a ter um terço da população deslocada. Quase 1,5 milhões de palestinianos não sabem o que é viver fora de um campo de refugiados. Mas notem… Foram eles que começaram, desta vez.

    Marcelo, como diria um rei espanhol de má memória: ¿Por qué no te callas?

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O desperdício e o exagero

    O desperdício e o exagero


    As instituições públicas são hoje vítimas da cultura desresponsabilizada. O “quero lá saber”; o “não me importa”; o “isto é tudo nosso”, permitiu um regabofe que desautoriza as coordenações e a gestão.

    Retomo a manhã num hospital onde passaram a noite dezenas de computadores ligados, onde os ares condicionados estiveram a bombar para salas desertas, onde o calor desmedido vai para a rua pelas janelas abertas, onde as luzes acesas não importam a ninguém.

    Person Holding Syringe

    De manhã, chegarão os cumpridores de protocolos, os carneiros e as ovelhas que fazem o que lhes dizem – cumprem, portanto!

    São os mesmos que deixaram as luzes acesas, os computadores ligados, as torneiras a pingar, e não registam. São os mesmos que não levantam os pratos, não arrumam os tabuleiros e não se questionam. Porque coloco uma tolha de papel nos tabuleiros da cantina ou do restaurante? Porque preciso de telemóvel de manhã? Para que serve este ruído que coloco nos ouvidos ao despertar? Porque tomo banhos tão demorados? Porque deixo a torneira aberta enquanto esfrego os dentes? Porque?

    São os mesmos do discurso sustentável e amigos dos animais.

    Nunca se questionam do valor da pegada ecológica dos seus pets. Nunca se interrogam da enormidade de coisas desnecessárias que fazem. Antes de ver doentes, já pediram análises e exames complementares. Antes de palpar, auscultar, sentir, já têm opinião. Abrir coisas sem ter certeza de as utilizar. O desperdício e a cultura de não reutilizar instalaram-se como normas e protocolos indiscutíveis.

    person in white long sleeve shirt sitting on chair

    Não há perguntas, e quando se levantam, são como ofensas. Claro que os volumes de entradas e saídas levam a rotinas, e estas facilitam os gestos repetidos. O discurso da identidade, da individualidade, morre nesta prática repetitiva.

    Há uma cultura defensiva que sobre passa a sustentabilidade. Melhor fazer tudo do que ser acusado de alguma coisa. Assim, desresponsabilizar é diluir decisões, é aumentar desperdício, é fazer exames de modo incontrolado. Hoje, a cidadania vive dos medos televisivos.

    Os problemas hiperbolizados nas reportagens insanas, onde os miseráveis explanam suas dores, onde os protestos geram audiências que não cuidam de saber, não cuidam de perguntar, mas atiram ódios e likes para matar.

    person in gray long sleeve shirt holding black tablet computer

    É o tempo das perguntas-aforismo: “Pode ser grave”; “pode haver alguma coisa”; “como pode garantir isso?” O pânico gera sempre processos irracionais e o medo pode ser construído, induzido, incutido. Afinal o medo é um negócio também. Temos de perceber e interiorizar que a vida é sem garantia. A vida decorre sem certezas.

    Já os sinais existem para se lhes dar atenção. Se fizermos milhares de exames sem sinais de perigo, estamos a gerar desperdício. A cultura dos rastreios é cada vez mais discutível! Os rastreios geram muito poucos diagnósticos para o volume que se gasta. Há toda uma indústria do rastreio que gera negócios avultados. Uma observação cuidada das pessoas tem muito maior eficiência.

    A realidade de hoje são milhões de toneladas de lixo e desperdício construídas para obrigação de normas e milhões de inutilidades para satisfazer a desresponsabilização. Os supermercados dão aulas de desperdício quando vendem maçãs embaladas duplamente. Mas eles cumprem normas europeias, desenhadas por meninos que legislam em diarreia sobre coisas de que não tiveram qualquer experiência. Os hospitais são supermercados com tripla embalagem para a maçã.

    O desperdício e o exagero são pois a doença nova das sociedades que vivem sob o mando dos legisladores. A melhor regra que conheço é o Código de Estrada, mas a realidade das megacidades asiáticas e africanas comprova que no caos também se desenrascam. Prefiro viver com regras, prefiro uma sociedade com educação.

    E o que é a educação? É a percepção da importância dos outros nas nossas vidas. Porque os outros existem, não devo ter o telefone aos gritos. Porque respeito os outros, devo deixar entrar na fila um a um. Porque somos pessoas, não devo pedir exames desnecessários. Porque somos gente, devemos falar mais que teclar nas redes.

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Serviço Nacional de Saúde: as saudades que tenho do ‘SNS do Arnaut’

    Serviço Nacional de Saúde: as saudades que tenho do ‘SNS do Arnaut’


    O que se passa com a Saúde em Portugal?

    Ouvimos críticas diárias da população, em geral, e de praticamente todos os políticos que não sejam os do Partido no Poder.

    Os médicos e os enfermeiros andam em luta, há meses, com reivindicações que o Governo considera impossíveis de atender.

    doctor holding red stethoscope

    Os Bombeiros não conseguem fazer o seu trabalho em condições, já não só por falta de verba mas porque as suas ambulâncias ficam paradas, durante horas, às portas dos hospitais, porque os doentes que transportam têm de ficar nas macas das viaturas por não haver camas vagas no edifício.

    A maior parte dos hospitais vão perdendo médicos especialistas levando a que os seus antigos utentes se tenham que deslocar para outras localidades, muitas vezes a dezenas de quilómetros de distância. 

    No entanto, sempre que o Primeiro-Ministro se debruça sobre este tema é peremptório: nunca houve tantos médicos em Portugal, o número de consultas tem aumentado em dezenas de milhares todos os anos, tal como as cirurgias e, mais, nunca se investiu tanto na saúde como nos dias de hoje com o Orçamento do Serviço Nacional de Saúde a chegar aos 14 mil milhões de euros.

    Fiquei um pouco mais esclarecido – sobre o que tem levado a esta aparente contradição, de haver cada vez mais médicos, consultas, cirurgias e dinheiro, mas, em simultâneo, um aumento nas queixas por dificuldades nos atendimentos, incluindo aos doentes em risco, e um descontentamento generalizado de médicos, enfermeiros e utentes – quando li um texto do Professor Miguel Gouveia, da Universidade Católica de Lisboa.

    Escreveu ele:

    O problema é que no SNS estes profissionais de saúde têm uma produtividade baixa. A raiz do problema não é apenas a redução do horário de trabalho de alguns profissionais para as 35 horas semanais. As estimativas da produtividade por hora trabalhada indicam que mesmo nesta perspetiva mais específica a situação se deteriorou.

    Porque é que a produtividade dos profissionais de saúde baixou? Não é por falta de esforço ou pelas poucas horas de trabalho. Pelo contrário, as preocupações são que muitos profissionais de saúde estão em situação de “burn out”, ou seja, no limiar ou para lá do esgotamento. Como se explica então que haja mais médicos, que estes trabalhem tão intensamente e que tantos problemas de saúde não sejam resolvidos?”

    Quando eu pensava que o Professor Miguel Gouveia seria mais um a apontar para o envelhecimento da população como razão principal para o problema, fiquei surpreendido ao constatar que, sendo este um dos motivos apontados, os dois principais culpados deste caos, para ele, são a má gestão dos hospitais e “o não financiar de forma razoável as unidades de cuidados continuados, na sua grande maioria não estatais” fazendo com que “o Estado tenha estado a estrangular estas unidades e a reduzir a sua capacidade de oferta de cuidados e logo a forçar o desvio para dentro do SNS de muitos consumos de recursos”.

    Este texto, que devia ser de leitura obrigatória, é elucidativo sobre a criação e ampliação deste enorme problema, mas dá, também, algumas pistas para a sua correcção.

    Se, pelo menos, os responsáveis o tivessem em conta, talvez fossem evitados alguns dos dramas que se vivem nos nossos hospitais e que já vão sendo de tal modo frequentes que começamos a ser cúmplices das maiores vergonhas e humilhações a que os cidadãos que procuram cuidados médicos estão sujeitos.

    Nem que seja pelo silêncio e pelo engolir da revolta.

    É que a remodelação profunda no Serviço Nacional de Saúde também passa, ou deveria começar, pela consciência que todos os que ali trabalham deveriam ter pela gente fragilizada, muitas vezes em pânico, que a eles recorre como sendo a sua última esperança.

    Sim, muitas vezes estes profissionais estão esgotados, e legitimamente zangados, pelo modo como o Estado, e alguns utentes, os tratam.

    Sim, muitas vezes sentem-se impotentes por não terem os meios para o cumprimento escrupuloso da sua missão e têm que improvisar, que fazer horas extraordinárias e deixarem a sua vida, e a dos seus, para trás.

    No entanto, há linhas limite que não podem ser ultrapassadas. Custe o que custar.

    Esta semana atingiu-se o apogeu da falta de profissionalismo no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, onde uma jovem de 32 anos, grávida de oito meses, foi informada, numa consulta de rotina, que a filha “não tinha batimentos cardíacos”.  

    Foi medicada “para induzir o parto” e mandada para casa.

    No dia seguinte regressou ao hospital para o parto mas, por não haver pessoal para o realizar, voltou para a sua residência com o feto na barriga.

    A jovem optou por não ficar na enfermaria porque iria ficar “com outras mulheres grávidas ou recém-mães com os seus bebés” o que, obviamente, iria aumentar o seu terrível trauma.

    Só três dias depois o parto foi feito.

    woman in white lace sleeveless dress standing beside brown wooden crib

    Sou um acérrimo defensor do Serviço Nacional de Saúde e estou imensamente grato aos seus fundadores e a todos os profissionais com que me tenho cruzado.

    Mas sei que nem eles se revêm naquilo em que ele se transformou.

    Tenho saudades do meu SNS.

    Do SNS de António Arnaut.

    Vítor Ilharco é assessor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Sai mais uma ciclogénese explosiva, um rio atmosférico e um comboio de tempestades para a mesa do canto…

    Sai mais uma ciclogénese explosiva, um rio atmosférico e um comboio de tempestades para a mesa do canto…


    Sou um jornalista que adora mistérios – que, na verdade, revelam tão-só uma coisa: ignorância. E adoro mistérios porque detesto a ignorância. A minha própria, para começar.

    E, por isso mesmo, por pura ignorância minha continua a ser um mistério para mim os recorrentes temas abordados pela directora-adjunta do jornal/rádio Observador, Filomena Martins.

    gray asphalt road under gray clouds

    Por Zeus!

    Por Hermes!

    Por Tyche!

    Por Néfeles!

    Por Zéfiro!

    Por Éolo!

    Por Bóreas!

    Por Notus!

    Por todos os Anemois!

    Por Tutatis!

    Filomena Martins diz, na sua biografia, que “depois da paixão pela história e da prática obsessiva na área da arqueologia”, acabou licenciada em Comunicação Social, tendo passado pelo Record, Correio da Manhã, Sábado e Diário de Notícias, antes de ingressar em Março de 2015 no Observador. E conclui: “O resto é história”.

    Não é só história; é meteorologia também, mas da dura, ao melhor estilo do jargão meteorológico, onde não há apenas chuva, sol, humidade relativa, pressão atmosférica e, vá lá, um ‘anticiclonezito’ dos Açores.

    Não. A directora-adjunta do Observador – que em 44 textos escritos este ano, 34 vezes dedica-os à meteorologia – não é assim tão simplista. Por exemplo, hoje anuncia que a tempestade Domingos “não será tão devastadora como a sua ‘irmã’ Ciarán, porque a ciclogénese explosiva se produzirá no mar”.

    Na pena de Filomena Martins, aquilo que em tempos não muito longínquos seria, enfim, um temporal outonal – cujos estragos causados se devem mais ao péssimo planeamento biofísico do território (o saudoso arquitecto Ribeiro Teles explicava isso muito bem) e à ainda pior gestão de equipamentos urbanos (a começar pelas sarjetas) – transforma-se numa “das mais violentas tempestades a atingir o Reino Unido nesta altura do ano”, sendo a “depressão mais grave e profunda da temporada”; é, enfim, “trocando por miúdos”, para citar textualmente a directora-adjunta do Observador, é “um ciclone bomba”.

    E porquê? Porque, explica ela, “a forma como evoluiu o tornou raro, mesmo muito raro. Falamos de uma tempestade em que a pressão atmosférica deve cair 29 hPA num só dia, quando o limite de uma ciclogénese já explosiva na nossa latitude costuma ser de 20/24 hPa em 24 horas. Ou seja, a intensificação vai acontecer de uma forma extremamente rápida, daí tornar-se tão violenta”.

    Eis o melhor estilo do atirar um número ao calhas e com uma unidade sobre a qual o vulgo nada sabe e a jornalista nada explica. Só para impressionar e assustar. Ah!, já agora hPa são hectoPascais, que são 100 Pascais, coisa que a jornalista Filomena Martins acha que não precisa de dar nem de contextualizar. Antigamente, usava-se mais os bares, mas agora não deve ser tão vendável… As voltas que o circunspecto Anthimio de Azevedo deve estar a dar…

    green leaf tree under cloudy sky

    Tudo nos textos meteorológicos de Filomena Martins – que seguem uma escola, mas em que ela se transforma em sacerdotisa – remetem para o trágico, fatal, sinistro, aterrorizante, cruel, diabólico – e patético, acrescento eu.

    Nunca na minha vida (como técnico e como jornalista), em que me debrucei e li muito sobre eventos meteorológicos extremos, alguns com tendência crescente de frequência, tinha assistido, como no último ano, a títulos da imprensa como – e vou citar títulos da Filomena Martins – “rio atmosférico atravessa centro do país”, ou ainda “Portugal atingido por um comboio de tempestades”, ou ainda “Furacão Franklin+DANA espanhola = nova tempestade”, ou ainda “Oscar: vem aí uma tempestade rara para esta altura do ano. E pode trazer um “rio atmosférico” na quarta-feira”, ou ainda “Esta quarta foram batidos seis recordes de temperaturas de abril. Mas o pior chega amanhã”, ou ainda “Vêm aí dois dias com umas gotas de chuva. E depois uma semana de forno, em que se pode chegar aos 35ºC”, nestes casos sempre com mapas de amarelo para cima e nunca muito abaixo de vermelho, que melhor sempre se mostra meter encarnado em cima de vermelho.

    A loucura que se passou na pandemia – com a comunicação social a desejar e a promover o “quanto pior, melhor” – está agora a tentar seguir o seu caminho com as alterações climáticas, onde se confunde e exagera cada evento meteorológico diário, como se fosse, cada pingo de chuva ou cada subida de nível do mercúrio, uma prova irrefutável do aquecimento global.

    Como tenho defendido, e continuarei a defender, existem evidências de uma intensificação de fenómenos climáticos em determinadas regiões do Mundo que devem merecer acção – e mais de adaptação já do que de inversão de emissões –, mas não pactuo com falácias, nem hipocrisia e não assino linhas de comunicação que assentam no susto, no pavor, na manipulação. Ainda há duas semanas abordei essa questão num absurdo artigo do Expresso sobre a Torre de Belém.

    Pior ainda, sou visceralmente contra a banalização comunicacional de eventos meteorológicos, através da emissão de constantes alertas amarelos, laranjas e vermelhos pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). E sou contra o uso de jargão técnico que, no contexto do quotidiano, são percepcionados de uma forma distinta. Não cuidar da comunicação, exagerando e exacerbando, faz-me sempre lembrar a história do lobo e do Pedro: com tanto alerta, certo dia ninguém acreditará nas Filomenas Martins – como eu já não acredito.

    E isso não é necessariamente bom, nem sequer para as causas que supostamente certos jornalistas, por moda, defendem sem saberem da poda. E sou sobretudo contra este nível de comunicação porque serve para desculpar tudo e um par de botas, como se tem visto com o (contínuo) excesso de mortalidade em Portugal.

  • Miguel Sousa Tavares na taberna da Inquisição

    Miguel Sousa Tavares na taberna da Inquisição


    Quando Miguel Sousa Tavares, no seu habitual espaço de comentário na CNN, perguntou a José Alberto de Carvalho se ele casaria com a Miss Portugal, imaginei que a polémica rapidamente estalasse. Pensei se deveria contribuir para isso, numa altura em que Gaza arde e o massacre de palestinianos já ultrapassa as 9.000 mortes.  Achei, ainda assim, que haveria um ponto interessante nesta discussão, que não propriamente um concurso de misses. Voltarei ao genocídio em curso na Faixa de Gaza na próxima segunda-feira, no meu sexto texto sobre o tema, aqui no PÁGINA UM.

    Começo por dizer que só percebo o rasgar de vestes pelos tempos em que vivemos, onde as fogueiras da inquisição são substituídas pelas redes sociais. Precisamos de causas para a indignação 24 horas por dia. Não há nada, absolutamente nada que se diga ou escreva, que não ofenda pelo menos um ouvinte ou um leitor.  

    People At The Bar

    Miguel Sousa Tavares foi deselegante e brejeiro. Importa pouco para a discussão sobre um transsexual num concurso de misses, se ele acha o produto final apresentável, com ou sem plásticas. Um estúdio de televisão não é o sítio adequado para conversas de taberna ou para as questões que, imagino, o Miguel Sousa Tavares deve colocar aos amigos quando vai às perdizes, ali em redor do monte alentejano em Mora.

    Também não sei se este comentário teria incendiado opiniões se fosse feito a propósito de uma mulher biológica ou de um homem, biológico ou não. Notem até que para escrever isto, não sei bem como me referir às pessoas em questão porque imagino que alguma formulação possa ofender seja quem for. Para o termo “mulher biológica”, usei uma expressão dita pela própria miss, numa entrevista dada ao JN no dia 22 de Outubro.

    Talvez seja um defeito geracional, acredito que sim, mas cresci a ver descrições nada simpáticas de personalidades portuguesas sem grande celeuma da sociedade em geral. Nos premiados bonecos do “Contra-informação”, programa que durante muitos anos foi transmitido pela RTP diariamente, a antiga deputada comunista Odete Santos era representada por uma imagem particularmente feia. Manuela Moura Guedes aparecia com uns lábios enormes (tal como Guterres), e Marques Mendes como um pigmeu. Sempre achei as caricaturas mais suaves para uns do que para outros, e questionava-me se os visados não se sentiriam desconfortáveis. O programa (de sátira política) era genial, entenda-se, mas a forma como algumas pessoas eram caracterizadas estaria hoje na categoria de body shaming.

    Importa-me muito pouco o tema de “nascer A mas sentir-se B”. Se um humano se identificar como gato e passar o resto da vida a lavar-se com a língua, mesmo que necessite de retirar umas costelas para atingir tal objectivo, não vejo qualquer problema nisso. Não me incomoda, absolutamente nada, que cada pessoa faça o que quiser da sua vida (e do seu corpo) para se sentir melhor. A parte que me parece mais discutível e com algum interesse é a forma como o todo é afectado pela escolha individual. Espero conseguir explicar esta frase.

    Não é fácil, pelo menos para mim, acompanhar todas as etiquetas que a sociedade vai criando para catalogar preferências sexuais, de género, religiosas, alimentícias e sei lá mais o quê. Acabo por ficar no campo que imagino ser o do bom senso, que é: sejam felizes, mas não me obriguem a defender a teoria do pensamento único onde tudo, todos e a toda a hora cabem em todos os sítios. Não dá. Não é ser inclusivo, é ser idiota e abrir caminho ao disparate eterno.

    Se um homem se sente bem num corpo de mulher, tudo bem. Para mim, até esse momento não há discussão. É uma decisão individual. Se deve entrar num concurso de misses? Já tenho as minhas dúvidas e essa não é certamente uma decisão de uma só pessoa; é da sociedade. E notem, uso o concurso de misses porque é daí que vem a frase infeliz do Sousa Tavares. Num mundo civilizado, não existiriam concursos onde as mulheres são avaliadas pela sua beleza. Seja lá isso o que for. Quando nos dizem, e bem, que vivemos num mundo machista, os concursos de misses são exactamente uma das provas disso.

    Mas essa discussão é interessante. É por aí que quero ir. Deve uma mulher transsexual concorrer a uma disputa de misses? Em teoria, não teria qualquer vantagem, logo, não vejo grande problema. Mas se assim for, a bem de evitar qualquer discriminação, deve um homem que se identifica como mulher ou uma mulher que se identifica como homem, poder concorrer em qualquer competição restrita ao género no qual se identificam?

    No caso de um concurso de beleza, julgo que ninguém vê vantagens aparentes. Ou até no Festival da Canção, onde Conchita Wurst venceu, também não vislumbro qualquer relevância na escolha de género. Se as vitórias forem em nome das escolhas justas (mais bonita, melhor voz), seja lá qual for o critério, e não o “vamos apoiar a coragem e dar o prémio para marcar uma posição”, então tudo bem. Se por oposição, acontecer como em 2022, onde, a propósito da invasão russa, a Ucrânia ganhava todas as competições onde entrava, por solidariedade dos restantes, então já me faz alguma confusão.

    Mas se com beleza e voz, em princípio, não há aparente vantagem na troca de géneros, o que acontece, por exemplo, numa competição onde o físico marca a diferença? O caso de Lia Thomas, a primeira mulher transgénero a vencer um campeonato nacional de natação nos Estados Unidos. Um nadador desconhecido e com resultados modestos na competição masculina que, ao concorrer no género com o qual se identifica, passou a ganhar, causando desconforto nas mulheres biológicas com quem competia. Neste caso, há um claro benefício em usar a parte biológica para obter resultados no outro género.

    People Gathered Near Building Holding Flag at Daytime

    Como resolver a situação? Como é que se garante a liberdade individual das escolhas sem prejudicar o colectivo? Criam-se competições só para trans? Arranjam-se mais umas caixinhas?

    Em tempos, trabalhei com uma pessoa chamada Teresa. Chamemos-lhe assim. Durante dois anos cumprimentei-a todos os dias e dirigi-me a ela com o nome com que se apresentara. Um dia, informaram-me que ela deixara de ser Teresa e agora se identificava como Roberto. A pessoa que estava à minha frente era a mesma, mas, a partir daí, eu deveria tratá-la por Roberto. Foi o que fiz. Mas nunca a consegui ver como um homem. E é aqui que as liberdades se cruzam e devem respeitar. Ela sentia-se melhor como homem num corpo de mulher e com um nome diferente. Eu passei a chamar um
    nome de homem a um corpo de mulher, respeitando a escolha da minha colega. E espero eu, que ela, aliás, ele, tenha conseguido compreender que, aos meus olhos, eu via exactamente a mesma mulher com outro nome.

    Quem sente e muda, vê uma coisa; quem acompanha a mudança, vê outra.  E isto não tem de ser necessariamente negativo. Se todos conseguirmos lidar com as diferenças de opinião e pudermos aceitar as escolhas, sem impor doutrinas, então temos uma boa base para conversar e chegar a qualquer lado.

    Portrait of Woman Wearing Teal Eyelashes

    Se quisermos obrigar toda a gente a escrever “todes“, para não ofender quem não se identifica com o género masculino ou feminino, ou aceitar que um homem passa a ser uma mulher só porque ele diz que sim, então vamos andar a saltar de gritaria em gritaria, e de barricada em barricada, sem chegarmos a grande porto de abrigo.

    Enfim, a questão, para mim, não é se a Miss “marchava” ou não pelos pergaminhos do Miguel Sousa Tavares.

    Conversa de taberna será sempre conversa de taberna, e obviamente não cai bem no Jornal da Noite. A questão, na verdade, é se uma mulher trans deve ser legalmente equiparada a uma mulher biológica. Se sim, temos um caminho onde casos como o de Lia Thomas passarão a ser comuns. Se não, teremos de criar uma infinidade de casos, regras e leis que tragam conforto a todos os tipos de identificação. Para aquelas que hoje conhecemos e para aquelas que possam seguir.

    A Man Looking at the Woman Wearing Brown Hijab

    Nenhum dos caminhos me choca. No primeiro, vejo uma mulher, bem mais flexível que homens, a ganhar ouro olímpico no all around de ginástica masculina. No segundo, vejo o código civil de cada país a ter novos volumes em cada ano. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Nada disso me assusta. Aquilo que me assusta é o radicalismo na discussão de ideias e a necessidade de impor regras ao pensamento do vizinho.

    Miguel Sousa Tavares tem um pensamento, que está longe de ser isolado, sobre um transsexual num concurso de misses. Não é a minha visão e, se fosse, não a diria certamente no Jornal da Noite. Mas, ainda assim, ser inclusivo não é queimar Miguel Sousa Tavares no lume brando das redes sociais. É perceber como se faz a inclusão do indivíduo sem ser injusto para com o todo. Essa é a discussão certa. O resto é apenas ruído, radicalismo e taberna. Vossa e do Miguel.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.