Categoria: Opinião

  • Neto de sapateiro deve andar num Fiat 127, é isso?

    Neto de sapateiro deve andar num Fiat 127, é isso?


    Quando comecei a trabalhar, há 23 anos, seguia por norma para o “escritório” com uma farda. Não era uma farda propriamente bonita ou elegante, mas eu gostava dela. Não me chateava com roupa e não perdia muito tempo a ir a lojas – coisa que, ainda hoje, detesto. Gostaria de salientar que o dito escritório ficava num complexo industrial, paredes meias com uma fábrica, portanto, a farpela não era propriamente a de um piloto da KLM, se é que me faço entender.

    Algures pela Primavera, provavelmente no meu aniversário, o meu pai ofereceu-me algumas daquelas camisas que a malta de Cascais usa. Todas garridas e com marcas cheias de cavalinhos, ursinhos ou pessoas a jogar polo, esse desporto tão cativante. Levei-a para a fábrica no dia seguinte, com aquele orgulho próprio de quem enverga algo que não consegue comprar. O meu colega da frente, contestatário por natureza, disse-me: “mas afinal a malta de esquerda, sempre preocupada com os pobres, também usa camisas da Ralph Lauren?”. Disse-lhe que a camisa de flanela aos quadrados, com as nódoas de vinho, tinha ido para lavar e por isso, era obrigado a recorrer à das festas. Ainda hoje somos amigos, embora eu tenha largado a farda mal José Sócrates chegou ao poder. Foi uma coincidência, note-se.

    1 U.S.A dollar banknotes

    O estigma de que alguém mais identificado com a justiça social, solidariedade ou divisão de riqueza, não pode comer um bife do lombo, é algo que já vem de longe. Se és pobre, deves encostar à esquerda; e se fores rico ou classe média, deves apontar para a direita. Um rico não pode ter um filho na escola pública, um pobre não pode ir a um hospital privado. Um rico deve tentar fugir aos impostos, porque tem horror nos gastos públicos; e um pobre deve, feliz, contribuir com o que pode e agradecer a benesse do Serviço Nacional de Saúde.

    Eu não vejo o mundo assim, e nunca achei que as subidas ou descidas no elevador social estivessem necessariamente ligadas aos ideais políticos. Conheci agricultores no Alentejo profundo que votavam no CDS e empresários que se reviam na sociedade sem classes defendida pelo PCP (ou vá, mais justa, para não entrar agora em utopias).

    Isto para dizer, meus amigos, que quando querem eliminar o Pedro Nuno Santos da corrida à liderança do PS porque anda de Maserati, ou porque vem de uma família abastada… estamos a voltar à discussão da camisa. Interessa-me o que ele diz e, especialmente, o que pensa. O que veste, conduz ou come, é irrelevante.

    white mercedes benz car on road during daytime

    Salazar andou a pregar em cada freguesia que era poupado, de origens humildes e que servia a Pátria sem enriquecer. Nada contra essa parte do “resumé”, mas isso não o impediu de criar uma ditadura, impedir o livre uso da palavra, perseguir opositores e destruir uma geração de jovens na guerra colonial.

    Rishi Sunak, primeiro-ministro inglês, chegou ao poder com a etiqueta de um liberal milionário, que não precisava da politica para viver. É também uma vantagem, isto de chegar ao serviço público com a vida feita. Livra-nos de Armandos Varas, Relvas, Passos Coelhos e gente dessa. Por outro lado, se a riqueza e educação de Sunak desviam as atenções de possíveis abusos de poder, nada conseguiram perante a hedionda ideia de vender refugiados ao Ruanda. Um programa que Sunak apoia com alguma firmeza.

    Portanto, entre ricos e pobres, discutam-se ideias e não as famílias em que foram criados os políticos. Se ser pobre fosse curriculum para a liderança da esquerda, Tino de Rans estaria em São Bento há 20 anos.

    É-me relativamente indiferente que líder terá o PS depois de António Costa, mas acho sempre interessante quando ouço apoiantes dizerem que um é aventureiro e radical, enquanto o outro é mais moderado e discreto. Na dúvida sobre personalidades e na ausência do debate de ideias, aconselho que vejam quem é que o Medina apoia. Depois é só escolherem o outro lado.

    a person holding a stack of cash

    Quando vejo partidos do Centrão a elegerem líderes por “seriedade”, lembro-me logo de Santana, Sócrates, Barroso e Passos Coelho. Tudo gente com uma seriedade à prova de bala e ajudados por uns quantos escudeiros também de valor. Como se, neste país, o roubo fosse feito pela cabeça do polvo e não por todos os tentáculos. De assessores a ministros, de vogais a secretários de Estado, de deputados na última fila a presidentes de câmara. Há décadas que andamos a ver a banda a passar e a aplaudir a impunidade com que a corrupção nos é apresentada, da Assembleia às autarquias. Mas ainda nos perdemos com a aparente “seriedade” de um candidato a primeiro-ministro. Ou se come bife do lombo em vez de jaquinzinhos. Somos pelas aparências, interessa-nos pouco a essência.

    Enquanto nos perdemos em discussões sem interesse, os “senadores” da direita, com Relvas à cabeça, vão dizendo que não há que ter complexos em assumir uma coligação pós-eleitoral com o Chega. Passos Coelho, o criador, também já disse que o Chega é um partido que respeita a democracia e por isso, bola para a frente. Esta é que é a parte que realmente me importa. Ouvir André Ventura a implorar por uma coligação e perceber que, os antigos governantes do PSD, assentem com a cabeça e tentam, em horário nobre, normalizar um partido racista e xenófobo. É aqui que reside o verdadeiro problema. O assalto ao poder que a extrema-direita fascista tenta com o patrocínio do PSD.

    brown wooden chairs on gray concrete floor

    Espero que as forças de esquerda percebam isto e compreendam que, tal como em eleições anteriores, a palavra do PSD vale de muito pouco quando começa a cheirar a poder. Se a única hipótese de Montenegro chegar a primeiro-ministro for com a ajuda do Chega, nem que seja por acordo parlamentar, ele fá-lo-á.

    É tempo de as esquerdas se unirem. Sem medo. Sem complexos. E deixarem as discussões sobre o avô sapateiro para o Tilly na ChegaTV.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Tráfico de influências: a viçosa e perniciosa raiz da corrupção

    Tráfico de influências: a viçosa e perniciosa raiz da corrupção


    Muitos dizem já que a montanha pariu um rato – e que António Costa se precipitou na demissão. Como o Ministério Público não terá conseguido sustentar a tese da corrupção, e ‘apenas’ a do tráfico de influências, logo surge a ideia de um certo esvaziamento da gravidade, e o Partido Socialista, perante o ânimo e apreço da media mainstream, mostra uma pujança para uma recauchutagem rápida através de um ex-ministro que ainda há meses se demitiu por uma embrulhada com meio milhão de euros.

    Numa democracia não há pior erro do que minimizar o tráfico de influência – que é, na verdade, a génese da corrupção financeira, porque constitui, antes de tudo, uma corrupção moral. Ainda mais neste caso do data center de Sines, que me faz lembrar a implantação do Freeport de Alcochete há cerca de duas décadas, também numa zona de protecção ambiental, e que resultou numa estranha e polémica reviravolta na avaliação de impacte ambiental nos tempos de José Sócrates como ministro do Ambiente.

    Causou, aliás, um breve frisson em 2009, e não deixa de ser curioso que, daquela vez, não tivemos envolvidos um chefe de gabinete e um (ex-)amigo do primeiro-ministro, mas sim um tio e um primo do então primeiro-ministro. Sugiro a leitura de uma antiga edição do Público sobre esta matéria, de 2009, para descobrir as semelhanças – e já agora, também com um texto de opinião da minha autoria, na página 3.

    Na verdade, quando o Ministério Público apanha casos de tráfico de influências, devíamos ficar satisfeitos com a celeridade da sua acção e pela função preventiva e profilática. O tráfico de influência para um servidor do Estado corrupto é, na essência, a sua quota-parte do negócio, que o levará a receber, mais tarde, o suborno.

    Cortar esse mal logo à nascença, antes que o corrompido receba o suborno, parece-me de elementar necessidade. Quando a corrupção é apanhada, nos poucos casos, e porque a corrupção já anda numa fase endémica (sem ser necessário de ser antecedida por pandemia), por regra já o mal está feito: a decisão política tomada, a adjudicação consumada, a construção erguida.

    Mas, por outro lado, nos tempos modernos, em que se sabe de antemão haver um risco relevante de se ser apanhado pelas tecnologias, um potencial corrupto minimamente inteligente não se expõe, pelo menos de imediato; não recebe envelopes com dinheiro; não revela sinais exteriores de riqueza.

    Mostra-se paciente. Recebe mais tarde, sob a forma de remunerações ‘legais’, de sinecuras ou veniagas por parte do beneficiário da acção de corrupção Para passar desapercebido, o suborno pode ser recebido, assim, por consultorias futuras bem pagas.

    Cria-se então uma empresa, arranjam-se uns ‘estudos’, e já flui o dinheiro por ‘serviço’ de tráfico de influência cometidos meses ou anos antes.

    Por isso, devíamos festejar quando o Ministério Público apanha criminosos públicos, ainda com a boca na botija, por tráfico de influências, porque assim o corrupto sem sequer recebeu o ‘doce’ do corruptor.

    Além disso, o tráfico de influências é, muitas vezes, o máximo que se deve esperar conseguir apanhar num acto de corrupção – e há imensa corrupção, não tenho dúvidas, desde o pequeno benefício de um jantar até os muitos milhares em contratos chorudos na área da construção e, cheira-me cada vez mais, no sector da saúde.

    A não ser por estupidez do corruptor (activo) e/ ou do corrompido (passivo), a prova da corrupção é extremamente complicada de alcançar, e muitas vezes “travestida” de evasão fiscal. Além disso, como o enriquecimento ilícito – ou seja, um rápido acréscimo patrimonial não explicável – não é prova de existência de corrupção, estamos perante uma dificuldade acrescida para o Ministério Público.

    Por isso, o tráfico de influências por parte de um político ou de alguém na esfera governamental ou da Administração Pública deveria ser visto como um crime socialmente tão grave como a corrupção passiva e activa. É um vil e grave acto, ultrajante para uma democracia – e é sobretudo a viçosa raiz da corrupção, porque degrada moralmente toda a sociedade que passa a estar sedenta de pequenos e grandes favores e favorecimentos. Da pequena ‘cunha’ para desbloquear aquela ‘burocraciazita’ até à mega ‘cunhagem’ de um projecto em área interdita.

    Até porque o tráfico de influência se exerce muitas vezes sobre funcionários públicos, com contas para pagar e objectivos de vida por concretizar, e que seriam impolutos na defesa de legalidade se não houvesse um superior político a ‘ameaçá-lo’ implicitamente de consequências se não fizessem um ‘favorzinho’.

    O tráfico de influências deve ser combatido ferozmente como um cancro social, arrancado como escalracho e lançado ao fogo. E não pode ser menorizado como tem estado a ser feito por alguns opinion makers, para grande satisfação do Partido Socialista. Aliás, fazem-lhe um ‘favorzinho’ na esperança de, depois, ser-lhes retribuído, presume-se.

  • Não sei que diga

    Não sei que diga


    Não sei que vos diga.

    Devíamos estar de queixo caído. Boquiabertos. Os portugueses acabam de ver o Estado Democrático rebentar com um primeiro-ministro eleito por maioria. Outra versão é que um primeiro-ministro destruiu a credibilidade de uma maioria.

    Eleito por força de uma estúpida votação, que tem por base uma estúpida Lei Eleitoral, que destrói centenas de milhares de votos, assim se chegou à maioria vigente. A ausência de círculos nacionais para repescar os que votam nos círculos menores, onde os partidos pequenos se tornam irrelevantes, é uma exigência democrática.

    Pudemos ver como o entorno de um homem lhe pode ser prejudicial. A insistência na provocação (exemplo do uso de Galamba como confronto à Presidência), a pesporrência de não conversar com as oposições, não criar uma larga maioria para as reformas do país – tudo veio adensar o confronto.

    Por graça, recordo o que esta gente falou de Isaltino e seus almoços. A falta de vergonha própria demonstra que Isaltino, ao lado deles, é um amador. Afinal, vinho “galambada” é mais caro que Pêra Manca. Se espelho matasse….

    É o tempo de pensar no engenheiro Simões, que passeava envelopes de 100 mil euros aqui por Coimbra. Ele, afinal, é amigo do secretário dos 75 mil. Estes são os que criticaram Berardo, os que berravam contra o esquecimento e a falta de dados de Espírito Santo.

    Não sei que diga.

    O formigueiro carrega e trabalha enquanto estas cigarras desbaratam. Não sei se as pessoas percebem que são sempre os que têm discursos impolutos que nos enterram as mãos nos bolsos. São os mesmos das certezas sobre a estratégia covid. Espantam-me os ideólogos das estratégias sustentáveis. São sempre os dos grandes discursos e alterações “modernas, importantes e amigas do ambiente” que nos agarram a carteira.

    Condeno de modo veemente o Ministério Público de amadores, de processos dúbios e morosos e pouco fundamentados. Condeno os homolarapiens que nos arrombam a credibilidade democrática. Mas condeno, sobretudo, a construção de uma classe política que não se forja no trabalho, no desenvolvimento fora dos corredores palacianos. A exposição à vida comum tem de ser necessária para a ascensão política.

    Percebo que o mundo vai neste caminho de formigagem  – o povo que vota condicionado pelos gestores da informação. Os filtros que nos roubam janelas da realidade. Amanhã podemos ter ainda o PS a governar o carreiro que cumpre as directivas sem questionar. A dúvida não mora por estes lados.

    timelapse photo of people passing the street

    O que se nos oferece pode ser mentira, e temos de duvidar do hidrogénio. Temos de ter cautela com a mobilidade eléctrica. Temos de perceber se nos estão a enganar, e para isso há um tempo de reflexão que pode ser agora. As certezas da sustentabilidade foram conduzindo os portugueses para o 1% de ricos.

    Uma distribuição da riqueza inaceitável: com destruição consistente e persistente da loja, do pequeno comércio, da cabeleireira, do consultório, do escritório, arrasando a classe média empresarial. A concentração é uma política que emana dos regulamentos, das regras, das exigências impossíveis para os mais pequenos. Em Março votamos de novo.

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Pirâmides

    Pirâmides

    Parte 1 – Indevida

    Estranha espécie que se dedica a erguer pirâmides de pedra para encerrar labirintos, para encerrar mortos, múmias, objectos. Antecâmaras, túneis estreitos (labirintos), blocos, blocos, blocos. Tudo a barrar o caminho.

    Estranha a espécie que quer entrar nesse labirinto, cuidadosamente, esgueirando o que possa por caminhos asfixiados, como escaravelhos luzidios, espalmados, deslizantes junto a grãos sólidos enquanto, magicamente, numa bolsa de ar, revelam asas e se erguem a flutuar, se afastam do mundo compacto (não são daqui, não são daqui).

    person walking near The Great Sphinx

    Talvez as pirâmides, talvez as barragens, talvez as pontes (o ferro, cravado na alma do globo), talvez as torres, talvez as estradas, tenham sido feitas para escaravelhos luzidios (espalmados) que, se quiserem, revelam asas e se erguem (a flutuar), voam e afastam-se (do ferro cravado na alma), pois, visto de longe, olha o lindo que é, olha a linda espécie que ali desliza junto a grãos sólidos, e afinal nem sólidos são (o que é sólido?) e o vento leva sem problema, sem esforço, revelando asas e erguendo-os a flutuar, numa tempestade de areia sem fim a esconder pirâmides (e barragens e pontes e torres e estradas).

    Nada sobra.

    – Eu sei fazer casas. O triângulo é o telhado, mãe.

    Pois é. O triângulo é só o telhado, o que está abaixo é que é a casa (o que é uma casa?) As casas servem para guardar coisas, às vezes também nos guardam a nós (desde que mantenham o telhado), traumas, vidas, silêncios, ruído. Um choro, uma gargalhada, o eco de uma discussão (coisas), e às vezes os mortos (os nossos), e até os vivos (mortos), que esquecemos lá dentro cuidando que cuidam das coisas, que as alimentam e duvidam (duvidam, duvidam).

    a roof with a triangle shaped window on top of it

    Os mascarados prosseguem, vestem as coisas e são blocos de pedra que erguem pirâmides, cuidando que dentro deles os labirintos não importam, ar escuro não ocupa espaço, nem constitui caminho (não entrem, não entrem, não entrem).

    As pirâmides mantêm-se porque precisamos de as ter no horizonte, a pontuar o êxodo, a areia infinita erguida a flutuar perante os nossos olhos, que alívio, ali há gente (e coisas e mortos). Desde ali podemos mapear, referenciar, encontrar rotas. O mundo sem rotas é enorme e pode comer-nos. A deriva assusta e causa-nos hesitação (duvidam, duvidam).

    Rotas e rotinas (precisamos de as ter no horizonte, a pontuar, a flutuar, que alívio) devoram-nos e empurram-nos para dentro de labirintos. Se já não sabemos encontrar a entrada, não vale a pena voltar atrás, mesmo adivinhando (duvidando) o risco de não chegar ao fim, e ficar morto num espaço de ar escuro (não ocupa espaço), ficar ali sem chegar ao fim – afinal qual era o fim, qual era a saída, qual era o centro, qual era o propósito?

    Nada sobra.

    maze garden

    Parte 2 – Devida (à leviandade dos cadernos virtuais, que se apagam quando mudamos de andamento)

    É possível morrer de coração partido. Parte. Põe-se o órgão dentro de casas com triângulos, labirintos, ar escuro que não ocupa espaço.

    Estará tudo a morrer de coração partido. Parte. Não há cola que chegue para restaurar estilhaços desses. Almas em bocadinhos não voltam tão cedo.

    Reparem que as folhas que são levemente sacudidas lá fora parecem pardais, para o míope ou para o desavisado, certamente pardais, passarinhos tímidos em pequenos saltos. Se partidas (as folhas) não saltam tanto, encostam-se umas às outras à espera da vassoura, a compostar o caminho.

    Mas caindo destes esvoaçares (saltitando), que isto de movimentos diáfanos não aquecem o corpo em tempos outonais, nada como ver aquelas três mulheres de avental e mangas arregaçadas, saindo do prédio cor de rosa (e o cabelo de uma está também cor de rosa, escuro, curto, encaracolado), com várias vassouras, mopas, esfregonas e um balde em cada mão.

    assorted-color lear hanging decor

    O sol de São Martinho a cruzar as sombras e a embater-lhes nos olhos (que se franzem), duas gerações (e aposto que a mais velha é danada com as outras duas!), argolas douradas nos lóbulos das orelhas, um meio sorriso e aquela aura de alheamento, aquelas ondas enquanto caminham, aquele saltitar do que é que interessa tudo isso, se é preciso é esfregar devidamente aquele canto desprezado entre o caixilho e o peitoril, que se acumula em negrumes húmidos e infecta a vida das pessoas.

    Do salto de pardal à pirâmide, as folhas de outo tono a acumularem na valeta, o escaravelho a esgueirar-se nas areias, os blocos à nossa volta e chamem as senhoras da limpeza! Chamem-nas que alguém tem de limpar isto e tem de limpar várias vezes, daqui até ao equinócio de Março, não sobra assim tanto tempo para decidirmos se concretizamos um ensaio sobre a nossa lucidez. Não sobra assim tanto tempo para sermos amargos e evitarmos partir mais corações na vã esperança de os ver mais leves na balança final.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O futuro e os jovens ‘infantilizados’

    O futuro e os jovens ‘infantilizados’

    Tempos difíceis criam homens fortes; homens fortes criam tempos fáceis; tempos fáceis criam homens fracos; e homens fracos criam tempos difíceis – há quem conceba a existência deste ciclo perpétuo como um aspecto incontornável da vida.

    Mesmo sabendo que a realidade é sempre demasiado complexa para se resumir a rótulos ou frases pré-fabricadas, considero que este paradigma é aplicável a muitas situações e momentos históricos. E o que vivemos, os tempos mais recentes, são disso um exemplo.

    assorted-color lear hanging decor

    Se tivesse de situar a fase em que nos encontramos, diria que nos estamos na parte que cruza os “tempos fáceis” com “homens fracos”, adivinhando-se – e desenhando-se já –, por isso, tempos desafiantes. Tempos fáceis construídos pela geração que corresponde aos nossos avós, os “velhos” de agora.

    Uma geração que viveu privações, guerras, e pobreza, foi a mesma que nos legou um mundo com substanciais avanços científicos e sociais e melhorias notáveis na qualidade de vida. Os jovens e crianças de hoje têm um mundo de possibilidades e oportunidades que os seus antepassados (não muito longínquos) não tiveram; muitas vezes, à distância de um clique, como se costuma dizer.

    Ao mesmo tempo, as camadas mais jovens, que tudo têm e tiveram “de bandeja” – e ainda bem –, parecem evidenciar, paradoxalmente, sinais gritantes de desorientação, insatisfação, falta de sentido e uma expectativa de que tudo lhes é devido, como e quando querem.

    aerial view of assorted-color toys

    Aqui, não se pretende generalizar nem dramatizar, sendo certo que todas as gerações têm as suas especificidades, e vêm sempre com qualidades e “defeitos” conforme a época em que se inserem. Mas este artigo surge como uma reflexão acerca de uma notícia do Expresso, dando conta de uma crescente infantilização dos jovens no ensino superior – notada (e lamentada) pelos docentes –, e acompanhada de uma hiper-protecção por parte dos pais.

    Como alguém que nasceu na década de 1990, e que passou pelo ensino universitário em anos recentes, a minha experiência corrobora este artigo. É visível, nas universidades, remessas de alunos que parecem ter apenas um lema: “exigir, exigir, exigir”. A tolerância à frustração é nula, ou quase inexistente. A mais pequena adversidade serve de motivo para um protesto musculado ou para uma reivindicação. Receber um “não” de um professor, mais do que uma vez, é suficiente para enfurecer os alunos e levá-los a desfazerem-se em queixas aos coordenadores.

    Os alunos têm uma enorme dificuldade em manter-se concentrados, em tolerar uma aula mais teórica e expositiva. Alguns, choram se obtém nota menos boa, não obstante o seu esforço não ter merecido uma classificação melhor – e isto, mesmo no meio de um clima de facilitismo, onde os docentes tendem a “puxar” as notas para cima. Os professores têm de ceder às exigências dos jovens, corresponder às suas vontades e caprichos. As matérias, têm de lhes ser todas facultadas conforme acharem melhor, a “papinha” tem de estar toda feita.

    man in white shirt carrying boy

    De facto, o que se denota não é um espírito aguerrido ou contestatário dito “saudável”, de alguém que se rebela contra uma injustiça ou luta por causas ajustadas e pertinentes. Não. Aquilo que vemos é mesmo o que vulgarmente se denomina de “meninos mimados”, que fazem birras desproporcionais e creem não ter quaisquer deveres correspondentes aos seus direitos, que não toleram a mais pequena contrariedade ou obstáculo. É natural – é a geração que se habituou a ter tudo antes de sequer precisar de dizer “ai”.

    Este paradigma está nos antípodas do experimentado pelos que hoje são idosos. Foi proporcionado por pais que, felizmente, alcançaram maior estabilidade e prosperidade, e quiseram, como é lógico, dar aos seus filhos tanto quanto possível. Não existem culpas a ser apontadas: houve uma confluência de circunstâncias e de mudanças sociais por trás da juventude actual.

    Uma juventude com excelentes qualidades, mas que parte com uma certa desvantagem por ter crescido numa bolha de facilidades, fomentando a ilusão de que o mundo gira em seu redor. São também, amiúde, estes jovens que, por falta de sérias preocupações, se indignam, nas redes sociais, com as “causas da moda” – sejam as alterações climáticas provocadas pelo metano das vacas, o flagelo do misgendering (errar-se nos pronomes de alguém), ou a luta incessante contra o patriarcado, sem se aperceberem que, provavelmente, pertencem à geração mais afortunada a pisar a Terra desde que o Mundo é Mundo.

    person holding babys hand

    A este propósito, numa entrevista, uma comentadora canadiana mostrava-se complacente com estes jovens, tão abençoados como atormentados, dizendo que acha mais difícil esta ausência de sentido para a vida do que ter de se enfrentar guerras e fome, como foi o caso dos nossos avós. Se é mais difícil, não sei, mas também estou solidária com todos os jovens “infantilizados”, que cresceram com muito mais facilidades do que dificuldades – um grupo no qual até me incluo, em larga medida.

    Mesmo com receio dos tempos potencialmente difíceis ao virar da esquina, e que terão de ser, aliás, enfrentados e resolvidos pelos mais jovens, estou, naturalmente, a torcer por eles; e por todos nós, que somos o futuro.

    Maria Afonso Peixoto é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O milagre da Luz

    O milagre da Luz


    Desde que troquei a vida de emigrante, por um vaivém relativamente estranho entre diferentes localizações, noto que a minha vida é feita na base do improviso. Ou em cima do joelho, como diria a minha professora de Matemática.

    Aterrei em Lisboa e, a caminho de um médico, parei para comer bacalhau. Não existem momentos bons ou maus para comer bacalhau, julgo que todos concordamos nessa parte. Ainda o tinto alentejano ajudava o bacalhau a nadar no meu tubo digestivo e já ouvia, a poucos metros, num pavilhão ali ao lado, música estridente ao ritmo de ensaio. Era a banda da Madonna ajustando os acordes para essa noite, naquela sala de espectáculos vendida a preço de amigo ao genro do nosso Aníbal Cavaco Silva.

    Não sabia que a Madonna tinha voltado a casa, confesso, e lá fui eu, poucas horas antes do evento, ver se arranjava uns bilhetes para lá ir reviver os hits dos meus 10 anos de idade. Assim, meio aos trambolhões, dei por mim, ainda cheio do bacalhau, a ver um espectáculo da rainha da pop. Não lhe chamaria um concerto, não diria que ela cantou, mas certamente proporcionou entretenimento.

    O desejo de rever o fiel amigo, regado com bom azeite (um luxo nos dias que correm), levou-me à Madonna e à Isla Bonita da minha infância. Em cima do joelho, como diria a minha professora de matemática. Poucos dias depois, era suposto apanhar um avião e ir para outras paragens. Não entrei nele e acabei por ficar em Lisboa. Foi ontem e era dia de derby. Sim, este é um texto sobre futebol, embora não pareça.

    Tratei de procurar um bilhete de última hora e, entre falsos e oficiais, lá arranjei um que me deixasse transpor as portas da Luz. Era dia de ir à bola, fazer aquilo para que ela serve, ou seja, distrair-me dos problemas reais, nem que seja por 90 minutos.

    Dito isto, eu não sou um adepto fácil. Admito isso. Para mim, não chega ganhar de vez em quando, e muito menos ganhar sem se saber como. Irrita-me profundamente a mediocridade futebolística de uma equipa que tem, de longe, o melhor plantel em Portugal – mesmo com os erros de casting.

    Roger Schmidt, actual treinador do Benfica

    Por esta altura, já perceberam que além de o texto ser sobre futebol, o meu clube é o Benfica. Ao contrário da crónica do Pedro Almeida Vieira a partir do estádio, eu não corro o risco de ter de ser isento. Lembrem-se, o que vão ler a seguir, é opinião sobre o derby de ontem. Não é a crónica do jogo.

    Há qualquer coisa de kamikaze ou incompetência, ainda não percebi, no Roger Schmidt que esta época resolveu irritar o Terceiro Anel. Desde os tempos da conclusão do Estádio da Luz antigo, do fecho do mítico Terceiro Túnel, que todos sabemos que por aí se concentram os sábios da bola. Treinador algum sabe mais do que nós, sobre o nosso clube, ao fim de anos e anos a viver noites épicas com Isaias ou vergonhas inesquecíveis com Jorge Jesus. A idolatrar Pablo Aimar e a pensar como é que, algum dia, Nelo foi o nosso número 10. A relembrar os anos em que João Pinto carregava uma equipa miserável às costas e como Trapattoni, com vitórias de 1-0, acabou com o fado por nós conhecido por “Anos do Vietname”.

    Na época de estreia usou o mesmo 11 até os jogadores se arrastarem, e este ano, com um plantel mais rico (em teoria), não repete a mesma equipa dois jogos e parece já ter tentado todas as combinações possíveis de esquemas tácticos.

    Giovanni Trapattoni

    Qualquer equipa coloca problemas ao Benfica este ano. A defesa não é sólida, o ataque é inexistente e o meio-campo, a parte mais forte, tem soluções a mais. O sonho de qualquer bom treinador e um drama para os incompetentes. Tudo o Terceiro Anel aguentou. A inutilidade dos dois laterais esquerdos comprados para o lugar de Grimaldo. A dispensa de um que já lá estava e era melhor (Ristic). A incompreensível insistência em João Mário, que simplesmente não existe encostado à linha. Os jogos na Liga dos Campeões sem o único trinco do plantel. A dispensa de Vlachodimos. A compra de Tengsted e a dispensa de Henrique Araújo. Ainda assim, de longe, de muito longe, Roger Schmidt tem o melhor plantel em Portugal e a tarefa mais facilitada quando comparado com os seus adversários directos.

    Sérgio Conceição tem uma equipa que nem ele percebe bem o que fazer daquilo, e Ruben Amorim deposita toda a confiança em bola para a frente e o sueco que se desenrasque. A propósito, que grande jogador.

    Ao fim de 36 minutos de jogo, já o Terceiro Anel exigia a substituição de João Mário. Todas as bolas que ali chegaram, sem excepção, ou saíram para o lado ou foram perdidas. Nenhum ataque teve continuidade. O jogo que João Neves carregava, entupia nas alas. Di Maria também andou pelo Instagram nos primeiros 45 minutos e, que me lembre, pouco mais fez do que dois remates. Muito pouco para quem apenas ataca e deixa o trabalho defensivo para o lateral e o médio de cobertura.

    Nem com Di Maria o público foi particularmente simpático, apesar do seu número de títulos e da sua história com o Benfica. Gritavam para que se levantasse. Ao contrário de outros adeptos, que procuram pressionar os árbitros a cada mergulho dos seus jogadores, nós, no estádio da luz, não pactuamos com isso. E um pouco por todo o lado, acompanhado de alguns impropérios, lá iam gritando a Di Maria que se levantasse e corresse – o que pudesse, pelo menos.

    Não sei se Schmidt tirou algum curso de treinador de futebol quando acabou o de engenharia, mas, lá do alto, e em uníssono, os adeptos explicaram o que fazer. O Sporting jogava com menos um e havia mais espaço para correr. As nossas alas não carburavam por culpa de João Mário e Di Maria. Era tempo de os substituir por Guedes e Tiago Gouveia. A leitura era tão simples e óbvia que a poderíamos ter recitado em coro para que ele a ouvisse no balneário. Aliás, era tão cristalina que foi repetida nos quatro canais informativos por antigos jogadores, técnicos e comentadores. Não é Física Quântica porque, se fosse, não estariam mais de 60 mil Einsteins no Estádio da Luz.

    Esperei mais alguns minutos e, a cada tentativa de Tengsted fazer alguma coisa com a bola, eu fui desesperando. Notem que o meu objectivo era ir para ali descontrair da vida real e, afinal, tudo o que estava a conseguir era acumular problemas. O João Neves ainda me tentava dar esperança levando a equipa ao colo em frente a um Sporting que, por esta altura, fazia o que podia apenas para aguentar e perder algum tempo.

    Fui-me embora e já estava no carro quando Gonçalo Guedes entrou. Não aos 83 minutos como escrevi na minha página de Facebook, mas sim aos 86. Uma substituição que chegou com cerca de 86 minutos de atraso e que todos, mas mesmo todos, exigíamos desde o intervalo. Guedes fez o que sabe: correr para a baliza, em contraponto com João Mário que habitualmente corre para os lados. As oportunidades foram surgindo, até que João Neves, o próximo Senhor 100 Milhões, fez o que os génios – os tais que não precisam de tempo de adaptação, bolas mais redondas ou relvas mais aparadas – sabem fazer: parou a bola com perfeição, na sua única tentativa, e fuzilou Adán.

    E depois, enquanto o estádio vinha abaixo e a equipa saltava em redor do novo Menino de Ouro, o outro menino, António Silva, puxava toda a gente para o outro lado do campo, porque havia um jogo para ganhar. Estes miúdos, que respiram Benfica, é que devem ser a aposta. Quase sempre, mas em especial quando são melhores do que o refugo que se compra por 10 milhões.

    O Benfica ganhou, apesar do treinador e sem jogar nada de especial. Os adeptos ficam eufóricos porque, no fim, conta a vitória. Eu faço parte daquela minoria que acha que, jogando assim, é mais fácil perder do que ganhar.

    A imprensa fala hoje num milagre, porque foi isso mesmo que aconteceu, de facto. Nunca tinha visto algo semelhante e, como se percebe, também não vi ontem. Roger Schmidt fez tudo o que podia para perder o jogo, mas a equipa não deixou. Note-se ainda que, “o bom momento do Sporting” que vinha desde o início da época, estava suportado por jogos de nível inferior. Tirando Braga e Atalanta (a quem não ganhou), o Sporting não tinha ainda defrontado um adversário de peso esta época. Já o Benfica, em “crise”, já jogou com o Porto duas vezes, Inter e Real Sociedad. Parece a mesma coisa, mas não é.

    Não sei o que virá aí, mas se fosse eu o presidente do Benfica, e vendo como todos os anjos (e João Neves), protegeram Roger Schmidt no milagre da Luz, somando a todos os erros acumulados da época, trataria de lhe endereçar o convite para passar o Natal à Alemanha. Sorte como a de ontem não se repete. Já a incompetência, temo que sim.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Sporting 2.1

    Sporting 2.1


    Hoje, nem um piu sobre ser eu talismã, até porque para se ser amuleto devemos ter um comportamento à água Vitória, esvoaçando uma meia hora antes do apoio, e não chegar 12 minutos atrasado, por vergonhosas vicissitudes e demais afazeres (sempre me valeu uma conversa sobre o Brasileirão, com o condutor do Uber, adepto do Cruzeiro, que anda pelas ruas da amargura, sob risco de descida), embora ainda a tempo de assistir ao remate do Rafa à barra da baliza do Sporting – quer dizer, a baliza é do Benfica.

    (seria divertido as equipas trazerem, além do equipamento, a própria baliza; só assim faria verdadeiro sentido a expressão ‘golo na própria baliza’)

    Parece que perdi outra oportunidade anterior, aos 9 minutos, mas de oportunidades perdidas é o que o Benfica mais tem feito nos últimos meses, a começar por perder quatro jogos na Champions. Enfim, mas o lance do Rafa foi antes de eu pegar a minha senha, com o número 15 – faz-me sempre lembrar a rábula do 15 a zero dos Gato Fedorento – para sacar veniaga… não! Isso é outra coisa! A senha é para sacar o tradicional lanche, o ‘clássico’ repasto daqui da Varanda da Luz, o qual diga-se ainda não conferi, porquanto assentei arraiais e comecei a adiantar serviço. E, além disso, nas três tribunas da imprensa está tudo bem composto.

    A minha chegada tardia sempre permitiu ter uma perspectiva diferente das imediações do estádio, entendendo que há gente que só vem pela bejeca e sandes de courato. E de ver que, mesmo num jogo desta natureza, há uns poucos retardatários, como eu.

    (lá em baixo, o jogo está, estranhamente, em ritmo frenético, nem parece um jogo do campeonato português, com excepção da eficácia das assistências ou dos remates à baliza, não tanto do Sporting, mas especialmente do Benfica)

    Confesso que nem sequer sei bem que enquadramento devo a esta crónica no decurso de um derby histórico, enquanto tivemos uma semana complicada para o ânimo do país, a saber: a quarta derrota do Benfica na Champions. Dinheiro a voar e, se a fase dos oitavos já é uma miragem, um rombo financeiro para a época já está garantido.

    Ah, e parece que houve também um governo que caiu, acho que de podre, porque quando se encontram 78.500 euros em notas no gabinete do chefe de gabinete do primeiro-ministro, o grau de depravação de uma democracia atinge o fundo… ou o topo.

    (e pronto, estava o intervalo a avizinhar-se, e sai-me isto: João Mário perde a bola e lá seguiu um contra-ataque até ao sueco Gyokeres que, sem perguntar a Trubin ‘para onde a queres’, mandou um fuzil às redes da baliza do Benfica)

    E, pronto, chega o intervalo, e eu atrasado, e estremunhado, ainda nem sequer consegui delinear um fio condutor a esta crónica. Devia ter seguido a minha preguiçosa sugestão interna, anunciando que somente escreveria a partir do primeiro golo do Benfica na baliza do Adán – quer dizer, a baliza é um activo fixo do Benfica, ou imobilizado como se dizia em tempos de antanho (esta ficou-me desta notícia) . Enfim, estou agora aqui de cima, durante o intervalo com pena das valorosas jogadoras da equipa de futsal e de andebol e também dos pujantes (ou pulantes) jogadores de voleibol, que ganharam as respectivas supertaças, mas que são silenciosamente recebidos por um público ainda em choque com o fuzil do sueco.

    (recomeça entretanto a segunda parte)

    Volto a confessar – segunda confissão na mesma crónica (bom seria que outras pessoas sobre outros assuntos mais prementes e relevantes para a democracia portuguesa confessassem também, mas não a um padre para evitar o segredo da confissão) – que estou hoje pouco animado e esperançado neste jogo. Cheira a fim de ciclo e ao início de um período nebuloso para as hostes benfiquistas. Se isto não se endireita, prevejo que, esgotados os dois dérbis, até ao fim do campeonato vai isto andar em meia-casa.

    (Deus existe e é benfiquista, embora com limitações, porquanto não conseguindo que o Musa dê uma para a caixa, sempre permite que o sportinguista Gonçalo Inácio se permita a levar o segundo amarelo, e a sair para o banho mais cedo)

    Mesmo contra 10, o meu ânimo não é muito. Nem me apetece escrever, a bem da verdade. Fico a assistir a uns minutos de jogo sem escrever para ver a reacção do Benfica à superioridade numérica, mas nada: nenhum lampejo. Olho para a cobertura para ver se há ali uma nesga para uma intervenção divina.

    Enfim, para compor a crónica, recorro ao Tiago Franco, também aqui presente, mas na bancada defronte (BTV). Escreve ele no Facebook não ser “um génio da estatística”, mas que está “em condições de afirmar que o João Mário perdeu todas, repito todas, as bolas que disputou”, sendo assim “o principal municiador do contra-ataque lagarto. Alguma teria que entrar.” E acrescenta que “no terceiro anel, qualquer pessoa com dois olhos percebe que o jogo termina nas alas. João Mário é menos um e Di Maria, hoje, também. Florentino está reduzido a passes de cinco metros e João Neves joga sozinho contra o meio-campo do Sporting (e por incrível que pareça, chega)”.

    Ainda diz que “o jogo está a pedir Tiago Gouveia e [Gonçalo] Guedes por troca com João Mario e Di Maria. Agora, já, não aos 83 minutos. O jogo também pedia um treinador no banco do Benfica, mas não entremos em extravagâncias”.

    Em corrosivo post scriptum, adita, por fim, que “com o Sporting reduzido a 10 e mais espaço para jogar, [Roger Schmidt] deixa o Guedes e o Gouveia no banco e mete o Tengstedt, o maior manco que chegou à Luz depois do Pringle. Se isto não é justa causa para o despedimento, não sei o que será”.

    E não escrevendo eu tão bem como ele sobre matérias futebolísticas, concedo que tenha razão.

    (concedo o caraças! Golo do menino João Neves, ao quarto minuto dos descontos. Ufa,ufa, ufa!)

    Acho que devia retirar tudo o que o Tiago escreveu, até porque me informa ter saído do estádio, envergonhado, ainda antes dos descontos… Um incréu! Mas, enfim, eis o problema de uma crónica em directo: os seus comentários despacharam-me umas boas linhas, que agora teria de substituir. Além disso, o golo do miúdo Neves não muda um triste desempenho. Um empate do Benfica, ainda mais na Luz, sabe sempre a pouco, ó Roger! Como se fosse uma derrota…

    (GOLOOOOOOOOOOOOOOOOO!!!! MILAGREEEEEEEE!!!!)

    Ai coração! Tive de censurar uns palavrões… Marcou fora de jogo o fiscal-de-linha. Não pode ser!… Espera, o Soares Dias em conversações com o VAR… ai ai ai ai, tu queres lá ver que o VAR vai ver melhor?

    (GOLOOOOOOOOOOOOOOOOO!!! É mesmo golo. Deus existe. Existe porque escolheu o ‘manco’ dinamarquês Tengstedt para revelar mais um milagre)

    Tiago, estás despedido! De comentador de futebol daqui da Varanda da Luz, só, claro! Mas já te serviu não teres assistido à maior reviravolta dos tempos recentes. Roger é, afinal, grande! Ou Deus, talvez.

    Vou desandar. Prefiro as minhas investigações jornalísticas…

  • A diferença entre medo e terror

    A diferença entre medo e terror


    Foi uma semana de loucos.

    Marcelo de Rebelo de Sousa, incomodado por ter sido acusado de meter uma cunha, a pedido de uma sua nora, para que o Serviço Nacional de Saúde pagasse medicamentos no valor de quatro milhões de euros a duas crianças estrangeiras, ainda mais com os médicos a garantir que aqueles não ofereciam qualquer garantia de sucesso no tratamento de que necessitavam.

    Depois, soube-se que durante uma visita ao Bazar Diplomático, no Centro de Congressos de Lisboa, e na presença de uma dezena de jornalistas que tudo gravaram, Marcelo Rebelo de Sousa disse ao chefe da missão diplomática da Palestina, em Portugal, que alguns palestinianos não deviam ter começado esta guerra com Israel e aconselhou-os a serem moderados e pacíficos.

    Após o que se seguiu uma troca de palavras que teve muito de bazar e pouco, ou nada, de diplomático.

    Marcelo, é sabido, não leva desaforos para casa e diz o que lhe vai à cabeça independentemente de quem o contesta e do local em que o faz. Como bem ficou a saber o Embaixador da Palestina que nem teve que esperar para ser recebido no recato do Palácio de Belém, talvez com a presença do Ministro dos Negócios Estrangeiros, para ouvir das boas do Presidente da República.

    Perante as reacções, e as promessas de ajuntamento de protesto em frente ao Palácio de Belém, Marcelo resolveu ir para a rua afim de se manifestar contra si próprio. Mais, foi o primeiro a chegar, tecendo fortes críticas aos seus contestatários pela falta de pontualidade.

    Depois, teve a oportunidade de discutir com todos eles, um a um, e ainda o cuidado de, passados uns minutos, tirar o palito da boca não fosse o caso de qualquer um dos mal educados que por ali se manifestavam lhe acertar com os dedos que apontavam a poucos centímetros da sua cara.

    No dia seguinte, Marcelo justificou-se:

    “Nem percebo o alarido, não percebo. Foi o embaixador da Palestina que levantou a questão, não fui eu. Ele é que disse que a situação era muito complicada e deu as suas razões. No meu comentário, eu disse: atenção, é muito importante a moderação. E depois disse que foi pena que este caso tivesse nascido de um determinado lado.”

    Aos amigos mais próximos, terá dito:

    “O gajo é que começou e eu ficava-me?”

    E foi dar uma volta no primeiro automóvel que circulou em Portugal no longínquo ano de 1895.

    Em viaturas mais recentes, uma quantidade de Procuradores do Ministério Público, e agentes da Polícia Judiciária, deslocaram-se para fazerem umas buscas a residências particulares e oficiais, incluindo a do Primeiro-Ministro.

    Ao que consta a razão principal tem a ver com os negócios do lítio, do hidrogénio e de um data center, e poucos portugueses ficaram surpreendidos.

    Era mais que previsível que, mais dia menos dia, isso iria acontecer.

    Não houve um português que tivesse ficado surpreendido.

    Quem conhece o funcionamento da Justiça sabe que tudo se desenrolaria depois da “investigação” terminar.

    O que, em português, quer dizer: “Depois de todas as escutas telefónicas terem sido ouvidas:”

    Para se fazer uma acusação, no nosso país, basta isso.

    Os portugueses, ao telefone, e nas redes sociais, contam toda a sua vida, convictos de que uma chamada telefónica é uma conversa “a dois”.

    Ou que bastará usar um código primário para possíveis investigadores ficarem baralhados.

    Dizem: “Tábem, eu desenrasco isso mas tens que me depositar vinte lençóis dos maiores na minha conta. Depois mando o nib.” e ficam convictos de que os magistrados aceitarão que se referiam a roupa de cama e não a notas.

    Não é que eu considere os nossos juízes e procuradores gente de inteligência superior, mas há que reconhecer que, até eles, perceberão que algo não bate certo nesta conversa.

    Concluídas as buscas, ficaram cinco pessoas detidas, duas delas muito ligadas ao Primeiro-Ministro, e ele próprio, para além do ministro que ele tanto tem apoiado (João Galamba), ficou ligado ao Processo.

    O que levou a que António Costa tivesse pedido a sua demissão.

    Aqui chegados, começam os portugueses a temer o pior.

    Gente com medo do futuro próximo atendendo aos putativos candidatos ao lugar de líder do Governo.

    Imaginar que o Partido Socialista avance, por exemplo, com o nome de Medina faz suor frio ao mais corajoso.

    Pensar na hipótese de, perante estes dois anos de autoflagelação dos dirigentes do PS, a recolha cair em Luís Montenegro dá medo.

    Admitir a hipótese deste se coligar a André Ventura aumenta esse medo e a vontade de seguir o conselho de Passos Coelho e emigrarmos.

    Mas o terror, o verdadeiro terror, é sabermos que quem está a gerir esta situação complicada é Marcelo Rebelo de Sousa.

    Não creio que ele tenha mais capacidade nas opções políticas do que na escolha das suas bebidas e, ele mesmo confessa, chega a desmaiar por beber um moscatel quente depois de um Fortimel…

    Por mim falo: estou em pânico!

    Vítor Ilharco é assessor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Costa não é a ‘camisa’ do PS; é mais do que a pele: é o corpo

    Costa não é a ‘camisa’ do PS; é mais do que a pele: é o corpo


    Quem foi assistindo, ao longo desta semana, às movimentações em torno da demissão do primeiro-ministro, após as diligências do Ministério Público na denominada Operação Influencer, está a ser ‘bombardeado’ com a ideia de que António Costa é a ‘camisa’ do Partido Socialista. Ou seja, por uma qualquer razão, que convém menorizar, desgastou-se, troca-se e continua-se com a mesma pele, o mesmo corpo, os mesmos procedimentos.

    Não. António Costa não é um mero actor secundário de um partido que, desde o início da democracia – já lá vão quase 50 anos – compartilha a cena política, e a governação, de um país que ‘custa’ a desenvolver-se de forma ética e democraticamente saudável. António Costa é o pulso, ou melhor, o coração do actual Partido Socialista, até em termos históricos. Está na política que mexe desde 1995. São 28 anos, dos quais os últimos oito anos ele se serviu para ‘secar’ a ideologia de um Estado Social, substituindo-o por Estado Negocial.

    Na verdade, nos últimos anos, em parte fruto da infalível ceifeira do tempo, o Partido Socialista moldado por António Costa perdeu todas as suas referências: hoje, não há ideólogos para ‘cantar os amanhãs’; hoje não há ‘senadores’; hoje não há referências, hoje, não há auto-crítica. Estou a falar de gente credível. Hoje, apenas temos negócios e negociatas.

    Aproveitando uma comunicação social branda – fruto da crónica crise financeira dos media agarrados a um modelo de negócios de ‘prestação de serviços’ –, a máquina do Estado confundiu-se com a máquina do Governo. A Administração Pública, que serve os cidadãos, passou a servir o Partido Socialista.

    Aquilo que vem sendo revelado pelas diligências do Ministério Público – corrupção financeira e moral, tráfico de influências, pressão sobre funcionários públicos, alterações legislativas a pedido, benefícios ilegítimos de interesses empresariais em claro prejuízo do interesse das comunidades – não é um caso isolado. É o quotidiano. Como jornalista desde os anos 90, foi um ‘choque’ confrontar-me com uma máquina administrativa tolhida por um Governo, onde tudo se esconde, onde as negociatas se ‘cheiram’ na forma como os contratos públicos – o ‘sangue’ dos nossos impostos – são elaborados.

    No PÁGINA UM temos levantado o véu de alguns destes negócios, através da análise de contratos públicos ou mesmo na procura de informação, onde escritórios de advogados bem pagos pelo Estado se esforçam caninamente para manter o obscurantismo, para esconder o icebergue de corrupção que grassa o país.

    Perante tudo isto, não consigo compreender, portanto, como possa ser possível – e até admissível numa democracia adulta – que o Partido Socialista possa passar incólume pela Operação Influencer, e sobretudo por aquilo que representa e exemplifica. Não pode o Partido Socialista sair incólume com elogios ao estadista António Costa que, independentemente da sua culpa pessoal, tem desde já enormes responsabilidades políticas, nem que seja pelo ‘legado cáustico” do Governo Sócrates, onde ele chegou a ser o número dois.

    Não se pode assistir agora a um frenético passear de putativos candidatos a secretário-geral do Partido Socialista, onde até já despontam dois dos ‘coadjuvantes’ de António Costa, como são exemplo Pedro Nuno Santos (mas ninguém se lembra dos motivos da sua recente demissão?) e José Luís Carneiro. Não há ‘salvação’ possível, nem deveria haver perdão aceitável, para um partido que, depois do “pântano” de Guterres e da “cloaca” de Sócrates, leva agora, de novo, o país para os braços de mais uma etapa de uma crise crónica, de uma incessante crise moral, social e económica em que o Estado – dividido entre o Partido Socialista e o Partido Social Democrata – se esforça apenas para sacar o máximo possível dos contribuintes para distribuir o máximo possível entre os seus apaniguados e clientes.

    stack of books on table

    Como escrevi no início, não pode ser admissível aceitar-se – mesmo sabendo dos alegados ‘perigos’ de uma viragem à direita, e o risco do crescimento da influência política de uma direita mais ‘radical – que o Partido Socialista saía de António Costa da mesma forma que o Partido de António Costa fez com José Sócrates. Não pode sequer ser aceitável sequer que, perante a gravidade das fortes suspeitas do Ministério Público –, o Governo ainda em funções mantenha pessoas como João Galamba ou Duarte Cordeiro, como se nada sucedesse.

    Aliás, na verdade, nem António Costa deveria, moralmente, manter-se em funções de gestão governamental até às eleições legislativas. Politicamente, deveria estar ‘morto’ e enterrar-se, e o Partido Socialista ‘refundar-se’, fazendo uma ‘purga’ ideológica, de pessoas, de procedimentos. Mudar simplesmente Costa, como se fosse uma ‘camisa’ gasta, não assumindo que a ‘doença’ do Partido Socialista é o seu já disforme e irreversível ‘corpo’, pode a curto prazo servir os interesses corporativos que se têm alimentado do Estado nas últimas décadas.

    Conseguindo convencer o eleitorado que basta trocar a ‘camisa’ Costa, mantendo-se o status quo, para assim evitar uma ascensão imediata da direita ao Governo – e fazendo até ‘ressuscitar’ a famigerada geringonça – pode até convencer o eleitorado a curto prazo. Mas apenas vai adiar uma solução para o país, que não passa por ideologias, mas sim por pessoas, ou melhor por corporações de políticos, como aqueles que António Costa foi alimentando no Partido Socialista, enquanto todos se banqueteavam com as benesses do Estado.

    Tudo isto não nos deve impedir de olhar para uma alternativa a António Costa e ao Partido Socialista com apreensão. Mas mais do que temermos Luís Montenegro como primeiro-ministro (que, concedo, pode vir a ser pior do que Santana Lopes no seu efémero mandato) ou uma ascensão do Chega ao Governo (que a ocorrer será mais uma ‘lição’ para a forma como não se geriu a democracia pós-25 de Abril e não a uma colagem ideológica dos portugueses à extrema-direita), devemos sim temer mais anos de um Partido Socialista pós-Sócrates e pós-Costa com os mesmos vícios.

    Talvez seja melhor, como cidadãos, que procuremos antes que o Estado – como entidade própria e ao nosso serviço – se proteja, e nos proteja, com instrumentos de controlo e fiscalização dos políticos, com o reforço da transparência, da estrutura do Ministério Público e do Tribunal de Contas, e com um aumento da celeridade e melhoria nas decisões por parte dos tribunais.

    Numa democracia sólida, eu não temo nenhum partido. Numa democracia débil, eu temo qualquer partido, mas ainda mais aqueles que transformaram a democracia portuguesa numa coisa débil – como o fez António Costa e o ‘seu’ Partido Socialista nos últimos anos. E quem assim escreve ainda acredita no Estado Social, apesar de tudo.

  • Imprensa: a máquina de fazer ‘Antónios Costas’  

    Imprensa: a máquina de fazer ‘Antónios Costas’  


    Dizem-se “competentes” e “independentes” ao mesmo tempo que distribuem, em conferências patrocinadas, elogios e sorrisos por governantes, banqueiros e empresários. Falam em atingir “objectivos” e em “trabalhar em equipa”, mas apostam em estagiários low cost ou que trabalham de graça.

    Foram estes directores de órgãos de comunicação social que ajudaram a criar (e a manter incólume) a “marca” António Costa – ajudados por muitos comentadores. Como agora vão ajudar a criar a marca do seu sucessor (e assim aparecem “Pedros Nuno Santos” a serem promovidos, com o seu tempo de antena num programa dito “informativo” de um canal de TV, ou se assobiam nomes como o de Medina em editoriais e artigos de opinião).

    Adoram palavras como “crescimento” e “liderança”, e sentem-se como gestores. Pelo meio, mencionam “liberdade” e “democracia”, como quem canta a tabuada no antigo liceu. São, assim os directores de órgãos de comunicação social dos nossos dias.

    São jornalistas, com carteira profissional passada, mas queriam era mesmo ser administradores ou ir para o Governo. Mas não. Estão (ainda) a trabalhar em grupos de media, com olhos num futuro mais risonho e bem-sucedido.

    Demonstram militância em relação aos poderosos, o que impede que haja nas suas redacções qualquer semelhança com o jornalismo.

    (Nunca se viu tal comunhão entre Governo e autarcas e directores de jornais como nos últimos anos. Era só ler as manchetes. Ver os telejornais. Não se distinguiam os soundbites de governantes das linhas lidas por pivôs ou nas palavras gordas das manchetes.)

    Até lá, até serem administradores, empresários, consultores, estes directores somam “sucessos”, “vitórias”. Saltitam alegremente de conferência em conferência. De talk em talk. De cimeira em cimeira. Sempre sorridentes ao lado de governantes, autarcas e empresários e banqueiros de renome. Sentem-se um deles. Sentem que têm poder, assim, ao lado de gente “de topo”.

    Imitam. Podem ter carros de gama alta, cartões de crédito e outros benefícios à disposição. Podem ter prémios, seja por conseguir reduzir custos (despedir mais jornalistas) ou pelo desempenho… comercial.

    No reinado de Costa, raramente questionaram as políticas do Governo. Era tudo magnífico. Maravilhoso. Quase não se distinguiam as notícias dos anúncios do Governo. As mesmas palavras, os mesmos slogans, as mesmas palavras-chave.

    A política na Saúde? Uma maravilha! Melhor do que antes! A política na Educação? Espectacular, e a melhorar! A política fiscal? Impecável (sobretudo por Medina fechar os olhos às dívidas de grandes grupos de media)! A política externa? Nada a apontar.

    Até a desastrosa gestão da pandemia foi, segundo se lê nos media, “um sucesso”. Excesso de mortalidade assustador desde 2021? E a continuar depois do programa de vacinação contra a covid-19? Isso não interessa nada. Se Costa não fala no excesso de mortalidade e diz que foi um sucesso a gestão da pandemia, e se a Direcção-Geral da Saúde não dá os números diários de portugueses que morrem sem explicação, incluindo jovens, então para quê noticiar?

    Para estes directores de jornais, António Costa e a maioria dos seus ministros eram anjos na Terra. Uns santos. Uns líderes inquestionáveis (e insubstituíveis).

    O mesmo se aplica a Marcelo. Num só jornal diário consegue-se identificar dezenas de chamadas de capa maravilhosas sobre o Presidente, apenas no espaço de um ano. E também quase uma dezena de chamadas de primeira página a promover o novo favorito dos media para a Presidência, um novo anjo na Terra: o “futuro incontestado líder” Gouveia e Melo.

    (Já diz o ditado: quem mais cedo promover, mais benesses poderá ter… sobretudo se fizer ouvidos moucos às críticas e aos factos.)

    Estes directores traem o jornalismo, traem os órgãos de comunicação social que dirigem e traem as suas equipas de jornalistas e profissionais de media, traem as suas redacções. Traem toda a classe e todos os que vieram antes deles. Traem os leitores, os ouvintes, os telespectadores. E traem o país e a democracia. Alguns nem percebem que estão a usurpar funções, porque nunca foram nem nunca serão jornalistas, porque não sabem o que isso é. Outros sabem, mas têm hoje um estilo de vida que não permite voltar atrás.

    (Quem lhes pagaria as elevadas contas e despesas dos filhos ou as obras na casa de campo?)  

    Confundem mais e mais parcerias comerciais com sucesso. Confundem mais conferências com sucesso. Confundem mais edições patrocinadas com sucesso. Confundem mais entrevistas e notícias pagas com sucesso.

    (Sim, as parcerias comerciais incluem, por vezes, entrevistas e notícias, que nem sempre são publicadas com a indicação de serem conteúdos pagos).

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    Confundem sucesso com a publicação de uma entrevista boazinha a um ministro. Com a publicação de um artigo de opinião de um banqueiro.   

    Confundem sucesso com redacções vazias de jornalistas seniores e cheias de estagiários a escreverem notícias abençoadas ou patrocinadas.

    Na realidade, a verdade é que acumulam uma sucessão de insucessos. De falhanços. De derrotas.

    Porque é um falhanço redondo o emagrecimento contínuo das redacções ao longo dos anos. O empobrecimento das redacções a todos os níveis. O apagar de gerações das redações. O apagar de sabedoria e conhecimento. Muito conveniente, de resto.

    Porque é uma enorme derrota o nível recorde de promoção de anúncios de governantes e autarcas e a publicidade a comunicados de empresas e bancos como nunca se viu. Escrutínio? Investigação? Questionar? Ouvir o contraditório? Quase zero.

    Os directores editoriais confundem-se hoje com gerentes de supermercados: “lideram” equipas de trabalhadores obedientes (muitos com salários baixos, outros nem tanto), dependentes, que desembalam, expõem nas prateleiras e arrumam, sem pestanejar. Sem perder tempo. Não há tempo porque há artigos a vender e as marcas já pagaram as campanhas a destacar na entrada na loja… na primeira página do jornal. No telejornal.   

    black microphone on brown wooden table

    São directores de jornais, de TVs, de rádios? São. São jornalistas? Não, não são. São líderes? Também não. Não, pelo menos, de meios de comunicação social.  

    Quando confrontados com esta verdade, respondem que estão a “salvar” o jornalismo e a Imprensa. Que é o dinheiro dos bancos, dos Ministérios, das direcções-gerais, das autarquias e das empresas que paga os salários dos jornalistas (ou quererão dizer os seus salários e prémios?). Que sem parcerias comerciais os jornais, as TVs, as rádios faliam.

    Não compreendem. Não percebem que vendem nessas parcerias comerciais o corpo e a alma dos meios de comunicação social, e que não sobra nada similar a jornalismo. Graças a eles, hoje, banqueiros, governantes e empresários perderam o respeito pelos jornalistas e o jornalismo. Fazem troça. Afinal, são eles quem “financiam” os jornais.     

    E enquanto directores aparecerem sorridentes ao lado de governantes, banqueiros, empresários, a fazer vénias e a vergarem-se perante as chorudas parcerias comerciais, também não são competentes.

    Serão competentes quando as redacções regressarem com jornalistas que questionam e têm tempo e capacidade para investigar, com salários dignos. Serão competentes quando escrutinarem governantes e as suas políticas. Quando escrutinarem banqueiros e os empresários e os seus negócios.

    Serão competentes e independentes quando recusarem aparecer em conferências e talks em que se promovem marcas, políticos (e as suas políticas), banqueiros e empresários.

    magnifying glass, facts, investigate

    Até lá, não passam de servos dos departamentos comerciais. Dos banqueiros, dos governantes, das empresas patrocinadoras. Não são directores nem são administradores. São servos.

    E são também cangalheiros a enterrar o Jornalismo. Todos juntos, os muitos directores de jornais, de revistas, de TVs, de rádios. Juntos a levar em ombros o caixão onde jaz morto o Jornalismo. Nisso sim, estão a ser muito competentes, sendo ajudados pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, que, fechando os olhos às infracções cometidas nas parcerias comerciais, até leva flores para o funeral.

    Enquanto ajudam a promover, a criar novos primeiros-ministros, novos presidentes, dão mais um passo no cortejo fúnebre do Jornalismo. De forma muito competente.

    Elisabete Tavares é jornalista


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